william shakespeare, 1596, e quiara alegría hudes, 2006: duas...

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LIVRO: Coletânea de artigos sobre Shakespeare William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas peças traduzidas e algumas semelhanças no processo Beatriz Viégas-Faria INTRODUÇÃO O objetivo da presente análise é traçar um paralelo entre O mercador de Veneza e Elliot: fuga para um soldado, dois títulos da dramaturgia de língua inglesa separados entre si por 410 anos. Traduzi as duas peças em 2007 – Shakespeare para publicação (Coleção Pocket L&PM) e Hudes para leitura dramática (Centro da Cultura Judaica, São Paulo) com direção de William Pereira. Quiara Hudes é uma jovem dramaturga estadunidense, autora de vários musicais, com formação em música (Yale University) e criação dramatúrgica (Brown University). Sua peça Elliot, a soldier’s fugue, ficou entre as três finalistas do prêmio Pulitzer de 2007 (categoria Drama). Hudes é descendente de porto-riquenhos e de judeus. Este ensaio limita-se à apreciação de apenas um dos vários elementos temáticos presentes nas duas peças, qual seja, o contexto de diferentes etnias em contato (e em conflito) e seus respectivos preconceitos, passando por uma verificação, através de alguns exemplos, de como esse elemento foi (ou poderia ter sido) trabalhado durante o processo tradutório. Em seguida, faz-se breve apresentação de um estudo sobre estratégias tradutórias opcionais que implicam em alguma alteração (shift) no texto traduzido em relação ao texto-fonte. Esse estudo, da finlandesa Hilkka Pekkanen (2007), serve de base para a classificação e a apreciação dos exemplos selecionados com o intuito de ilustrar estratégias tradutórias de minha escolha, conforme terminologia usada em Estudos da Tradução.

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Page 1: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

LIVRO: Coletânea de artigos sobre Shakespeare

William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006:

duas peças traduzidas e algumas semelhanças no processo

Beatriz Viégas-Faria

INTRODUÇÃO

O objetivo da presente análise é traçar um paralelo entre O mercador de

Veneza e Elliot: fuga para um soldado, dois títulos da dramaturgia de língua inglesa

separados entre si por 410 anos. Traduzi as duas peças em 2007 – Shakespeare para

publicação (Coleção Pocket L&PM) e Hudes para leitura dramática (Centro da Cultura

Judaica, São Paulo) com direção de William Pereira. Quiara Hudes é uma jovem

dramaturga estadunidense, autora de vários musicais, com formação em música (Yale

University) e criação dramatúrgica (Brown University). Sua peça Elliot, a soldier’s

fugue, ficou entre as três finalistas do prêmio Pulitzer de 2007 (categoria Drama).

Hudes é descendente de porto-riquenhos e de judeus.

Este ensaio limita-se à apreciação de apenas um dos vários elementos

temáticos presentes nas duas peças, qual seja, o contexto de diferentes etnias em

contato (e em conflito) e seus respectivos preconceitos, passando por uma verificação,

através de alguns exemplos, de como esse elemento foi (ou poderia ter sido)

trabalhado durante o processo tradutório.

Em seguida, faz-se breve apresentação de um estudo sobre estratégias

tradutórias opcionais que implicam em alguma alteração (shift) no texto traduzido em

relação ao texto-fonte. Esse estudo, da finlandesa Hilkka Pekkanen (2007), serve de

base para a classificação e a apreciação dos exemplos selecionados com o intuito de

ilustrar estratégias tradutórias de minha escolha, conforme terminologia usada em

Estudos da Tradução.

Page 2: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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The Merchant of Venice / O mercador de Veneza

Em O mercador de Veneza, temos Shakespeare apresentando ao público esse

grande comerciante do título, Antônio, dono de vários navios mercantes, cidadão

importante da cidade-estado e cristão fervoroso. É um homem que pratica a bondade

e a compaixão para com o próximo (desde que este seja igualmente cristão); é um

cidadão cumpridor das leis (não as questiona, mesmo quando estão contra ele), e

segue uma moral que não aceita a usura (para tanto, cita a Bíblia): o empréstimo de

dinheiro, a seu ver, deveria ser praticado de modo “cristão”, sem a cobrança de juros.

Daí Antônio desprezar os judeus de Veneza (considerados estrangeiros residentes),

que cobravam juros pelos empréstimos.

Os judeus, no entanto, tinham importância vital para a economia de Veneza,

porque era com o empréstimo a juros que faziam movimentar os negócios e mesmo

contribuíam para a vida política da cidade-estado, pois possibilitavam o financiamento

de guerras. Como não eram considerados cidadãos de Veneza e sim cidadãos da

“pátria judaica”, aos judeus eram impostas regras de todo tipo: não podiam ter, por

exemplo, propriedades em Veneza. Em matéria de residência, viviam segregados.

Como não eram facilmente identificáveis pelo aspecto físico (como eram os negros,

por exemplo), eram obrigados a usar algum tipo de identificação nas vestimentas. Já

que a eles era vedada praticamente toda e qualquer oportunidade na vida econômica

da sociedade cristã, restava-lhes a prática da usura como meio de sustento.

Assim sendo, quando ao fim da peça Antônio impõe a conversão de Shylock ao

cristianismo, isso representava, àquela época, bani-lo física e geograficamente de sua

comunidade judaica, de todo o seu suporte social. A conversão, como esclarece

LUPTON (2004, p. 3), “com sua ênfase religiosa, esconde, subjacente, um conjunto de

transformações jurídicas [...] algum processo de naturalização [...] Uma Bula Papal de

1542, incentivando a conversão ativa dos judeus, estipulava que os convertidos se

tornassem cidadãos do lugar onde fossem batizados”.1 Isso significava vantagens

econômicas e sociais, além de conjugais, dentro do mundo cristão, mas, em

contrapartida, o exílio involuntário de sua “pátria judaica”.

Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu, queixa-se de Antônio: “Detesto o

sujeito por ser um cristão, mas detesto ainda mais porque, assim humilde e simplório,

ele faz empréstimos de graça e reduz a taxa de juros aqui para nós em Veneza. [...]

Ele odeia a nossa sagrada nação judaica e me insulta a mim [...] e ofende as minhas

1 Minha tradução.

Page 3: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

3

boas ofertas e o meu bem-merecido e suado sucesso, que ele chama de ganhos em

cima dos juros” (p. 37).2

I hate him for he is a Christian; But more, for that in low simplicity He lends out money gratis, and brings down The rate of usance here with us in Venice. […] He hates our sacred nation, and he rails […] On me, my bargains, and my well-won thrift Which he calls interest. (1, 3, p. 34-43) 3

Ainda que fossem de Veneza, os judeus eram estrangeiros de uma pátria virtual,

sujeitos a todo tipo de restrição social – entre outras, constituíam crime relações

sexuais entre judeus e não-judeus. A filha de Shylock, Jéssica, converte-se ao

cristianismo quando foge de casa para se casar com seu amado Lorenzo.

Se tanto Antônio como Shylock são de Veneza, quando Shylock está falando

de Antônio e se refere a “our sacred nation” (nossa sagrada nação), penso que o leitor

brasileiro do século XXI tomaria essa nação “nossa” como sendo Veneza. Para não

abrir nota de rodapé, preferi no corpo do texto colocar um acréscimo: “judaica”.

É interessante observar que os usurários judeus de Veneza não cobravam

juros, contudo, quando o empréstimo era concedido para outro judeu. Pode-se dizer

que, na visão de Antônio, entre eles, os judeus tinham um comportamento “cristão”.

