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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES
JUDICIAIS QUALIFICADOS NA CIVIL LAW
RUY ALVES HENRIQUES FILHO
ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR PAULO OTERO
TESE ESPECIALMENTE ELABORADA PARA OBTENÇÃO DO GRAU
DE DOUTOR EM CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS
2018
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS
QUALIFICADOS NA CIVIL LAW
RUY ALVES HENRIQUES FILHO
Orientador: Professor Doutor Paulo Otero
Tese especialmente elaborada para obtenção do Grau de Doutor em Direito,
especialidade de Ciência Jurídico-Políticas.
Juri: Presidente: Doutor José Artur Anes Duarte Nogueira – Professor Catedrático e
Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;
Vogais: - António Ulisses Cortês – Professor Auxiliar da Escola de Lisboa da Faculdade
de Direito da Universidade Católica Portuguesa;
- Doutora Isabel Celeste Monteiro da Fonseca – Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho;
- Doutor Paulo Manuel Cunha da Costa Otero – Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, orientador;
- Doutora Ana Paula Mota da Costa e Silva – Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;
- Doutor Carlos Manuel Almeida Blanco de Morais – Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;
- Doutor Luís Miguel Prieto Nogueira de Brito – Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;
- Doutora Ana Fernanda Ferreira Pereira Neves – Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa.
2018
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Agradecimentos:
Durante quase uma década de estudos, viagens de pesquisa e leituras, venho tornar
público meu agradecimento ao incentivo das investigações e aprofundamentos
provocados pelo meu orientador, Professor Doutor Paulo Otero. Quero também agradecer
aos Professores Doutores Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, pelas aulas e
também pelo estímulo recebido quando da minha estadia em Lisboa. Da mesma forma,
sinto o carinho dos servidores e colaboradores da Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa. Quero, ainda, deixar aqui minha gratidão aos colegas do Tribunal de Justiça
do Estado do Paraná, companheiros de gabinete e colegas de docência do Centro
Universitário Curitiba e da Escola da Magistratura do Paraná. Por fim, meu carinho e
amor à minha esposa e companheira Ana Lúcia, sempre firme ao meu lado, embora
muitas vezes eu cambaleante, minha amada filha Marina, minhas irmãs e sobrinhos,
sogros e também aos meus pais, Ruy e Lidette, sendo que esta flor generosa e forte, partiu
deste plano material durante a elaboração desta preciosa pesquisa além mar.
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Resumo:
Trata-se da elaboração de uma tese nascida do estudo dos precedentes judiciais
incorporados na tradição civil law, com a intenção de determinar a obrigatoriedade
judicial de suas razões. Inicia-se pela análise das tradições jurídicas ocidentais e
respectivo diálogo entre as mesmas, decorrente do fenômeno da globalização e
aproximação entre as nações, cultura e história tão divergentes. Alguns instrumentos
favorecem esta aproximação e proporcionam um diálogo profícuo, porém demandante de
adaptações, revisões e recriações de institutos jurídicos. Na esteira dos Assentos judiciais
portugueses, comparou-se a tentativa brasileira atual de criação de instrumentos
uniformizadores dos julgados decorrentes de filosofia sulamericana do
neoconstitucionalismo. Este fenômeno sócio-jurídico, por autorizar não só a interpretação
construtiva do direito, mas também estimular a criação de julgados com força de lei,
provoca instabilidade no sistema jurídico brasileiro, como já ocorrido no passado lusitano
quando da adoção dos Assentos. Referida insegurança jurídica, paradoxalmente nasce da
tentativa de uniformização dos julgamentos que terminam por conferir incontroláveis
poderes aos Tribunais. A promulgação do novo código de processo civil brasileiro em
2015, instituindo de forma parcial e inadequada a Teoria dos Precedentes Judiciais
Vinculantes criou o ambiente ideal para a análise do diálogo das tradições da civil law e
common law. O modo que as cortes são compostas e, em especial, como a colegialidade
trabalha para julgar um case sem precedente e com a possibilidade de vincular outros
julgados, sob pena de nulidade da decisão posterior em desobediência à decisão
paradigma, da mesma forma, foi analisado. Instrumentos como o controle da
constitucionalidade das decisões judiciais e normas legislativas; o uso abusivo de cláusula
geral, de conteúdo indeterminado e inconsistente forma de revisão e atualização dos
precedentes judiciais com pretensão vinculativa geral e abstrata, ganham importante
espaço no presente estudo. Portanto, propõe-se a qualificação e consequente
especialização dos chamados precedentes judiciais obrigatórios para alcançar a
pretendida uniformização e previsão do sistema judicial decisório, de modo a colaborar
para com o trato da crise de identidade referida e, ainda, a atuação eficaz e pacificadora
da jurisdição estatal.
Palavras-chave: PRECEDENTE JUDICIAL VINCULANTE – FORMAÇÃO –
TRADIÇÕES JURÍDICAS DIVERGENTES
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Abstract:
It concerns to the formulation of a thesis that was born of judicial precedents
studies incorporated by the civil law tradition, trying to determinate the judicial
obligation of their reasons. It begins by analysis of western law traditions and their
respective dialogue between them, due to the globalization phenomenon and the
approach among nations, culture and history so divergent. Some instruments encourage
this approximation and provide a profitable dialogue, however demanding adaptation,
reviews, and re-creations of law institutes. Regarding to Portuguese judicial assentos,
was compared the current Brazilian attempt of making uniformity tools for decisions as
result of the South American neoconstitucionalism philosophy. This social and legal
phenomenon, which authorizes not just the constructive interpretation of law, but also
encourage the creation of judgments with power of legislation, lead to instability of the
Brazilian Legal System, as already have happened in the Lusitanian past when was
adopted the assentos. This juridical insecurity paradoxically was born by the attempt of
judgment standardization, which entails by give uncontrollable power to the Court. The
enactment of the new Brazilian civil procedure code in 2015, instituting partially and
inadequate the theory of binding judicial precedents created the ideal environment for
the analysis of the dialogue of civil law and common law traditions. The way the courts
are composed and, in particular, how plurality of judges work to decide an unprecedented
case and with the possibility of linking others decisions, under penalty of nullity the
subsequent decision in disobedience to the paradigm decision, in the same way, was
analyzed. Instruments such as the control of the constitutionality of judicial decisions and
legislative norms; abuse of general clause, of undetermined content and inconsistent way
of reviewing and updating judicial precedents with general and abstract binding intent,
gain important space in the present study. Therefore, it is proposed the qualification and
consequent specialization of the so-called mandatory judicial precedents to achieve the
desired standardization and prediction of the judicial decision-making system, in order
to collaborate with the treatment of the referred crisis of identity and, also, the effective
and pacifier action of the state jurisdiction.
Keywords: BINDING JUDICIAL FORCE – FORMATION - DIVERGENT LEGAL
TRADITIONS.
