hartog, françois - tempo e história - como escrever a história da franca hoje in historia social...

Upload: lucianalcp

Post on 13-Apr-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    1/16

    ~.

    HISTRI SO I L

    .PS GRADUAO E:MIFCH/UNI CAlvlP

    [HIST~iASOCAL 0:;amPinas J?Tr J.:24~_[= Dl96 1

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    2/16

    ~ ~

    IiI1 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVERA HISTRIA DA FRANA HOJE?'

    Franois HartogU

    A frmula de Chateaubriand no prefcio dos seus tucles historiques.A Frana deve recompor seus anais a fim de harmoniz-Ias com os progressos da intei igncia , poder ia f igurar como epigrafe do Lieux de mmoire[Lugares de Memria] de Pierre Nora . No, evidentemente, que a situaofosse a mesma, mas para Chateaubriand depois de 1830 assim como paraNora no incio dos anos oitenta , t ra tava-se de par ti r de um diagnstico sobreo presente e averigu-Ia. Para reconstruir sobre um novo patamar , diziaChateaubriand. necessrio perguntar , iniciamente, o que recompor querdizer no caso de Nora: Como escrever a his tria da

    Traduiio de Ana Cludia Fonseca Brefe. Art igo originalmente publicado na revistaAnnales ESC. 1995, D 6, pp. 1219 1236. Somos gratos ao autor por seus esc la recimentos relat Ivos a esta t raduo. Reviso de Crisrina Meneguel1o. F ranois Har tog d ireto r de es tudos na cole des Haures tudes en Sc iences 50dales, em Paris, e seus campos de pesquis a esto especialmente voltados para ahistoriografia e histria inteiectual , ant iga e moderna. autor, dentre outros, de LeXIX sicl e et h is to ire: le cas Fuste l de Coulanges, Premiers t emps de Ia Grece IAge de Bron::e etl epoque archaique, Afiroir d Herodote- essai sur Iapresentati on de l UlTeI Les Liew: de mmoire, m Les France, I (1993) . Pa ri s, Gal limard , pp. 11-32 . Opresente art igo desenvolve o tema de uma conferncia apresentada no DarthmouthCollege, em julho de 1994, graas ao amvel convite dos professores L. D.Krit2Jnan e R. Stamelman.

    ImsTRIAsoCIAL I Campinas::fC~ 127-154 1996-.J

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    3/16

    2 Talvez, essa onda ,eana encetado o seu refluxo. Ver TODOROV, Tzvetan. ]995.Les abus de Ia mmoire. Par:s: Arla.

    129RANOlS HARTOGRegimes de historicidade e escri tas da his tria

    Nos tempora sumus. Esta expresso de Santo Agost inho, Ns somostempo , conveniente para rejei tar a idia de um tempo que, assim como otempo astronmico, nos seria puramente exterior e sobre o qual no teramos nenhuma ao, tal como freqentemente para Braudel . Ainda na concluso de L ' ident it de Ia France, a longa durao definida corno ''umaenorme superfcie de gua quase parada que, insensvel mas irresist ivelmente. tudo arrasta sobre ela .

    Permitam-me aqui lima digresso e a int roduo da noo de regimede historicidade. Eritfido_essario.como uma formulao erudita da expqr incia do,tempo que;~~?1troca. modela nossa forma de dizer e viver f iasse(prprio'tempo; ~_regine de historicidade abre e circunscreve um espaqde trabalho e de pensamento. fEle d ritmo escrita do tempo, representauma ordem qual podemos aderir ou, ao contrrio (e mais freqentemente), da qual queremos escapar, procurando elaborar outra . Posso dizer que afrase emprestada de Tocquevi lle, Quando o passado no mais esclarece ofutu(o, o esprito caminha nas trevas , esclarece meu propsito. Antes(quando o passado esclareci a o futuro. quando a relao do passado com ofuturo era regrada pela referncia ao passado) era o tempo da historiamagistra vitae [histria mestra da vida] ' Quando, ainda em 1796, Chateaubriand pensava que poderia i luminar , tendo nas mos o facho das revoluespassadas, a noite das revolues futuras , seu paralelo entre as revoluesant igas e modernas fazia parte daquele paradigma.3 Mas este ant igo regimede historicidade se desfez.N

