2001, ou a grande reviravolta conjuntural - michel husson

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2001, ou a grande reviravolta conjuntural

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  • REVISTA OUTUBRO, N. 7, 2002

    2001, OU A GRANDE REVIRAVOLTA CONJUNTURAL 7

    2001, ou agrande reviravoltaconjuntural1

    MICHEL HUSSONECONOMISTA, MEMBRO DO CONSELHO CIENTFICO DA ASSOCIATION POUR UNE TAXATION DES

    TRANSACTIONS FINANCIRES POUR LAIDE AUX CITOYENS (ATTAC)

    Evidentemente, a anlise da conjuntura econmica mundial foiperturbada pelos atentados do ltimo 11 de setembro. Faz-se necessrio,pois, realizarmos um duplo debate, sobre a natureza da reviravolta a qualassistimos e sobre as coordenadas do novo perodo aberto aps o 11 desetembro. Isso supe operarmos num vai e vem entre o curto prazo e umperodo mais longo, entre a verificao e as hipteses.

    Se deixarmos provisoriamente de lado a onda de choque do 11 de setembroe nos voltarmos para os debates recentes, reencontraremos duas questesque realam o carter profundamente ambivalente do perodo. Um dia apsas crises financeiras de 1997-1998, o debate estava polarizado em torno daseguinte interrogao: crash final ou atoleiro? Finalmente, no tivemos nemum nem outro, mas um salto do crescimento, uma bonana (1997-2001)que fez surgir uma nova interrogao: tratar-se-ia de um ciclo high techexcepcionalmente vigoroso ou da perspectiva de uma nova onda expansiva?Brevemente, as respostas sugeridas cobriam uma gama muitssimo ampla,indo do catastrofismo a uma adeso crtica euforia capitalista.

    O exame dos principais indicadores produtivos (grfico 1) ilustra o funcio-namento fortemente cclico das economias europias. Ele permite tambmverificar que a reviravolta conjuntural foi anterior ao 11 de setembro, damesma maneira que a recesso do incio dos anos 1990 foi esboada antes daGuerra do Golfo. Isto justifica realizar um certo recuo para tirar as lies daconjuntura recente que veio dissipar um certo nmero de iluses.

    1 Reproduzido, com a permisso do autor, de Inprecor, n. 463/464, out.-nov. 2001. Traduzido porRuy Braga.

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    O fim da nova economia

    O ciclo econmico desabou claramente nos Estados Unidos e as mo-dalidades desta reviravolta tornam mais claros os limites do modelo da novaeconomia. Tais limites correspondem, por sua vez, a duas ordens. Muitos soclssicos e se remetem s contradies de fundo do capitalismo e, notadamente, tendncia superacumulao do capital. Outros provm das formas concretasda nova economia e no se manifestaram plenamente ainda.

    A expresso nova economia empregada a propsito dos Estados Unidosfaz referncia a diversos fenmenos entre os quais a decolagem especulativae a moderao da inflao , mas repousa, antes de tudo, sobre a aceleraodos ganhos de produtividade vinculados s novas tecnologias. Uma talinflexo apresentou por efeito um certo relaxamento das presses sobre arentabilidade do capital, constituindo uma condio necessria a umcrescimento maior e mais estvel. Mas esta condio no suficiente, tantoisso verdadeiro que no existe nenhuma soluo tecnolgica para ascontradies do capitalismo.

    Nos Estados Unidos, o crescimento dos anos 1990 foi efetivamentesustentado por um boom do investimento, particularmente marcado entre

    GRFICO 1 - Indicadores produtivos

    1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

    Frana Alemanha ItliaZona do Euro

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    1996-2001, e que alimentou ganhos de produtividade. O grfico 2 ilustraessa ligao entre investimento e produtividade e demonstra bem que osrecentes ganhos de produtividade foram obtidos mediante um esforo semprecedentes de investimento. Vemos ser esboada uma resposta objetiva questo de saber se se trata de um ciclo ou de um novo crescimento. Paradiagnosticar uma nova fase de crescimento, seria necessrio, de fato, que osganhos de produtividade se mantivessem em um nvel elevado e, portanto,que a robustez do investimento recente no fosse relaxada. Ora, todos osdados disponveis mostram que tal situao no mais se verifica: oinvestimento cai e a produtividade diminui. Parece possvel, portanto,encerrar o debate dizendo que a nova economia no passou de um ciclohigh tech. Essa constatao esclarece por sua vez a natureza da recessoobservada nos Estados Unidos e que manifesta todos os traos de uma criseclssica de superacumulao.