Nesta comédia de Shakespeare (também classificada como problem play, onde

Shylock desponta como notável personagem trágica), na continuidade do enredo na

Cena 3 do Ato 1 (logo após a fala acima mencionada, de Shylock falando consigo

mesmo, à parte), temos Antônio, por circunstâncias excepcionais, pedindo um

empréstimo a Shylock. Antes de dizer que está disposto a conceder um empréstimo a

Antônio, Shylock tem uma série de falas, quando, entre outras coisas, argumenta: “O

senhor me chama de infiel, de cão raivoso, e cospe na minha gabardina de judeu”. E

mais adiante, na mesma fala, com óbvia ironia: “‘Mui justo senhor, o senhor cuspiu em

mim na última quarta-feira, o senhor me enxotou em um tal dia e, de outra feita, me

chamou de cachorro; e, em consideração a essas cortesias, vou lhe emprestar estes

tantos dinheiros’” (p. 40).

You call me misbeliever, cut-throat dog,

2 Todas as citações de O mercador de Veneza em tradução são tiradas da edição L&PM (Porto Alegre: 2007), minha tradução. 3 Todas as citações de The Merchant of Venice são tiradas da edição The New Cambridge Shakespeare (Cambridge, 2003), editada por M.M. Mahood.

Page 4: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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And spit upon my Jewish gaberdine, (…) ‘Fair sir, you spat on me on Wednesday last, You spurned me such a day, another time You called me dog; and for these courtesies I’ll lend you thus much monies.’ (1, 3, p. 103-121)

Neste caso, a solução tradutória foi abrir nota de rodapé referente à palavra

“cão” (dentro da expressão “cão raivoso”, em sentido pejorativo que depois se repete

no vocábulo “cachorro”): “Para os judeus, os cães eram sinônimo de sujeira,

imundície”. Hoje penso que uma solução – para palco, por exemplo, a fim de evitar

notas – seria manter a expressão “cão raivoso” e depois usar “cachorro imundo”. De

qualquer modo, a informação extra, de um sentido implícito sociocultural que carregam

as palavras “cão” e “cachorro” nessa passagem de O mercador de Veneza, estaria

perdida.

Vale a pena ressaltar aqui que o filme de Michael Radford (Fox, 2004) não só

tem essa fala (Al Pacino no papel de Shylock), como também mostra previamente, em

cena bem anterior, Antônio (Jeremy Irons) cuspindo no rosto de Shylock.

Na Cena 2 do Ato 1 de O mercador de Veneza, temos Pórcia, principal

personagem feminina, apontando os defeitos de cada um de seus pretendentes. As

falas são cômicas, repletas de sentidos implícitos, como, por exemplo, quando

perguntada sobre o pretendente francês: “Deus o fez e, portanto, vamos deixá-lo

passar por homem” (p. 32). “God made him, and therefore let him pass for a man.” (2,

1, p. 46) Por inferência, essa frase diz que o pretendente francês de Pórcia não é

homem. Para o leitor/espectador de hoje, essa frase solta, sem outro contexto, levaria

a crer que o francês em questão é homossexual. Convém ressaltar que a noção de

homossexualidade não existia à época de Shakespeare, quando as amizades (entre

mulheres ou entre homens) eram vínculos afetivos normalmente tão ou mais fortes

que o vínculo matrimonial.

Contudo, uma vez que sentidos implícitos do tipo implicatura conversacional

(como é o caso nessa fala de Pórcia) são por natureza indeterminados, pode-se

parafrasear a inferência: o pretendente francês da lady “é tudo, menos um homem”. O

sentido é ambíguo até que se desfaz a ambiguidade, pois Pórcia continua, contando

que o francês faz tudo melhor que os outros: “é todos os homens dentro de homem

nenhum. [...] é capaz de esgrimar com a própria sombra. Se eu tivesse de me casar

com ele, estaria me casando com vinte maridos” (p. 32-33). E essa fala de Pórcia

termina com outra magnífica ambiguidade: “se fosse louco por mim, eu não teria como

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retribuir” (p. 33). “[...] he is every man in no man. [...] he will fence with his own shadow.

If I should marry him, I should marry twenty husbands.” (1, 2, p. 58-60)

No entanto, a frase “vamos deixá-lo passar por homem” – mesmo que a

tradução fosse “vamos deixá-lo passar por um homem” – nos tempos de hoje

dificilmente será entendida com outro significado que não “ele é homossexual”, mesmo

dada a continuação da fala, tal a força da expressão em nossa sociedade atual (se ele

não é homem, então é gay – por dedução lógica). Fica bastante difícil para a tradução

escapar dessa inferência, inexistente no texto-fonte à época do autor. Uma solução

talvez fosse uma inversão na ordem das frases: deixar para o fim dessa fala

descritiva/explicativa de Pórcia a sua frase inicial com alguns ajustes: “... estaria me

casando com vinte maridos. Mas Deus o fez e, portanto, vamos deixá-lo passar por

um homem”.

Continuando em sua análise dos pretendentes, Pórcia (cidadã da fictícia

Belmonte) faz a crítica do inglês, um jovem barão (ou seja, Shakespeare faz uma

crítica aos ingleses): “Ele não fala latim, nem francês, nem italiano [Pórcia fala essas

três línguas e não fala inglês]. Ele é um retrato de tão bonito [...] E que maneira

estranha de se vestir! Acho que ele comprou seu gibão na Itália, os calções bufantes

na França, o chapéu na Alemanha, e os modos... em tudo quanto foi lugar” (p. 33). “he

hath neither Latin, French, nor Italian [...] He is a proper man’s picture […] How oddly

he is suited! I think he bought his doublet in Italy, his round hose in France, his bonnet

in Germany, and his behaviour everywhere.” (1, 2, p. 57-62) A tradução abre uma nota

de rodapé ao fim dessa fala: “Os ingleses eram motivo de piada na Europa àquela

época, por não terem um estilo próprio no vestir-se, sendo, portanto, ‘ecléticos’. Um

livro de grande sucesso entre os ingleses alfabetizados daquela época foi a tradução

[feita por John Florio] de um manual de etiqueta italiano”.

Vale aqui comentar que a tradução de termos de peças de indumentária

nunca é fácil. Não se tem no léxico de língua portuguesa a exata tradução de muitas

peças que eram ou são usadas em outras culturas (a burka é um exemplo) ou em

outros tempos. O bonnet masculino é um tipo específico de chapéu; a tradução optou

pelo hiperônimo. E hose não são apenas os calções, mas inclui também as meias ou

ceroulas.

Pórcia, além de descrever com bom humor seus pretendentes francês e inglês,

vê defeitos também no príncipe napolitano, no Conde Palatino, no lorde escocês e no

alemão, sobrinho do Duque da Saxônia. Quando lhe anunciam a chegada do Príncipe

de Marrocos, o comentário de Pórcia é o seguinte: “Se ele tiver o caráter de um santo

Page 6: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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e as feições de um demônio, prefiro que venha a ser meu confessor, e não meu

marido” (p. 35). “If he have the condition of a saint, and the complexion of a devil, I had

rather he should shrive me than wive me.” (1, 2, p. 106-108) Como ao tempo de

Shakespeare o diabo era convencionalmente retratado como uma figura de cor preta,

para o público do teatro elizabetano ficava fácil inferir da fala de Pórcia que, se o

Príncipe de Marrocos fosse negro (e, de acordo com os conceitos de beleza da época,

por ser negro ele seria necessariamente feio), ela não o desejava para marido.4

Se pensarmos em uma tradução para palco em vez de para publicação, talvez

fosse solução (funcional) para imediata compreensão de uma plateia brasileira de hoje

a tradução que substituísse “as feições de um demônio” por algo como “a pele escura”

– onde se explicitaria o preconceito. Pré-conceito, aliás, que o próprio Príncipe de

Marrocos vai se encarregar de exprimir: “Não me detesteis por minha aparência [...] Eu

vos digo, senhorita, este meu aspecto já meteu medo nos mais valorosos soldados.

[...] Eu não trocaria esta cor de pele, a menos que fosse para roubar vossos

pensamentos, minha nobre rainha” (p. 43).

Mislike me not for my complexion, […] I tell thee, lady, this aspect of mine Hath feared the valiant; […] […] […] I would not change this hue, Except to steal your thoughts, my gentle queen. (2, 1, p. 1-12) Na Cena 1 do Ato 4, temos Shylock, o judeu, no tribunal veneziano,

defendendo com brilhantismo lógico sua posição de cobrar aquilo que lhe é devido:

uma libra da carne do corpo de Antônio, o mercador de Veneza.

