cordilheira - daniel galera

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Cordilheira

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudosacadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisqueruso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico epropriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que oconhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquerpessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Info ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • Copyright 2008 by Daniel GaleraA coleo Amores Expressos foi idealizada por Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990,queentrou em vigor no Brasil em 2009. CapaRetina_78 PreparaoLeny Cordeiro RevisoCarmen S. da CostaMarise S. Leal Atualizao ortogrficaVerba Editorial

    ISBN 978-85-8086-173-0 Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz ltda.Rua Bandeira Paulista 702 cj . 3204532-002 So Paulo spTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

  • I dream some nights of a funny sea,as soft as a newly born babyIt cries for me pitifully!And I dive for my child with a wildness in me,and am so sweetly there received

    Joanna Newsom, Colleen

    Imaginar o inexistente um ato de paixo pela vida, masviver o imaginado requer um amor duradouro e, sobretudo,um compromisso.

    Jupiter Irrisari, Personajes

  • como gua

  • Foi at a entrada do quarto apenas para despedir-se e viu que a filha estavapenteando os cabelos sentada na cama, vendo-se no espelho da parede. A cena oimobilizou. Lembrou da poca em que ainda era o responsvel por pentear oscabelos de Anita quando a bab no estava em casa para dar conta da tarefa.Quando pequena, ela tinha a noo de que os cabelos deviam ser penteados porhoras. Mais, dizia quando ele j achava que tinha terminado, os fios correndoto soltos que davam a impresso de que jamais voltariam a se enroscar. Nuncadeixou de ser assim. Adulta, Anita ainda tinha o hbito de pentear os cabelos semnecessidade e por interminveis perodos. Aos vinte e trs anos, era aos olhos dopai uma mulher culta e bonita, porm um pouco introspectiva demais. Ou quemsabe introspeco no fosse o caso dela. Era socivel, no lhe faltavam amigosnem disposio para envolver-se em atividades coletivas. Mas de vez em quandoparecia apagar enquanto olhava a vista de uma janela, uma rua, o mar, ou atmesmo uma parede. Contemplativa. Contemplava tudo longamente, inclusive a siprpria, e era isso que fazia agora, penteando os cabelos. Antes de ela notar suapresena ali na porta, teve tempo de imagin-la alguns anos no futuro, casada,com filhos, fazendo sabe l o qu da vida no parecia interessada em serjornalista. Desde que tinha se formado, pensava apenas no livro que vinhaescrevendo.

    Talvez no fosse ideia digna de um pai, trazia-lhe culpa, mas perguntava-se se j no era hora de Anita desvencilhar-se dele. No tanto pelo bem dela,mas por ele prprio. Vinte e trs anos sendo pai e me para uma garota,desdobrando-se para educ-la e proteg-la, cercando-se de mulheres que lhedavam conselhos sobre ritos da puberdade e certas instabilidades emocionaistpicas, suportando as roupas pretas, o barulho horrendo e as tatuagens de suaadolescncia pseudometaleira (no chegou ao ponto de tocar numa banda nemde arranjar um namorado oriundo da tribo, mas quase), amando-a no apenasmais que qualquer coisa no mundo, mas amando-a por dois tudo isso ao longode duas dcadas e pouco configurara uma experincia inevitvel e bela,encantadora e desgastante, e agora, aos cinquenta e dois anos, permitia-se umacerta sensao de dever cumprido. Sua vida tinha chegado metade do segundotempo. Hora do tcnico fazer alteraes. Ser que era horrvel esse desejoegosta de liberdade? J no tinha feito por merec-la?

    No queria ter pena de si mesmo, era velho demais para isso. Mas s vezessuspeitava que at mesmo Anita o olhava com uma certa pena.

    Pai, ela disse ao perceb-lo ali parado. Que t fazendo a? No eranada, respondeu, s queria avisar que estava saindo para jogar pquer com oscolegas da firma, como se ela no soubesse, como se ele no jogasse pquercom os amigos quase toda noite de sexta-feira. Lembra quando voc penteavameu cabelo?, ela perguntou deitando a escova sobre as pernas. Quer fazerisso? Estava atrasado para a partida. Eles no perdoam atrasos, Anita, os carasso foda. Ah, pai, s um pouquinho. Eu gostava tanto. Aproximou-se dela epegou a escova. Ser que ela lembrava mesmo? Era to pequena. Ou ele prpriotentava negar o fato de que esses vinte e trs anos haviam transcorrido to rpido,de que o passado tinha acabado de acontecer? Segurou seus longos cabelosnegros, eram como gua. No sei se lembro bem, filha. Era assim mesmo que

  • eu fazia?

  • mamihlapinatapai

  • 1.

    Os argentinos se reproduzem por osmose, garantiam meus amigos que jtinham passado pela excruciante experincia de tentar seduzir uma argentina.Volta e meia eu trazia essa teoria mente apenas para tentar afugentar aimagem que me perseguiu durante todo o voo para Buenos Aires, a de umhomem meio narigudo, magro e atltico, com corte de cabelo estilo mullet, abarba por fazer, cheirando a cigarro, sussurrando cafajestadas em castelhano edespindo seu belo casaco de l imitado de alguma grife nova-iorquina para entomontar em cima de mim e meter com fora at esporrear o colo do meu tero eento desaparecer da minha vida. No era nisso que eu queria pensar. Pelomenos no o tempo todo. Queria pensar no que diabos ia dizer no dia seguinte,para uma plateia de argentinos que no falam portugus, a respeito de umromance que por vezes mal lembrava de ter escrito. A edio argentina estavasobre minhas pernas e eu tentava folhe-la de tempos em tempos procurandocompreender o que aquele livro ainda significava para mim, mas ele nosignificava quase nada, era uma histria de amor trgica inventada por umagarota que eu j no era. Tinha recebido no dia anterior um e-mailempolgadssimo do meu editor argentino dizendo que El Pas havia publicadouma resenha favorabilssima, que o livro estava distribudo nas livrarias e emtodos os estandes da Feira do Livro de Buenos Aires e que um programa deteleviso local viria me entrevistar aps o evento de lanamento para falar sobrea nova gerao de autores brasileiros. Tudo isso me assustava e eu pretendia usaro tempo do voo para reavivar temporariamente em mim a condio de escritora,algo que j tinha decidido que no era. O problema que ningum acreditava.Pensavam que uma menina que ganha um par de prmios literrios mais oumenos importantes aos vinte e cinco anos jamais poderia deixar de escrever,negando-se a compreender que eu j rejeitava aquele livro como essas mesque rejeitam os filhos, ao passo que para mim a percepo era exatamenteinversa. A literatura era passado e, num mundo em que mes rejeitam filhos, euno conseguia parar por um instante sequer de pensar em ter um.

    Fazia trs meses que tinha parado de tomar plula e cinco dias que tinha

  • encerrado um relacionamento de quase dois anos porque o filho da putasimplesmente se recusava a me engravidar, por mais que eu implorasse. Apesarde ter quase trinta anos de idade e uma vida profissional que lhe dava estabilidadefinanceira mais do que necessria, Danilo no pensava em ter filhos nem agoranem daqui a sei l quantos anos. A palavra filho chegava a lhe dar certo mal-estar, e ele franzia a testa como se estivesse sofrendo o ataque de um inseto oucomo se algum tipo de frequncia sonora quase inaudvel porm perturbadorainvadisse seus ouvidos. Pior que isso, ele julgava inconcebvel que eu desejasseter filhos e ao tratarmos do assunto me encarava como se eu fosse uma mutaogentica, uma louca ou uma donzela do passado que tinha acabado de viajar parao futuro e pousado no tapete fofinho do estdio do apartamento dele, em meio aum div comprado em loja de antiguidades, um pufe vermelho, uma luminriafuturista com um imenso brao articulado de metal escovado e lmpadasdicroicas, duas lava lamps e e mais um monte de coisa, mas o que importa que eu amava ficar esparramada no tapete enquanto ele trabalhava nocomputador, pintando as unhas ou lendo e perturbando-o de vez em quando, e nastrs ou quatro vezes em que lhe disse que pensava o tempo todo em ser me, quenosso filho seria lindo porque ns dois ramos lindos, que o nome poderia ser esseou aquele, ele tentava me ignorar e, sendo impossvel, dizia:

    Anita, eu realmente no consigo imaginar a gente tendo um filho nessemomento das nossas vidas.

    Ou: Anita, preciso mesmo finalizar essa animao at amanh cedo ou vou

    me foder, srio.Ou: Como que voc pode pensar em ter um filho agora? T falando srio?

    Voc faz ideia da complicao que cuidar de uma gestao e depois criar umfilho? No assim. Daqui a um tempo eu vou comprar um apartamento, no melhor esperar? E a sua carreira de escritora? Devia estar terminando um livronovo, escrevendo pra revistas, pra jornais. Tem que aproveitar que voc est porcima agora, que a mdia ainda te conhece. Voc escreve to bem. Voc vai sergrande, muito grande. Acho que no se d conta disso. Sai da cadeira emfrente ao computador e deita do meu lado no tapete. Sabe por que que eu teamo? Porque voc linda e talentosa. To mais inteligente que as outras pessoas,to mais inteligente que eu. Mas voc est desperdiando isso. Com vinte e seteanos e fica a jogada pela casa, toda esculhambada, passando o tempo combobagem. Sei l. Escreve, baby . Voc uma escritora. Isso maravilhoso. Sevoc deixar o momento certo passar, quando for mais velha vai se arrepender deno ter aproveitado. Vai pensar, eu fiquei pensando em ter um filho quando eranova, muxoxando pelos cantos, enquanto podia ter feito isso e isso e aquilo eescrito outros livros e ganhado muito dinheiro com minhas ideias. Podia terescrito roteiros. No ia escrever um roteiro pro Marco? Falei com ele esses dias.Ele tinha adorado seu argumento pro longa. Adorado. T me ouvindo? Eu mepreocupo com voc desse jeito. Faz um tempo que voc no faz nada. L umpouco, lava a loua, dorme. Eu te admiro tanto. No quero que seja dependente

  • de mim, sabe. Quero que a gente fique junto, mas quero te ver com a tua prpriavida. No acha?

    Eu quero um bebezinho...Com minhas amigas eu tambm no encontrava muita compreenso.

    ramos quatro inseparveis, eu, Julie, Amanda e Alexandra. Julie era minhairm desde os tempos de colgio, a irm que nunca tive, e das trs era a que defato mais procurava entender o que se passava comigo. A famlia era francesamas mudou-se para o Brasil quando ela era beb. Era bailarina, comeou a fazerbal antes mesmo de aprender a ler e dava workshops de dana moderna queeram disputados a tapa. Foi a ltima da turma a brotar peitinhos e quadris, masquando botou corpo se transformou num mulhero de curvas quintessenciais comum metro e setenta e sete de altura, cabelos loiros translcidos como fios denilon e um rosto delicado de nariz e queixo pequeninos, uma potranca com rostode francesinha. A partir da, foi alvo de abordagens incessantes de homens detodas as idades, e minha impresso de que cedia a todos, sem exceo, aopasso que eu exercitava minha seletividade com grande determinao. Tu asbesoin de baiser avec quelquun, Anita, me dizia ao perceber que eu estava comraiva do mundo, e ela tinha razo, eu tinha que ter dado para muito mais caras doque dei nessa vida e isso me fazia falta agora. Julie no se apegava aos homens, eo sexo para ela era sobretudo uma questo de vaidade. Cada homem comido nopassava de uma afirmao de sua beleza e elegncia de movimentos. No treparera sinnimo de estar feia e desengonada como nos anos adolescentes. Seuscasinhos eram classificados como o fofo, o gracinha, o paizo. Assim eraa Julie, minha irmzinha danarina, e eu a amava. Desde que meu pai morreu,ela era o mais prximo que eu tinha de uma famlia.