    A este respeito, o simples exame da evoluo comparada da taxa delucro e da taxa de acumulao de capital suficientemente convincente.Esta ltima apresentou um aumento regular ao longo dos anos 1990, paradepois sofrer uma inflexo em 2000. Quanto a taxa de lucro, esta acom-panhou a acumulao de capital durante os dois primeiros teros da dcada,contudo, ela experimenta uma inverso muito mais cedo, por volta de 1997

    GRFICO 2. Investimento e produtividade nos Estados Unidos

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    1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001-0,5

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    Taxa de investimento (% du PIB) produtividade (% por ano)Taxa de investimento (% du PIB) Produtividade (% por ano)

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    GRFICO 3. Lucro e acumulao nos Estados Unidos

    (grfico 3). Essas observaes necessitam de um trabalho de elaboraoestatstica, na medida que no dispomos de mais dados oficiais sobre oestoque de capital, que preciso reconstituir. Mas a queda da rentabilidadepode ser observada diretamente por meio dos lucros das empresas que caemde 858 bilhes de dlares em 1997 (terceiro trimestre) para 761 bilhes em2001 (segundo trimestre).

    A queda da taxa de lucro resulta de dois efeitos combinados. Em primeirolugar, a parte dos salrios progride: a massa dos salrios pagos pelo setorprivado aumentou 30% entre 1997 e 2001. Para o mesmo perodo, o PIBcresceu 21,5%. Pode-se observar um aumento simultneo da composioorgnica do capital. Dessa forma, a razo capital-produto progrediu 17% emvolume e 10% em valor. Dito de outra maneira, o espanto do capital e aqueda da taxa de explorao concorrem para um recuo da taxa de lucro.Como o investimento continuou no intervalo, desemboca-se logicamenteem uma acumulao que se manifesta pela constituio de capacidadesexcedentes em relao s condies de rentabilidade. Esse excedente assumea forma de um recuo da taxa de utilizao das capacidades de produo: noms de agosto de 2001, ela foi a 76,2%, seu ponto mais baixo depois darecesso de 1982. Essa queda atinge particularmente as indstrias de altatecnologia, nas quais a taxa de utilizao das capacidades passa de 88% em

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    1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 20015,5

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    Taxa de lucro Taxa de acumulaoTaxa de lucro Taxa de acumulao

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    1995, para 63,4% em 2001. Esses so, portanto, os setores representativos danova economia que se encontram mais duramente atingidos.

    Estados Unidos: as trs grandes anomalias

    Agora que as contradies clssicas explodiram de maneira aguda, todaa questo saber como elas vo se articular com as contradies concretasresultantes da configurao atual da economia mundial e com asconseqncias dos ataques de 11 de setembro. Essas contradies concretasexprimem-se sob a forma de grandes desequilbrios econmicos que atingema Bolsa, o consumo e o dficit exterior. A primeira grande anomalia, aquelaque poderia existir entre lucros e fluxos especulativos est em vias de serdesfeita, mediante um recuo tendencial que permite ao menos falar de crashrasteiro (grfico 4). Aqui, ainda, este movimento deve ser interpretadocomo um cumprimento da lei do valor. As aes representam de fato umareivindicao sobre a mais-valia criada. A mdio prazo, os dividendos eexcedentes financeiros que procuram essas aes no podem se separarduravelmente dos lucros reais que elas antecipam. Uma das afirmaes

    GRFICO 4: O ndice Standard and Poors 500. 1986-2001

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    centrais da nova economia, ao contrrio, consistia em deixar entendidoque o capital havia se emancipado desta lei do valor. Muitos teorizaram,como Michel Aglietta,2 esse capitalismo patrimonial em nome do qual sedemandava aos assalariados serem modernos e aceitarem produtos financeirosao invs de salrios. Toda essa fantamasgoria foi dissipada com o desabamentoespeculativo e a ideologia do capitalismo levou um golpe srio nessa ocasio,por mais que a evoluo dos ndices nos meses seguintes seja alardeada. Vaiser muito difcil, por exemplo, criar ou estender os fundos de penso naEuropa pois foi um dos principais argumentos em seu favor que desapareceu.Como de fato pedir doravante para os assalariados indexar seus salrios bolsa? A recesso resgatou essa lio fundamental vlida no mundo todo: ossalrios devem vir antes que o risco financeiro