Que julgamento devo temer, se não faço nada errado? Os senhores têm entre vocês muitos escravos, que os senhores compraram e que, como se fossem seus jumentos, seus cachorros, suas mulas, os senhores usam de modo abjeto, em tarefas nojentas. Porque os senhores os compraram. Devo então dizer-lhes “Libertem os seus escravos! [...]”, devo dizer-lhes isso? Os senhores vão me responder “Os escravos são nossos”. Pois eu lhes respondo assim. Essa uma libra de carne que exijo dele foi comprada a peso de ouro; ela é minha, e vou levar o que é meu. Se isso me for negado, meus senhores, as suas leis são uma vergonha.” (p. 100-101)

What judgement shall I dread, doing no wrong? You have among you many a purchased slave, Which, like your asses and your dogs and mules, You use in abject and in slavish parts

4 Aqui, a tradução mais correta talvez fosse “a pele da cor do diabo” (ou seja, se o Príncipe for negro) em vez de “as feições de um demônio” (ou seja, se o Príncipe for feio). De qualquer maneira, entendendo complexion como a cor da pele (do rosto) ou como as feições, o público elizabetano entenderia que complexion of a devil seria de cor negra. Por outro lado, o público brasileiro de hoje, que conhece a expressão idiomática “feio como o diabo”, poderia se perguntar de que cor é a pele do diabo.

Page 7: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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Because you bought them. Shall I say to you, ‘Let them be free! […] [...]’? You will answer, ‘The slaves are ours.’ So do I answer you. The pound of flesh which I demand of him Is dearly bought; ’tis mine, and I will have it. If you deny me, fie upon your law (4, 1, p. 89-101)

Neste caso, a tradução, para tornar ainda mais contundente a fala de Shylock em sua

agressividade verbal, soluciona o adjetivo purchased por uma oração adjetiva (“que os

senhores compraram”) que mais adiante recebe eco em “Porque os senhores os

compraram”. Em vez de empregar a tradução literal “muitos escravos comprados”

(many a purchased slave), preferi usar de expressão a meu ver argumentativamente

mais forte, pois explicita o agente da compra (purchase). Ao mesmo tempo, estou aqui

fazendo uso da técnica tradutória de compensação – quando em outras passagens

das falas da peça não foi possível incluir no texto traduzido uma repetição que havia

no texto-fonte. (A repetição pode ficar impedida por várias razões, como, por exemplo:

cacofonia, ritmo da frase, efeito estético.)

Note-se que essa fala de Shylock é ambígua – numa primeira leitura, pode

parecer que Shylock tem posições claramente antiescravagistas. Contudo, todo o seu

discurso argumenta na direção de fazer valer o seu direito à carne de Antônio; é uma

argumentação com base em Lógica (se x, então y = se os senhores podem, eu

também posso [mesmo não sendo um cidadão de Veneza] porque tenho comigo uma

nota promissória vencida e porque a lei está do meu lado). Se Shylock acredita estar

moralmente certo ao pedir a carne de Antônio (a premissa y é V, i.e., verdadeira),

então ter escravos e tratá-los de modo abjeto tanto pode estar certo como errado (a

primeira premissa x pode ser V ou F, e a asserção é V). Contudo, se Shylock acredita

estar moralmente errado ao pedir a carne de Antônio, isso quer dizer que sua

premissa y é F e, para que a asserção seja V, a premissa x deve ser necessariamente

F, ou seja: Shylock acredita que ter escravos é moralmente errado. Em outras

palavras, se é (legalmente) correto ter escravos, é (legalmente) correto para Shylock

ter a carne de Antônio – por necessidade lógica. Sua argumentação é impecável e

irrefutável e, de fato, o tribunal não a refuta, mas pede a ele que se mostre

misericordioso.

Veja-se que, na verdade, Shylock está tomando o tópico da escravidão dos

negros não para condenar os venezianos por serem escravagistas, mas sim para

adverti-los de que estarão incorrendo em erro jurídico se não lhe derem ganho de

causa. O leitor fica sem saber se Shylock condena ou aprova a escravatura.

Page 8: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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Elliot, a soldier’s fugue / Elliot: fuga para um soldado

Vejamos agora, no texto de Quiara Hudes, exemplos similares de dificuldade

tradutória em relação a expressões que fazem referência a diferenças étnicas com

seus respectivos significados socioculturais embutidos no texto. Elliot, a personagem-

título, é um fuzileiro naval, americano e descendente de porto-riquenhos. As cenas da

peça alternam-se em dois movimentos musicais: fugas e prelúdios. No movimento

6/Fuga, Elliot está conversando com outro fuzileiro naval, e os dois estão no front de

batalha da Guerra do Iraque.

ELLIOT (Dirigindo-se a um imaginário parceiro de patrulha noturna.) Waikiki, o que é que cê vai comer primeiro quando chegar em casa? Eu não sei. Provavelmente vou começar com aquelas rabanadas do Denny’s pro café da manhã. Não queira nem me ver, cara, perto do corredor dos “cereais matinais”. Vou perder a cabeça. Eu ando com desejos de sucrilhos. Se você tivesse que escolher entre Cocoa Puffs e Count Chocula, o que é que você escolhia? Wheaties ou Life? Fruity Pebbles ou Cruchberry? Sabe, a minha mãe nunca compra Cap’n Crunch. Ela compra King Vitamin. É desses que, de tão barato, nem vem dentro duma caixa. Vem num saco plástico, como essas massinha mixuruca de judeu. (p. 20)5

ELLIOT (To imaginary night patrol partner.) Waikiki man, whatchu gonna eat first thing when you get home? I don’t know. Probably start me off with some French toast from Denny’s. Don’t even get me near the cereal aisle. I’ll go crazy. I yearn for some cereal. If you had to choose between Cocoa Puffs and Count Chocula, what would you choose? Wheaties or Life? Fruity Pebbles or Crunchberry? You know my mom don’t even buy Cap’n Crunch. She buys King Vitamin. Cereal so cheap, it don’t even come in a box. It comes in a bag like them cheap Jewish noodles. (p. 19)6

Aqui temos um exemplo interessante: o termo cheap (barato, de pouco custo – e,

simultaneamente –, de baixa qualidade, vagabundo) qualificando Jewish noodles logo

após ter qualificado igualmente como cheap uma marca de cereal matinal americano.

Ou seja, Elliot acredita que há marcas boas e ruins de cereal matinal americano, mas,

para ele, todas as massas que seguem receita e apresentação da culinária judia são

cheap. A tradução, optando pelo termo “mixuruca” (de má qualidade e de nenhum

valor7), de certo modo reforça, aumenta, exacerba a adjetivação do original – ou seja,

um acréscimo de traço semântico.

Vale a pena lembrar aqui que a autora do texto é judia e que a tradução e a

leitura dramática da peça foram encomendadas pelo Centro da Cultura Judaica de

São Paulo. O diretor e o elenco de cinco atores (sendo que o único papel feminino da

5 Em minha tradução, texto de 58 páginas (com Anexo) em documento Word. 6 Do original de 54 páginas, enviado pela autora em documento Word. 7 Conforme o dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro, Objetiva: 2001).

Page 9: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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peça foi lido por uma atriz judia) optaram por retirar da leitura dramática a última frase

da fala acima.

Outro exemplo de expressão preconceituosa em Elliot está no movimento

11/Prelúdio, na seguinte fala da personagem-título: “Política externa? Ninguém dá a

mínima. O pessoal bebe que é pra esquecer os sofrimentos. Você anda pelos

corredores e tem gente que está passando por ali, correndo e gritando ‘F isso!’, ‘F

aquilo’, ‘Matar essa turcalhada de toalha na cabeça!’“ (p. 45).