    Tudo bem, Anita, eu entendo Julie me disse meses atrs, demadrugada, na casa dela, dando colheradas numa lata de leite condensadofervida. Acha que eu tambm nunca tive vontade de ter um filho? Penso nissode vez em quando. Mas acho que voc t obcecada com isso agora. No adianta.Voc tem um lance legal com o Danilo, mas ele no t a fim por enquanto, entod um tempo.

    Dei o golpe de misericrdia na segunda garrafa de vinho. No quero dar um tempo. Vou parar com a plula. Danada. Avisa o Danilo, pelo amor de Deus. Vou avisar. Voc uma menina, Anita. Ns somos meninas. Curte a vida. Larga o

    Danilo se cansou dele. esse o problema? Vai viajar, escreve um livro. Tu asbesoin de baiser avec quelquun, s isso.

    Ns somos mulheres, no meninas. E faz tempo, Julie.No dia seguinte ela me mandou um link para um site desses femininos

    onde respondem perguntas das internautas: Minha imensa vontade de ter um filho pode atrapalhar na hora deengravidar?

  • Isadora, de Vitria-ES Resposta:

    Voc est certa quando diz que a sua vontade imensa de ter umfilho pode atrapalhar. Isso ocorre porque acima de sua vontade esto seu crebro que manda em todo o seu corpo e quando as emoesso muito intensas elas passam a acionar necessidades que entram emconflito com as razes. Em casos mais extremos, isso pode alterarat a sua ovulao. Esses bloqueios ocorrem atravs de aeschamadas de neuroendcrinas.

    O equilbrio entre razo/emoo fundamental em tudo nestavida. Procure pensar no s em gerar um filho, mas tambm em teruma vida saudvel, feliz e tranquila. Corra atrs de seus sonhos erealize seus projetos. Tente moderar sua ansiedade. Isso lhe trarbenefcios. Difcil? Com certeza. Mas no impossvel!!!

    Amanda e Alexandra me reservavam, por sua vez, agressividade econdescendncia, respectivamente. Amanda era uma gacha de Torres quetinha se mudado para Porto Alegre para estudar histria, abandonado a faculdadeno primeiro ano para cursar oceanografia em Florianpolis e abandonado estenovo curso no segundo ano para viver em So Paulo, onde estava fazia cerca dedois anos. Seu trabalho mais recente era de assessora numa ong que promovia apermacultura, um conceito de moradias e sistemas produtivos autossustentveis,em integrao total com a natureza. Tinha um namorado que vivia numa ecovilaem Ubatuba e passava os fins de semana l. Mas sabamos que suas convicesecolgicas eram meio superficiais, como tudo em sua vida. Nos ltimos tempos,Amanda s falava em deixar o namorado e a ong e ir para a Cidade do Mxico,lar de um documentarista que conhecera no litoral e com quem tivera umcasinho no ltimo vero. So Paulo est ficando pequena pra mim, dizia numsotaque meio gacho meio catarinense, com toda a seriedade, piscando os cliosenormes, assentindo devagar com a cabea e olhando ao mesmo tempo para oslados, para o alto e para baixo. Quem a conheceu primeiro foi Alexandra, quefez uma matria sobre permacultura para uma revista. Independncia era suapalavra favorita, o conceito supremo perante o qual media todas as outras coisas.Engravidar, de acordo com ela, no me tornaria mais independente. A ideia deser me era um capricho absurdo, como fez questo de deixar claro num denossos encontros ajax (Anita Julie Amanda Xanda) num barzinho em Pinheiros:

    Filhos. Ah. Na boa, eu s quero ter filhos quando tiver certeza de queminha vida est arrumada. No quero descontar meus traumas e frustraes nosmeus filhos. Antes disso, preciso ficar resolvida, independente. Queria ter filhoscom cinquenta, sessenta anos. Acho que vai ser possvel at l, a medicina tresolvendo tudo. Agora, tu, Anita? Faz favor, n guria.

    Qual o problema, porra? Ah, no sei. E a ela me olhou de cima a baixo, como se no me

  • conhecesse. Sei l, o mundo t a, tanta coisa e tu nessa pilha a. Que pilha? Por que voc acha isso ruim?Amanda quieta. Por que isso ruim? Por qu, Amanda? No sei. No sei. No o filho em si. Ah, eu no te entendo, na real. Vai passar disse Alexandra. Eu no quero que passe. Mas vai. J passei por isso. Tive esse surto de instinto materno. De ver

    um nen na rua e virar uma dbil mental, ficar fazendo bilu-bilu na pobre dacriana at a me comear a achar bizarro e me enxotar. Normal. ummomento. Eu tava meio perdida tambm.

    Mas... Namorava o Dante, a gente tava falando em casar, eu tava s fazendo

    uns frilas, meio de bobeira... Mas Xanda... Mas a a gente terminou, tive que alugar um ap, ajeitar a minha

    prpria casa, arranjei trampo na Abril e, quando me dei conta, puf. Todo aqueleinstinto tinha sumido e a ideia de ter um filho to cedo pareceu absurda. s ocorpo, Anita. Daqui a pouco teu organismo desiste.

    Alexandra era a mais velha das quatro, uma amiga de infncia de Julie.Tinha trinta. Aos vinte e oito, entrou em depresso e precisou de muitapsicoterapia e paroxetina para sair do buraco. Quando a pior fase estavasuperada, passou a agir como se nada daquilo tivesse acontecido, como se Dante,seu companheiro havia cinco anos, no tivesse cado fora por no ter aguentado otranco quando ela mais precisou dele. Preferia dizer simplesmente que os doistinham terminado. Ultimamente estava muito bem, trabalhando como reprternuma revista semanal, os cabelos castanhos sempre lisos e bem cortados, o carrosempre encerado e cheiroso, o celular tocando sem parar. Apesar disso, eu sentiaque dentro dela havia um espao vazio. Tinha medo de tocar em Alexandraporque parecia que ela podia esfarelar. Uma vez, pouco antes de se afundar nadepresso, numa noite em que Dante no estava, ficamos conversando sozinhasno fim de um jantar em sua casa e ela tentou me beijar. Estava bbada, claro.Por um instante achei que fosse s frescura, mas era srio e eu a afastei.Rejeitada, pareceu incorporar alguma entidade sombria.

    Anita disse com desprezo. Anita van der Goltz Vianna. Voc seacha grande coisa. Escritora. I... dont... care... Me olhou com raiva, mas oolhar foi derretendo at se tornar terno e complacente, uma transformaomedonha. Anita, ita, ita... s vezes eu penso que voc ainda vai sofrer tanto,mas tanto nessa vida.

    Ela comeou a chorar, e eu tambm. Houve um momento, uns dois meses atrs, em que vi que tudo estava

    errado. Foi repentino, como se algum tivesse acionado um interruptor de luz. Oque as pessoas ao meu redor esperavam de mim no tinha nada a ver com o que

  • eu queria, e o que eu queria era visto por elas como capricho ou alucinaopassageira. Sentia vontade de abraar meu pai mas ele estava morto fazia trsanos e meio. E desde que eu tinha parado de tomar anticoncepcional minhavontade de ser me havia se tornado uma necessidade fsica, uma sensaocomparvel a uma fome gstrica, uma contrao interna que era preciso saciara qualquer custo e me impelia ao. Embora tenha passado por minha cabeaa alternativa de abafar essa nsia, de me adaptar ao parecer que meucompanheiro e minhas melhores amigas forneciam acerca dessa extravagantemolstia, decidi que a coisa correta a fazer, a escolha mais bela, o que eu de fatoqueria era abraar esse desejo visceral com todas as minhas energias. Desde osdezesseis anos eu vinha enganando meu organismo com hormnios, mas tinhapassado o controle de volta a ele, deixando que abrisse as comportas dafertilidade represada e fizesse coro comigo: ns sabemos o que queremos agora.Acreditava que com um pouco de tempo convenceria Danilo a ter um filhocomigo, porque ele me amava e eu o amava e amaria ainda mais se nosunssemos para gerar uma nova criatura, e no fundo ele s estava sendo umpouco teimoso e medroso, o que tpico dos homens, to tpico quanto suatendncia a mudar de ideia e aceitar as coisas logo em seguida, num instante quegostam de definir como o adequado. Porm, meus planos foram abalados poruma sucesso atordoante de acontecimentos que me pareceram surpreendentesna poca, mas que depois eu veria como um tanto previsveis ou at mesmoinevitveis.

    Primeiro foi o convite para lanar meu livro em Buenos Aires. Lembravaque os direitos haviam sido vendidos uns seis meses antes, mas tinha quaseesquecido do assunto e a notcia de que a traduo estava pronta e o livro indopara a grfica me pegou um pouco de surpresa. O editor argentino, VicenteImbrogiano, enviou um e-mail perguntando minhas preferncias de passagemarea e informando que o lanamento aconteceria dentro da programao daFeira Internacional do Livro de Buenos Aires, no dia 23 de abril. Haveria algumaespcie de debate seguido de uma sesso de autgrafos. Eu ficaria cinco dias nacapital argentina, com tudo pago pela embaixada brasileira. Em breve receberiaum adiantamento de direitos autorais no valor de dois mil dlares, uma somaatraente, visto que o aluguel de um apartamento de dois quartos, uns pinguinhosde direitos autorais aqui e ali e a raspa da panela de uma pequena herana eramminhas nicas fontes de renda nos ltimos tempos. Buenos Aires nunca significounada para mim e nunca fui muito de viajar, mas naquele momento especfico aideia me parecia estimulante. Amanda j tinha passado frias l e garantia, a seumodo, que a visita valia a pena.

    maravilhoso, Anita. Os cafs, as lojas. Mas cansa. No fundo, nofundo, eles so uns provincianos. Saquei tudo em trs dias, depois tive vontade irembora.

    Antes que tivesse a oportunidade de contar a novidade para Julie, ela tentouse matar tomando quinze comprimidos de Clonotril, um tranquilizante que eusabia que ela tomava esporadicamente quando ficava ansiosa ou queria apagar eesquecer um pouco da vida. Foi Ludivine, a me dela, que me ligou dizendo queJulie queria me ver. J estava na casa dos pais, depois de ter passado a noite e o

  • dia no hospital, onde lhe fizeram uma lavagem gstrica. Encontrei-a na cama,sorridente e em cmera lenta. possvel que durante nossa conversa eu tenhadado a Ludivine a impresso de estar ainda mais avariada que sua filha. Atristeza e o amor que sentia por minha amiga concorreram com a incredulidadee um leve sentimento de raiva que tentei engolir em vo. A meus olhos, Julie erauma mulher mais feliz que a mdia. Linda, saudvel, talentosa, filha de paiscultos casados havia trinta anos, tolerantes e apoiadores. Sofria por suadificuldade de se envolver com os homens, era estabanada e vivia perdendocoisas importantes, tinha sua dose eventual de vazio e angstia como qualquerpessoa, mas nunca tinha me confessado nada que justificasse fazer uma coisadessas, ainda mais sem falar comigo antes.