    O movimento de correo bolsista comeou h quase dois anos e, portanto,nada tem a ver com o 11 de setembro. Ele funcionou em dois tempos: o ano2000 assistiu o movimento de ascenso se interromper, e os ndices seestagnaram. Os analistas financeiros consumiram ento toda sua energiapara explicar que se tratava de uma estabilizao provisria e que logo seriaseguida por uma expanso. Mas o mtodo Cou3 no funcionou e a quedacontinuou ao longo de 2001. Esse enrosco assumiu a forma de umaimpressionante desvalorizao das aes da Nasdaq cujo ndice caiu de 5mil para 2 mil durante o ano 2000, continuando a cair at 1.700, configurandoum recuo global de dois teros. O ndice da nova tecnologia vem, assim, sereunir aos ndices financeiros tradicionais. Isso representa perfeitamentebem o fim da nova economia.

    A segunda grande anomalia concerne ao consumo privado. Os EstadosUnidos caracterizam-se por uma situao totalmente excepcional, visto queas famlias consomem uma frao sempre crescente de sua renda quechega hoje aos 100%. Esse dinamismo do consumo , alis, o principal motordo famoso novo crescimento, mas ele no sustentvel. Alguns consomem

    2 Michel Aglietta. Le capitalisme de demain. Paris: Note de la Fondation Saint-Simon, 1998.

    3 Referncia a mile Cou, psiclogo francs que em 1926 publicou o livro O domnio de si mesmo pelaauto-sugesto consciente, obra na qual desenvolve um mtodo que preconiza salvaguardar a sademental individual por intermdio da substituio de auto-sugestes malignas inconscientes por auto-sugestes benignas conscientes (N. do T.).

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    muito porque consideram que a mais-valia virtual realizada na Bolsa equivalea uma realizao de ganho, outros endividam-se para consumir, objetivandoarriscar na Bolsa. A prosperidade recente repousa, portanto, sobre um fortevolume de endividamento privado. O recuo de Wall Street revelou que abase desses clculos estava distorcida, devendo ser corrigida pelo aumentoda taxa de ganho (que j se encontra ligeiramente esboada), pela runa decertas famlias, sinteticamente, por uma menor progresso do consumo. Osatentados do 11 de setembro devem contribuir para isso, acelerando adegradao das eufricas antecipaes. Pode-se muito bem imaginar umcenrio-catstrofe de uma onda de falncias pessoais que conduziriam auma queda do consumo e da demanda nacional.

    A ltima grande anomalia se traduz em um dficit da balana exteriorcorrente que chega a 450 bilhes de dlares por ano, ou seja 4,5% do PIB.Isso significa que o ganho geral proveniente do resto do mundo substitudopelo ganho interno capaz de financiar o crescimento americano. At aqui,isto poderia ser considerado at certo ponto saudvel, visto que os capitaisexcedentes provenientes da Europa e do Japo iriam financiar o boom danova economia. Esse afluxo de capitais foi alimentado pela fuga dosmercados emergentes e encontra-se sustentado por um dlar forte e umarentabilidade elevada. Contudo, as coisas esto em vias de mudar. Oinvestimento decresceu de tal maneira que os novos capitais financiam oconsumo, um processo que no pode permanecer por longo tempo, aindamais quando a rentabilidade cai, tornando a queda do dlar plausvel.

    Sob vrios aspectos, o choque do 11 de setembro veio perturbar essas trscaractersticas. Existe o risco da inflexo do consumo ser precipitada mas, aomesmo tempo, uma via de sada para o imperialismo dominante esboada. Operodo que se abre dever ser marcado por uma inverso da polticaoramentria. Um programa de subveno aos setores mais atingidos foiestabelecido, assim como as despesas militares ou outras ligadas ao planode resposta configuram um programa keynesiano de retomada que pode, aomenos durante um tempo, substituir um consumo salarial amarrado de maneiradurvel. J se fala em 100 bilhes de dlares, isto representa 1% do PIB. Anecessidade de financiamento exterior poderia em seguida dar lugar a umapartilha entre Estados Unidos e Europa que repousaria sobre o seguintearranjo: os Estados Unidos no procurariam equilibrar sua balana recorrendo

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    a uma queda ofensiva do dlar que redundaria em exportar sua recesso emdireo Europa e ao Japo. Em troca dessa benevolncia, os parceiros dosEstados Unidos encarregar-se-iam de assegurar um financiamento, legitimado,de agora em diante, pelo esforo proveniente da guerra contra o terrorismo.