ELLIOT Politics? Nobody cares about that. People drink their sorrows away. You hear people running down the hallway like, “F this!” “F that!” “Kill raghead!” (p. 43)

Chamar turbante de “toalha” deve ser algo como chamar o kilt dos escoceses de

“saia”, ou chamar a bomba do chimarrão do gaúcho de “canudinho”. A tradução

procurou algo que fosse chocante para a etnia insultada. O termo raghead pretende

ofender os muçulmanos de modo geral, e não só os iraquianos. Centrando-se no uso

do turbante, o termo inadvertidamente exclui as mulheres muçulmanas e inclui os

indianos sikh. Toalha é menos ofensivo que trapos (rags), mas existe o termo

towelhead como sinônimo de raghead, ambos os termos encontrados tão-somente na

internet, via ferramentas de busca – tanto um como outro, em 2007, ainda não

estavam dicionarizados.8 De qualquer modo, falar de uma pessoa “de toalha na

cabeça”, por ser expressão não-idiomática em língua portuguesa, até pode soar

engraçado, mas não será necessariamente insultante. Procurando por um termo que

fosse ofensivo a muçulmanos de um modo geral no Brasil, passei pela noção de

“turco”, usada para designar qualquer comerciante que vende barato e fiado, e, via

dicionário (Houaiss eletrônico), cheguei ao vocábulo “turcada” e à sua forma de uso

pejorativo, “turcalhada”.9

Quando a tradução de Elliot já estava pronta, ainda faltava resolver esse termo,

raghead – afinal, resolvido com uma paráfrase (sem recorrer à explicação de nota de

rodapé, porque essa era uma tradução para o palco, e não para publicação). Essa

experiência veio mostrar uma semelhança curiosa, em termos de processo tradutório,

para textos muito antigos e textos muito novos (no caso de Elliot, a tradução foi

executada no ano seguinte à produção textual): os muito antigos apresentam

vocábulos que não são mais usados ou então, no caso de estarem em uso, são

8 Conforme consulta ao Merriam-Wbster Unabridged online para assinantes em março de 2007. 9 Essa busca por uma tradução para raghead teve a ajuda inestimável, que agora volto a agradecer, de colegas tradutores que fazem parte de três listas de discussão de tradutores na internet: tradutores gaúchos, tradutores literários e tradutores de/para língua portuguesa.

Page 10: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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empregados com outro(s) significado(s); já os textos contemporâneos podem lançar

mão de vocábulos que ainda não estão registrados em dicionários. Nos dois casos, a

pesquisa do tradutor passa ao largo dos dicionários comuns – para um texto

shakespeariano, contamos com dicionários especializados; para um texto de hoje,

contamos com as ferramentas de busca da internet.

Já no exemplo seguinte, do movimento 4/Prelúdio, quando Ginny (mãe de

Elliot), fala de sua infância, temos: “O meu pai era um baita dum cretino. A primeira

vez que eu lembro dele me tocando, foi pra bater em mim com um sapato. Ele batia na

minha cabeça com uma colher de pau cada vez que eu falava palavrão. Ainda tenho

um galo na cabeça por causa disso” (p.16).

My father was a mean bastard. The first time I remember him touching me, it was to whack me with a shoe. He used to whack my head with a wooden spoon every time I cursed. I still have a bump on my head from that. (p. 16)

A menção de um pai “tocando” uma filha traz à mente, por associação, a ideia de

abuso sexual. Mesmo que essa possível associação de ideias esteja presente também

no texto-fonte (dado o verbo touching), a tradução teria como evitar a inferência. Essa

inferência pressupõe uma implicatura conversacional que vem a ser cancelada pela

descrição desse toque físico: uma surra de sapato – aqui, sim, entra uma outra

implicatura conversacional que não será cancelada: uma surra de sapato em vez de

um gesto carinhoso). Uma inversão na ordem das frases resolveria a questão,

desfazendo uma primeira interpretação do verbo “tocar” que no texto não está

significando implicitamente abuso sexual. A solução tradutória poderia ter assumido a

seguinte forma: “O meu pai era um baita dum cretino. Lembro dele batendo em mim

com um sapato; é a lembrança mais antiga que tenho dele me tocando. Batia na

minha cabeça com uma colher de pau...”. Penso ser relevante desfazer no texto

traduzido a inferência inicial porque, no contexto da peça, tudo leva a crer que o pai de

Ginny fosse um porto-riquenho de baixa escolaridade.

Assim como Shakespeare faz a crítica bem-humorada dos ingleses em O

mercador de Veneza, temos Quiara Hudes fazendo a crítica bem-humorada dos

americanos e dos porto-riquenhos. Conforme a visão caricatural que os americanos de

um modo geral teriam da figura estereotipada dos porto-riquenhos (ou “latinos” em

geral), estes são “idiotas”. Já para os porto-riquenhos, os brancos americanos

(“típicos”) são risíveis em sua indumentária de pescadores (como no exemplo abaixo,

do movimento 13/Prelúdio).

Page 11: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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ELLIOT – [...] Teve aquela vez que eu levei o Sean numa pescaria no rio Allegheny. Ele peidava bem alto, que se ouvia longe. Daí, ele solta um peido daqueles, bem nojento. E os brancos todos que estavam lá, de chapeuzinho de pescador e tudo, eles tipo assim “Porto-riquenhos idiotas. Vocês assustaram os peixes”. (p. 51) ELLIOT – […] This one time I took Sean fishing down the Allegheny. He farted real loud. He ripped a nasty one. All the white dudes, in their fisherman hats, they were like, “Crazy Puerto Ricans. You scared the fish away.” (p. 49)

Mais uma vez, observa-se no exemplo acima a dificuldade de traduzir termos para

peças de vestuário. Fisherman hats são chapéus próprios para pescaria, onde os

aficcionados do esporte costumam pendurar anzóis e iscas, deixando-os coloridos,

“enfeitados”. Fosse o texto traduzido para publicação, talvez o termo merecesse uma

nota de rodapé.

Há uma passagem em Elliot (movimento 5/Prelúdio) que revela, a meu ver, um

tipo inusitado de olhar preconceituoso sobre o outro: é o olhar de um menino

vietnamita sobre um soldado americano. Não é olhar de raiva, nem ressentimento,

nem ódio ao estrangeiro invasor; é um olhar de pena.

PAI Hoje tinha esse nanico pentelhando a gente, sempre correndo atrás do tanque. Me olhando com aquele olhar. Dei para ele as minhas bolachas água-e-sal que eu estava guardando para a janta. Eu fiz umas caretas para ele e ele me chamou de dinky dow. Deve ser maluco em vietnamês. Eu acho. Dinky dow! Dinky dow! Ele cheirou bem cheiradas aquelas bolachas, depois abriu um sorriso e abraçou a minha perna. Era tão pequeno que só chegava na altura do meu joelho. VÔ (Interrompe a leitura da carta.) dow… D.O.W., died of wounds, filho: morto por ferimentos de guerra. Dinky dow… um morto insignificante. (p. 19)

Observe-se que, no texto-fonte, temos:

POP Today this one little shrimp kept hanging around, chasing after the tank. Looking at me with these eyes. I gave him my crackers I was saving for dinner. I made funny faces and he called me dinky dow. That’s Vietnamese for crazy, I guess. Dinky dow! Dinky dow! He inhaled those crackers then he smiled and hugged my leg. He was so small he only came up to my knee. (p. 18)

Ou seja, em língua inglesa a autora pressupõe que seu público sabe o que significa

“dinky dow”. Em minha tradução para a língua portuguesa, a solução foi criar uma fala

para o “interlocutor” da personagem, o que me obrigou a criar uma rubrica – tanto Pai

como Vô estão sozinhos, mesmo que na cena sejam “interlocutores”: o Pai está no

Vietnã, lendo uma carta que escreveu para seu pai (o Vô) nos Estados Unidos, e este

está lendo, em outro tempo, a carta que recebeu do filho. Os dois estão juntos no

palco, nesta cena, e cada um lê, intercaladamente, trechos da carta. Ou seja, quando

Page 12: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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o Vô “interrompe a leitura da carta”, ele na verdade passa a falar consigo mesmo –

uma fala exclusiva da tradução, inexistente no texto original.