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    4/16

    130 TE1vfPO E H ISTRIA: COMO ESCREVER A H ISTRIA DA FRANA HOJE?

    Tocqueville testemunhou essa inverso. Ele, para compreender o passadorecente da Frana, julgou necessrio fazer uma viagem ao futuro, Amrica,para descobrir l a nova sociedade mesmo se , aparentemente paradoxal, suatese essencial seja marcar a continuidade entre a monarquia e a Revoluo.

    So outros os aspectos do regime moderno de historicidade que seinstala entre o fim do sculo XVIII e o incio do sculo XIx' Reinhart Kose lleck mostrou como, a partir de 1860, se formulava na Alemanha die Neu-zeit (os novos tempos], em ruptura com o antigo regime de escrita da histria organizado em torno da histria mestra da vida.4 Nesta perspectiva aRevoluo Francesa, segundo seus protagonistas e aqueles que quase imediatamente tentara.'TIrelat-Ia pode ser l ida como um conflito entre dois regimes de his toricidade. Do ponto de vis ta da his tria, as caracter s ti cas desteregime moderno, esclarecidas por Koselleck, so a passagem do plural dieGeschichten [as his trias] para o singular die Gesehiehte [a Histria]: aHistria em si que, segundo a frmula de Droysen, se tornarconhecimento de si mesma . Ela concebida como processo, segundo aidia de que os acontecimentos advm no apenas no tempo, mas atravsdurch , dele.

    A exigncia de previses substitui as l ies da histria. O historiadorno elabora mais o exemplar, mas est em busca do.,unico. Na historiamagistra, o exemplar reatava o passado ao futuro atravs da imagem domodelo a imitar. Com o regime moderno, o exemplar desapareceu para darlugar quilo que no se repete mais. O passado , por principio, ultrapassado. O futuro, ou melhor , o ponto de vis ta do futuro comanda::b.His triatom911-se.essenciaimente-uma i1timao~e 1dereada pelo FutUro ao on,~~poci.;~-~j~P~ra ~dmpl~~;-e~sa f~ul~ de j~lien Gracq, eu acrescentariaque a intimao se estende tambm ao passado e se impe aos histor iadoresque, ao longo do sculo XIX, organizaram e conceberam sua disciplina

    4 KOSELLECK, R. 1990. Le futur pass . Contribut ion Ia smant ique des tempshistoriques. J. e M.-C. Hoock (trad.). Paris, ditions de l'co e des Hautes tudesen Sciences Sociales. (edio alemde 1979).

    ;

    FRANOIS HARTOG 3 I

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    5/16

    132 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DA FRANA HOJE? FRANOl: ; HARTOG ~.Usado por numerosas crises do tempo. Absolutamente o contrrio. Um regime de his toric idade no uma entidade metafsica, descida do cu, masum quadro de pensamento de longa durao, uma respirao, urna rtmica,uma ordem do tempo que permite e que probe pensar certas coisas. Contestado to logo instaurado, um regime de historicidade reforrnula, reciclae lementos anter iores da relao com o tempo, para faz-Ios dizer outra coisade maneira diferente (tal como a historia magistra retomada pelo cristianismo e historiadores medievais). A passagem de um regime a outro conduz aperodos de cruzamentos: o perodo revolucionrio um bom exemplo disto.Um regime, en:f im, no existe jamais em estado puro.