    A via evidentemente estreita e os desequilbrios parecem de tal modoconsiderveis que se pode muito bem imaginar uma derrapagem dos EstadosUnidos em direo a um cenrio catastrfico onde tudo se desarranjaria aomesmo tempo: as famlias no consumiriam mais e os capitais cessariam deafluir. A regulamentao, por sua vez, tornou-se mais conflituosa, pois setrata de acompanhar a diminuio da demanda interna e mesmo de reprimira progresso dos salrios, estimulando a economia a partir de outros setoresque no os de bens de consumo. O sucesso da operao depende em grandemedida da evoluo das relaes polticas entre Europa e Estados Unidos eda capacidade destes ltimos em fazer com que o resto do mundo pague asustentao de sua conjuntura.

    A festa acabou na Europa

    Sem dvidas, tudo parece evoluir muito rapidamente. H apenas dozemeses, os dirigentes europeus gabavam-se pela expanso e exaltavam o sucessoda Europa, nova locomotiva mundial, capaz de reocupar o lugar dos EstadosUnidos. Hoje, os mesmos perguntam-se o que fazer para no aplicar ocalamitoso Pacto de Estabilidade anexado ao Tratado de Amsterd de junhode 1997. A festa acabou para o social-liberalismo.

    Mas, tudo parece favorecer a unificao. No somente o euro foiimplantado sem grandes transtornos como tambm todo o processo foiconduzido no interior de um ambiente favorvel. Entre 1996 e 2000, 7 milhesde empregos foram criados, e o nmero de desempregados oficialmenterecenseados caiu para 3,5 milhes. absolutamente necessrio analisar anatureza dessa expanso, que permite compreender melhor a reviravoltaconjuntural. Para ir rpido, pode-se dizer que essa expanso no-liberal,no sentido que ela decorre do relaxamento e no da estrita aplicao dosdogmas liberais. Esse relaxamento no configura, precisamente, uma escolhadeliberada e deve ser explicado antes de mais nada por fatores externos.

    O primeiro elemento a real desvalorizao das moedas europias emrelao ao dlar, em meados de 1997. A Europa ganha em competitividade,

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    suas exportaes realizam um salto frente e se delineia um novo miniciclo.Em 1998, o dinamismo das exportaes foi substitudo por uma progresso dopoder de compra dos salrios proveniente da diminuio acidental da inflao(e no das altas do salrio nominal). O consumo imediatamente retomado os economistas burgueses dissertam sobre a confiana das famlias ,assim como o investimento. A retomada da atividade estimula a criao deempregos que, por sua vez, sustentam o consumo. No mbito oramentrio,o crescimento faz aumentar as receitas e baixar os dficits, na maior partedo tempo de maneira inesperada.

    Esses encadeamentos que poderiam ser qualificados de keynesianos re-presentam uma crtica experimental da teologia neoliberal cujos preceitos, emseu conjunto, viram-se condenados. Era necessrio, diziam-nos, possuir umamoeda forte, antes de ter uma moeda nica. em nome dessa lei que foiimposta Europa uma poltica digna dos planos de ajuste estrutural que custoumuitos empregos. Mas o grande paradoxo que o euro se constituiu, finalmente,como uma moeda fraca. Sem esse balo de oxignio oferecido pelo aumento dodlar em 1997, a realizao do euro teria experimentado srias dificuldades.

    A progresso do poder de compra dos salrios no provocou nenhum dosdesastres anunciados. A inflao permanece baixa e a Europa est totalmentesuperavitria em relao ao resto do mundo. Ainda que a parcela representadapelos salrios na composio da renda nacional decresa aps mais de 15anos, conforme as preconizaes liberais, quando ela se estabiliza que aeconomia graas ao dinamismo engendrado pelo mercado interno poderedistribuir renda. A mesma desaprovao valida para as finanas pblicas.O dogma neoliberal segundo o qual a assepsia das finanas pblicas foi umprembulo para a retomada do crescimento funciona, na verdade, ao contrrio: a expanso econmica que vem reabsorver o dficit. A melhoria da sadeeconmica observada durante estes anos permite medir o tempo perdidocausado pelas polticas neoliberais portadoras de austeridade e desemprego.