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SUMÁRIO/ÍNDICE
Summary/Index
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 01
Introduction ........................................................................................................................ 01
§ 1º O Diálogo de Tradições ............................................................................................. 04
The Dialogue of Traditions ......................................................................................... 04
1. A Atuação Judicial: parcial sobre sua evolução ........................................................ 04 The Judicial Action: part of its evolution.................................................................. 04
2. Interpretação e criação do direito .............................................................................. 28
Interpretation and creation of law ............................................................................ 28
3. Difícil equação Previsibilidade x Efetividade ........................................................... 53
Difficult equation: Predictability x Effectiveness ..................................................... 53
4. Crise sistêmica: judicialização e atuação legislativa ................................................. 84
Systemic Crisis: judicialization and legislative action ............................................. 84
5. A tentativa de uniformização das decisões: Brasil e Portugal ................................. 108
The attempt to standardize decisions: Brazil and Portugal ................................... 108
§ 2º As Tradições Jurídicas ........................................................................................... 120
The Legal Traditions ................................................................................................. 120
6. Diferenciação entre common law e civil law .......................................................... 121
Differentiation between common law and civil law ............................................... 121
7. A tradição civil law ................................................................................................. 126
The civil law tradition ............................................................................................. 126
a. O Poder Judiciário brasileiro ........................................................................... 135
The brazilian judiciary ....................................................................................... 135
b. Histórico .......................................................................................................... 136
History ............................................................................................................. 136
c. O sistema judiciário brasileiro atual ................................................................ 141
The current brazilian judicial system ................................................................. 141
d. Os Tribunais Superiores .................................................................................. 143
The High Courts ................................................................................................. 143
e. A Justiça Comum ............................................................................................. 156
The Common Justice .......................................................................................... 156
f. A Justiça Especializada .................................................................................... 160
The Specialized Justice ....................................................................................... 160
g. O Ministério Público ....................................................................................... 169
The Public Prosecutor's ..................................................................................... 169
h. O Poder Judiciário português .......................................................................... 174 The Portuguese judiciary ................................................................................... 174
i. O Tribunal Constitucional ................................................................................ 174
The Constitutional Court .................................................................................... 174
8. A tradição common law .......................................................................................... 182
The common law tradition ...................................................................................... 182
a. O Sistema Judiciário Inglês ............................................................................. 194
The British judicial system ................................................................................. 194
b. O Parlamento Inglês ........................................................................................ 194
The British parliament ....................................................................................... 194
c. O Ato de Reforma Constitucional de 2005 ..................................................... 195
The 2005 Constitutional Reform Act .................................................................. 195
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d. A Suprema Corte do Reino Unido .................................................................. 197
The UK Supreme Court ..................................................................................... 197
e. Court of Appeal ................................................................................................ 198
f. A primeira instância inglesa ............................................................................. 199 The first British instance .................................................................................... 199
g. Peculiaridades da Justiça Inglesa ..................................................................... 199 Peculiarities of British Justice ........................................................................ 199
h. O sistema judiciário dos Estados Unidos da América .................................... 202 The judicial system of the United States of America ...................................... 202
9. O Juiz: seu papel nas tradições ............................................................................... 212 The judge: his role in the traditions ....................................................................... 212
10. O Diálogo das tradições jurídicas: Ativismo Judicial e Neoconstitucio
nalismo ......................................................................................................................... 222
The Dialogue of legal traditions: Judicial Activism and Neo-
constitutionalism .......................................................................................................... 222
a. Compreendendo o ativismo judicial e o neoconstitucionalismo .................... 233 Understanding judicial activism and neo-constitutionalism .......................... 233
b. Possíveis causas do ativismo ........................................................................... 247
Possible causes of activism ............................................................................. 247
c. O Ativismo e sua expressão por meio dos “precedentes judiciais” e
as fontes tradicionais do direito ........................................................................... 255
Activism and its expression through "judicial precedents" and
traditional sources of law .................................................................................... 255
§ 3º Ferramentas à disposição do diálogo .................................................................... 265
Tools available for dialogue ..................................................................................... 265
a. Breves apontamentos históricos do protagonismo judicial ............................. 265
Brief historical notes of judicial protagonism ................................................ 265
b. Sistemas de fiscalização ................................................................................... 273
Surveillance systems ........................................................................................ 273
c. Normas sujeitas à fiscalização judicial ............................................................ 274
Standards submitted to judicial review ........................................................... 274
d. Formas e tempo de fiscalização ....................................................................... 279 Forms and time of inspection .......................................................................... 279
11. Juízos de controle da constitucionalidade ............................................................ 280
Judgments on constitutionality control ................................................................ 280
a. Controle jurisdicional difuso ou em concreto ................................................. 280
Diffuse or concrete jurisdictional control ....................................................... 280
b. Controle jurisdicional concentrado ou em abstrato ......................................... 285
Concentrated or abstract jurisdictional control ............................................. 285
12. Decisões dos tribunais e seus efeitos .................................................................... 287
Decisions of courts and their effects .................................................................... 287
a. Decisões em controle preventivo e seus efeitos .............................................. 287
Decisions on preventive control and their effects ........................................... 287
b. Decisões em controle concreto e seus efeitos ................................................. 288
Decisions in concrete control and their effects .............................................. 288
c. Decisões em controle abstrato e seus efeitos ................................................... 297
Decisions in abstract control and their effects ............................................... 297
d. Decisões conforme e sem redução de texto legal............................................ 302
Decisions according to and without reduction of legal text ........................... 302
e. O controle de convencionalidade ..................................................................... 319
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The conventionality control ............................................................................ 319
13. Decisões atípicas ................................................................................................... 332 Atypical decisions ................................................................................................. 332
a. Decisões atípicas exemplificativas .................................................................. 332 Exemplary atypical decisions .......................................................................... 332
b. Legitimidade para edição de súmulas vinculantes .......................................... 353 Legitimacy for edition of binding precedents ................................................. 353
c. Cláusulas gerais ................................................................................................ 370 General clauses ............................................................................................... 370
§ 4º Teoria dos Precedentes ........................................................................................... 375
Theory of Precedents .............................................................................................. 375
14. Precedentes judiciais ............................................................................................. 375
Judicial Precedents .............................................................................................. 375
a. Definição .......................................................................................................... 376 Definition ......................................................................................................... 376
b. Tipos de precedentes ........................................................................................ 386
Types of precedents ......................................................................................... 386
c. Stare Decisis e as Cortes internacionais .......................................................... 395
Stare Decisis and the international Courts .................................................... 395
15. Composição do precedente ................................................................................... 411
Composition of the precedent .............................................................................. 411
a. A Ratio decidendi ............................................................................................. 411
b. Obter dictum .................................................................................................... 416 16. A formação do precedente .................................................................................... 420
The formation of precedent .................................................................................. 420
a. A rigidez e mobilidade dos precedentes .......................................................... 424
The rigidity and mobility of precedents .......................................................... 424
b. A legalidade e aplicabilidade no sistema da common law. A
questão da colegialidade ...................................................................................... 429
Legality and applicability in the common law system. The
Issue of collegiality .............................................................................................. 429
c. A diferenciação da Súmula Vinculante ........................................................... 445
The differentiation of the Binding Precedent .................................................. 445
d. A força vinculativa dos precedentes e seus argumentos: prós e
contras ................................................................................................................... 453
The binding force of precedents and their arguments: pros and
cons ....................................................................................................................... 453
17. Modificação dos precedentes ................................................................................ 472 The modification of precedents ............................................................................ 472
a. Overruling ........................................................................................................ 473
b. Antecipatory overruling ................................................................................... 476 c. Distinguishing ................................................................................................... 478
d. The drawing of inconsistent distinctions ......................................................... 480 e. Technique of signaling ..................................................................................... 481
f. Transformation .................................................................................................. 482 g. Overriding ........................................................................................................ 483
h. Efeitos da revogação dos precedentes na common law .................................. 484 The revogation effects of precedentes on common law .................................. 484
18. A necessidade da qualificação dos precedentes ................................................... 487
The qualification needs of precedents .................................................................. 487
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a. A adoção dos precedentes judiciais na tradição brasileira e os
assentos de Portugal ............................................................................................. 493
The adoption of precedents in the brazilian tradition and the
assentos of Portugal ............................................................................................. 493
b. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas como
formador de precedentes no processo civil brasileiro ......................................... 520
The incident of resolution on Repetitive Demands as maker of precedents in
Brazilian Civil Procedure .................................................................................... 520
c. Assunção de Competência ............................................................................... 531 Assumption of Competence ............................................................................. 531
d. Os efeitos da revogação dos precedentes no civil law .................................... 534 The effects of precedent’s revogation on civil law ......................................... 534
e. A impossibilidade de vinculação dos precedentes atípicos ou não
qualificados ........................................................................................................... 545
The impossibility of atypical precedent’s binding or not qualified ................ 545
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 578
Conclusion ........................................................................................................................ 578
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 589
Bibliographic references .................................................................................................. 589
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1
Introdução
A velocidade da dinâmica social naturalmente se reflete no cenário jurídico,
tanto na forma e intenção das leis, quanto nos julgados. As constantes modificações
sofridas pela sociedade nos últimos tempos, mais especificamente no último século, bem
demonstram a necessidade da evolução do direito, de modo a acompanhar a expectativa
da população tutelada pelo Estado. Tais transformações logicamente atingem outros
campos, países e continentes, porque vivemos em tempo de globalização e de blocos
socioeconômicos.
É sabido que, tendo a função de garantir a pacificação social, não pode o
Direito, tampouco a justiça, permanecerem inertes, devendo adequar-se de modo a suprir
as necessidades sociais. Diante disso, pretende o presente estudo demonstrar que antigos
institutos jurídicos não mais têm razão de ser, devendo necessariamente adequar-se, ou
substituírem-se por novas opções. É neste contexto que se verifica a miscigenação entre
institutos típicos das tradições da civil law e da common law, ensejando o surgimento de
nova tradição jurídica ou mesmo de um sistema híbrido.