    Este no o lugar para retraar a histria ou os avatares desse regimemoderno e , ass im, l imi to-me a ndicar duas crises : seu questionamento contemporneo, sobre o qual me deterei um pouco pois ele proporciona justamente o contexto que tornou possvel os ieux e, antes ainda, a profundacrise que se manifesta em torno de 1914, antes da guerra e mais ainda depois

    nos anos vinte. Basta evocar aqui um nome: Walter Benjamin, queentre 1929 e j 940, contra o Historismus e aquilo que surgia como a tlnciadefinitiva da filosofia hesseliana da histria, procurou formular um novoconce ito de his tria, operando a parti r de um outro tempo his trico (contra o

    que ele caracterizava como homogneo, linear e vazio). Do mesmomodo, na Frana no fim dos anos vinte, alguns historiadores voltaram-separa uma his tria econmica e socia l, cont ra a his tria positivis ta , factual,pol ti ca, nacional e superf icial e em busca de profundezas e temporal idadesrcgradas por outros ritmos que a simples sucesso lii i;~ardos acontecimentospol ti cos. Mais profunda, mais ampla, adaptando-se aos cicios, .ela seria emsuma mais verdadeira. Esta deveria ser tambm uma forma de responder

    que Maurice Halbwachs ento assinalou como o ritmo cada vezrnais acelerado; de uma vida social,,6.

    Em seguida, a despeito da catstrofe da Segunda Guerra Mundial,outros futores como a impossibilidade de fazer frente quilo que tinha ocor~6HALBWACHS; M. 1994. Les cadres sociaux de Ia mmoire 1925. Paris: Albinp.262J

    rido, as estratgias do esquecimento, a utopia revolucionria, as esperanasde mudar a sociedade, a reconstruo, a modernizao, a p lanificao, acompetio, a confrontao Leste-Oeste, os progressos econmicos e tcnicos, as mudanas rpidas , enfim, a acelerao da his tria e do tempo concorreram igualmente para manter ou mesmo rdanar o regime moderno dehistoricidade e os hinos ao progresso: O futuro radioso socialista, omilagre alemo capitalista, os Trinta gloriosos franceses7 Pouco a pouco,todavia, o futuro iria ceder terreno ao presente, que tomaria mais e maisespao at parecer ocup-Ia inteiramente. Entramos, ento, no tempo dopresentismo.

    o presentismoEis aqui algumas referncias , sobretudo l it err ias , para ajudar a abordar este fenmeno massivo, que d sua fisionomia prpria ao sculo XX.

    Contra o passado, que tambm a morte, privilegia-se a vida e o presente.Pertencem a esta ampla corrente, em primeiro lugar, as Consideraes illtempestivas (1874), de Nietzsche, mas tambm O imoralista (1902), deGide, ou o Helda Gabler de Ibsen, ou ainda as reflexes nos anos trinta deValry sobre ou contra a histriaS. Se quer responder ou escapar suafalncia , a histria, mesmo a profissional, deve provar que o passado no a morte, que ele no quer sufocar a vida. necessr io encontrar uma forma de relao entre o passado e o presente, de tal modo que o passado nopretenda ditar a conduta ao presente e tampouco permanea completamente7 Os Trinta gloriosos ou a Revoluo invisvel de 1949-75, obra de J. Fourastie(1979) que pe emevidncia o grande crescimento econmico da Frana nesse pe~dado, mesmo em meio a aspectos negativos. (1 -f.T.)g Emmuitas ocasies Lucien Febvre responde a Vairy , abandonado-lhe a histriasem vida e reprovando-o de ignorar a histria viva. Conferir: FEBVRE, LuCen.

    1992. Cambats pour f histore [Combates pela Histria]. Paris: Armand Colin, pp.24, 102e 423 .

    ,.