    O social-liberalismo ao p do muro

    preciso abandonar a postura ingnua que consiste em tomar ao p daletra os discursos neoliberais e acreditar que a poltica dominante objetivaefetivamente lutar contra o desemprego. Na realidade, a Comisso Europia

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    e os governos no procuram verdadeiramente escapar ao dogma neoliberal.No lugar de definir uma norma de progresso do salrio que assegure umdinamismo demanda salarial eles esforam-se em retornar quilo que cons-titui sua referncia fundamental, ou seja, o congelamento dos salrios. Nafalta deste combustvel, a expanso perder o flego e sofrer com adesacelerao proveniente dos Estados Unidos.

    No fundo, assistimos ao cenrio que era o mais plausvel em 1998, asaber, uma progressiva frenagem de todos os motores da economia mundial.Contrariamente aos prognsticos otimistas, a desacelerao americana quaseimediatamente transmitida para a Europa. Os brutais efeitos de uma mun-dializao alargada reforada pelos entraves colocados progresso dosmercados internos podem ser facilmente verificados. Esta transio torpida que perto da metade do comrcio mundial sustenta-se sobre bens deequipamento, fato este que reflete as amplas flutuaes do investimento.

    A social-democracia, quando de sua maioria europia, assinou o Tratadode Amsterd em 1997. Jospin ento primeiro-ministro francs que acabarade assumir o poder comprometeu-se com condies entre as quais figuravama prioridade atribuda ao emprego e a realizao de um governo econmico.Este ato fundador do social-liberalismo resumiu bem seu ponto fundamental:compatibilizar a via liberal-monetarista escolhida para a construo europiacom uma poltica econmica mais preocupada em criar empregos. Atranqilidade deu a impresso que essa partida tinha sido ganha, mas setratava de uma iluso nascida de uma expanso em grande parte inesperada.Essa injeo de oxignio permitiu implantar o euro, deslocando para umplano secundrio as contradies e as questes no resolvidas. E eis que oenfraquecimento econmico retorna. Comea crescer a percepo segundoa qual aplicar de maneira estrita o Pacto de Estabilidade equivale a impor economia europia uma super-recesso. Contudo, no existe nenhuma outrainstituio alm do Banco Central Europeu para guiar e coordenar a polticaconjuntural. Sinteticamente, a construo europia encontra-se trans-figurada, truncada e distorcida pelos interesses financeiros. Em todos ospases vai se verificando este dilema: como possvel reduzir os impostos e,ao mesmo tempo, reduzir o dficit fiscal abaixo de um ponto do PIB?Entretanto, isso que prev o famoso Pacto de Estabilidade. Todos comeama se dar conta de que o Pacto inaplicvel.

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    Mas o retorno a uma poltica menos regressiva no est garantido. Paracitar apenas um exemplo, a comissria europia responsvel pelo emprego epelas polticas sociais, Anna Diamantopoulou, declarou recentemente: Areforma dos mercados de trabalho da Unio Europia est em marcha. Atagora os resultados foram positivos, mas os governos, as empresas e ossindicatos devem perseguir as polticas de reforma adotadas, indepen-dentemente de uma degradao do clima econmico mundial. A guinadada economia no deve induzir a uma inflexo da poltica. A estratgia alongo prazo que ns aplicamos atualmente a nica resposta possvel.4 Seacrescentarmos a isso as dificuldades inerentes mudana da poltica nomeio do caminho, a ausncia de instituies capazes de assumir a coor-denao necessria das polticas econmicas e o limitado horizonte depensamento do Banco Central Europeu, poderemos apenas esperar o pior, ouseja, reaes inadequadas reviravolta conjuntural.