É neste contexto que se pretende analisar a convergência entre as tradições
jurídicas ocidentais, assimilando a proposta de absorção, pela civil law, de institutos
típicos da common law, a fim de assegurar, em tese, a consistência do ordenamento
jurídico e da segurança jurídica frente as mudanças e necessidades sociais prementes. O
rápido e intenso fluxo de informações, pessoas e capitais, na Era da Globalização deitou
por terra não apenas o conceito de fronteiras, como anteriormente concebido, mas
também os modelos jurídicos praticados ao redor do globo. As antigas tradições jurídicas
não mais são possíveis de análise de modo estanque, senão de modo sistematizado: a
troca de influência entre as tradições é prática corriqueira e também necessária.
Tem-se como inafastável a convergência entre as tradições referidas, não
mais se verificando a existência de uma tradição sistemicamente pura, mas até mesmo
uma simbiose de institutos utilizados pelas duas correntes. Ao passo que a common law
vem aderindo a codificação, como foi o caso do código de processo civil inglês de 1995,
é flagrante na civil law a liberdade experimentada pelos julgadores e o protagonismo da
jurisprudência enquanto fonte do direito.
É nesta toada que o presente trabalho tem por objeto, ainda, o estudo de
institutos que bem denotam a referida miscigenação, por meio da abordagem do
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2
neoconstitucionalismo, do fenômeno do Ativismo Judicial e do Controle da
Constitucionalidade das normas. A Teoria dos Precedentes Judiciais e os Assentos de
Portugal também ganham destaque.
Não obstante, como escopo precípuo, envidou-se a análise de um dos
institutos que bem representa o ponto de intersecção entre as duas tradições no Brasil: os
precedentes judiciais. Breve análise do contexto judiciário bem demonstra o ganho de
importância do papel jurisprudencial, tendo o juiz positivista e representante da célebre
expressão “buche de la loi” passado a verdadeiro protagonista judicial, fenômeno a que
muitos atribuem o papel criativo do direito, similar ao que se infere na common law.
De outra banda, o ganho de liberdade na atuação jurisdicional provoca a
ruptura do sistema tradicional brasileiro e imputa maior responsabilidade do julgador. A
atuação não sistêmica e dessincronizada da magistratura traz à tona a insegurança
jurídica, derivada de um sistema guiado não pela norma jurídica, mas pelo subjetivismo.
Ao jurisdicionado fica somente a dúvida e a instabilidade de contar com o elemento sorte,
a fim de que o pleito pretendido seja analisado por juiz subjetivamente favorável ao seu
intento. O fator de maior importância para que o julgador brasileiro e adepto a tradição da
civil law tenha partido para essa jornada imprecisa é, sem dúvida, o déficit legislativo
importante (anomia), cuja prática, ou melhor, a ausência de sua prática, afeta o Princípio
da Proibição de Insuficiência.
É em razão do cenário de insegurança e falta de estabilidade do direito dito
pelos tribunais que este estudo se debruça sobre a análise dos efeitos dos precedentes
judiciais vinculativos, típicos da common law, agora na tradição da civil law. Sugere-se
sua adoção como mecanismo de auxílio para solução do indigitado problema. Trata-se de
tema de suma relevância, eis que consiste o direito jurisprudencial no direito vivo,
concretizado, e que diretamente atinge a população. Nesse contexto, procura-se
demonstrar que a Teoria dos Precedentes não pode ser objeto de implante automático e
incondicional à tradição da civil law, sob pena de originar maior caos jurídico. Não se
pode olvidar que a simples implantação do instituto sem quaisquer adequações consiste
em improviso maléfico, visto tratar-se de mecanismo forjado sob contexto cultural
diverso, cuja adaptação não é simples, tampouco poderá ser imposta.
A adoção desta teoria com as devidas adaptações junto à civil law pode ser
usada como medida de solução parcial à insegurança jurídica que tanto se combate no
Brasil, porém, como evidente, não se trata de ferramenta hábil, por si só, a resolver a
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3
problemática da imprevisão dos julgamentos.
A proposta de elementos que possam filtrar o vigor e a força vinculante dos
precedentes judiciais criados a partir da civil law é uma das formas de amortecer a
“importação” de uma ferramenta legitimamente ligada à tradição de um povo mais
antigo, que é composto por maioria não católica e, ainda, derivado de um processo de
constante fortalecimento das relações entre o Legislativo e a Magistratura.
Aponta-se, ainda, a formação de precedentes judiciais na tradição brasileira e
até portuguesa, derivados de exercício de decisões aditivas e atípico da função judicante,
em especial via assentos. A exigência de elementos para a qualificação é imperativa, de
modo a criar uma espécie de ferramenta legitimamente nascida da tradição legalista e
potivista. Na esteira da qualificação proposta, surge a necessidade de comparar o instituto
dos precedentes com os antigos assentos portugueses, cuja semelhança revela importante
crítica e dúvida quanto ao sucesso dos mecanismos citados. Visita-se a questão da
uniformização da jurisprudência e sua consequente possibilidade de descontrole criativo
pelos tribunais ou mesmo paralisante em face dos juízos monocráticos de primeiro grau
de jurisdição.
Exigir a aplicação de um julgado emblemático a casos análogos deve se dar
naturalmente, pela tradição e confiança do povo na atuação dos tribunais. Por meio de
qualquer outra forma de imposição, que não a do convencimento derivado da confiança,
vicia a empreita que ainda poderá tolher a liberdade do julgador, preso aos precedentes
ilegítimos ou eivados de interesses políticos de momento.
Portanto, ao tratar da incidência desta questão no direito brasileiro, dar-se-á
atenção aos julgados politicamente influenciados pelos tribunais, que, em tese, seriam
responsáveis pela criação dos tais precedentes judiciais obrigatórios, similares aos antigos
assentos lusitanos.
Para esperar que todos os juízes decidam da mesma forma que seus tribunais
de origem, deve haver um componente especificante. Se aceitam-se as ferramentas de
vinculação, devem-se estar preparados para utilizar os mecanismos de modificação deste
mesmos precedentes. Ocorre que, infelizmente, além de restar ausente na legislação (e até
mesmo na jurisprudência brasileira) quem teria a competência para a formação dos tais
precedentes judiciais, não é possível prever seus efeitos, tampouco as formas que os
mesmos julgados podem ser alterados ou superados. Este estudo visa esclarecer os
parâmetros para a formação, sujeição e revisão dos precedentes judiciais vinculantes,
criando, por fim, métodos para sua sua qualificação obrigatória, bem
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4
como buscar as questões que levaam os mecanismos dos assentos falirem em Portugal. A
tarefa proposta é singular e curiosa, pois a pesquisa sugere, cada vez mais, a atenção
para um estudo multidisciplinar em relação ao mundo do Direito e sua aplicação num
Estado em mutação social e normativa. Mesmo no novíssimo código de processo civil
brasileiro, não há sequer metade das formas de adequação e modificação dos precedentes
judiciais obrigatórios, como as têm os países dessa tradição. A confiança nos
mecanismos revelados vem do uso e costume, do tempo embarcado na vida de cada
sociedade. Os tribunais da civil law devem, como no direito consuetudinário, refletir
esta expectativa e mudança comportamental, não impondo ao povo apenas o sentir do
culto e do político que vive em cada um dos magistrados. A colegialidade dos
julgamentos e a força vinculante dos precedentes também será objeto do estudo, bem
como a força dos assentos lusitanos e fontes tradicionais do direito.
§ 1º O Diálogo de Tradições
1. A atuação judicial: parcial sobre sua evolução
Para entender todo o mecanismo da atividade judicial que hoje se conhece, é
indispensável voltar na história para buscar suas origens e desvendar em detalhes como se
deu, ao longo dos vários períodos históricos, a atuação judicial ocidental. A magistratura,
como órgão responsável pela atividade julgadora, ao longo do tempo sofreu grandes
transformações e evoluções, tanto pelas mudanças ocorridas na sociedade em si, como
em razão da complexidade das organizações sociais mais ligeiras e superficiais.