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    6/16

    134 TEMPO E HrSTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DAFRANA HOJE' ,n FRAJ'-iOrS HARTOG 135

    inerte. Parece-me que a insistncia dos primeiros Annales sobre a necessriapreocupao com O presente tambm ganha sentido em relao a este contextointelecruaJ . Em out ro regist ro, a ref lexo desi ludida de T. S. El iot testemunha oexpansionismo do presente: ln our age . .. there iS coming imoexis tence a new kind of provincial ism which perhaps deserves a new name.

    is a provincialism, not of shape, but of time; one for which. .. the world isthe property solely of the living, a property in which the dead hold no sha-

    ,,9 O - \ . I I I Ies s mortos nao rem mais seu ugar, ta vez nem mesmo qua quer ugar.A morte no tardar a se tomar obscena.--~-;rJus~a de Sartre, publicad;~~ 1938, f6rnece um outro indcio. O

    narrador Roquentin escreve um liv ro de histria. De fato, ele trabalha emuma biograf ia do marqus de.Rollebon (que se parece com TaIleyrand). Masum dia, subitamente, toma-se impossvel continuar porque se impe a ele.como uma evidncia tangvel, que jamais haveria algo do presente alm doprprio presente . O presente era o que existe e tudo o que no era presenteno existiria. O passado no existia. De modo algum . O Sr. de Rollebonacabava de morrer pela segunda vez . De modo semelhante, as coisas parecem inteiras, mas atrs delas no h nada, o passado no nada. Vin te cinco anos mais ta rde, o mesmo Sartre escreveria As palavras, comeando assim: Na Alsace, por volta de 1850, um professor saturado das crianas,aceita se passar por merceeiro ... .

    A crt ica do progresso. Certamente, o topos no novo, mas podemoslevantar, aqui, sua reativao e seu deslocmento por C. Lv i-Strauss, emseus Tristes Trpicos (1955), imediatamente famosos. Ele propunha umaverso renovada do bom selvagem no contexto da descolonizo. Sua apai xonada defesa de Rousseau e sua cr tica limi tada est rei ta concepo doprogresso nas sociedades modernas terminavam numa meditao sobre o9 EUGT, T.S.1957. On Poetry and Poets. Londres, p. 69. Em nossa poca...estsurgindo um novo tipo de provincianismo que talvez merea um novo nome. Umprovinciansmo no de forma, mas de tempo; para o qual...o mundo propriedadesomente dos vivos, uma propriedade da qual os mortos no detm nenhuma parte.(1'-f.R.)

    mundo que havia comeado sem o homem e acabaria sem ele e, assim, aantropologia deveria ser compreendida principalmente como entropologia .Nos anos seguintes, o selvagem toma-se moda: usa-se o pensamento selvagem , analisa-se o pensamento mtico , valoriza- se o Selvagem contra oEstado, embora houvesse tambm repercusses e evases d0 mundo dosselvagens.

    O slogan esquecer o fu turo provavelmente a contribuio dosanos sessenta ao estr ito encerramento sobre o presente . As utopias revoluci onrias, progressis tas e futuris tas em seu princpio, deveriam operar em umhorizonte que pouco ultrapassasse o crculo do presente: Tout, {out de suite ,diziam os muros de Paris em 1968. Neles se inscreve um pouco depois: Noju:ure Vieram, com efeito, os anos setenta, as desiluses, a clivagem daidia revolucionria. a cr ise econmica de 1974, e as respostas mais ou menos desesperadas ou cnicas que. em todo caso, apostaram no presente, somente nele e em nada alm. Mas esse no era exatamente o carpe diem doshomens da Renascena.

    Nessa progressiva invaso do horizonte por um presente mais e maisampliado, h iper trofiado, est claro que a fora motriz foi o crescimento rpido e as exigncias sempre maiores de urna sociedade de consumo, onde asdescobertas c ient ficas, as inovaes tcnicas e a busca de ganhos tornam ascoisas e os homens cada vez mais obsoletos. A mdia, cujo extraordinriodesenvolvimento acompanhou esse movimento que sua razo de ser, deriva do mesmo: produzindo, consumindo e recic ando cada vez mais rapidamente mais palavras e imagens.Pssamos;portant;'-em nossa relcom'' tempo,do1uii.lrismo/ao . ,~ ~ .c ._ .~ . . . . ' - ,' . , , ,.

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    7/16

    136 TEMPO E HISTRIA: CO:v10 ESCREVER A HISTRIA DA FRANA HOJE? FRANOlS HARTOG

    ].