    Julie, que cagada. No aguento mais, amiga. O qu? Meu Deus, Julie, voc a mulher mais maravilhosa do mundo. T foda, Anita. T foda. Por que no me ligou? Conversa comigo quando voc ficar mal. No sei, no sei... me abraa.Abracei. O que voc bebeu junto com os comprimidos? Cuba. Cuba? Pelo amor de Deus, Julie.Voltei para casa demolida e me grudei no Danilo, que fez de tudo para que

    eu me sentisse melhor, mas minha percepo da vida e de todas as pessoas quefaziam parte dela estava danificada e um desejo generalizado de fuga meapertou o peito numa noite agitada. Lembro de ter levantado no meio damadrugada para fumar um cigarro sem gosto e beber uma taa de vinho naesperana de relaxar e pegar no sono em seguida. Abri a janela da sala e recebia brisa fria no peito nu como uma criana esperando resfriar-se para no ter deir escola no dia seguinte. Passei minutos olhando fixamente para Sonja, osimptico lagostim vermelho que Danilo criava num aqurio de cem litros. Adanada me esnobou, como sempre. Ficou ali tateando seu mundinho lquido comas antenas. De vez em quando Danilo jogava no aqurio peixinhos lentos queSonja caava com pinadas fulminantes. Agora estava entediada. Dei umasbatidinhas no vidro e ela nada. E ento olhei para o lado e vi meu prprio livro naoutra metade da estante de ao, ensanduichado entre volumes maiores,importados, de capa dura. Tinha publicado o livro em 2005 por uma editoraconceituada. Meu primeiro e ltimo livro, no contando um livrinho de poesiasque publiquei com minha prpria grana aos vinte anos e no qual no gostava nemde pensar. Peguei o romance e li alguns trechos aleatrios. Era de estranhar quemeu nome estivesse na capa. O que os leitores viam naquilo? Por que deramprmios a essa coisa prolixa, ultrapassada, incoerente?, pensei naquela noite fria,e a conscincia de que esse esforo de expresso que tinha sido a coisa maisimportante da minha vida por uns trs anos pudesse deixar de fazer sentido para aautora apenas um ou dois anos depois afundou ainda mais meu nimo. Tinhatanta certeza do que queria ser na vida enquanto escrevia aquelas pginas! Agora

  • elas me constrangiam. E nisso Danilo, estranhando minha ausncia na cama,apareceu na sala, foi at a cozinha, voltou com um copo dgua e me perguntou oque estava errado. Me conhecia bem o bastante para saber que no se tratavaapenas da tentativa de suicdio de Julie, mas no o bastante para captar que eutinha um novo objetivo na vida: ser apenas a mulher de um homem. At aquelemomento, eu ainda achava que esse homem podia muito bem ser ele. Se Julie foidesde a infncia a irm que nunca tive, Danilo era meu pai fazia dois anos, desdeque comeamos a namorar. Desejava que ele me acolhesse por inteiro, queassumisse o papel protetor que esperava dele. Ele tirou o livro da minha mo eme conduziu de volta para a cama. Deitamos, ele cheirou meus cabelos e beijouminha nuca. Me virei de frente para ele, nos beijamos por horas e horas e ele mecomeu por cima, grudadinho em mim, cobrindo meu peito com os pelos de seupeito. Quando senti que ele estava prestes a gozar, tentei mant-lo dentro de mimcomo vinha tentando fazer toda vez desde que tinha parado com a plula, mas erasempre a mesma coisa, ou ele ignorava meus protestos e usava uma camisinhaou ele tirava para fora e gozava em cima de mim. Segurei sua bunda com toda afora, cravei as unhas, mas ele venceu de novo, o desgraado escorregou parafora e gozou na minha barriga. Enquanto ele buscava um leno de papel para melimpar, me imaginei recolhendo a porra com os dedos para finalizar o serviosozinha, mas eu jamais perderia meu orgulho a ponto de fazer uma coisa dessas,nem que fosse de brincadeira, nem para provoc-lo. No instante em que melimpava, entendi que tinha acabado. Estvamos condenados e ainda nosabamos. Era s uma questo de tempo.

    Uns dez dias depois, Alexandra pulou da sacada de seu flat no nono andar emorreu na hora. Deixou um bilhete horrvel em que culpava os pais por todo osofrimento que existe no mundo e pedia desculpas s amigas e colegas detrabalho, todos nominalmente citados. Dante, que tinha outra namorada e ao quetudo indicava mal lembrava de Xanda, recebeu uma mensagem de texto nocelular dizendo que ela nunca tinha deixado de am-lo. Julie e eu noconseguamos encontrar palavras para conversar no velrio. S lembro dela medizendo:

    Meu Deus, que cara essa. Cara de tristeza. T triste. Voc t com uma cara de nojo.Amanda chorava sem parar. Gurias, s quero ir embora desta cidade. S consigo pensar nisso.Passaram dias antes que a morte de Alexandra batesse. A frieza inicial

    com que recebi seu suicdio me fez ver o quanto, secretamente, eu a desprezava,e a emerso desse desprezo em minha conscincia nada srio, apenasreprovaes tolas trouxe consigo uma tremenda carga de culpa. Basta umapessoa sair de nossa vida para que sentimentos negativos acumulados passem aser vistos, em retrospecto, como ninharias. Palavras duras, comentriossarcsticos e sabotagens insignificantes que havia lhe dedicado retornavam agora memria amplificados em crimes hediondos. Agora era fcil para ns, suasamigas, ver sinais de que essa era uma tragdia anunciada. O nico confortonessas situaes explicar. A mquina de explicar tritura e embala tudo. At a

  • aventura de Julie com seus comprimidos se transformou num prenncio, numaexplicao. Alexandra podia ser perdoada, mas no os que no fizeram nada atempo de impedi-la, os que no queriam ver. No era verdade, mas era a versooficial, um acordo tcito entre os que ficaram.

    Depois disso decidi duas coisas. A primeira que eu ia parar de tomarsertralina, que me receitaram para transtorno do pnico meses depois da mortedo meu pai e que de vez em quando eu ainda tomava meio sem critrio paracombater a ansiedade. Toda vez que eu parava, me dava palpitaes e os ataquesvoltavam, mas senti necessidade de livrar minha mente, por mais fodida queestivesse, de todos os filtros e regulagens, nem que fosse uma medidatemporria. Era como se carregasse em mim uma dor fsica anestesiada faziatanto tempo que j no sabia qual era sua real intensidade, ou se sequercontinuava l. Agora eu precisava saber. Alm disso, se queria engravidar, teriaque parar de qualquer forma, pelo menos na primeira metade da gestao. Noque eu tivesse esperanas de engravidar de fato num futuro prximo, do jeito queas coisas andavam, mas tudo que fosse coerente com o mero desejo de ter umfilho me parecia digno de ser posto em prtica.

    A segunda deciso que eu passaria um tempo em Buenos Aires. Nosabia por quanto tempo nem exatamente por qu, mas era a coisa certa a fazer.O dinheiro do adiantamento pago pela editora argentina me permitiriapermanecer l por algumas semanas. Escondi essa deciso do Danilo at ondepude, por insegurana, mas uma semana antes da data marcada ele props meacompanhar na viagem Argentina. Seria divertido, ele precisava de umasferiazinhas, Buenos Aires romntica, vamos danar tango, o cmbio estfavorvel. Falei que no. Iria sozinha. Ele se ofendeu um pouco. Ento eu disseque no apenas iria sozinha como pretendia passar um tempo l. Ele fez que noentendeu. Quis saber por quanto tempo. Chutei um ms. Ele fez que noentendeu. O assunto morreu e ressurgiu no dia seguinte durante o jantar num denossos restaurantes favoritos. Ele quis entender por qu. Eu no soube explicar.Ele insistiu e disse que eu era louca. Eu disse que queria ter um filho. A menodessa coisa de filho ps o barraco abaixo e fomos para casa brigando. Pelamanh eu disse que estava tudo acabado. Ele disse que eu era louca. Eu disse quemesmo assim estava tudo acabado. Ele disse que me amava. Eu tambm oamava, mas mesmo assim. Ele disse que ia reconsiderar o assunto do filho.Mesmo assim. Ele perguntou para onde eu iria e o que faria da vida. Eu disse queainda no sabia muito bem, mas passar um tempinho em Buenos Aires era umcomeo.

    Vai levar uma mala pra Buenos Aires e pronto? Simples assim?Acabou?

    isso a. E as tuas coisas? Teus livros aqui? Os mveis do teu pai?Hesitei um pouco, mas disse: Foda-se, Danilo. Deixa tudo a. Isso no um problema. No uma

    questo. Quem disse que eu quero ficar com tudo que seu? E se eu no quiser? Joga fora, vende. No sei. No complica mais ainda.

  • Nos poucos dias que antecederam a viagem, mesmo com as discusses,com as lgrimas, com a poeira de tragdias recentes ainda prejudicando avisibilidade em meio aos escombros, eu me pegava sorrindo por dentro nosmomentos mais inesperados. Como eu podia ter me privado por tanto tempo dosabor das decises drsticas, do prazer de derrubar uma pecinha de domin emudar tudo de forma irreversvel? Atenta a essa sensao, eu pensava em coisascomo um banho de sais numa imensa banheira de hotel, em glaciaresdesmoronando, em avies realizando acrobacias, em mim mesma fazendocoisas que nunca tinha feito mas que s podem ser maravilhosas, como galoparum cavalo.

    Uma aeromoa apareceu com algum tipo de spray enquanto outra

    explicava pelo alto-falante que as autoridades argentinas exigiam que a cabine doavio fosse pulverizada com um produto natural autorizado pelo Ministrio daSade brasileiro. Contra que tipo de peste estavam nos pulverizando, isso ningumse deu ao trabalho de esclarecer. O avio estava em procedimento de descida, epela minha janelinha particular eu observava campos sem fim de um pastoverde-clarinho serem ocupados por construes cinza e spia numa densidadecada vez maior at que Buenos Aires estivesse inquestionavelmente debaixo demim. O pouso estava previsto para as cinco e meia da tarde e perto desse horrioo sol poente emitia uma luz dourada que se comportava como uma neblina. Emvez de cobrir a superfcie por igual, essa luz atravessava um cu parcialmentenublado em feixes que tingiam pores isoladas da paisagem, como se a posiodas nuvens obedecesse aos comandos de um pintor celestial. Meus nveis deansiedade vinham sendo altos nos ltimos dias, agravados pela interrupo domeu remdio, mas nesse instante foi como se a beleza do panorama visto doavio invertesse a polaridade da ansiedade, que deu lugar a um arrebatamentotranquilo, talvez a sensao que as pessoas costumam descrever como sentir-seviva. Uma viso mais ntida que o comum dava conta de tudo: da natureza, dasminhas emoes, dos meus laos afetivos. O lanamento do livro passaria rpidoe depois disso viria o imprevisvel, por tempo indeterminado. Relaxei e voltei fantasia do argentino annimo que me conquistaria e fertilizaria, dessa vez semculpa, sem resistncia alguma. O avio descia devagar, devagar, como se nofosse chegar nunca.

  • 2.

    O taxista que me levou para o hotel no centro de Buenos Aires era umvelhinho magricela e careca que fumou o tempo todo enquanto dirigia. As cinzasde seu Marlboro voavam para o banco traseiro. O primeiro cigarro ele acendeusem maiores cerimnias, mas antes de acender o segundo lhe ocorreu perguntarse me incomodava. Respondi que no e decidi abrir a janela e acender umtambm. Trocamos apenas um punhado de frases curtas e resmungos, mas tive aimpresso de que me viraria bem falando portugus e ouvindo espanhol. Depoisde meia hora numa autoestrada, passamos por uma grande placa pregando areconquista das Malvinas e entramos na cidade. J estava escuro e o cenrio nome provocou nenhum estranhamento inicial, pelo menos at chegarmos, apsdemorado percurso por ruas engarrafadas, regio central onde amplasavenidas, prdios pblicos imponentes de arquitetura neoclssica afrancesada,obeliscos e alguns marcos tursticos me deram certeza de estar noutro pas. OHy de Park Hotel era um trs-estrelas no Microcentro, rea que minhas prviasfuadas internticas tinham revelado ser o centro financeiro e administrativo deBuenos Aires, um amontoado de quarteires regulares divididos por ruas estreitasque s sete horas da noite eram como gargantas barulhentas e luminosasladeadas por prdios altos, entupidas de gente, comrcio, veculos e umaconcentrao nauseante de partculas de carbono no ar.