Como a tradução preserva referentes da cultura estadunidense, sem

domesticá-los (adaptá-los) para a cultura brasileira – como foi visto anteriormente, na

passagem que lista marcas de cereais matinais – não vi problemas em preservar em

língua inglesa a sigla militar “D.O.W.” e sua origem, died of wounds. O público, leitor

ou espectador, sabe que o contexto é a guerra do Vietnã. A tradução/explicação para

dinky dow (“morto insignificante”) foi então acrescentada e, consequentemente,

explicitou o pré-conceito do menino vietnamita em relação ao soldado (que, em vez

de morrer na guerra, voltaria aos EUA e viria a ser o pai de Elliot).

Assim como em Shakespeare, nos exemplos acima listados, temos em Quiara

Hudes uma passagem que carrega ambiguidade no que tange a eventuais

interpretações de seu significado no texto como um todo e no entendimento da

personagem que fala (Pai de Elliot, quando no front da guerra do Vietnã):

Bate o sino pequenino Granada também Vietcongue tá fodido Para o nosso bem Bate o sino pequenino Morteiros também Pega as Festas, põe no cu Para o nosso bem (p. 31)

Jingle bells Mortar shells VC in the grass Take your Merry Christmas And shove it up your ass (p. 29)

A ambiguidade do texto-fonte é mantida na tradução, pois o uso da segunda pessoa

no modo Imperativo (“take your Merry Christmas and shove it up your ass”) não indica

quem seria esse you, que tanto pode ser o “VC in the grass” (literalmente, um

“vietcongue na grama” � soldado inimigo no chão � soldado inimigo rendido ou

abatido), como pode ser os americanos de um modo geral, os que não estão servindo

na guerra e que estão com suas famílias festejando o Natal, ou, pode ser ainda a

pessoa do presidente dos EUA, simbolizando o governo do país que, através de suas

Forças Armadas, mantém jovens (só rapazes naquela guerra) lutando no front, mesmo

no mais importante feriado cristão, numa guerra perdida. Não é nem mesmo vetada a

interpretação de que esse you sejam eles próprios, os fuzileiros navais que cantavam

essa versão modificada de “Jingle Bells”.

Page 13: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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A tradução para língua portuguesa não tem o recurso de manter o número da

segunda pessoa da enunciação (o/s interlocutor/es) igualmente ambíguo. Nesses

casos, minha opção normalmente seria usar “vocês” (verbo na terceira pessoa

gramatical do plural); fui levada a escolher “tu” para dar solução tradutória à canção

em função do número de sílabas disponível no verso e também porque, no português

brasileiro de hoje, o “tu” vem sendo usado muitas vezes (por exemplo, nas novelas de

televisão) como tratamento mais agressivo que o “você” (à exceção das raras

comunidades linguísticas onde o “tu” é o pronome preferencial no tratamento informal

com o interlocutor).

Com as dificuldades inerentes a uma tradução em verso, o processo tradutório

procurou manter as referências do original – morteiros (mortar shells) e vietcongues

(VC) derrotados (in the grass) – mas aqui aproveitou a solução tradutória que se devia

encaixar na métrica e manter rimas para acrescentar o termo “fodido” dentro de uma

técnica de compensação tradutória, pois ao longo do texto de Quiara Hudes há

algumas ocorrências dos termos fuck, fucking (na posição de adjetivo) e mother-fucker

– que no português não recebem tradução literal, e sim soluções que condizem com

os expletivos formuláveis dentro de cada situação de enunciação. Portanto, aproveitei

a chance que me apareceu para colocar no texto esse acréscimo: adjetivo mais

contundente em termos de agressividade verbal.

Por que usei duas estrofes da canção em vez de uma só, como no original?

Simplesmente porque não consegui – as limitações de minha competência tradutória

não me permitiram colocar em uma única estrofe todas as imagens contidas na estrofe

única do texto-fonte.

Elliot, cidadão estadunidense, é uma personagem tão estrangeira em sua

própria terra como Shylock (considerado um judeu e não um cidadão de Veneza). O

fuzileiro naval dos EUA, ferido na guerra do Iraque, cujo pai é veterano da guerra do

Vietnã, ainda é visto como “porto-riquenho” pelas personagens que tudo leva a crer

sejam cidadãos brancos dos EUA.

Elliot, ao fim da peça de Quiara Hudes, está tão sozinho e exilado como

Shylock ao fim da peça de Shakespeare. Depois de recuperar-se de seu ferimento de

guerra, Elliot embarca de volta para o Iraque, para longe da família, da namorada e

dos amigos de infância e adolescência. Shylock, cuja filha (toda a família que tinha) o

abandonara, depois de perder uma causa na justiça é condenado a converter-se ao

cristianismo e não pode mais morar no gueto judeu de Veneza, entre seus amigos e

conterrâneos de uma vida inteira.

Page 14: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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Elliot era personagem tão ingênuo quanto Shylock. O americano acreditava

que o pai (soldado no front da guerra do Vietnã) e o avô (soldado no front da guerra da

Coreia) gostariam que ele seguisse seus exemplos. Alista-se no serviço militar com o

desejo de emular os modelos parentais e com o sonho de ser algo mais na vida que

um simples balconista de lanchonete de fast-food, sem saber que, se morresse na

guerra do Iraque, seria “um morto insignificante”. Shylock acreditava que justiça seria

feita, que ele poderia cobrar a promissória firmada e selada por Antônio, o mercador

de Veneza. Depois de ser traído por sua filha, que fugiu de casa, roubou dele dinheiro

e joias, e converteu-se ao cristianismo para casar com um cristão, Shylock sonha em

vingar-se do mundo cristão opressor em que vive, simbolizado por Antônio, o cristão

que lhe cospe na cara, sem saber que, contra todas as engrenagens do establishment

cristão veneziano hegemônico, ele era um judeu insignificante.

Haveria ainda outros exemplos interessantes a listar, nas duas peças, que têm

significação (significam preconceito) maior que o significado das expressões

sintaticamente compostas em sua textualidade. Em O mercador de Veneza, um

desses exemplos está em uma fala de Shylock (1, 3, p. 134), quando este se dirige a

Antônio (que lhe cuspira na cara): “and you’ll not hear me”. Em português (p. 41): “mas

o senhor não quer me ouvir”. A significação (implícita, dados o contexto situacional e o

contexto da enunciação) desse detalhe na fala de Shylock carrega em si um não-dito

do tipo implicatura conversacional que poderia se algo como: “[não quer me ouvir]

porque, segundo você, sou um ser (judeu) insignificante”.

Em Elliot, um bom exemplo de situação contextual similar, que pode ser vista

como impregnada de uma significação que vai além do significado das palavras, está

na fala de um produtor de programa de televisão. Preparando Elliot para ser

entrevistado, por duas vezes ele diz “Mr. uh, Ortiz” (p. 25 e 26) – a expressão uh indica

que o produtor não lembra do (sobre)nome de Elliot, precisa ler o nome em algum

lugar, e não considera relevante memorizar o nome “porque, a seu ver, Elliot é um ser

insignificante (americano de origem latina)”. Em português (p. 26 e 27): “sr. hã... Ortiz”.

No entanto, exemplos desse tipo não entram no presente ensaio para fins de análise,

pois não caracterizam exemplos que ilustrem soluções tradutórias muito distanciadas

(de shifts opcionais) em relação à chamada tradução literal (de shifts

obrigatórios).