    O questionamento de uma mundializao implacvel

    Em primeiro de outubro de 2001, o Banco Mundial publicou um docu-mento alarmante que revisou para baixo as taxas de crescimento (apenas2,8% em 2001, aps 5,5% em 2000) dos pases em desenvolvimento, prevendoainda apenas um pequeno crescimento da taxa (3,5%) em 2002. O presidentedo Banco, James Wolfensohn, aumenta a dramaticidade do quadro:Segundo nossas estimativas, dezenas de milhares a mais de crianas morreropor todo o mundo, alm disso algo em torno de 10 milhes a mais de sereshumanos estaro, certamente, vivendo abaixo da linha da pobreza com menosde um dlar por dia, em razo dos ataques terroristas.5

    Essa previso sinistra, digna de um antimundialista, ilumina a verdadeiraregresso que representa a mundializao capitalista, traduzida por umaumento do nvel da dependncia.

    Para uma grande parte dos pases do Sul e do Leste, a conjunturaeconmica representa um castigo digno dos velhos tempos das potncias

    4 Comission Europenne. Communiqu, 12 set. 2001. Disponvel em: .

    5 Banco Mundial. La pauvret en augmentation au lendemain des attentats terroristes aux Etats-Unis, 1out. 2001. Disponvel em: .

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    imperialistas. Dito de outra maneira, sua capacidade de desenvolvimentoautnomo, fundada na satisfao de suas necessidades sociais, quase nula.A possibilidade de crescer se encontra inteiramente subordinada ao fato deocupar um nicho do mercado mundial. Quanto aos pases que dependemdo preo das matrias primas, eles sofrero um recuo tendencial de seusrecursos. Somente os pases produtores de petrleo podem lucrar com aconjuntura durante as fases de aumento dos preos, mas isso acaba pordesembocar num funcionamento catico e instvel de suas economias. AArgentina6 fornece um exemplo extremo dessas desregulamentaes, mas oque dizer da situao do Japo, h dez anos estagnado, e de todos aquelespases que oscilam entre a dependncia e a marginalizao em relao sgrandes potncias?

    Essa conjuntura sinistra encontra-se acompanhada de um questionamentogeneralizado da mundializao capitalista. Vimos o ponto de vista muitopessimista do Banco Mundial. Podemos acrescentar a este o surpreendenterelatrio publicado pelo The Economist do dia 27 de setembro. A revistaultraliberal no renuncia a nenhuma de suas convices, mas prope umajustificativa mais defensiva, cujo ttulo de um dos artigos serve como umaboa ilustrao: Os antimundialistas vem o Consenso de Washington comouma conspirao visando enriquecer os banqueiros. Eles no estointeiramente errados.

    Essa perda de legitimidade no constitui simplesmente um resultadodo 11 de setembro. A lista dos pases atingidos por crises peridicasextremamente duras longa, fato este que impe um circuito catico seconomias: Mxico, Argentina, Coria, Tailndia, Rssia, Argentinanovamente. Tal circuito torna evidente que poucos so os pases que,verdadeiramente, encontram uma sada da mundializao e a Europa estem vias de descobrir que o intervalo da prosperidade est se encerrando.O euro foi implementado, mas todas as campanhas publicitrias noconseguiro convencer os trabalhadores desses pases de que eles devemesperar algo positivo disto. A Alemanha, este verdadeiro modelo de rigormonetrio, encontra-se desaquecida e ainda no acabou de absorver aunificao esta vitria sobre o comunismo. Por sua vez, os Estados

    6 Eduardo Lucita. Crise et rorganisation du mouvement social. Inprecor, n. 461/462, 2001.

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    Unidos, Eldorado da nova economia e mesmo da Nova Era, j estavamassistindo ao retorno da recesso antes mesmo de serem atingidos no coraode seu poder.

    Mesmo a resposta imediata aos atentados assume a forma de umaautocrtica. No mbito domstico, ela espontaneamente keynesiana, quaserooseveltiana, e mira o objetivo oramentrio. No mbito internacional, osEstados Unidos descobrem, um pouco tarde, que a excessiva liberalizaofinanceira permitiu uma clara interpenetrao entre economia ilegal eeconomia real. Alguns meses antes dos atentados, os Estados Unidossabotaram a reunio da OCDE sobre essa questo por meio de um ataquefrontal do atual secretrio do tesouro, Paul ONeill, a qualquer obstculo representado potencialmente pelo combate ao dinheiro sujo e s prticasfiscais duvidosas capaz de limitar a soberania dos Estados.7