    J no meu quarto, liguei a calefao, tirei a roupa, abri a mala, pendureialgumas peas no armrio, levei meus produtos para o banheiro e tomei umbanho demorado daqueles que s se toma em quartos de hotel. Quando sa de larrastando comigo uma nuvem de vapor, j estava atrasada. Martn, o rapaz daeditora que tomaria conta de mim pelo menos at o evento de amanh, viria mebuscar s oito horas para irmos a um coquetel na embaixada brasileira. Tinhamenos de quinze minutos para me arrumar. Liguei a televiso em busca dequalquer coisa divertida para escutar enquanto me vestia e aps uma rpidazapeada por programas que pareciam cpias dos brasileiros, s que um poucopiores, me deparei com um bispo pregando para um grande auditrio. Era umbispo brasileiro da Igreja Universal ou qualquer assemelhada, mas estava

  • pregando em espanhol ou, para ser mais exata, no mais tosco arremedo deportunhol com que j havia me deparado. A plateia, que aparentava sercomposta de cidados argentinos, no dava sinais de se importar. Desliguei ateleviso. Sequei o cabelo e optei por um visual meio metaleira, com botinha,meu vestido de seda preta e o colar de metal com o smbolo da banda Nailbombque eu tinha mandado fazer sob encomenda na adolescncia e adorava usar athoje. Exagerei um pouco na sombra e no rmel, pensei at em usar batom pretomas recuei no ltimo instante, me contentando com um brilhozinho. Posei para oespelho. Magra e branca. Linda.

    Fiquei pronta s oito e quinze. O telefone do quarto s tocou s oito e meia.Desci e encontrei Martn no saguo. Era um carinha encolhido, de ombrosestreitos, meio nerd. Usava culos de aro de metal e tinha a barba por fazer.Mesmo assim, a seu modo, tinha um ar de certa superioridade que me atingiu primeira vista. Talvez fossem as roupas: camisa riscada para dentro da cala euma jaqueta de l elegantrrima. Me estendeu a mo. Apertei, mas ao mesmotempo me inclinei para cumpriment-lo com um beijo no rosto, ao qualcorrespondeu sem embarao algum.

    Hola. Como estuvo eso? Largo el tirn? Ahn... Hola?Fiquei paralisada. Ainda ia precisar de uns dias para me acostumar

    lngua. Pode falar devagar? Mais... despacito, por favor?A resposta s veio depois de uma pequena pausa e um sorriso malicioso. S, por supuesto.No carro, Martn tentou me explicar no que consistia exatamente o tal

    coquetel. Estariam presentes alguns outros autores brasileiros que participariamda Feira do Livro, o adido cultural, o prprio embaixador, alguns autores eeditores argentinos, gente de instituies culturais e quejandos. Eu tinha tantointeresse nisso quanto num encontro de cirurgies bucomaxilofaciais. Martnnotou minha reao e disse que no era necessrio ficar muito, apenas o bastantepara que me apresentassem a meia dzia de pessoas diretamente responsveispela promoo da cultura brasileira na Argentina. Fiz o possvel para reconhecerque essa poltica de boas relaes era importante para a editora em que eletrabalhava (e que tinha me publicado e me pagado direitos e me trazido para c),mas era difcil. Afinal, eu tinha um segredo por ora inconfessvel: no estavanem a para o meu livro, nem para a editora dele e muito menos para apromoo da cultura brasileira no exterior. Como se lesse em parte meuspensamentos, ele disse:

    No se preocupe. Ser muito rpido. Amanh apresentaremos o livrona Feira e ento voc estar livre. Sei de um bom lugar onde tocam bandas deheavy metal. Virou a cabea e me olhou de cima a baixo com tanta franquezaque cheguei a me encolher um pouco no banco. Estou enganado?

    No, voc me pegou, Martn. Uma vez metaleira, pra sempremetaleira.

    Motrhead tocar no Luna Park daqui a alguns dias.

  • Fiz um lml com a mo esquerda e sacudi um pouco a cabea, deixandoos cabelos carem sobre a cara.

    A embaixada brasileira ficava num palcio magnfico no bairro chique deRecoleta. Enquanto subamos por uma escada em curva rumo ao salo principal,me arrependi de no ter me fantasiado de madame. Dizem que Buenos Aires foiconstruda com a ambio de ser a Paris dos pampas, e naquele momentoentendi o que isso queria dizer. O salo, ocupado nessa ocasio por trs ou quatrodezenas de convidados, era um museu de decorao francesa do sculo xix. Noteto, um formidvel mural em que trapezistas balanavam sob um cu de nuvenstubulares como se estivessem de fato bem acima de nossas cabeas, criandouma eficiente iluso de perspectiva. Aps ligeiro exame, averiguei com alvioque muita gente alm de mim estava vestida de maneira um tanto casual. Eento fui sendo apresentada por Martn a uma srie de pessoas: Bernardo Portela,adido cultural, um sujeito jovem demais para ser careca que fingiu ter lido meulivro mas s leu mesmo o meu decote; Dolores Vaquero, dona de uma rede delivrarias que me disse algo como temos que trazer seus livros para as nossaslivrarias como se esse tipo de coisa dependesse de mim ou sequer mepreocupasse; Vicente Imbrogiano, que vinha a ser meu editor argentino, umhomem que me surpreendeu por sua juventude e modos nervosos, como se apresena naquele coquetel fosse um desconforto muito maior para ele do quepara mim, o que no o impediu de assumir a posio de Martn, pegargentilmente no meu brao e me apresentar a Carlos Coronel, embaixador doBrasil na Argentina, que no fingiu ter lido o meu livro e muito menos simulouqualquer interesse maior pela minha pessoa, cumprimentando-me com umsorriso generoso, desejando-me boas-vindas, pondo-se minha disposio e logoretornando conversa que mantinha com senhores de evidente importnciadistribudos em cadeiras almofadadas ao redor de uma mesinha de centroredonda. Capturei uma taa de vinho tinto e um canap de salmo. Mastiguei ocanap enquanto Vicente expunha o roteiro da apresentao do dia seguinte naFeira. O homem no conseguia olhar no meu olho e essa timidez tornava-o muitosimptico. Perguntei-lhe se era permitido fumar ali dentro e ele recomendou queeu fosse varanda. No caminho, enganchei meu brao no de Martn e o arrasteicomigo.

    Fuma? Sim.A varanda dava para o ptio dos fundos, na verdade um pomposo jardim

    cercado de enormes prdios residenciais, todos providos de varandas decoradascom muitas plantas e cobrindo a largura integral dos apartamentos.

    Que prdio lindo este da embaixada, hein? Muito bonito disse Martn com o olhar perdido na semiescurido do

    ptio. Palcio Pereda. pastiche de um palcio francs. Quase idntico. Ah ? Estive no original, em Paris. Hoje um museu. Muse Jacquemart-

    Andr. At a decorao parecida. Hmm. Voc morou em Paris? Fiz mestrado em filosofia na Sorbonne. Isso foi dito sem nenhum

  • trao de soberba. Que idade voc tem, Martn? Vinte e seis.Ficamos um tempo em silncio, baforando fumaa branca na noite. Estava

    pensando em onde colocar a ponta do meu cigarro, pois no havia cinzeiros vista, quando Martn arremessou a sua com um peteleco no meio do jardim.Deixei a minha cair discretamente l embaixo.

    Ser que j podemos ir? Creio que sim.Dentro do carro, passei alguns minutos em silncio tentando entender se

    minha vontade de convidar Martn para subir comigo no quarto do hotel eraabsurda, pattica, inoportuna, apressada, equivocada, insana, ridcula, vulgar ouaviltante. H tantos adjetivos no mundo que em certas ocasies fica impossvelescolher um s. Ou talvez essa abundncia toda ainda seja insuficiente e certasocasies, sentimentos e coisas sigam sendo inadjetivveis. Arrisquei um meio-termo.

    Martn, me leva pra sair. Perdo? Vamos pra algum lugar. Um restaurante, um bar. Um clube. No quero

    passar minha primeira noite em Buenos Aires no hotel. uma pena, mas tenho que voltar logo pra casa. Minha esposa est

    doente. Mas posso te deixar em algum lugar, se quiser. No, no. Sozinha no. Pro hotel, mesmo.Entrei no quarto e fui logo checar meu celular na esperana de encontrar

    ligaes no atendidas, mensagens, qualquer coisa. O aparelho no pegava sinalna Argentina, claro. Passei horas me revirando na cama, aterrorizada com asolido acentuada pelo quarto do hotel numa noite sem calor nem toque, sentindouma pilha de tijolos sobre o peito e aguardando para qualquer momento umataque de pnico que graas a Deus no veio.

    Acordei quase uma hora da tarde e almocei no Burger King. Passei a tarde

    perambulando pelo centro. Sou uma pssima turista. No tenho pacincia nemcapacidade de organizao para planejar e seguir roteiros, no entendo mapas eme sinto sem rumo quando estou sozinha em lugares novos. Passei em frente Casa Rosada, que estava em reforma, com parte de sua fachada escondida atrsde andaimes e tapumes. Na Plaza de May o, um protesto. Uma bandeiraargentina gigante estava sendo desenrolada no cho da praa. Me entregaramum adesivo. No a las papeleras. Municipalidad de Gualeguaychu, um protestocontra a instalao de fbricas de papel. Fui at Puerto Madero e caminhei pelocalado. O rio de la Plata estava logo ali, em tese, mas uma vegetao feita deum capim muito denso e alto bloqueava a viso das guas em toda a extensoque percorri. Barraquinhas e trailers de choripn vendiam sanduches na rua,com grelhas fumegantes cobertas de pedaos de carne e linguias. Comprei umrefrigerante light e sentei no muro do calado, de onde pude vislumbrar um

  • cemitrio de milhares de embalagens de plstico multicoloridas boiando na guaparada. Depois andei mais um pouco. O tempo todo tinha a sensao de estarindo em direo a lugar nenhum. Aquela parte de Buenos Aires me parecia togrande. Avenidas grandes, prdios grandes, um imenso cu nublado. E eupequena. E ansiosa. Abstinncia de sertralina. Cansei e peguei um txi de voltapara o hotel. O motorista j tinha morado em Florianpolis, mas brigou com amulher e voltou sozinho para Buenos Aires.

    A 33a Feria Internacional del Libro de Buenos Aires ocupava um lugar aque os portenhos se referiam como La Rural, um grande parque de eventos aolado da Plaza Italia, na avenida Santa Fe. A feira em si no diferia muito dequalquer bienal literria: um labirinto de estandes de livrarias e editoras compilhas e mais pilhas de livros e cartazes anunciando descontos. Eram diversosprdios, todos com intenso movimento e climatizados por potentes aparelhos dear condicionado que promoviam o extremo oposto do extraordinrio calor quefazia na rua naquele princpio de outono, uma temperatura que estava tirando osportenhos do srio e alimentando debates sobre aquecimento global nascafeterias e programas de auditrio. Enxames de estudantes uniformizadospercorriam os estandes com sacolinhas de livros. As meninas usavam meias-calas ou meias chegando quase aos joelhos, saias plissadas e blusinhas com ainsgnia do colgio, e alguns modelos de uniforme chegavam ao requinte de tergravatinhas, coisa que no Brasil s se veria num ensaio fotogrfico fetichista deuma revista masculina. Encontrei Vicente e Martn no estande do Brasil. Dalifomos logo para o auditrio onde aconteceria a palestra ou mesa de discusso oubate-papo.