Para destacar as tradições ou sistemas 1 judiciais ocidentais modernos, é
necessário vinculá-los ao exercício da judicatura, especialmente em razão da postura do
julgador ao julgar. Apesar de todas as dúvidas quanto ao poder criador do magistrado ao
julgar um hard case e sua relação com as leis, apenas uma questão era e
1 Antes de prosseguir, a referência que se faz sobre sistemas ou tradições jurídicas ainda é discutível, posto
que há quem defenda o uso da expressão “tradições”, sob o argumento de que a sistematização impõe regras
infraconstitucionais para tipificar as condutas, o que retira o caráter “tradicional e cultural” da regra. Optou -
se por não ingressar nessa discussão por temor de perder o foco sobre o que irá se descortinar. Segundo
RONALD DWORKIN, “o conceito doutrinário de direito figura entre os limites do conceito sociológico da
seguinte maneira: nada é um sistema jurídico no sentido sociológico a menos que faça sentido perguntar
que direitos e deveres o sistema reconhece”. Por entender a amplitude da discussão, em especial sob o seu
aspecto ontológico, prosseguiremos sem maiores enfrentamentos pontuais para não perder o foco do estudo.
Cf. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 7.
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é evidentemente certa: o Estado não pode abandonar o cidadão à própria sorte, de modo
que a decisão e efetivação de qualquer solução dada em razão da demanda, por
determinação constitucional, é responsabilidade inafastável do agente estatal.
Nestes termos, o estudo em apreço é destinado a identificar a atual relação de
sistemas judiciais e o modo de formação dos precedentes, tendo estes últimos a função de
padronizar entendimentos e até, há quem imagina, reduzir o tempo para a tomada de
decisões e seu respectivo cumprimento.
Dalmo de Abreu Dallari ensina que é relativamente recente a aceitação da
atividade do juiz como uma profissão, pois, inicialmente, o juiz era visto como um
representante do povo “ou de um segmento da sociedade ou, então, como auxiliar do
governo para tarefas específicas, consideradas de grande relevância”.2 A partir de tal
ideia tem-se que a escolha dos juízes se deu de forma variada ao longo do tempo,
inicialmente selecionados de acordo com os anseios do soberano, ou de acordo com o
contexto histórico e social da época em que atuavam.
Quando da formação das civilizações organizadas, as regras “sociais”
emanavam do próprio soberano, a exemplo da Europa Medieval, uma vez que a figura do
julgador se confundia com a do soberano. O soberano era quem julgava eventuais
conflitos ocorridos na sociedade e, pela falta de um mecanismo judicial, fazia-o de
maneira totalmente arbitrária, solucionando de maneira parcial os conflitos, quando
muito.
Nas Cidades-Estado gregas, o posto de magistrado era concedido a um
cidadão que possuísse poder de comando, com o objetivo de atender ao interesse público.
Assim, qualquer pessoa poderia ser candidata a ocupar vaga de magistrado e a escolha se
dava por meio de sorteio ou eleição. Com a utilização de tal método, verifica-se que
qualquer um poderia ser magistrado, sem que para isso fossem exigidos conhecimentos
específicos da judicatura, podendo a ocupação do cargo se dar de forma vitalícia ou
temporária, o que induz a crer que a magistratura não era vista como uma profissão,
muito menos como função de Estado. Vale ressaltar que a magistratura poderia ser
exercida por uma única pessoa ou por um grupo de pessoas, dito colegiado. De todo
modo, originalmente, já não se atribuía aos magistrados o poder de iniciativa, cuja função
era restrita a julgar os casos submetidos ao seu conhecimento, por interesse da parte.
2 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 9.
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Hugo Enrico Paoli, em estudo mais aprofundado sobre a magistratura grega
antiga, leciona que “o processo de escolha dos magistrados dependia do sistema político
vigente”.3 Desta feita, nas oligarquias apenas os membros que pertenciam às classes
dominantes poderiam ser magistrados, revelando que a ocupação do cargo dependia da
posição social e política do indivíduo. Já nos sistemas em que predominava a democracia,
o povo poderia participar da escolha dos magistrados. Com a escolha, em ambas as
formas de governo, o magistrado era investido de legitimidade para representar os que o
haviam escolhido, de modo a decidir as controvérsias levadas ao seu conhecimento.
Reportando-se a Roma, é perceptível a paulatina complexidade atribuída à
magistratura, mesmo por força direta da expansão territorial imanente àquele império,
simultaneamente à agregação de novos povos com diferentes costumes. Fator de destaque
refletido no seio jurídico refere-se às mudanças políticas e sociais vivenciadas ao longo
da história romana.
A palavra “magistrado” acredita-se derivar da palavra magister, que significa
“chefe”, muito embora não haja prova cabal de sua origem, tendo sido utilizada pela
primeira vez no sentido de referir-se à pessoa que “recebia um mandato do povo e agia
como seu representante, ocupando uma posição de relevo na organização política”.4
Inicialmente singulares, em momento posterior foram criadas as magistraturas coletivas,
perdurando a questão da representatividade até o período imperial romano em 27 a.C. A
forma de escolha dos magistrados era a eleição, de modo que o escolhido ocupava a
função pelo período de um ano. Tanto a forma de escolha de magistrados como o lapso
temporal de atuação variou muito durante a história moderna.
Como consequência da expansão do território romano e a evolução social,
diversificaram-se as categorias de magistrados, diferenciados segundo a classe social,
divididos em patrícios e plebeus, sendo, então, eleitos pelas suas respectivas classes. Se
inicialmente não se exigia do magistrado qualquer saber jurídico, as mudanças
vivenciadas pela sociedade romana acabaram por influir, exigindo a seleção de pessoas
com algum conhecimento específico na área. Uma vez escolhido através do processo de
eleição, o magistrado vestia o manto da legitimidade, daí advinda sua autoridade. Embora
não se confundisse com a divindade que revestia a toga em passado distante, o juiz era
extremamente respeitado e vinculado ao Imperador.
3 PAOLI apud DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 9.
4 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 10.
-
7
A conversão do sistema político romano em império influiu também na
magistratura, que perdeu o caráter representativo, passando os magistrados a serem
escolhidos por exclusivo critério do Imperador, bem como considerados funcionários
deste.
No âmbito processual, vale lembrar que o processo civil romano possuiu três
fases que foram importantes para a individualização da ciência jurídica, mas ainda longe
da festejada autonomia carneluittiana de 1903. É possível encontrar a fase da legis
actiones; período do processo formulário; e período da extraordinaria cognitio. Na
primeira fase, denominada de legis actiones, a pessoa do rei se confundia com a do
magistrado, pois eram a mesma pessoa, tal função possuía caráter vitalício.
Posteriormente, no período republicano, houve grande manifestação dos plebeus que
reivindicavam acesso aos cargos de magistrados, bem como às leis escritas. Em seguida,
visando mais segurança, foi criada a Lei das XII Tábuas, tendo, enfim, essência de
normatividade.
Também a sentença, como conhecida hoje, foi criação romana, a qual
representava a autoridade do Estado em decidir acerca de determinado litígio. Os
romanos denominaram as sententias, que se referiam às decisões finais do processo e
poderiam ser atacadas através do recurso de apelação, e as interlocutiones, referentes às
decisões que ocorriam ao longo do processo e que não eram passíveis de recursos, quase
como se pretendeu impor na recente discussão processual civil brasileira.
Com a gradativa oficialização das instituições processuais, em
consequência da consolidação da cognitio extraordinaria, o
magistrado, agora também juiz, passa a ser titular do poder-
dever de examinar as provas (cognoscere) e proferir a sentença,
a qual, pela primeira vez na história do processo civil romano,
não mais consistia num ato exclusivo do cidadão romano, não
tinha mais caráter arbitral, mas, sim, consubstanciava-se numa
atuação em que era exprimida a vontade do soberano: ex
autoritate principis. (...) Cria-se então, na organização
judiciária do império, uma verdadeira estrutura hierárquica
composta por inúmeros órgãos, a quem conferia o poder de
julgar em primeiro ou superior grau de jurisdição. Ao lado das
antigas magistraturas, que são preservadas, novos cargos são
instituídos.5
5 JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI; LUIZ CARLOS DE AZEVEDO. Lições de história do processo
civil romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996, p.140-141.