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Discussão das soluções tradutórias com base em Pekkanen (2007)

Os exemplos acima comentados, tanto em Shakespeare (1596) como em

Hudes (2006), têm dois denominadores comuns, conforme procurei apresentar: (1)

questões que se centram na temática de diferença entre etnias (e alguns possíveis

preconceitos de lado a lado)10 e, dentro dessa temática, (2) questões tradutórias de

soluções que nem sempre são fáceis. Pelo contrário, conforme examinado nos

exemplos, certas passagens necessitam de acréscimos esclarecedores ou de notas

de rodapé, quando não são parafraseadas. Viu-se que a inversão de ordem das frases

dentro de uma fala pode evitar a inferência de sentidos implícitos indesejados, bem

como se faz necessário por vezes explicitar um sentido implícito quando a expressão

em língua estrangeira, pelo contexto em que está sendo empregada, carrega uma

conotação inexistente (ou que deixou de existir) na cultura-alvo da tradução. Notou-se

também como detalhes de significação do texto traduzido podem ser melhor

trabalhados para benefício do leitor/espectador do texto em língua-alvo. Observaram-

se, além disso, exemplos da dificuldade inerente à tradução de termos referentes a

peças de vestuário. Também foi pinçado de cada peça um exemplo ilustrativo da

técnica tradutória de compensação.

Dentre vários estudos examinados a fim de dar respaldo teórico às soluções

tradutórias acima ilustradas, descritas e analisadas, escolhi o artigo de Hilkka

Pekkanen (2007), “The Duet of the Author and the Translator: looking at style through

shifts in literary translation”.

Embora o estudo de Pekannen (Universidade de Helsinki) seja um estudo de

corpus e tenha por objetivo identificar e categorizar padrões recorrentes de shifts

tradutórios opcionais de diferentes tradutores para o mesmo texto-fonte, as categorias

criadas pela autora para sua análise interessam ao presente estudo, pois vêm

corroborar e classificar os tipos de solução tradutória por mim encontrados como

opcionais. Pekkanen sugere que essas soluções tradutórias opcionais podem

constituir um “perfil do tradutor”, indicando não só suas estratégias, mas também sua

“voz” e consequente visibilidade dentro do texto traduzido e seu “estilo” pessoal de

traduzir.

O estudo de Pekkanen compara os resultados do trabalho de quatro tradutores

(inglês-finlandês) que traduziram quatro romances, dois de James Joyce (publicados

na década de 1910) e dois de Ernest Hemingway (publicados na década de 1920). As

10 Ou por parte do público-alvo (Brasil atual), com no caso de um possível sentido implícito na tradução e inexistente no texto-fonte: o subentendido possível de homossexualidade em O mercador de Veneza e o subentendido possível de pedofilia em Elliot: fuga para um soldado.

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traduções foram publicadas em 1964 e 1965 (Joyce) e em 1946 e 1954 (Hemingway).

O trabalho de Pekkanen é criterioso em termos de levantamento de dados e

tratamento estatístico. A autora escolheu dois romances de cada autor para descartar

a relevância estatística da influência do estilo do autor do texto-fonte no estilo dos

tradutores para fins de examinar os shifts tradutórios opcionais.

Este meu ensaio pinçou alguns exemplos de soluções tradutórias referentes a

um tema comum (questões étnicas) a duas obras distintas de dramaturgia de séculos

também distintos. As duas traduções são de uma mesma tradutora (esta autora), que

trabalha o par de línguas inglês-português, e os dois textos traduzidos foram

produzidos na mesma época (Shakespeare publicado em 2007, Hudes encenada em

leitura dramática igualmente em 2007).

Do artigo de Pekannen, acredito ser produtivo, para fins de análise dos meus

exemplos, aproveitar a categorização que PEKKANEN propõe: “Shifts podem ser

vistos como [fenômenos linguísticos da tradução] representativos de tendências

universais, tais como concentração, amplificação, explicitação, implicitação,

normalização e interferência” (2007, p. 4).11 Aqui a autora faz uma ressalva: esses

termos nem sempre são definidos da mesma forma por diferentes autores e podem

ser usados também para classificar, além de tendências universais, também escolhas

linguísticas pontuais. Dentro da revisão que faz do conceito de estilo literário, a

autora opta por usar a definição proposta por Geoffrey LEECH e Michael SHORT

(Style in Fiction. London, Longman, 1981), qual seja, a “relação entre forma linguística

e função literária (i.e., efeito artístico) [...] Estudamos a descrição linguística para

entender melhor o efeito artístico e analisamos o efeito artístico para buscar

evidências linguísticas que o sustentem” (1981, p. 2). PEKANNEN faz a crítica do

modelo de Leech e Short:

Leech e Short (1981) apresentam um modelo de múltiplos níveis do estilo escrito, que compreende os níveis semântico, sintático e grafológico, em oposição aos níveis da linguagem falada, onde a fonologia substitui a grafologia. Entretanto, quer me parecer que, enquanto nos textos literários os meios grafológicos são usados para expressar traços fonológicos, o aspecto fonológico também está presente na linguagem escrita – e não apenas porque a fala é por ele representada. Isso quer dizer que a leitura de textos literários não é mera experiência visual, mas também envolve escutar. Portanto, a simples representação grafológica não consegue explicar o efeito fonológico em sua totalidade, isto é, o que o leitor “ouve”. (2007, p. 2)

O parágrafo acima, do estudo de Pekannen, é de suma relevância quando é de

dramaturgia o texto a ser analisado (traduzido ou não) quanto à relação entre forma

linguística e efeito estético. O bom texto teatral é, na verdade, uma construção

11 Esta e todas as demais citações do artigo de Pekannen são de minha tradução.

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linguística de dificílima produção textual, pois é nada mais nada menos que um texto

escrito para ser falado, que pretende simular aspectos da conversação (por exemplo,

a alternância de turnos – quando não é um monólogo). Um dos aspectos mais

importantes de um bom texto dramatúrgico tem a ver com a construção das

personagens – sendo que cada personagem deve ter o seu idioleto (que não deixa de

ser o seu estilo de falar).

De qualquer modo, como diz PEKANNEN (2007, p. 2):

No caso da literatura traduzida, estilo pode ser entendido em referência a (1) os traços típicos do texto-fonte, (2) os traços típicos do texto traduzido, ou (3) os traços que caracterizam o processo tradutório propriamente dito, definidos ou pelos vários aspectos metodológicos e situacionais típicos do processo tradutório ou pela comparação entre texto-fonte e texto-alvo para então chegar às estratégias locais e globais do tradutor (i.e., vários princípios, consciente ou inconscientemente aplicados ao fazer escolhas recorrentes).

Como procurei mostrar com meus exemplos, extraídos de O mercador de

Veneza e de Elliot: fuga para um soldado, houve escolhas recorrentes (e

aparentemente simétricas) nas estratégias tradutórias que elegi (de modo consciente)

para dar tratamento que fosse não só adequado (orientado pelas circunstâncias de

produção do texto-fonte), mas que fosse também – e principalmente – aceitável

(orientado pelas circunstâncias de potencial recepção do público-alvo).

A estratégia global (levando em conta, nos dois casos, o texto como um todo)

procurou a obtenção de um produto tradutório que não deixasse equívoco quanto ao

entendimento do contexto situacional das personagens no desenvolvimento da ação;

ao mesmo tempo, cuidando ao máximo para manter, por exemplo, as ambiguidades

do texto-fonte e também para não criar inadvertidamente ambiguidades inexistentes

no texto-fonte (de onde temos os exemplos de como as duas traduções ainda têm

espaço para melhorias nesse sentido, os dois exemplo propondo inversão na ordem

das frases dentro de uma fala). Aqui vale lembrar que, para fins do presente ensaio, a

estratégia global a que me refiro reporta-se a todas as passagens das duas peças

onde pude observar relação com o tema das diferenças étnicas. Vale lembrar também

que há mais exemplos nos textos que os aqui listados.

As estratégias locais procuraram, então, a cada vez, prevenir interpretações

errôneas ou incompletas de cada fala que tem relação com crítica ou agressividade

verbal dirigida ao outro (porque é um outro de etnia diversa).

Como explica PEKKANEN (2007, p. 3), o uso de shifts tradutórios resulta em

visíveis diferenças entre o texto-fonte e o texto traduzido. Os shifts obrigatórios

originam-se em diferenças fonológicas, sintático-estruturais e semânticas entre língua-

fonte e língua-alvo, bem como em diferenças culturais.