    A sala para cerca de cem pessoas estava cheia. No palco, uma mesacoberta por uma toalha preta, jarras dgua, copos e microfones sem fio. Haviaquatro assentos: um para Vicente, um para mim, um para Luca Merello autora e crtica argentina, estudiosa da literatura contempornea brasileira eoutra para Nicanor Benegas, editor de uma revista paraguaia de literatura latino-americana. Vicente abriu a mesa apresentando os participantes e falando umpouco sobre mim. Ento anunciou que leria um captulo do meu romanceDescripciones de la lluvia. Tinham solicitado, dias antes, que eu mesmaescolhesse um captulo para a leitura. Pedi que lessem o ltimo. Vicenteprotestou, mas insisti. Talvez porque achasse que essa fosse a melhor parte dolivro, talvez pelo prazer sacana de fazer aqueles leitores potenciais ouvirem logoo final da histria. Do meu ponto de vista, essa pequena autossabotagem caamuito bem. No diga a eles que o ltimo captulo, escrevi no e-mail paraVicente. Soube que ele tinha acatado meu pedido quando vi o folheto bilngue quehaviam distribudo a todos os presentes. O ltimo captulo do meu romance emportugus e espanhol. Vicente iniciou a leitura com sua voz terna e macia. Fuiacompanhando no folheto aquele texto escrito por uma pessoa que, por incrvelque parea, eu j tinha sido:

    A gua que vinha caindo do cu em gotas desde o incio da tarde tinha dado

    faixa de granculos rochosos uma cor mais escura, um cinza puxando para o

  • bege. Magnlia preferia a praia nesse estado. A brancura resplandecente dos diasensolarados feria seus olhos sensveis. Era luz demais, quase insuportvel. Seusolhos eram feitos para essas cores de agora, frias e desbotadas, que pareciamconvergir para a tonalidade nica de quando o mundo ainda era uma tela embranco. Seus ps descalos com unhas pintadas de bord afundavam no solocremoso e gelado e cada passo a aproximava da interminvel superfcie de guasalgada. O horizonte do mar estava oculto pela cortina cinzenta da chuva. Arebentao, porm, estava bem visvel e a viso era impactante. Montanhashorizontais de gua erguiam-se a centenas de metros da praia e sucumbiam prpria fora devoradora em exploses de espuma branca que eram reabsorvidase novamente empurradas em direo ao continente at dobrar-se sobre si mesmase sucumbir outra vez e assim por diante num padro quase indistinguvel do caos.Magnlia j tinha visto mares mais agitados, mas pela primeira vez lhe chamou aateno a docilidade com que as ondas alcanavam a praia e esticavam-se aomximo para em seguida escorregar de volta ao oceano e dissolver-se parasempre, cedendo espao s prximas da fila. Quanta potncia ostentavam adezenas de metros dali, e quanta preguia demonstravam ao alcanar seu destino,como se vencidas no ltimo instante.

    Era impossvel dizer onde estava o sol, mas calculou que eram trs horas datarde. O curto trajeto da casa at a praia fora suficiente para que seus cabelos seencharcassem e cobrissem as costas como uma placa malevel. Por baixo dobiquni e do tecido que lhe envolvia os quadris a pele estava arrepiada pelo frio.No planejava ficar mais do que poucos minutos diante das ondas, mas sentia-seabraada pelas gotas cadentes e separar-se delas para retornar ao ambienteescuro e mofado da casa tornava-se uma ideia cada vez mais indesejvel. Tomsno despertaria to cedo. Antes de sair, cobrira seu corpo cuidadosamente com omesmo tecido de algodo j amarrotado e fedido que vinham usando para cobrir-se nas noites mais frias dos ltimos trinta ou quarenta dias, ou quem sabe at mais.J tinha perdido a conta. Estava com saudade da me. Queria poder telefonar epedir seus conselhos, mas sabia exatamente que conselhos ela lhe daria, e noestava disposta a segui-los. Retornar era inconcebvel. Agora existia apenasToms. Tudo se resumia a estar com ele.

    O que sentia agora, entretanto, era um desejo intenso de ficar sozinha. Paraa direita, a praia estendia-se cerca de um quilmetro. Estava, devido ao clima e poca do ano, totalmente deserta. Magnlia foi caminhando naquela direo. Noincio sentiu-se cansada e pesada. Um prato de macarro com frutos do mar eduas taas de vinho branco pesavam no seu estmago. Toms havia compradoaquele vinho direto do produtor numa praia das redondezas. Tinha uma cordourada e gosto de suco de ma. Se voc fosse um vinho, seria esse, Toms lhedissera. Era o vinho menos doce que ela j tinha posto na boca. Como esse homempodia conhec-la to bem?

    Caminhando, sentiu-se cada vez mais leve e desperta. Lembrou que asegunda ou terceira praia para o sul se chamava praia do Ouvidor. Decidiudescobrir se era possvel chegar l a p. Acelerou o passo.

    O inverno faz pessoas que se refugiam em praias desertas terem vontade deretornar para tudo que deixaram irremediavelmente para trs, para ento entrar

  • em depresso ou cometer suicdio. A no ser que tenham condies financeiras deabrir uma pousada ou qualquer outro negcio que as mantenha mais ou menosentretidas entre uma temporada quente e outra. No era o caso dela e de Toms.Para suportar o inverno, teriam de bastar um ao outro por meses e meses.Magnlia temia o inverno.

    Alcanou um leito de gua doce que desembocava no mar e dividia essapraia da seguinte. Era uma gua salobra, verde e marrom, que corria pela areiaem direo a um morro redondo e solitrio que avanava sobre o mar e malparecia capaz de absorver os golpes das ondas. O morro, isolado no meio daareia, distante de qualquer acidente geogrfico semelhante, estava em improvvelposio. Se um dia o nvel do mar subisse, se transformaria numa diminuta ilha.Moradores locais tinham lhe contado que o morrinho abrigava um cemitrioindgena. Encontraram ali numerosas pontas de flecha. No ltimo instante, o riodesviava do morro e o contornava pela direita, desembocando no mar. Golfadasde espuma branca cobriam as rochas e espirravam para o alto com incrvel fora,indo de encontro chuva que caa. Enquanto cruzava a barra com o rio subindoat o meio das coxas, sentindo na pele o calor surpreendente do lquido, Magnliapensava, encantada, nessas combinaes de diferentes guas. A espuma dooceano, salgada e impregnada de minerais, subindo de encontro gua doce dachuva. A gua salobra de uma laguna escoando para o mar ao mesmo tempo que alimentada por um rio. A gua dulcssima, viscosa e perfumada de um crregono meio da mata fechada, formando poos e cascatas pela encosta de umamontanha. A gua azeda e artificialmente azul de uma piscina clorada. gua,gua, gua. O que mais lhe fazia falta na praia em que haviam se refugiado erauma extenso de guas tranquilas onde pudesse nadar sem preocupao, s vezespor uma hora ou at duas, como fizera durante boa parte de sua vida nas piscinasde diversos clubes. A violncia desse mar a assustava. Era para ser visto, novisitado. Os mares, lagos e rios em geral gostavam dela. Convidavam-na. Tomssabia disso. Sei para onde podemos ir, dissera meses antes. Tenho uma casinha napraia, em Santa Catarina. J acabou a temporada. S ns dois e o mar. Tem um rioperto. Tem cachoeiras nas redondezas. Para Magnlia, soara como o paraso. Masa gua daquele lugar no ia muito com a cara dela. Se estranhavam. Fazia unsdois meses, pelo menos, que estava sedentria. J percebia os msculos dosombros e braos amolecidos. Permanecer agora ali debaixo da chuva era umamaneira de fazer as pazes com a gua. gua doce que cai do cu em gotas vinha aseu encontro, escorria por seu corpo numa temperatura perfeita, entrava em suaboca com um sabor familiar.

    Percorreu a praia da Barra sem prestar ateno ao fluxo desordenado dosprprios pensamentos, olhando quase o tempo todo para a frente, espiando de vezem quando as ondas esquerda ou as casas de veraneio desocupadas direita. Avida toda tinha sido tachada de intelectual, uma garota que pensava demais. Ame chegara a dizer, em algum ponto de sua infncia, que se no aprendesse apensar menos e viver mais acabaria sendo uma pessoa infeliz. Nunca tinhaesquecido daquilo. Era o mesmo julgamento que pareciam fazer seus colegas decolgio e at mesmo Toms, quando a conheceu melhor. Uma vez, na cafeteria docursinho, ele dissera: Tenho medo de voc quando fica pensativa desse jeito.

  • Era uma coisa extraordinria para uma adolescente de dezessete anos ouvir deum professor.

    Aproximando-se do final da praia, descortinou uma faixa larga de areiabege que subia pela encosta de um grande morro, to alto que ainda no erapossvel divisar seu topo no ter cinzento da chuva. A subida era ngreme e seusps entravam fundo na areia, pisando aqui e ali em bolotinhas escuras cobertas deespinhos que furavam a pele com facilidade e precisavam ser removidascuidadosamente com a ponta dos dedos. O caminho margeado de arbustos evegetao rasteira fez uma curva para a esquerda, depois outra para a direita.Das nuvens at ento silenciosas veio um trovo. Suas pernas j estavam cansadasmas o corpo, cada vez mais aquecido, lhe dava a impresso de fundir-se natureza ao redor. Era como se houvesse sempre pertencido quele ambiente eestivesse chegando ao fim de um longo retorno para casa.

    Quando alcanou o topo, deu de cara com uma nova paisagem, um mundonovo que ofuscava todo o trajeto percorrido at ento. Estava no alto de umaimensa duna que terminava num precipcio. Dali em diante, olhando para a frente,para o sul, a superfcie de areia se estendia num belo padro de ondulaessuaves e degraus sbitos. Ainda mais adiante, campos verdes e uma lagoa escura.A chuva no permitia enxergar mais longe, mas era possvel adivinhar a vastidopara alm do ponto em que a visibilidade terminava. esquerda, o oceano. Ocaminho de areia se transformava numa trilhazinha que avanava entre moitasespinhentas e levava, aparentemente, at a praia do Ouvidor, que dali podia servista por inteiro.

    Sentindo-se cansada demais para prosseguir, Magnlia saiu da trilha, deualguns passos em direo ao oceano e chegou a um pequeno declive coberto defolhinhas verdes, finas e pinicantes, que antecedia um penhasco de dezenas demetros de altura. L embaixo, vagalhes assustadores explodiam contra as rochas.Se sasse para a direita, seguiria caminho. Para a esquerda, voltaria para casa.Nenhuma das opes lhe interessava nesse momento, e estava absorvida pelo quea rodeava a ponto de acreditar que nenhuma delas jamais voltaria a lhe interessar.Escolheu uma pedra que parecia confortvel e sentou-se, abraando os joelhos.

    Comeou a chorar de mansinho e depois aos soluos, as lgrimas perdendo-se no rosto molhado assim como ela prpria sentia diluir-se na chuva, no vento,nos troves e no oceano. Tinha certeza, agora, de que no aguentaria permanecermais um dia sequer naquela casa de praia mofada e lgubre e que uma vida aolado de Toms seria invivel. No que no o amasse mais. Amava muito, emexcesso, mas esse amor no tinha mais espao e estava morrendo sob o prpriopeso como uma baleia encalhada. Tinha arrancado aquele homem para fora desua vida, de sua carreira, da mulher e dos filhos, e agora estava certa de queprecisaria abandon-lo para no enlouquecer. O sofrimento que tinhamenfrentado no ano anterior no seria nada perto do sofrimento que os aguardava.Era to injusto, e ao mesmo tempo to inevitvel, que pensar nisso a sufocava ecausava dor fsica.