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8
A queda do Império Romano e o advento do que se convencionou chamar por
Idade Média também refletiu no papel do magistrado:
Durante o longo período de conturbação e transformações que
foi a Idade Média, as condições políticas da Europa, a
definição de novos institutos jurídicos e políticos, a
multiplicação de ordens jurídicas sem entrosamento numa
ordem superior e sem ainda ter sido estabelecida uma
hierarquia quanto à eficácia das normas, tudo isso torna muito
difícil encontrar uma caracterização para a magistratura
medieval. A partir do século nono, mais ou menos, com o
desenvolvimento das corporações; com a multiplicação e o
aumento da riqueza e do poder político das ordens religiosas e
da Igreja Católica de modo geral; com as alianças de senhores
feudais em torno de um rei, vão sendo definidas novas
magistraturas. Assim, haverá tribunais corporativos e
eclesiásticos independentes, decidindo sobre matéria cível e
criminal, dando a certas pessoas o privilégio de não serem
julgadas pelos tribunais do rei.6
Já na Idade Moderna, o fortalecimento dos reinos trouxe também reflexos à
judicatura. O mundo jurídico adquiriu alguns dos contornos até hoje perceptíveis. Neste
contexto, no direito português foi criado o recurso de sopricação, posto que era
impossível atacar sentenças de determinados juízes, sendo um meio através do qual a
parte vencida poderia questionar a decisão proferida. Em momento posterior, o recurso de
sopricação ficou conhecido como agravo ordinário.
Para melhor visualização da forte ligação entre o magistrado e o soberano,
cite- se como exemplo que as Ordenações Afonsinas estabeleceram a possibilidade
quanto à parte que se sentisse lesada por uma decisão não terminativa, teoricamente não
passível de recurso, poder reivindicar a reforma do julgado, mediante recurso de apelação
ou pelo juízo de retratação.
No caso de negativa da reforma, poderiam ser utilizadas, consoante anterior
publicação desta autoria, “as querimas, as quais se pareciam muito com o nosso agravo”.7
A parte tinha a opção, ainda, de reclamar diretamente com o rei, explicando o fato de
maneira oral, perante a corte, por meio do agravo de estormento.
6 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 11.
7 RUY ALVES HENRIQUES FILHO. Direitos fundamentais e processo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
p. 7.
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9
Posteriormente, extinguiu-se a possibilidade da reclamação oral, perdurando somente a
possibilidade de queixa escrita.
Nota-se, neste contexto, que o juiz era mero fantoche nas mãos do soberano,
na medida em que estes utilizavam os magistrados para atingir interesses pessoais, do
mesmo modo que somente aos magistrados atingia a revolta da parte perdedora, eis que
aquele ficava na linha de frente da “batalha”, protegendo o rei, que por sua vez escondia-
se por trás da figura do magistrado.
No período de 774 a 900 d.C., na França, aos juízes era imposta certa
fidelidade com relação à defesa dos interesses de quem lhes havia escolhido para
ocupação do cargo de magistrado. Com base nisso, criou-se uma áurea negra em torno
dos magistrados, os quais eram vistos como injustos e arbitrários, consequentemente
temidos por agirem sempre em consonância com a vontade do soberano e dos nobres.
Segundo Dallari:
[...] Governantes absolutos utilizavam os serviços dos juízes
para objetivos que, muitas vezes, nada tinham a ver com a
solução de conflitos jurídicos e que colocavam o juiz na
situação de agente político arbitrário e implacável. Em tal
circunstância, a escolha dos juízes era feita diretamente por
quem detinha o comando político, o que deixava evidente que
eles decidiam e praticavam outros atos, não decisórios, em
nome e com o respaldo dos chefes supremos. [...] Isso
contribuiu para que a magistratura se tornasse poderosa mas
também para que se criasse uma imagem negativa dos juízes.
Estes, afinal, sofrendo restrições apenas nos casos em que
havia interesse do soberano, passam a agir com independência,
fora de qualquer controle, cometendo muitas arbitrariedades,
sendo temidos pelo povo.8
Neste período atribui-se à magistratura uma postura intensa, com certa
liberdade para atuar, cujas arbitrariedades eram justificadas pela atuação de acordo com a
vontade dos nobres e do soberano.
Consoante os ensinamentos de Raymond Carré de Malberg, nos séculos XVII
e XVIII “o ofício dos juízes que integravam os Palarments era considerado um direito de
propriedade, tendo a mesma situação jurídica das casas e das terras”.9 Nesta esteira, nota-
se que a magistratura era algo que poderia ser comprado, vendido, transmitido por
8 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 12.
9 MALBERG apud DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 12.
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10
meio da herança, e até mesmo poderia ser alugado, por período que fosse interessante
para o proprietário do cargo, pois por vezes o proprietário não se interessava pela
atividade judicante, mas queria conservá-la para um futuro descendente. Esse fato curioso
da história alcançou até o pensador Montesquieu, na medida em que este adquiriu o cargo
de magistrado por meio da herança deixada por um tio, pelo período de 1716 a 1726,
tendo em momento posterior o célebre pensador acabado por vender o seu cargo,
provavelmente cansado do fardo e impressionado com as injustiças cometidas por aqueles
que tinham o dever de preservar o bem social. Tanto pode ser verdade tal hipótese que o
Conde, logo em seguida, surgiu com a tese de divisão das funções do Estado, como se
verá adiante.
O posto de magistrado era tido como real propriedade e, nesse sentido, a
prestação judicial oferecida à população era fornecida mediante cobrança de taxas,
havendo relatos, inclusive, de cobranças abusivas. Muito embora não houvesse uma clara
separação distinguindo o que era público e o que era privado, a magistratura era
considerada, definitivamente, um serviço da esfera pública, mas os juízes agiam de forma
contraditória, na medida em que se portavam como prestadores de atividade privada, haja
vista venderem a prestação à população, sem qualquer motivação ideológica, senão
mercantilista.
Em outro momento encontram-se condutas que indicavam um choque direto
em determinadas demandas, sobremaneira quando ao juiz cabia solucionar conflito entre
um particular em face de servidores públicos e, decidindo a questão, julgava
desfavoravelmente ao poder público, fazendo transbordar a ira dos governantes, que
interpretavam tal situação como verdadeira afronta dos magistrados contra quem lhes
concedeu o poder judicante.
Por todas as questões expostas, os magistrados eram temidos e vistos com
desconfiança pelo povo, uma vez que os particulares ficavam receosos de se envolver
numa controvérsia que demandasse a atuação judicial. Os próprios “funcionários” do
governo viam o juiz como uma figura que se preocupava mais com seus interesses
pessoais do que pela ciência do direito.
Tais fatos, bem como a estreita relação entre a magistratura e a nobreza
daquele tempo, fizeram com que a Revolução Francesa afetasse diretamente a
magistratura, punindo vários deles, não obstante os reflexos sentidos no exercício da
atividade por aqueles que continuaram exercendo a função judicante. Com este marco na
história, a
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11
ideia de soberania popular tinha como escopo e pressuposto teórico a necessidade de
submissão dos juízes à lei.10
Reportando-se brevemente para o cenário nacional, há registros de que, na
época do Brasil Colônia, uma carta foi escrita alegando a necessidade de implantação de
um Poder Judiciário, não exatamente com tal denominação, nas Capitanias Hereditárias.
Em tal período, observa-se que o cargo de magistrado era exercido por pessoas das quais
não se exigia qualquer conhecimento jurídico. A população da colônia, assim como da
metrópole portuguesa, desconfiava da atuação dos juízes, que exerciam suas atividades
lastreados em entendimentos pessoais e subjetivos, portanto, arbitrários. Tem-se,
contudo, que tal desconfiança foi desaparecendo na medida em que leis escritas foram
criadas, não obstante o surgimento das Constituições.
Com um olhar voltado, agora, para a história da judicatura nos Estados
Unidos, percebe-se que naquele país objetivou-se instalar de modo peculiar o sistema de
separação das funções dos poderes, inovando à medida que se adotou o denominado
sistema de “freios e contrapesos”, prevendo a cada um dos poderes um conjunto de
funções típicas e atípicas, estas consistentes na fiscalização dos demais poderes.
Lá as ideias de Thomas Jefferson e as divergências tidas com o presidente da
Suprema Corte, John Marshall, ocasionaram, em meados do ano de 1803, a competência
daquela corte suprema para controlar a constitucionalidade dos atos praticados pelo
Congresso Nacional, bem como do Executivo. Segundo Dallari, isso “foi fundamental
para assegurar um papel ativo à magistratura, o que tem sido extremamente benéfico para
a proteção e promoção dos direitos fundamentais dos indivíduos nos Estados Unidos”.11
Tal fato trouxe como consequência a ideia do Poder Judiciário como um poder político
participante da República. Sempre que necessária a verificação, modificação ou
incremento dos textos fundamentais da constituição americana, formam-se convenções
que, em número de 233 edições, entre 1776 a 2005, acabam por debater e equipar a
magistratura com as melhores maneiras de gerir o Estado jugador fundamental.12
A contribuição de Thomas Jefferson vai além, pois também colaborou para a
Declaração de Independência em 1776, bem como estabeleceu os fundamentos da
10 TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER. Controle das decisões judiciais por meio de recurso de estrito
direito e de ação rescisória: recurso extraordinário, recurso especial e ação rescisória: o que é uma
decisão contraria à lei? São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 16. 11
DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 16. 12
JOHN J. DINAN. The American State Constitutional Tradition. University of Kansas, 2009. p. 6.