    137

    O

    cao em 11iijpQf~r}.Qualquer um poderia faci lmente completa r orepertrio dos c2~@~~;:: ~:ICJ;1~tendem, 8dJ.ma, negao< do, t:~eP'Deconsidera-se de bom tom queuma pessoa que se d ao respeito, obrigaltoflament'e, no tenha tempo 10Antes de abordar as falhas que no tardaram a aparecer naonipresena presente , vejamos brevemente como a historiografia profissional percebeu e respondeu (ou no) a esta mudana. Sem muita surpresa e demaneira esquemtica, podemos assinalar que a resposta no foi nem imediatae nem direta. Confinnou-se a inclinao da histria que calculava e quantificava, pesquisa de outras temporal idades: da longa durao braudel iana(oficialmente proposta s outras cincias sociais em 1958) at a histriaimvel de Le Roy Ladurie: longe, ento, da poeira dos dias . Na mesma dire-

    mas no nvel das mentalidades , a his tria preocupada com a etnologiatomou-se autnoma (o ext ico es ta ria em ns, na verdade ns tambm ser. amos selvagens) . Essa his tria que se aventurou do outro lado do espe lhose chamaria em breve antropologia histrica: Jacques Le Goff formular oseu programa e,juntamente a outros, o esclarecer.

    Fora desse domnio e em tomo das Cincias Polticas, afirma-se ahis tria contempornea, que no tardar a se afirmar como his tria do presente .11 Com seu artigo O retomado fato ; Pierre NOf2 far ia a ponte entredois tipos de his tria: oac()otec imento, s im, mas um acontec imento carrega- . .- -- . . --.....~ .. _~.si/dO~'antropologiza~o, onde se leiTI'S-iridsdalonga dura. Nora per-

    igualmente o advento rpido do presente histhco . Conscientemente, (} historiadordo presente faz surgir-o passado ITO presente (no lugar.;; :,:: -::.~ ~.~. - - - - ,de fazer inconscientemente surgir o presente no passado); todo nossopresente que bljsca sua prpria conscincia atr t} lls do novo estatuto q o

    , H. 1992. Le temps sai. Genese et str cturation d un sentiment dutemps. Paris , ditions de Ia Maison des Sciences de L'Homme.II Conferir crire f histoire du temps prsent. En hommage Franois Bdarida.Paris , CNRS ditions, 1993, particularmente o art igo de M. TREB TSCH.

    acontecimento conquistou na sociedade industriaf .12 Se o enfoque no presente es t certo e claramente reivindicado, 't:, '12,?g.97.:g~1tr

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    8/16

    138 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DA FRANA HOJE? FRANOIS HARTOG

    , I

    139portada para seis meses adiante e tende insensivelmente a se tornar a imagem efetiva de situaes seis meses mais tarde. Aquilo que voc escolhehoje a imagem daquilo que voc escolher dent ro de seis meses, daquiloque voc j escolhe ra. A durao somente introduzida sob a forma de umasrie que permi te traar uma curva das pesquisas. Mas mesmo as pesquisasse enganam

    Uma outra falha do presente surge por volta dos anos setenta. Essepresente, j inquieto, se encontra em busca de suas razes e identidades,preocupado com a memria e com as genealogias(sabemos do lugar tomadopelas pesquisas genealgicas nos arquivos), com a conservao(monumentos, objetos , modos de vida, paisagens , espcies animais ) e ansioso pela defesa do ecossistema. Viver o pas e a ecologia tornam-se temasmobiJi zadores e em pleno desenvolvimento. Conservao e reabi litaosubstit u ram, notadamente nas pol ticas urbanas, o simples imperativo demodernizao, cuja bri lhante e brutal evidncia no foi at agora ques tionada. Como se quisssemos preservar , reconst ituir, um passado j desapareci~do ou em vias de se apagar irremediavelmente.