    Sobre o mar, meia dzia de pssaros negros sobrevoavam a gua, orabatendo asas ora planando, e de tempos em tempos um deles parava em pleno arpor uma frao de segundo e depois mergulhava em linha reta, furando a

  • superfcie do oceano como uma flecha. Um deles emergiu aps alguns segundoscom um peixe na boca e ficou boiando enquanto se dedicava ao complicadoprocesso de engoli-lo, indiferente chuva ou violncia das ondas. Mesmo agora,naquelas condies adversas, vendo-os em plena batalha por sobrevivncia,desejava ser um daqueles pssaros, um desses seres to indiferentes sintempries, criaturas sem sentimentos para as quais no h amor nem apego.

    No deve ser toa que existe qualquer coisa de milagroso e divino quandote encontro, dissera-lhe Toms naquela festa, e a mesma frase que a derretera naoutra ocasio agora parecia quase desprovida de sentido. Para crer nela erapreciso crer no destino, no sobrenatural e em Deus, mas Magnlia no era muitoafeita a nenhum desses conceitos. Dali onde estava, diante da viso do oceanomonocromtico e revolto, dos pssaros e de seus incrveis mergulhos, sentindo ovento salgado e a gua da chuva agirem sobre seu corpo at quase o dissolverem,tinha a convico intuitiva de que a beleza dessas coisas estava intimamenteligada a sua natureza inerte, ao fato de que eram apenas elementos agindo aosabor de leis desprovidas de inteno ou significado. Quanto mais tempopermanecia ali sentada, mais a fundo seus sentidos absorviam aquela paisagem emaior era a beleza de tudo, da paisagem e dela prpria, pois j no haviadiferena entre ela e o mundo. Era feita da mesma coisa de que a gua era feita,da mesma coisa que os granculos de rocha esbranquiados, que os animais aladoscobertos de penas negras, que o ar se deslocando com fria e encrespando asondas, e no enxergava nada de divino nessas coisas nem em si mesma porqueno havia necessidade de explicar nada, de preencher nenhuma zona obscura,nada disso. Bastava como era, como ela experimentava atravs dos sentidos.Estava livre, preenchia o mundo tanto quanto ele a preenchia, as trovoadasproduzidas a grande altitude agitavam seus rgos e nada nisso era misterioso, eratudo to bvio e bonito e completo sem precisar de Deus assim como sua vida noprecisava de destino.

    O homem surgiu de repente e postou-se a seu lado, ele estava nervoso efalava em ter seguido marcas de ps deixadas na superfcie malevel degrozinhos de rocha, alegava estar aliviado por encontr-la, e um grande clarofoi seguido de um estrondo vindo de cima e em seguida as gotas dguacomearam a despencar do cu com mais e mais fora e quantidade e as criaturasnegras aladas que perfuravam a vastido de gua salgada desapareceram e omsculo dentro de seu peito disparou e quanto mais a intensidade de tudoaumentava mais um nico elemento parecia incompatvel com esse mundo e esseelemento estava em p a seu lado com dois membros apoiados no cho e outrosdois pendendo ao lado do corpo, os tecidos que o cobriam colados pele, a facecoberta de pelos curtos, escuros e duros, os dois globos que lhe davam expressocoloridos de um azul-claro que era totalmente incompatvel com ela e com oestado de todas as outras coisas a seu redor, e como uma dobra da superfcie dooceano que quebra sobre si mesma ou como uma daquelas pequenas esferasvegetais pontiagudas que penetravam a planta de um p descalo ela agiu deacordo com todas as outras coisas e com as leis que as regem, seu gesto foi belo einevitvel, e a criatura a seu lado, aquele improvvel arranjo de carne, despencourente parede rochosa e foi tragada para sempre pela espuma e pelas pedras.

  • Quando irromperam os comedidos aplausos, reparei que eu estava com a

    respirao presa. Algo no tom de leitura de Vicente, ou talvez o fato de estarsubmetendo aquilo aprovao de um pblico estrangeiro, me fez acompanharaquele ltimo captulo como se fosse mesmo o trabalho de outra pessoa, nomeu. Pela primeira vez, vislumbrava como podia ser a recepo de um leitorquilo. O estilo me constrangia, mas sem dvida havia algo ali. Algo sendo dito.Lembro de quando comecei a escrever o romance. Queria expressar coisas queno sabia bem o que eram, queria imaginar uma vida em que houvesse umame. Magnlia, minha personagem, tem me mas no tem pai. Era o contrriode mim, pelo menos quando comecei a escrever. No fundo, toda essa histria deuma menina que gosta de nadar como eu nadava, admito, na minhaadolescncia, manifestao de uma paixo pela gua que se estendia a mares,rios, cachoeiras, chuva, chuveiros, banheiras e que se apaixona pelo professordo cursinho muito vagamente inspirado num professor de cursinho que tive,com o qual fiquei numa festa, um cara que usava bigode e, t, paremos por aqui e acaba fodendo com a vida de ambos era pretexto para imaginar livrementeaquela me, dar-lhe uma forma definitiva, que ficaria no papel. Perguntava sminhas amigas sobre a relao delas com suas mes e lia coisas sobre mes eanalisava personagens maternos em outros livros para construir aquela ausnciana minha vida. Acho que sempre soube disso no ntimo, mas apenas agora, anosdepois, ouvindo o texto em espanhol e acompanhando-o no folheto, eu via aquilocom clareza. A me foi descrita com base nas fotos da minha me e agia umpouco conforme as histrias sobre minha me que eram contadas pelo meu pai.Ser que isso passava pela cabea de algum leitor? Eu duvidava. Esse era meusignificado particular para o romance. Quase nenhum leitor sabia que minhame morreu no parto e que meu pai enfiou o carro num poste quando eu aindatinha vrios captulos pela frente. Perguntavam tudo sobre minha vida nasentrevistas, tinham especial interesse pelo tal professor de cursinho, mas nenhumreprter tinha motivos para suspeitar que eu era uma autora rf. Escondia issobem. Nas duas ou trs vezes em que perguntaram, me neguei a comentar. E hojeeu odiava o livro. Meu pai no existia nele, um fato muito apreciado pelo meupsiquiatra para justificar a culpa corrosiva que se unia outra suposta culpainconsciente de ter assassinado minha me para me dar ataques de pnico do tipoque agora mesmo eu estava tentando evitar. Alm disso, aquela viso trgica efatdica do amor no me interessava mais. E no quero nem falar sobre alinguagem. Nada disso impedia, claro, que outras pessoas encontrassemsignificados e ideias maravilhosas ali, a ponto de concederem prmios ao livro epublicarem anlises como a que Luca Merello tinha comeado a ler, e que deacordo com meu espanhol rudimentar dizia mais ou menos:

    ... ou seja, com Descries da chuva Anita von der Goltz Vianna noapenas se inscreve na tradio de uma literatura feminina que evoca tantoClarice Lispector quanto Ly gia Fagundes Telles, mas usa-a como trampolimpara alcanar novas alturas ou, numa metfora mais em harmonia com o

  • romance, mergulhar em guas ainda no desbravadas. Ao narrar com imensahabilidade a histria de uma jovem brilhante e emocionalmente instvel que seentrega a uma relao intensa com um professor de seu curso pr-universitrio,Vianna revela como ama uma gerao de mulheres para as quais o amorromntico d lugar a um novo tipo de sentimento. Para Magnlia, o amor no cego nem idealizado. A completude amorosa apenas um fator dentro de umabusca mais generalizada por realizao pessoal e afirmao da identidade. Oupelo menos o que parece, at que o lado mais irracional e visceral da paixo seimpe quebrando qualquer iluso de controle dos protagonistas, cujo destinoinevitvel a fuga e o isolamento. A linguagem de Vianna preciosista com osdetalhes e parece buscar uma conteno que constantemente sabotada porarroubos de puro virtuosismo, com resultados quase sempre animadores.Conforme sua protagonista perde o controle de suas escolhas de vida e do rumoda relao com o intrigante Toms, um professor de fsica vinte anos mais velhoe caracterizado por um fervor religioso algo perturbador, a linguagem doromance tambm vai se tornando cada vez mais imprecisa. Substantivos sodescartados em favor de descries vagas e por vezes bvias daquilo querepresentam, fenmeno que ganha voltagem total no ltimo captulo, quando achuva se torna a gua que cai do cu em gotas. No inesperado e sinistropargrafo final, a incapacidade de dar nome s coisas atinge o paroxismo: o seramado torna-se nada mais que um ser ereto a seu lado com dois membrosapoiados no cho e outros dois pendendo ao lado do corpo e condenado, numgesto belo e inevitvel, ao mesmo destino das gotas de chuva. Convm,contudo...

    Era um monte de besteiras. Clarice Lispector. Haja pacincia. Nesse pontoparei de prestar ateno e dei uma boa olhada na plateia. Algumas pessoas meobservavam. Dentre elas me chamou a ateno um homem que me fitava comparticular intensidade, como se nada mais lhe interessasse naquele recinto,sobretudo a crtica de Luca Merello. Me senti intimidada e desviei o olhar apsum instante. Luca terminou sua leitura e recebeu seus aplausos. Me virei paraela e sorri, como se agradecesse. Nicanor Benegas comeou a falar sobre suarevista. Sua postura era blica. Era preciso defender a literatura latino-americanadas ameaas da invaso cultural imperialista. Achei que estava falando dosEstados Unidos, mas depois me dei conta de que o algoz era o Brasil. Olhei paraVicente. Estava apavorado. Sussurrou no meu ouvido: No sei quem essecara. Foi colocado na mesa de ltima hora. Na verdade, ele nem est noprograma. Nicanor encerrou seu discurso sem mencionar meu livro uma nicavez. E ento o pblico foi convidado a fazer perguntas. Uma senhoraespantosamente maquiada quis saber o que eu estava achando de Buenos Aires.Respondi muito devagar, e ela ficava fazendo que sim com a cabea sem pararenquanto ouvia o resumo das incrveis aventuras que eu tinha vivido at omomento. Depois um rapaz meio hippie xingou Nicanor e comeou a darexemplos de que a literatura latino-americana ia muito bem, inclusive nomercado editorial brasileiro, at que foi interrompido pela contra-argumentaodo paraguaio. Vicente conseguiu, com alguma dificuldade, abafar o bate-boca.Eu olhava fixamente para o meu copo dgua quando uma voz um pouco grave e

  • um pouco rouca, e apesar disso muito mansa, fez nova pergunta dirigida a mim. Anita. Por que Magnlia empurra seu amante do penhasco no final do

    romance?Foi como se a lana de um selvagem escondido no mato me atravessasse o

    peito de uma hora para outra. Ergui a cabea e vi que o microfone estava namo do sujeito que me encarava antes. Era uma figura alongada e aprumadaque mesmo erguida dava impresso de estar em posio de descanso. Tinhaolhos pretos, uma barba densa e bem aparada e cabelos desgovernados como do gosto dos homens argentinos. No era velho. Trinta e cinco anos, no mais.Estampava no rosto uma expresso de absoluto interesse. Olhava dentro de mim,vido por uma resposta. E eu no sabia o que responder. Por que ela o empurra?Mas ser que ela o empurra? O final do romance era meio onrico, apersonagem est divagando, dissolvendo-se. Podia ser a imaginao dela. Ouno. A verdade era que aquele final me viera mente sem maiores intenes.Eu no conhecia o final do meu livro at o instante em que precisei escrev-lo.Ela o empurra, real ou simbolicamente. Mas por qu? Muitos leitores tinham suasteses. Eu no. Talvez Magnlia se desse conta, naquele instante, de que tudo queaconteceu foi um erro. Ou que foi correto, natural, porm acabou, e seguirvivendo exigiria uma atitude drstica. No, no. No era bem isso. No tinhanenhum grande significado. Era s para ser um choque. Uma sacudida final queaturdisse o leitor e o forasse a rever tudo que aconteceu at ento com umaviso fresca. O sujeito continuava me encarando e eu no sabia o que dizer. Eraum cara bonito. A palavra novella, do modo como a pronunciou, ficoureverberando na minha cabea.