-
12
Constituição estadunidense de 1787, não obstante ter sido o terceiro
presidente da República em um momento crucial em que se firmava um governo
constitucional, superando a ideia do absolutismo.
Os primeiros anos de colonização dos Estados Unidos assentaram algumas
linhas que permanecem até a atualidade, desde então ficando determinado que o Poder
Judiciário é um poder pertencente ao Estado, tratando-se de um poder independente, de
mesma hierarquia dos demais; do mesmo modo assentou-se o federalismo, dotando-se os
Estados Federados de capacidade para definição de aspectos sobre seus sistemas
judiciários; e, por fim, determinou-se desde logo que os juízes e tribunais devem
posicionar-se do modo mais próximo possível da população, possibilitando que as
controvérsias sejam solucionadas relevando-se aspectos inerentes aos costumes e, daí,
influenciando a tipificação da conduta pelo Legislativo.
Faz-se pertinente uma observação quanto ao pensamento de Thomas
Jefferson inerente ao ideário do papel dos juízes, pois almejava para um governo
republicano que os magistrados fossem escolhidos pelo chefe do Poder Executivo. Tal
ideia foi inserida no projeto de Constituição preparado por ele no ano de 1776. Os juízes
ocupariam o cargo apenas enquanto “bem servissem”, portanto demissíveis ad nutum.
Jefferson não compartilhava da ideia de que magistrados desfrutassem de vitaliciedade,
sob pena de prejuízos à sua produtividade, não obstante à facilidade que poderia levá-los
a cair em tentações, como o aceite de propinas, por exemplo.
Indo de encontro ao defendido por Thomas Jefferson, em 1801 foi aprovada
pelo Congresso uma lei denominada “Judiciary Act”, através da qual determinou-se,
entre outras questões, que os juízes eram irremovíveis. A aprovação da mencionada lei
contou com a resistência de Jefferson, que alegava tratar-se de uma afronta aos princípios
constitucionais e, utilizando-se desse argumento, seu governo recusou-se a confirmar
determinadas indicações realizadas pelo seu antecessor. Curioso é que, embora Jefferson
tenha tecido críticas ácidas a tal lei, nada fez para enfraquecê-la. Dos aliados políticos de
Jefferson surgiu a ideia de propor uma emenda constitucional visando derrubar a
vitaliciedade dos juízes, mas não obtiveram resposta positiva de Thomas Jefferson.
Todavia, segundo Dallari13:
13 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 16.
-
13
Thomas Jefferson foi sempre favorável à independência dos
juízes, fazendo, entretanto, a seguinte ressalva: um Judiciário
independente de um rei ou de um governo monocrático é uma
boa coisa; mas independente da vontade do povo é um erro,
pelo menos num governo republicano.
Atualmente, segundo Toni Fine 14 , não há norma escrita que preveja a
vitaliciedade dos juízes da suprema corte norte-americana no cargo. No entanto, esta é
jurisprudencialmente entendida pelo vocábulo “bom comportamento” exigido dos juízes
pelo art. III da Constituição norte-americana, em cotejo à garantia da irredutibilidade de
vencimentos, expressamente prevista no mesmo artigo.15
A preocupação de Thomas Jefferson, sobretudo, consistia no controle de
constitucionalidade dos atos dos demais poderes, quais sejam, Executivo e Legislativo.
Percebe-se daí advindo o gérmen da preocupação em tornar os atos estatais limitados e
submetidos a um controle pelo próprio Estado, pois este representa, em última análise, o
povo.
Diante disso, tem-se que os Estados Unidos idealizaram o Poder Judiciário
como um “ponto de equilíbrio”, objetivando, dessa forma, evitar possíveis excessos dos
outros poderes. Para que esse ideal fosse alcançando era necessário que os juízes fossem
escolhidos pelo povo e ocupassem o cargo por tempo determinado, na concepção da
época. Atualmente, apenas juízes de condados são escolhidos pelo povo, opção já em
revisão em muitos estados americanos.
A questão da judicatura estadunidense passou por muitas discussões e
modificações, de modo que o que hoje se estabelece é a ausência de vitaliciedade aos
juízes, os quais exercem a função por tempo determinado, cabendo, contudo, a reeleição.
Há exceção à regra da vitaliciedade, é o que se vislumbra dos juízes federais e em alguns
tribunais estaduais. A essência da Constituição é o mote norteador do Judiciário nos
Estados Unidos, embora lá as fontes formais do direito passam pela Constituição,
tratados, leis ordinárias, regulamentos e decisões judiciais. As decisões judiciais são
entendidas como “direito comum” e revelam que a função interpretativa é
14 TONI M. FINE. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p.
16. 15
Section 1. The judicial Power of the Unidet States, shall be vested in one supreme Court, and in such
inferior Courts as the Congress may from time ordain and establish. The Judges, both of the supreme and
inferior Courts, shall hold their Offices during good Behavior, and shall, at stated times, recive for their
services a compensation n office. CONSTITUÇÃO DO ESTADOS UNIDOS.
-
14
a mais importante tarefa do Judiciário americano. A Corte Constitucional
norte- americana será alvo de melhor estudo a frente. 16
Retomando-se a análise histórica, impossível deixar de analisar em
pormenores os efeitos que a Revolução Francesa exerceu sobre a atividade judicante, não
somente na França, mas em todos os demais países pelos quais se disseminou o ideal
republicano encetado pela burguesia, espalhado por todo o continente europeu e por
parcela da América já colonizada. A esses ideais típicos do modelo de pensamento que
inaugurou o período convencionou-se chamar de Idade Contemporânea. A Revolução
Francesa, além de propugnar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, trazendo
consigo o gérmen dos direitos individuais, teve sobre a magistratura um verdadeiro efeito
de ruptura. Muitos juízes foram perseguidos e sancionados por terem atuado apenas em
benefício da autoridade que havia lhes indicado. Tais juízes foram forçados a se submeter
ao ideal republicano, tendo seus poderes restritos e suas atividades moldadas de acordo
com a separação dos poderes concebida por Montesquieu.
Em dito contexto, os juízes passaram a ser apenas a “boca da lei”, ou seja,
reproduziam os textos previstos previamente na lei, sendo-lhes vedado interpretar e
adequar a lei diante do caso concreto. Não cabia ao magistrado exercer juízo de valor
frente à norma, pouco importando se a lei era imoral ou injusta: ao juiz apenas atribuía-se
a função de aplicar a norma legislada ao caso concreto que lhe fosse apresentado.
A criação de códigos casuísticos, que a um só tempo petrificavam o
pensamento do magistrado, impedindo qualquer exercício efetivo de poder construtivo
pela magistratura, escondia-se sob o subterfúgio da legalidade. É fato que o Estado
Liberal teve por condão extinguir as arbitrariedades do absolutismo, sustentando-se no
princípio da legalidade. Todavia, a escolha do princípio da legalidade para embasar
decisões do novo Estado escondia um lado negro, conforme asseverado alhures:
[...] Acontece que o motivo pelo qual os legisladores elegeram
o princípio da legalidade como base da nova era social não era
tão puro e justo quanto se pensava. À época, a lei nascia de ato
16 Ademais, a legislação das colônias não era verdadeiramente submetida à lei inglesa, mas sim
vinculada ao direito inglês. O controle da legitimidade das leis coloniais se dava a partir do common
law, até porque o Parlamento, como já dito, estava submetido a um metadireito ou a uma
metalinguagem (o common law), e não simplesmente escrevendo as primeiras linhas de um direito
novo, como aconteceu com o poder (legislativo) que se instalou com a Revolução Francesa. LUIZ
GUILHERME MARINONI. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. p.
47.