Page 18: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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Nos exemplos por mim elencados, parece-me que todas as ocorrências são de

shifts opcionais, pois a princípio não existe nenhuma necessidade linguística ou

cultural que leve outro tradutor a fazer necessariamente essas mesmas escolhas que

eu fiz ao traduzir os dois textos. Em concordância com essa minha posição,

PEKKANEN, em seu artigo (2007, p. 3-4), ainda alerta para o seguinte: “Se um shift é

obrigatório, mas há duas ou mais traduções alternativas pelas quais o tradutor pode

optar,o shift resultante é considerado opcional para os propósitos deste estudo. Shifts

opcionais, portanto, sempre envolvem a intervenção do tradutor” – o que corrobora em

termos teóricos, por meio de uma definição determinada metodologicamente, o

processo que mencionei acima, referindo às estratégias tradutórias que elegi “de modo

consciente”.

PEKKANEN, discutindo “Voz e visibilidade – os shifts como marcadores do

estilo do tradutor” (2007, p. 5), afirma que “se um tradutor opta pelo mesmo tipo de

shift repetidamente dentre uma série de alternativas, isso pode ser considerado uma

característica daquele tradutor em particular e pode ser visto como um traço de estilo”.

Dados os meus exemplos acima (coletados anteriormente à leitura do artigo de

Pekkanen), parece-me forçoso concordar. Acredito que sim, que meu estilo de traduzir

está intimamente vinculado a esclarecer para o leitor brasileiro questões culturais

(sejam estas da Inglaterra da era elizabetana, sejam dos EUA da guerra do Iraque).

Essas questões culturais tanto podem estar aparentes no léxico (dinky dow) como

podem estar embutidas no uso de uma imagem que ao longo dos séculos modificou-

se ou mesmo desapareceu (a descrição da feiura do diabo na Inglaterra elizabetana

incluía pele de cor negra). Em geral, as questões culturais que me levam a incluir um

shift opcional na tradução são elementos que precisei pesquisar para entender (dinky

dow, por exemplo), ou que, no decurso de estudar o texto-fonte, vieram a ser

explicações para mim inesperadas (o diabo como figura de pele negra, por exemplo) –

pesquisas que me levaram a uma nova leitura (i.e., interpretação) de uma dada

passagem do texto a traduzir.

Como penso ser necessário incluir de algum modo no texto traduzido

informações que podem guiar o leitor no sentido de uma leitura mais rica (por

apresentar elementos que estariam na gênese da produção do texto-fonte), os shifts

opcionais similares (explicativos) que aparecem no meu trabalho nem sempre são da

mesma ordem. Como mostrado nos meus exemplos, o que em um texto para

publicação pode aparecer como nota de rodapé (N.T.) obrigatoriamente pede outro

recurso, outra solução, no caso de uma tradução para o palco. A estratégia pode ser

construir uma longa paráfrase em português para uma única palavra em inglês

(raghead).

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Pekkanen classifica e quantifica os achados de sua pesquisa de corpus em

dois tipos de shifts opcionais: expansões (por substituição ou por acréscimo) e

contrações. A autora prossegue na questão terminológica sugerindo que uma outra

classificação de estratégias tradutórias seja considerada: explicitações e

implicitações. Expansão e contração seriam termos referentes respectivamente à

amplificação linguística e à redução linguística, ou seja, relacionados aos elementos

formais do texto-alvo quando cotejado com o texto-fonte (elementos estes que podem

ser coletados, mensurados quantitativamente e então analisados em dados

percentuais). Já explicitação e implicitação seriam termos referentes a elementos

conteudísticos do texto traduzido quando cotejado com o texto-fonte. Observa a autora

que expansões e contrações podem ser os meios linguísticos pelos quais são

alcançados os efeitos estéticos no nível do conteúdo do texto.

Nos diálogos ficcionais (por simularem de algum modo a conversação e

também porque os textos de dramaturgia tendem a ser sequências encadeadas de

atos ilocutórios), é comum detectar falas de teor implícito.

Passo agora a classificar os meus exemplos, conforme coletados nos textos

traduzidos de Shakespeare e de Quiara Hudes.

As duas traduções ilustram o shift opcional de expansão, simultâneo a uma

explicitação. Em O mercador de Veneza, temos o acréscimo do adjetivo “judaica” ao

substantivo “nação” (isto é, deixando claro ao leitor brasileiro de hoje que a “nossa

nação” não é a cidade-estado de Veneza). Em Elliot, temos a substituição de cheap

(barato) por “mixuruca”, explicitando a má qualidade do produto (e provável baixo

custo) em vez de optar por “barato”, explicitando o baixo custo (e provável má

qualidade).

Em O mercador temos uma expansão paratextual por acréscimo de uma N.T.

(explicando o sentido conotativo “sujo” vinculado à palavra “cão” ou “cachorro”),

quando então a voz da tradutora conversa diretamente com o leitor, emprestando clara

e total visibilidade à figura do agente da tradução. Em Elliot: fuga para um soldado,

temos uma expansão parafrástica por substituição: o vocábulo “raghead” é substituído

por elementos linguísticos que explicitam os traços semânticos que o compõem

(sentido denotativo: “toalha na cabeça”; sentido conotativo explicitado: turcalhada).

Tanto para O mercador (a fim de evitar uma leitura inicial que pudesse por

inferência acrescentar a noção de homossexualidade ao texto) como para Elliot (a fim

de evitar uma leitura inicial que pudesse por inferência acrescentar a noção de

pedofilia ao texto), sugeri uma estratégia tradutória que mexesse na estrutura do

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texto: inversão na ordem das frases. Aqui temos a possibilidade de um shift tradutório

que não acontece nem por expansão nem por contração. O trabalho de Pekkanen não

prevê essa estratégia tradutória. A autora menciona que, além dos shifts obrigatórios e

opcionais, há também os não-shifts. Não é o caso de uma mudança na estrutura

textual, pois esta mudança é um deslocamento, um shift – e é claramente opcional.

(Em tradução teatral também é muito comum a inversão na ordem de falas, a inversão

na ordem de grandes blocos de texto, e mesmo a inversão na ordem de cenas. Tudo

vai depender do projeto da encenação e se, por exemplo, tradutor e diretor trabalham

a quatro mãos.)

Quanto à dificuldade que menciono na tradução de peças do vestuário, tanto

em O mercador quanto em Elliot, cito exemplos de peças que cobrem a cabeça:

respectivamente, bonnet e fisherman’s hat (“chapéu” e “chapeuzinho de pescador”). A

tradução apresenta o hiperônimo, “chapéu”, como solução. No caso de “chapeuzinho

de pescador”, o diminutivo está reforçando (expansão do significado por acréscimo de

sufixo) o menosprezo, o preconceito. Já a expressão “de pescador” está adjetivando,

qualificando o chapéu (como uma oração adjetiva reduzida em substituição a “que os

pescadores usam”), pois em português não existe a expressão “chapéu de pescador”

cristalizada como termo técnico. O que existe é uma tradução por decalque (mas, pelo

que pude perceber numa pesquisa rápida por ferramenta de busca na internet, está

sendo usado o termo “bucket hat chapéu de pescador” – numa mistura de empréstimo

e decalque para o termo técnico do inglês fisherman bucket hat). Lançar mão de

hiperônimos como estratégia tradutória significa neste caso recorrer a um shift

obrigatório por diferenças culturais. Opcional foi, em Elliot, a expansão por acréscimo

de sufixo para fins de explicitação (do preconceito de um americano latino frente a um

americano WASP quanto ao modo deste se vestir). Já em O mercador, opcional foi

não abrir nota de rodapé para explicar que tipo de chapéu exatamente seria um

bonnet alemão – uma especificação que não iria alterar em nada a significação da fala

dentro do texto como um todo. O conteúdo semântico do item lexical (bonnet) sofre

uma redução no texto traduzido (chapéu), mas a intenção comunicativa da fala de

Pórcia mantém-se intacta (ridicularizar o inglês por seus trajes).