    Bem... que... qual o seu nome? Holden. Holden. uma pergunta difcil de responder, mas eu diria que...E ento eu disse qualquer coisa.

  • 3.

    Quando penso no meu pai, quase sempre o imagino aos domingos, novero, dias em que gostava de ficar em casa s de chinelo e bermudas,cozinhando e escutando rdio. Fazia feijoada ou picanha assada no forno, umapanela de arroz, uma salada caprichada. s vezes me levava para comer fora,mas s quando eu pedia. Entre meus treze e dezesseis anos, mais ou menos,naquela idade em que preferimos no fazer nada na companhia de um pai, eutratava de combinar um almoo na casa de uma amiga ou um passeio noshopping aos domingos e o deixava desacompanhado, e mesmo assim ele ferviasua feijoada ou assava sua picanha e almoava sozinho. Eu chegava em casa e oencontrava capotado no sof com o jornal aberto sobre o peito, um copo deusque na mesinha, televiso ligada quase sem som, e me sentia culpada. Quandofiquei maior, voltei a dedicar os domingos a ele, nem que fosse um pouco contraminha vontade. Minha presena em casa nesses dias lhe bastava. Os domingos,para ele, eram a medida do nosso afeto. Desde que segussemos convivendonuma boa naquele dia especfico, tudo estaria bem entre ns. De repente eu jera uma moa de vinte anos e ainda tinha o dia do papai. Em alguns domingosamos ao cinema ou ao teatro noite, mas na maioria deles ficvamos o dia todoem casa mesmo, conversando, assistindo televiso. Quando tinha jogo doPalmeiras ele assistia e eu lia um livro com a cabea deitada em seu colo.

    A biblioteca que tnhamos em casa no era dele. Eram livros deixados pelaminha me, que era professora de histria. Sua fome de livros fez queacumulasse uns mil volumes em seus vinte e sete anos de existncia. Meu pai osguardou, mesmo que ele prprio nunca os lesse. A estante com fileiras duplas delivros era seu monumento em memria esposa, e desde criana aquelamuralha de textos exerceu fascnio sobre mim. Lia os livros de histria,dicionrios, enciclopdias, romances, volumes de contos e poesias. Muitosestavam sublinhados rgua e anotados com a caligrafia mida e precisa deminha me, sempre com caneta azul. Ainda pequeninha, com dez ou doze anosde idade, eu abria um livro atrs do outro somente para investigar aquelasinscries que talvez me ajudassem a conhecer um pouco mais da mulher que

  • tinha me carregado na barriga e perdido a prpria vida para que eu existisse.Minha me se interessava pela Guerra do Paraguai e por animais marinhos.Chamavam-lhe a ateno as divagaes existenciais dos personagens dosromances, e quase toda reflexo que tratasse de livre-arbtrio ou do significadoda morte era destacada e por vezes comentada com um lacnico Bom ou algomisterioso tipo Como naquele dia em maio de 76: se Deus existisse.... Em vezde levar essas anotaes ao meu pai e perguntar se ele tinha algo a dizer sobreelas, eu as guardava como se fossem um segredo meu e era possvel quefossem, porque meu pai realmente no se interessava pelos livros, no devia terfolheado mais que uma dzia deles na vida e as cotejava com fotografias edepoimentos familiares para criar minha verso particular da minha me, umser fictcio que eu no cansava de imaginar e desenvolver. Sabia de seus olhosazul-celeste e do rosto magro, pacfico, um pouco sardento, mas era obrigada ainventar ou pelo menos reinventar sua voz, seus gestos, suas possveis reaes aoque eu dizia, ao que sua filha havia se tornado. Minha me foi meu primeiropersonagem. Ao mesmo tempo, a leitura dedicada da biblioteca deixada por elafez despertar meu gosto pela literatura e, quando eu j tinha uns dezesseis oudezessete anos, meu interesse pela escrita. At que ali pelos vinte anos comecei aescrever um romance que era um pouco sobre mim, um pouco sobre minhame como eu a imaginava e outro tanto sobre ningum em especial, apenas umatentativa de afirmar que eu podia criar por conta prpria o tipo de fico quetinha um papel to importante na minha vida, o tipo de fico que haviaencantado uma me e uma filha e criado um vnculo entre elas, mesmo queambas jamais tivessem respirado simultaneamente sobre a terra. Escrevia nashoras vagas da faculdade de jornalismo, sem pressa, sem pensar em publicar. Jestava formada e quase chegando ao que seria a verso final do livro quandomeu pai perdeu o controle do carro, bbado, depois de uma partida de pquercom amigos numa noite de sexta-feira, e faleceu. No foi um acidenteparticularmente grave, mas a lateral do carro colidiu com um poste e o postecolidiu com o crnio do meu pai, que rachou como uma casca de ovo. E entoforam seis meses de caos emocional, desespero, atestado de bito, inventrio,advogados, as presenas insuficientes de uma av paterna e um av maternovelhinhos demais e sem condies de me ajudar, o apoio pontual de um tio quemorava em So Paulo e outro em Manaus e algumas temporadas na casa daJulie at que eu pudesse distinguir qualquer espcie de trilho no meio datempestade. Meu livro foi publicado e vendeu mais que o esperado e isso me deuum pouco de prestgio e um pouco de dinheiro, mas para mim o romance estavaenterrado junto com meus pais. Conheci Danilo, nos apaixonamos, ele meadotou. Tudo que eu estava pedindo da vida agora era uma famlia. Mas l estavaeu, sozinha em Buenos Aires, recm-solteira, com dinheiro para umas trssemanas, sentindo falta do meu pai num domingo ensolarado em Palermo,saindo de uma cafeteria com dois clices de vinho tinto na cabea, carregandonuma sacola um casaquinho de l de um xadrezinho rosa, roxo e creme, bemjustinho, com capuz, que tinha comprado pelo equivalente a quase duzentos reaisnuma butique encantadora da rua El Salvador, j um pouco arrependida daextravagncia, pisando no carpete fofo e mido de folhas de pltano acumuladas

  • sobre as caladas minadas de dejetos caninos, folhas que enquanto eu andavacontinuavam sendo arrancadas dos galhos por rajadas de vento outonal edespencavam na rua em turbilhes melanclicos que s faziam agravar minhasensao de abandono numa cidade que tentava todo o possvel para me mimarcom passeios pblicos generosos e planos, gente bonita e elegante, comidadeliciosa e barata, livrarias aconchegantes e fatias de torta de chocolate comdoce de leite que pareciam ter meio quilo e me deixavam enjoada na quintagarfada. Mas as boas intenes de Buenos Aires no estavam bastando. Pensavano meu pai e sentia uma pena terrvel dele por ter morrido por uma besteira, porter sido to bondoso e desajeitado comigo e por ter passado metade de sua vidame convencendo de que eu no era culpada de nada.

    O calor que oprimia a cidade desde minha chegada durou ainda uns cinco

    dias, talvez uma semana. Eu fazia todo o possvel para me sentir bem naquelelugar, mas era impossvel no encarar o clima como um equvoco completo. Acapital argentina parecia um animal encolhido na sombra, transpirando pelalngua, sedenta do frio e da umidade a que seu corpo tinha se adaptado durantedcadas de evoluo. As pessoas na rua marchavam contrariadas por terem deandar com to pouca roupa, os cardpios dos restaurantes desculpavam-se poroferecerem menus to fartos e encorpados e todos aqueles homens bonitos que ainfestavam andavam depressa e bufavam, irritadios, aguardando as condiesnaturais favorveis para manifestar na plenitude a soturnidade e o charme quejuravam possuir atravs de olhares impacientes ou at um pouco desesperados.Acuada como eles por esse frenesi tropical, procurei visitar parques como osbosques de Palermo e o Jardim Botnico, onde passei uma tarde inteira sentada sombra observando os gatos blass que habitam o lugar s centenas deixandotrilhas de patinhas de barro seco sobre a tinta verde dos bancos e as pessoas, emsua maioria mulheres, que ficavam por ali lendo, namorando, lendo, dormindo,lendo, fotografando e lendo como liam naquele Jardim Botnico! E euprecisava cortar o cabelo.

    Pedi dicas de uma boa peluquera a uma mulher que atendia numa loja desapatos (aproveitei para levar uma botinha curta de couro) e, entre um daquelescortes em camadas caticas esfiapadas ao extremo e um visual meio Valentina,duas tendncias que identifiquei, acabei optando pelo segundo. Um palmo e meiode meus fios negros foram parar no piso do salo em questo de segundos. Sa del com o pelo na altura da nuca, caindo pelos lados como lminas contundentesque terminavam em duas pontas rentes mandbula. Na testa, uma franja grossae reta. Fui me exibir numa cafeteria com ar condicionado onde um moccacinoveio acompanhado de duas medialunas fofas recm-sadas do forno.

    Ainda impregnada dessa euforia passageira, tive a impresso de estarsendo observada atravs da vidraa por algum na rua. No consegui ver direito,porque o vidro estava parcialmente coberto por tinta ou adesivos decorativos dacafeteria e no instante em que olhei na sua direo ele se escafedeu.Provavelmente s estava espiando o interior do estabelecimento, pensando se

  • entrava ou no ou procurando algum que no encontrou. Lembrei na hora dosujeito que me perguntou a respeito do final do meu romance dias antes noevento da Feira do Livro. O vulto me remeteu sua barba densa e jaqueta decouro preta que vestia na ocasio. Aps o encerramento da apresentao, quecontou ainda com meia dzia de perguntas e um ltimo estertor do paraguaioNicanor Benegas em favor da literatura latino-americana de guerrilha, aprimeira coisa que fiz foi procurar o homem no meio do pblico em retirada,mas no o encontrei. Ainda fiquei uns quinze minutos plantada na porta doauditrio, conversando com Vicente e Martn, esperando que ele aparecesse. Aspessoas que fazem perguntas em eventos desse tipo quase sempre aparecemdepois para um contato mais pessoal. Gostei da sua resposta. Li seu livro.Comprarei seu livro. Voc muito bonita, pronto, j disse. Voc j leu fulano?Algum projeto novo? Vai daqui para algum lugar? Vamos beber umas no bar tal,se quiser aparecer. Mas aquele cara, Holden, no apareceu. Sumiu. Martn nuncao tinha visto, mas Vicente estava quase certo de tratar-se de um jovem escritorlocal. Ele disse que se chama Holden? Pode ser, no lembro bem do nomedele, disse. Eu acho que Diego, mas o sobrenome me escapa. Lembro bemde seu rosto porque ele comparecia a muitos eventos e leituras, depois sumiu.Publicou um romance faz uns anos, mas ningum leu. Edio independente. Edepois daquele dia eu o esqueci. Ou talvez no. Talvez minha memria deletenha permanecido arquivada numa camada muito interna da minha conscinciacomo uma possibilidade desperdiada, uma conexo que apenas se insinuou masnunca se estabeleceu, porque para tanto seria necessrio saltar de um trem emmovimento. Mas e se eu no precisasse saltar? E se ele tivesse se agarrado aoltimo vago e estivesse agora mesmo grudado no teto, avanando aos poucosem minha direo?