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15
emanado pela assembléia parlamentar francesa, a qual
substituiu o rei na tarefa de legislar. Assim, em tal panorama,
manteve-se uma espécie de “absolutismo velado”, uma vez que
a vontade do tirano foi simplesmente substituída pela vontade
legislada dos parlamentares, os quais, astutamente, reservaram
para si, mediante processo político e legal, bem como
utilizando a fórmula do princípio da legalidade, o poder
absoluto e descomprometido.17
Paralelamente, voltando os olhos para Inglaterra, percebe-se que o
parlamento conteve rigidamente o absolutismo sem a necessidade de tolher o poder
conferido à magistratura, mas ao revés, aliando-se a ela. Este e outros traços marcantes
definiram o que hoje conhecemos como common law.
O cenário continental europeu do século XVII mostra que o legislativo, ao
confeccionar as normas, pouco se preocupava em observar se estas refletiam justiça e
moral. Tal cenário se tornava ainda mais grave na medida em que o Poder Executivo
apenas poderia atuar mediante a permissão legal, e ao Judiciário era cabível apenas a
aplicação da norma, sem interpretações ou criações, chegando mesmo a ser concebido
como poder nulo, sem voz. Tal contexto tornava impossível o controle dos atos
legislativos.
Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier:
Não foi pequena a desconfiança dos legisladores franceses em
relação aos juízes. Em decorrência disto, acabou-se
restringindo a atividade jurisdicional – especialmente no que
diz respeito à interpretação – a um âmbito estrito, pois que o
juiz era tido como um ser inanimado e não deveria ser nada,
além de ser a boca da lei. A Corte de Cassação francesa nasceu
como órgão anexo ou auxiliar do Corps Legislatif.18
A restrição da atividade judicial ao exercício da mera subsunção entre fato e
norma ensejou a denegação de julgar por parte de magistrados, que, frente a casos
concretos não previstos pela norma, viam-se impossibilitados de exercer a jurisdição. Por
este fato, convencionou-se a solução ainda hoje utilizada pelo direito brasileiro, inserida
neste ordenamento desde meados de 1900, na qual se prevê que, quando determinado
caso não encontra previsão legal casuística, na qual pudesse ser feita a
17
RUY ALVES HENRIQUES FILHO. Direitos fundamentais e processo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
p. 26. 18
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER. Controle. p. 16.
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16
subsunção, resta autorizado o uso da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito,
encetando aí, ainda que timidamente, uma abertura hermenêutica deferida ao magistrado.
Na atualidade, o novo Código de Processo Civil brasileiro determina que, “ao aplicar a
lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum,
observando sempre os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da
legalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência”. 19 No mesmo sentido,
demonstrava-se a maior liberdade hermenêutica do magistrado através da previsão
constante do art. 472 do projeto do mesmo diploma, o qual dispunha:
Parágrafo único: Fundamentando-se a sentença em regras que
contiverem conceitos juridicamente indeterminados, cláusulas
gerais ou princípios jurídicos, o juiz deve expor,
analiticamente, o sentido em que as normas foram
compreendidas, demonstrando as razões pelas quais,
ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades
do caso concreto, não aplicou princípios colidentes.
Esse projeto sofreu restrições severas e o artigo 489 do novíssimo código
determina apenas que a inobservância dos precedentes poderá produzir a nulidade da
sentença por falta de fundamentação específica. Como se verá adiante, a aplicação do
mecanismo dos precedentes judiciais teve uma importante diminuição quando positivado
no Brasil.
Na concepção do positivismo jurídico, a lei era produto da atividade
legislativa. A função da lei era justamente limitar a atuação do jurista, fazendo com que o
magistrado se detivesse apenas na letra da norma legislada. Dessa forma, o juiz passou a
ser mero figurante da atividade judicante, posto que não possuía liberdade para julgar,
afastando-se mais ainda da sociedade que já o desprezava.
Cumpre ressaltar que, para o positivismo jurídico, o direito deve ser estudado
como fato social, tendo como objeto as normas que vigoram em determinado Estado, em
época específica, não importando se tais normas obedecem ou não o ideal de justiça, cuja
conceituação estende-se fora dos limites da ciência jurídica, conforme preconizado por
Hans Kelsen.20
Elival da Silva Ramos acentua, neste contexto, que “a objetividade
metodológica não importa, necessariamente, na aceitação passiva do direito posto
19
Lei n.º 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil, artigo 8.º 20
HANS KELSEN. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 116.
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17
(legislado ou costumeiro), pela completa desconsideração dos juízos de valor nele
encarnado”. 21 Contudo, as normas positivas não deixam de determinar condutas,
impondo, ainda que implicitamente, juízos de valor.
Ramos compara o positivismo jurídico com a dogmática jurídica conhecida
na modernidade, aduzindo que o positivismo jurídico não está superado, pois “participa
da base comum a todas as correntes doutrinárias que, a partir da metodologia positiva, se
digladiam quanto a aspectos mais específicos de Teoria do Direito, como é o caso, por
exemplo, da Teoria da Interpretação”.22 Mesmo Norberto Bobbio já acentuava que o
método do positivismo era um método científico.23
O positivismo jurídico consiste, no tocante às fontes do Direito, na
superioridade da legislação em relação às demais fontes do Direito, notadamente à
jurisprudência e aos costumes. Como consequência, tem-se que o Estado passou a
controlar a edição das normas, elegendo para isso órgão competente. Essa característica
do positivismo jurídico deriva do fato da norma ser posta pelo Estado, e não por fonte
diversa24.
Outra característica do direito positivo consiste na imperatividade do direito,
que se baseia na ideia de que norma jurídica corresponde a um comando do soberano em
relação os seus súditos, ou seja, a lei se exterioriza como verdadeiro poder estatal. A
Teoria da Imperatividade foi duramente criticada por Kelsen, uma vez que o núcleo
imperativo da norma estaria voltado aos magistrados, verdadeiros operadores do direito, e
não aos súditos.
Ressalta-se que a mais notória característica do positivismo jurídico reside na
adoção do conceito de ordenamento jurídico, ou seja, na concepção de que as normas são
integradas em um único sistema. Cuida-se de ideia tratada por Hans Kelsen em sua obra,
Teoria Pura do Direito, em que o membro da Escola de Viena defendeu que a
21 ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p
36. 22
ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.
p. 37. 23
NORBERTO BOBBIO. Teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.299. 24
[...] A preponderância do ato decorrente do exercício da função legislativa sobre as demais fontes não é,
propriamente, um traço tipificador das proposições positivistas, em sentido estrito, tendo aparecido nos
escritos dos positivistas europeus do século XIX e das primeiras décadas do século XX pela circunstância
de se viver, então, no Velho Continente o período do Estado Legal. Com a definitiva
consolidação do sistema europeu de controle de constitucionalidade, principalmente após a segunda metade
do século passado, a Constituição, e não a lei, passou a assumir a primazia das fontes de produção do direito
estatal, sem que isso venha a representar alteração significativa nos marcos do positivismo teórico. ELIVAL
DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 39.
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norma jurídica nasce de algo que se encontra externo ao direito, ou seja, de um aspecto
exterior à ciência jurídica, mas de cunho político, quando o povo aceita os comandos
inseridos na Carta Constitucional.
Da noção de ordenamento jurídico enquanto sistema único25 decorrem, ainda,
duas características, quais sejam, a coerência e a completude. Fica certo, entretanto, que
nenhum sistema jurídico é puro e intocável quando comparado à base da ciência jurídica,
segundo Karl Popper.26 A coerência significa dizer que em um sistema não se admitem
normas conflitantes entre si. No tocante à completude, cuida-se de característica ligada à
ideia central do movimento positivista – certeza do direito. Do princípio da completude,
podemos extrair duas conclusões: a vedação ao juiz quanto à criação do direito e a
vedação ao juiz quanto à esquiva em solucionar controvérsia, sob o subterfúgio de
ausência de previsão legal.
Para se chegar ao nível de coerência dentro do ordenamento jurídico, revela a
doutrina:
A coerência do ordenamento jurídico é assegurada pelo
estabelecimento dos chamados critérios de solução de
antinomias, a saber, o hierárquico (lex superior derogat
inferiori), o cronológico (lex posterior derogat priori) e da
especialidade (lex specialis derogat generali). Entretanto, não
há como negar a insuficiência dos três critérios em algumas
situações, ou seja, quando há um conflito entre os próprios
critérios, no sentido de que a uma mesma antinomia se possa
aplicar dois critérios, cada um deles levando a um resultado
diverso e quando não é possível aplicar nenhum dos três
25 Segundo TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, a ideia de ordenamento como sistema é resultado
do surgimento do Estado Moderno e capitalista no século XVI. In Introduçao ao estudo do direito. 4.
ed. Sao Paulo: Atlas. 2003. p. 178. Larenz sustenta que onde quer que tenhamos de tratar com uma
verdadeira ordem jurídica, teremos de tratar com a ideia de sistema, em decorrência de princípios
imanentes que se permeiam no seu conjunto, em um sistema. Aduz o autor que a única espécie de
sistema cabível à ciência do direito é o sistema aberto, móvel em si até certo grau, que nunca está
completo e pode ser continuamente posto em questão, tornando clara a racionalidade inerente aos
princípios jurídicos. KARL LARENZ. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. p. 231-241.