    As coordenadas polticas da nova fase

    Hoje, a perspectiva mais provvel aponta para um declnio da economiamundial acompanhado por fortes recesses em seus elos mais frgeis, no-tadamente no Sul. Esta nova fase, mais uma vez, no foi criada pelo 11 desetembro, mas se encontra inscrita nas tendncias inauguradas na ltimadcada. Seu perfil exato depende, finalmente, de variveis polticas quedizem respeito, principalmente, Europa e aos Estados Unidos. A questode saber se a Europa vai entrar em recesso ou somente desacelerar dependedo grau de dogmatismo das polticas adotadas. Mas a chave da situaoencontra-se no estatuto de potncia dominante dos Estados Unidos. Naverdade, o 11 de setembro representa a possibilidade renovada peloimperialismo dominante de conseguir evitar a recesso em toda suaamplitude potencial graas a um keynesianismo de tipo militar (semelhante,deste ponto de vista, ao reaganismo), cuja viabilidade se encontraassentada sobre um financiamento imposto a seus parceiros espalhadospelo mundo em razo de consideraes geopolticas (um pouco como nomomento da Guerra do Golfo).

    7 Babette Stern. Paradis fiscaux: dsaccord entre les tats-Unis et lOCDE. Le Monde, 16 mai. 2001.

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    Contrariamente s teses de Toni Negri a respeito do imprio planetrio,8

    esse cenrio implica uma recentralizao da economia dos Estados Unidossobre os interesses de seus prprios capitalistas e sobre seu prprio aparelhoprodutivo. A eventual expanso ser especializada de maneira a no tirarproveito da concorrncia. Num registro semelhante, os experts do BancoMundial temem, com razo, que seus emprstimos a longo prazo sejam, prio-ritariamente, reduzidos e instrumentalizados pelos pases, podendo servir decorreia de transmisso para as operaes de represlias deflagradas pelogoverno americano. Em contrapartida, isso deveria ter por efeito apoiar todauma srie de pases imersos na situao de precisar redefinir uma polticaque assegure uma melhor coerncia entre os interesses gerais do capitalismoe aqueles de seus capitalistas nacionais. Os Estados deveriam reencontrarnessa situao uma nova razo para a interveno econmica. No caso daEuropa, no de todo impossvel que esta delicada fase obrigue-a a tomaros rumos de uma estreita coordenao capaz de fazer surgir um capitalismoeuropeu com uma concepo distinta de si mesmo como tal. Mas este poderser um comeo difcil pois estar ocorrendo num contexto que favorece oaumento das contradies entre economias capitalistas desigualmenteatingidas pela reviravolta conjuntural. Nesse sentido, o capitalismo alemoj perdeu sua proeminncia monetria e financeira, ao mesmo tempo emque o Reino Unido permanece ainda mais predisposto a condensar suatradicional parceria com os Estados Unidos.

    A nova fase que se abre dever, ao mesmo tempo, acentuar o cartercontraditrio do triunfo do capitalismo. Em um certo sentido, o capitalismotriunfou na medida em que obteve algo muito prximo daquilo que queria.Congelamento dos salrios, liberalizao, privatizao, flexibilizao so asgrandes tendncias impostas pelo mundo afora. O capital reestrutura-se comobem entende, sempre extraindo grandes lucros. Mas essa vitria possui seuavesso na medida em que o capitalismo no possui mais desculpas capazes dejustificar seu funcionamento catico, regressivo e gerador de desigualdades.A dcada de crescimento nos Estados Unidos, da mesma maneira que aexpanso verificada nos ltimos anos na Europa, no conduziu a uma melhorrepartio das riquezas, a uma difuso do progresso social, e sim o contrrio.

    8 Michael Hardt e Toni Negri. La multitude contre lempire. Contre Temps, n. 2, 2001.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 7, 2002

    2001, OU A GRANDE REVIRAVOLTA CONJUNTURAL 21

    Na verdade, tais sucessos apresentam sempre em contrapartida restriessuplementares para a grande maioria dos trabalhadores do planeta.