Em Elliot temos um exemplo claro, para não dizer gritante, de expansão por

acréscimo: para solucionar no texto traduzido a expressão dinky dow, a peça recebe

amplificação (PEKANNEN, 2007, p. 4), tanto na forma como no conteúdo, com a

inserção de uma fala e de uma rubrica que não existem no texto-fonte. O shift

tradutório pretendeu explicitar para o espectador brasileiro o conteúdo da sigla D.O.W.

do jargão militar de língua inglesa. Em O mercador, minha sugestão de modificar o

texto traduzido com o acréscimo de um adjetivo pós-posto, “negro”, para qualificar o

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substantivo “demônio”, no sentido de explicitar um vínculo semântico entre a figura do

diabo e a pele de cor negra na Inglaterra elizabetana, caracterizaria também uma

expansão por acréscimo.

Dois exemplos de expansão textual por acréscimo aparecem, tanto na tradução

de Shakespeare quanto na tradução de Quiara Hudes, quando, em O mercador, há a

repetição proposital de uma frase (“os senhores [cristãos, cidadãos de Veneza]

compraram [seus escravos]”)12 e, em Elliot, há a inserção proposital de uma

adjetivação pesada (“[vietcongue] fodido”) em uma letra de canção. Isso acontece

porque o processo tradutório compensa, com essas ocorrências, outras passagens

dos textos-fontes em que houve repetição (em Shakespeare) e adjetivação pesada

(em Hudes), sem que o texto em língua portuguesa as reproduzisse nas mesmas

passagens em que ocorreram.

CONCLUSÃO

Os exemplos selecionados de The Merchant of Venice / O mercador de

Veneza, de William Shakespeare (1596), e de Elliot, a soldier’s fugue / Elliot: fuga para

um soldado, de Quiara Alegría Hudes (2006), mostram passagens das duas peças em

que é importante para o desenvolvimento da ação dramatúrgica que o

leitor/espectador entenda a crítica de uma personagem que fala, sempre uma crítica

ao outro ou do outro. Esse outro é personagem de constituição étnica diversa. Essa

personagem outra pode ser real (o Príncipe de Marrocos), virtual (o jovem barão inglês

de quem Pórcia fala) ou simbólica (o inimigo muçulmano que não se vê em cena, nem

mesmo quando Elliot mata um iraquiano pela primeira vez).

A crítica ao outro atualiza-se de diferentes maneiras nos textos originais; tanto

pode ser uma ofensa claramente explícita (ragheads) como pode estar culturalmente

implícita dentro de uma ofensa explícita (“cachorro” como sinônimo de sujeira para os

judeus de fins do século XVI). De qualquer modo, para todos os exemplos listados,

das duas peças, as soluções tradutórias passaram (ou poderiam ter passado) por

algum tipo de estratégia que indicasse ao leitor/espectador brasileiro todos os traços

semânticos explícitos e implícitos envolvidos na expressão original em língua inglesa.

Para tanto, o processo tradutório valeu-se de recursos denominados shifts

opcionais. Para análise e classificação desses shifts opcionais, vali-me do estudo de

Hilkka Pekkanen (2007), que provou ser útil e consistente.

12 Mais uma vez, é interessante observar que o adjetivo purchased (comprados) pode ser visto como uma oração adjetiva restritiva reduzida, e a estratégia tradutória optou por expandi-la.

Page 22: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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Além disso, verifiquei que os exemplos de minhas estratégias tradutórias

apontam para um recurso que não está descrito no estudo de Pekannen. Uma

possibilidade de shift opcional apresentada que não se encaixa em nenhuma das

categorias listadas pela autora: a inversão de frases dentro da fala de uma

personagem. Contudo, vale ressaltar uma vez mais que essa estratégia possível seria

mais importante em uma tradução para o palco que em uma tradução para publicação

(como é o caso dos romances analisados no estudo de Pekannen), já que o

espectador deve ter entendimento instantâneo das falas dos atores, enquanto o leitor

tem tempo para “voltar atrás” no texto impresso e fazer uma ou mais releituras de

certas passagens.

Penso que este ensaio encontra sua relevância ao apontar como dois textos

separados entre si por mais de quatro séculos concentram semelhanças no uso de

vocabulário (mais ou menos explícito) e na expressão (muitas vezes implícita) de

contrastes e conflitos interculturais. Em outras palavras, este ensaio também serve

para corroborar uma vez mais a atemporalidade dos temas da obra shakespeariana e

a consequente divulgação de sua dramaturgia ao longo dos séculos, em diferentes

línguas, sempre retraduzido.

Os exemplos analisados mostraram que as estratégias tradutórias (tanto em

Shakespeare como em Quiara Hudes) podem ir desde um shift opcional de expansão

por substituição lexical (cheap � mixuruca) até um shift de expansão do texto por

acréscimo (dinky dow � [a inserção de nova fala e de nova rubrica ao texto

dramatúrgico]), passando ainda por notas de rodapé – se não for uma tradução para

montagem cênica. No caso de não haver na língua-alvo expressão correspondente à

do texto-fonte, o tradutor literário sempre pode optar por shifts – expansões ou

contrações da forma linguística, e também explicações explícitas ou implícitas do

conteúdo semântico.

O presente ensaio pretendeu mostrar como o trabalho tradutório conta com

recursos variegados para lidar com as questões inerentemente socioculturais de um

texto em língua estrangeira. Usando um texto shakespeariano e um texto

contemporâneo, também procurei mostrar que as dificuldades tradutórias de natureza

sociocultural para questões de etnia não são privilégio da tradução diacrônica.

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REFERÊNCIAS

SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Trad. Beatriz Viégas-Faria. Porto

Alegre: L&PM, 2007.

SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. Ed. M.M. Mahod. The New

Cambridge Shakespeare. Cambridge: CUP, 2003.

HUDES, Quiara Alegría. Elliot: fuga para um soldado. Trad. Beatriz Viégas-Faria.

Texto apenas para leitura dramática. Direção William Pereira. Evento do Centro

da Cultura Judaica, dentro do ciclo “Leitura Dramática”. Teatro da Casa da

Cultura de Israel, São Paulo, 30 de abril de 2007.

HUDES, Quiara Alegria. Elliot, a soldier’s fugue. Texto da autora, disponível para

venda (Acting Edition) no website Dramatists Play Service, Inc.:

<www.quiara.com>

LUPTON, Julia R. Arendt and Shakespeare: emancipation and its equivocalities.

Disponível em:

<http://dramateatro.fundacite.arg.gov.ve/teoria_teatral/arendt_shakespeare.htm

l> Acesso em: mar. 2008.

PEKKANEN, Hilkka. The Duet of the Author and the Translator: looking at style through

shifts in literary translation. In. New Voices in Translation Studies. 3. 2007. p. 1-

18. Disponível, para membros da IATIS, em: <www.iatis.org>. Acesso em: mar.

2008.

Page 24: William Shakespeare, 1596, e Quiara Alegría Hudes, 2006: duas …beatrizvie.dominiotemporario.com/doc/William_Shakespeare_e_Quiara.pdf · Já na Cena 3 do Ato 1, Shylock, o judeu,

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Beatriz Viégas-Faria

Tradutora (UFRGS, 1986) com doutorado em Letras (PUCRS, 2004); tese “Implicaturas conversacionais e tradução teatral”, com pesquisa em Estudos da Tradução (University of Warwick, 2003). Professora da Oficina de Tradução Literária (ing-port), curso de extensão da Faculdade de Letras da PUCRS, desde 2005. Coordenadora e professora dos cursos sobre tradução do StudioClio, Instituto de Artes e Humanismo, desde 2006. Prêmio Açorianos de Literatura em 2001 (autor-revelação em poesia) e em 2000 e 2007 (tradução do inglês) por Otelo e Trabalhos de amor perdidos, respectivamente. Suas traduções de Romeu e Julieta e de A megera domada foram levadas ao palco com direção de William Pereira (São Paulo, 2002) e de Patrícia Fagundes (Porto Alegre, 2008), respectivamente.