Para Bobbio, “Sistema é uma totalidade ordenada, um conjunto de organismos entre os quais existe uma
certa ordem. Para que se possa falar em ordem, é preciso que os organismos constitutivos estejam em
relação com o todo, mas também estejam em relação de compatibilidade entre si. Quando perguntamos
se o ordenamento jurídico constitui um sistema, perguntamo-nos se as normas que o compõem estão em
relação de compatibilidade entre si e em que condições é possível esta relação”. NORBERTO BOBBIO.
Teoria geral do direito. Trad. Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 219. 26
KARL RAYMUND POPPER. Lógica das ciências sociais. Trad. Estevão de Rezende Martins. 3. ed.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 16.
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critérios, visto que há duas normas antinômicas que são
contemporâneas, paritárias e gerais.27
Diante de tal obstáculo, o princípio da completude foi rigidamente criticado.
Para Maria Helena Diniz, as lacunas existentes no Direito devem ser preenchidas pelo
poder competente, através de meios jurídicos, possibilitando manter a completude do
sistema jurídico.28
O positivismo filosófico exerceu forte influência sobre o positivismo jurídico,
motivo pelo qual este último buscou interpretar o direito como ele é, entretanto, o
positivismo parece ir além da mera questão de entender o direito, atingindo também a
forma do direito objetivado, ou seja, o movimento positivista não é apenas um modelo
para entender o direito, mas também de como se pretende que o direito seja. Na
Alemanha do século XIX podem ser encontrados resquícios da ideologia positivista, uma
vez que tal país foi adepto de tal corrente. Muito embora a Alemanha afirmasse possuir
uma essência racionalista, cultuando o direito positivo como um organismo racional,
guardava em seu interior resquícios do pensamento jusnaturalista, conforme leciona
Bobbio:
Essa tendência ideológica recebeu influência direta da
concepção hegeliana de Estado, que não lhe atribui mero valor
técnico, não sendo o Estado ‘um simples instrumento de
realização dos fins dos indivíduos (como é no pensamento
liberal), mas um valor ético, é a manifestação suprema do
Espírito no seu devir histórico e portanto é ele mesmo o fim
último ao qual os indivíduos estão subordinados.29
O que se mostra curioso é que a adoração ao direito estatal que marcou
fortemente a Alemanha recebeu duras críticas dos não positivistas, que sustentam a
opinião que o apego ao positivismo foi a base do regime nazista germânico,
27 ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.
p. 41. 28
MARIA HELENA DINIZ. As lacunas do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 72. 29
NORBERTO BOBBIO. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi.
São Paulo: Ícone, 1995. p. 223-224. E ainda: Estado Liberal e Estado Democrático são interdependentes
em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas
liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao
liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a
persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um Estado não
liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que
um Estado não democrático seja capaz de garantiras liberdades fundamentais.
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fortalecendo suas ideias em conjunto com a crise ideológica e monetária enfrentada
pelos alemães após a derrota na primeira guerra mundial.
Embora as críticas tenham sido relevantes, não há nada concreto que
demostre, de maneira inquestionável, que o positivismo ideológico radical e o nazismo,
assim como o fascismo, ocorrido na Itália de Mussolini, tenham alguma relação. Aliás,
cumpre-nos lembrar que o apego à lei está inserido no contexto de Estado de Direito
Liberal, o que claramente está longe de possuir afinidades com regimes totalitários. Tanto
o fascismo italiano, quanto o nazismo na Alemanha, vieram com o duplo objetivo, o de
combater o liberalismo democrático e de reagir contra a infiltração comunista, contudo
foi a história mostra o qual amargo foi este remédio.
Entretanto, há quem sustente que o desuso do positivismo se encontra
associado ao fracasso do nazismo alemão e do fascismo italiano. Esses poderes estatais,
que se caracterizaram por violações de vários direitos fundamentais conhecidos hoje,
atuaram sempre em nome da lei, tendo suas condutas legitimadas, enquanto chefes de
Estado, pela lei. A lei era vangloriada e tudo justificava, conforme ensina Luís Roberto
Barroso: “os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a
obediência a ordens emanadas da autoridade competente”.30
Frise-se que o direito posto atualmente no Brasil reforça a ideia de um Estado
que busca trazer previsibilidade ao direito, porém, oferecendo ao julgador mecanismos de
colmatação da norma à realidade, ou seja, embora positivado, o juiz pode optar pela
opção do precedente judicial. No decorrer da história percebemos que não há um trato
indissolúvel entre o positivismo jurídico em face do positivismo ético extremista. Na
contramão de tal constatação, temos que o modelo dogmático adotado positivista é a
versão “prudente” do positivismo ético, que não se contenta em apenas afirmar que o
direito é a saída para se obter a ordem social; vai mais além, aduzindo que a lei é o
melhor meio de exteriorizar o direito, porém, espera-se que esta seja, acima de tudo,
justa.
30 LUÍS ROBERTO BARROSO. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Rio de janeiro. Disponível em:
. Acesso em: 28.09.2011.
http://www.direitopublico.com.br/pdf_6/DIALOGO-JURIDICO-06-SETEMBRO-2001-
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Encontra-se uma série de críticas ao direito positivo, destacando-se a “teoria
crítica do direito”31, que tece vários questionamentos, inclusive de caráter ideológico do
Direito, comparando-o com a política, buscando saber de onde vem a legitimidade do
poder.32
Uma das questões levantadas pela teoria crítica é o fato de que nem sempre o
direito será encontrado na letra literal da lei. Vejamos o que diz Luis Roberto Barroso
acerca do assunto:
Uma das teses fundamentais do pensamento crítico é a
admissão de que o Direito possa não estar integralmente
contido na lei, tendo condição de existir independentemente da
bênção estatal, da positivação, do reconhecimento expresso
pela estrutura de poder. O intérprete deve buscar a justiça,
ainda quando não a encontre na lei. A teoria crítica resiste,
também, à idéia de completude, de autossuficiência e de
pureza, condenando a cisão do discurso jurídico, que dele
afasta os outros conhecimentos teóricos. O estudo do sistema
normativo (dogmática jurídica) não pode insular-se da
realidade (sociologia do direito) e das bases de legitimidade
que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria crítica
(filosofia do direito). A interdisciplinaridade, que colhe
elementos em outras áreas do saber – inclusive os menos
óbvios, como a psicanálise ou a linguística – tem uma fecunda
colaboração a prestar ao universo jurídico.33
31 O movimento de crítica no direito iniciou-se nos anos 60 na Europa, atingindo a América Latina na
década de 1980. No Brasil, foram expoentes desta construção crítica do direito Roberto Lyra Filho,
Tércio Sampaio Ferraz Jr., Luiz Fernando Coelho e Luis Alberto Warat. Segundo Barroso, “O
pensamento crítico teve expressão na produção acadêmica de diversos países, notadamente nas décadas
de 70 e 80. Na França, a ‘Critique du Droit’, influenciada por Althusser, procurou atribuir caráter
científico ao Direito, mas uma ciência de base marxista, que seria a única ciência verdadeira. Nos
Estados Unidos, os ‘Critical Legal Studies’, também sob influência marxista – embora menos explícita –
difundiram os fundamentos de sua crença de que ‘law is politics’, convocando os operadores jurídicos a
recompor a ordem legal e social com base em princípios humanísticos e comunitários. Anteriormente,
na Alemanha, a denominada Escola de Frankfurt lançara algumas das bases da teoria crítica,
questionando os postulados positivistas da separação entre ciência e ética, completando a elaboração de
duas categorias nucleares – a ideologia e a práxis –, bem como identificando a existência de duas
modalidades de razão: a instrumental e a crítica. A produção filosófica de pensadores como
Horkheimer, Marcuse, Adorno e, mais recentemente, Jürgen Habermas, terá sido a principal in