    Estava completando minha segunda semana naquele quarto triste do Hy de

    Park Hotel. Cada dia ficava mais deprimida e j tinha gastado o dobro doplanejado em presentinhos com os quais tentava me animar e que j somavamdois casacos, um vestido, um par de botas, uma dzia de livros e diversasdegustaes em confeitarias. Martn me levou para jantar e conheci sua esposa,uma ilustradora que tinha estudado artes em Nova York e demonstrou suaimpressionante criatividade inventando inmeras formas sutis de manifestar ocime que sentia de mim, o que apenas me despertou um desejo irracional dehipertrofiar o interesse que tinha por seu marido, resultando numa tenso que foidivertida na hora mas me deixou de ressaca emocional depois. Pensava em sairdo hotel e tentar alugar um quartinho ou um apartamento, mas a verdade queminha convico estava ruindo. Liguei para a Julie duas vezes e ela me dizia quetalvez eu devesse voltar para So Paulo, que minha viagem j tinha servido a seupropsito. Pedi para ela vir a Buenos Aires. Queria companhia para sair. Nuncafui capaz de ir a festas sozinha. Mas Julie no podia. Estava de volta ativa. Suadana e seus namoros-relmpago a prendiam no lugar.

    Numa dessas passagens pelo locutrio fui conferir meus e-mails eencontrei Danilo no msn. Tivemos uma daquelas conversas remotas horrveis em

  • que cada mensagem instantnea parece mais insuficiente que a anterior paracomunicar o que de fato queremos dizer. Comecei fingindo estar alegre e elefingindo tristeza. Logo ficou claro que eu estava mal e ele bem. Eu achava queele tambm devia estar mal e ele achava que eu tambm devia estar bem, atque fiz a besteira de perguntar se ele j tinha trepado com alguma putinha e elefez a besteira de ceder provocao e admitir que sim, o que gerou uma trocade acusaes e censuras to injustas quanto mal compreendidas pelo interlocutor.Nossa intimidade era tanta que eu podia identificar mais ou menos seu estado deesprito por meio das palavras que escolhia usar e da velocidade ou estrutura comque as enviava: as frases curtas e jocosas denotando bom humor, as frases maiselaboradas e pausadas denunciando raiva e frustrao.

    Era uma quinta-feira do incio de maio. Dali a uma semana aconteceria oshow do Motrhead, a dica que Martn me deu no dia de minha chegada. Resolvicomprar um ingresso e prometi a mim mesma que no desistiria de BuenosAires antes de ir ao show, apenas para me dar um prazo de qualquer tipo. Sa dohotel ali pelas quatro da tarde e fui caminhando pela avenida Corrientes at aesquina com a Bouchard, onde ficava a casa de espetculos Luna Park. O cuera uma redoma de chumbo e logo comeou a chover. Acelerei o passo e fuidriblando uma massa de pedestres que parecia pouco se importar com os pingosgrossos que extraam do asfalto um odor calmante de borracha e fuligem. Pagueioitenta pesos pelo ingresso na bilheteria e a chuva aumentou. Fiquei uns vinteminutos parada sob a marquise do Luna Park, sem a menor ideia do que fazer aseguir. Um mendigo bem-vestido parou a meu lado e comeou a falar emespanhol. Tirei os fones de ouvido mas no entendi nada. Fiz que sim com acabea. Instantes depois ele me ofereceu um cigarro. Aceitei e me conforteicom sua presena. Meu mp3 player tocava aleatoriamente canes de folkamericano que em sua maioria tinham sido gravadas ali por Danilo e resultavamnuma trilha sonora perfeita para a noite prematura que se abatia sobre a cidade.Mas elas me faziam lembrar de Danilo e eu precisava me desligar dele.Naveguei pelos menus do aparelho e escolhi um disco de uma banda pesadssimade sludge metal, uma das minhas bandas. Como adaptando-se ao cenrio de umnovo videoclipe, a chuva cessou e sa caminhando em frente. Fui parar na Plazade May o e dali continuei em direo a San Telmo. Quando cheguei ruaBalcarce, uma sucesso apavorante de troves abriu alas para o dilvio. Faziamuito tempo que eu no via um temporal como aquele. Me protegi dobombardeio de gua sob o toldo de um restaurante fechado. Em questo desegundos a rua estava inundada. A gua espirrava de todos os lados e no haviajeito de no se molhar. Um rapaz de bon e pasta debaixo do brao quecompartilhava o mesmo refgio desistiu e saiu correndo no meio da rua.Desliguei o mp3, guardei na bolsa e corri at o bar situado na calada oposta, unstrinta metros adiante. O toldo ali cobria a calada inteira. Era um bar grande,com balco comprido, vrias mesas pretas, cafeteria e at um forno a lenharevestido de ladrilhos espelhados que refletiam a iluminao rosa e azul doambiente. Uma banda de rock clssico estava passando o som num palco ocultoatrs de uma imensa porta de metal fechada. Meia dzia de pessoas fumavam narua. Fiquei ali com eles, olhando a chuva. A cidade, com seus prdios slidos e

  • topografia plana, aguentava bem o aoite. De tempos em tempos um garomsaa do bar e usava uma haste de ferro para esticar as lonas do toldo e despejar agua acumulada sobre a calada. Espantosamente, a fora da chuva e do ventono parava de aumentar. De repente, a estrutura de um dos toldos veio abaixo.Quem ainda estava na rua entrou no bar. A porta de metal abriu e a bandaapareceu, vestida de preto, cabeluda e tatuada, pedindo mltiplas cervezas. Pedium espresso. No tinha terminado o caf e a luz caiu. Correria. Ligaram umgerador e as lmpadas voltaram a brilhar, mas o sistema de som que tocavarocknroll argentino permaneceu calado. Fiquei muito tempo ali sentada ouvindomsica nos fones. No mnimo uma hora. Nesse tempo todo, a chuva no aliviou.Quando finalmente se reduziu a um chuvisco inocente, paguei o caf e saandando. J tinha andado por San Telmo antes, visitado a famosa feirinha deantiguidades da Plaza Dorrego num domingo e tudo mais, mas nessas novascircunstncias o lugar havia se transformado num mundo completamentediferente. A maior parte do bairro estava s escuras depois do temporal. Osrelmpagos iluminavam por dcimos de segundo as ruas estreitas revelando ospavimentos de pedra, os prdios antigos, os mercadinhos, os onipresentes kioskose um eventual transeunte. De vez em quando os faris de um automvelrasgavam aquelas ruazinhas silenciosas e empoadas. Uma viatura de polciapassou devagar com as luzes da sirene ligadas e seu piscar azulado transformou asombria alameda Chile num ambiente de rave evacuado. Fazendo converses aesmo de um quarteiro para o prximo, eu s pensava que minha solido deviater chegado ao clmax, que todas minhas impresses durante aquela caminhadanoturna no tinham valor nenhum se no pudessem ser compartilhadas comalgum, e eu no conseguia pensar em ningum para compartilhar nada. Me viaseparada de todos pela distncia geogrfica, pela morte, pela variedade muitoparticular de autismo que me impedia de acreditar na possibilidade de conhecergente nova nesse pedao de mundo em que tinha me enfiado.

    Cheguei a um quarteiro de San Telmo que por algum motivo ainda tinhaenergia eltrica. Numa de suas esquinas havia um bar. Era um estabelecimentomuito antigo com piso de lajotas formadas por pastilhas hexagonais brancas,vermelhas e verdes, bastante gasto e encardido pelo tempo. Todos os mveiseram de madeira escura e as paredes estavam revestidas de cartazes anunciandoprodutos antigos, um deles com uma pintura de um pote primitivo de Toddy . Obalco era decorado com um deslumbrante arco de madeira com vitrais azul-esverdeados e um relgio no centro. Quase todas as mesas estavam livres. Senteinuma mesinha individual ao lado da janela e pedi uma taa de vinho. Eram oitohoras da noite. Tirei da bolsa um dos livros que tinha comprado: um relatoautobiogrfico de um pioneiro que viveu dcadas sozinho na Terra do Fogo.Estava em destaque na livraria e era baratinho. Comecei a ler para matar otempo e no consegui mais parar. No tinha nem cem pginas e logo passei dametade. A histria de vida do cara era envolvente, mas sobretudo havia nosdepoimentos uma candura enfeitiante. Eu reclamando da minha solido eaquele sujeito tinha passado doze anos de sua vida no mais completo isolamento,num dos lugares mais remotos do planeta, e dava impresso de ter sido feliz em

  • todos os momentos. Quase no fim do livro havia um captulo chamado Miesposa. Esse homem tinha ido a Buenos Aires convencer uma moa de vinte edois anos a casar com ele e ir viver na Terra do Fogo. Levou seis meses, masconseguiu. Os pargrafos que tratavam da chegada do casal aos confins domundo transpiravam uma alegria infantil. Quase nada tinha sido revelado sobre amulher, mas ento meus olhos chegaram seguinte frase:

    Duisa era de poco hablar y observaba todo a su alrededor, porque legustaba mucho mirar la cordillera, ya que se haba criado en la provinciade Buenos Aires. Interrompi a leitura. Minha quarta taa de vinho estava por um fio. Duisa era de poco hablar y observaba todo a su alrededor, porque legustaba mucho mirar la cordillera, ya que se haba criado en la provinciade Buenos Aires. Me deu um n na garganta. Imaginei Duisa na varanda da casinha de

    madeira instalada numa estncia solitria da baa Aguirre, calada dias a fio, numfrio danado, cercada de ovelhas, longe do grande centro urbano onde cresceu,olhando a cordilheira enquanto observada em segredo pelo marido que dcadasdepois, aos noventa e tantos anos, idade em que forneceu os depoimentos quecompunham o livro, teria pouco mais que isso a dizer sobre ela. Duisa olhando acordilheira, vrias vezes por dia, sempre que as tarefas domsticas e maternaslhe davam trgua, s vezes por horas seguidas. O olhar cravado nas montanhasnevadas e o marido registrando esse hbito como a expresso mxima de suapersonalidade. Fechei o livro. No conseguia entender aquilo. Tive a certeza deestar ficando louca de vez. Bebi o resto do vinho, abri de novo o livro e li as vintee poucas pginas que restavam. Duisa era citada mais algumas vezes, semprecom palavras laudatrias. Os partos de seus filhos eram mencionados, sendo quenum deles precisou ser levada a Buenos Aires, pois havia muito risco. Mas nosurgiu mais nada que se comparasse quela imagem pura e veneradora de umhomem descrevendo a jovem esposa como uma mocinha calada que gostava deficar olhando para as montanhas. Voltei para a frase. Sublinhei. Dobrei apontinha da pgina. Reli cinco, dez vezes, tentando entender por que me abalavatanto.

    J eram dez e pouco da noite e eu estava bbada. Pedi a conta. Na rua,aps o temporal, vontade com o avanar da noite, os portenhos caminhavamsozinhos ou acompanhados de cnjuges ou cachorros. Enquanto aguardava oretorno do garom, um casal passou pela calada empurrando um carrinho debeb. Tinham-no vestido com botinhas marrons e um macaquinho brancoestampado com bichinhos cor-de-rosa. J no chovia, mas a cidade continuavaencharcada. Bem diante da minha janela, o beb pegou a chupeta com a mo eatirou longe. O bico de borracha aterrissou na sarjeta