    Aps a crise, difundiu-se amplamente a idia segundo a qual a economiadeveria ser colocada em ordem para se obter um recomeo sobre novas bases.Esse esquema no funciona mais: os assalariados encontram-se frente a umcapitalismo cada vez mais convencido de que todas as concesses que lheso feitas representam, doravante, conquistas que precisam ser ampliadas. Amoderao salarial no ser recompensada por nenhuma moderao na sedede lucro! Conseqentemente, a questo que se coloca no implica mais saberpor quanto tempo ser necessrio esperar pela retomada. Ela chegou e noalterou em nada o destino da maioria. A lio foi compreendida: a situaodos assalariados somente poder melhorar por meio da presso que elesconseguem exercer no sentido de fazer avanar suas reivindicaes. Pode-sepensar que, talvez por isso, v ser muito mais difcil fazer com que os assalariadosaceitem as polticas anticclicas. Na Frana, o conjunto das ltimas lutassociais foi marcado por uma recusa quase moral das demisses efetuadas emempresas lucrativas. Esta ampla recusa esboa uma outra legitimidade, opostaquela do capital, cuja essncia no mais possvel neutralizar por meio doapelo ao compromisso. Os explorados perceberam, numa escala de massa,que este capitalismo incapaz de redistribuio espontnea e que eles noobtero aquilo que lhes foi arrancado. Este desnudamento dever facilitar apassagem de aes de resistncia e de defesa das conquistas passadas afirmao de novos direitos. O aprendizado da indisfarvel brutalidade docapitalismo dever conduzir formao de uma coalizo internacional, ondeos novos movimentos e atores sociais viro regenerar o movimento operriotradicional. Esta perspectiva integra perfeitamente as possibilidades abertaspor esta nova fase do capitalismo, mesmo que os desdobramentos do 11 desetembro a embaralhem provisoriamente.

    Uma nova onda longa?

    Doravante, no existe nenhuma dvida sobre a inverso do ciclo. Naquiloque diz respeito evoluo posterior, possvel resumir nossas hiptesesprincipais do seguinte modo. A grande catstrofe que assumiria a forma deum enorme crash financeiro seguido por uma recesso mundial pouco

  • 22 MICHEL HUSSON

    REVISTA OUTUBRO, N. 7, 2002

    plausvel por duas razes. A primeira que a desvalorizao financeiraeliminou as alternativas para os investidores institucionais que no tm outraescolha a no ser comprar ttulos mais depressa que os outros, mas noapresentam nenhuma inclinao para se retirar completamente do mercado.Isto constitui um teto abaixo do qual os preos no devero cair. Estes, almdisso, superaram uma boa parte do caminho que deve conduzi-los a colar denovo nos fundamentos. A segunda razo que as burguesias internacionais,nos ltimos anos, deram mostras de que sabem reagir de forma coordenada,no hesitando em utilizar instrumentos (injeo de liquidez, controle detrocas...) que, em tempos normais, condenavam categoricamente.

    Uma certa re-regulao dos mercados no se encontra, alis, excludaainda mais quando as crises se sucedem em intervalos muito prximos. Tudoisto no constitui nenhum recuo em relao a nossas posies anticapitalistasvisto que estas no se reduzem ao anncio do grande crash. Contrariamente,elas se desenvolvem sobre a base de uma crtica do funcionamento normaldo sistema capitalista e no em funo de sua decadncia prxima. De modosimtrico, a reviravolta atual questiona a idia segundo a qual estamos entrandoem uma nova fase expansiva, em uma nova onda longa ou em um novo ciclode Kondratieff. Claramente, o momento atual no constitui uma etapa deacumulao forte e regular, de crescimento sustentado e de redistribuio dosganhos de produtividade aos salrios. Os ciclos econmicos, longe de estaremamortecidos, encontram-se cada dia mais ampliados e prximos. Certamente,o capitalismo dispe de um modelo global que define uma nova ordemprodutiva,9 mas este , por natureza, regressivo e fundado sobre uma redis-tribuio desigual da riqueza. Evidentemente, isso no incomodaria o capitalcaso esta caracterstica no engendrasse uma instabilidade crescente, minandoos fundamentos ideolgicos dessa dominao em um grau que no deve sersubestimado. Em todo caso, estamos seguros de que o modo de funcionamentoatual do capitalismo , essencialmente, anti-social e que suas conquistas futurassero exatamente proporcionadas por sua capacidade de impor um modelofundado sobre desigualdades crescentes. Isso deveria constituir razo suficientepara ser anticapitalista.

    9 Henri Wilno. Un novel ordre productive?. Inprecor, n. 451, 2000.