    DOIS exemplos esclarecem essa mudana de atitude em relao aotempo. Touvier. o antigo chefe da milcia de Lyon, foi condenado por crimes cont ra a humanidade. Em J 972 ele tinha sido condecorado pelo presidente Pompidou e, em 1994, foi condenado. Ora, exatamente o mesmoTouvier . O tempo funcionou contrapelo: ionge de trazer o esquecimento,e le reavivou, reconstruiu e imps a lembrana. Em 1970, Pompidou (cujovigsimo aniversr io de morte comemoramos de maneira bai laduriana 13 esem grande sucesso) , lana a construo de um novo museu.de arte contempornea, o grande petroleiro de Beaubourg, e comea a destruio dosHalie s. Como conseqncia um buraco (o Buraco dos Hall es ), que o novoprefeito de Pa ri s, um tal Chirac, acabaria por preencher a seu modo. Fim de13Referncia irnica Edouard Balladur, ministro da Economia e das Finanas e daPrivatizao de i986 a 1988e primeiro ministro entre 1993 e 1995, cuja iniciativade comemorar o aniversrio de mortede Pompidou resultou num absoluto fracasso.N.T.

    1993, Mit terrand inaugura o grande Louvre, com sua pirmide de vidro , queapresenta um aspecto bem sucedido da arqui te tura ps-moderna. O Louvre,que perdeu sua lt ima funo rgia com a sada do minis trio das Finanas,tornou-se inteiramente espao museal: o primeiro lugar do patrimnio universal da Frana (com sua galer ia de compras no subsolo) .

    Assim esse presente que reina aparentemente sozinho, dil atado ,vaidoso, revela-se inquieto. Ele gostaria de ser o ponto de vista sobre simesmo e descobre a impossibili dade de se manter. No limite da ruptura , elese most ra incapaz de preencher o espao que ele mesmo abriu, entre o campo da experincia e o horizonte da espera. O passado bate porta, o futuronajanela e o presente descobre que o solo desmorona sob seus ps . Magr it tepoderia ter pintado este quadro

    Trs palavras resumem as mudanas: memria rnas trata -se de fato deuma memria voluntr ia , provocada (aquela da histr ia oral) , reconstru da(da his tria, para que se possa contar sua histria); patdinnid 1980 tinhasido decretado o ano do patrimnio. O sucesso da palavra e do tema (defesa,valorizao, promoo do patrimnio) vai ao lado da crise da noo depatrimnio nacional : comemora de uma comemorao a outra poderia ser o ttulo de uma crnica dos ltimos dez anos. Estes trs termosapontam todos em direo a outro , que seu foco: a ident idade: ,As comemoraes definem um novo calendrio da vida pblica, impondo-lhe seus ritmos e seus prazos. Ela se curva perante a elas e as util iza,tent ando concil iar memria , pedagogia e mensagens polt icas para o momento imediato. A vi sita de Mi tterrand ao Panteo, em 10 de maio de 1981inscreve-se nessa perspectiva: descida inaugural ao pas dos mortos i lustresda Repblica , uma rosa mo (Michelet tinha um ramo de ouro), para revi ficar os lugares desrt icos e preparar-se para esc rever uma nova pgina dahi stria da Frana. Fomos, a ssim, de comemorao em comemorao, numritmo acelerado. Todos os rea rranjos em torno da memria ocorrem no momento em que se aproximava a comemorao maior: aque la da Revolo,que inst igava a atual izar e a quest ionar o prpr io fato de comemorar . Aquilonos valeu, em meio polmica, a comemorao dos 1000 anos da monar-

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    9/16

    140 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DA FRANA HOJE'1 FRANOlS HARTOG

    141

    guia capet ngia, legitimada por uma missa solene com a presena do pres i~dente da Repblica. A esta exploso comemorativa sucedeu imediatamente arajada de cinqentenrios da Segunda Guerra.

    Longe de ser um fenmeno somente francs, a comemorao floresceu um pouco em todos os lugares: a Alemanha, por exemplo, praticou-acom o mesmo ardor depois dos anos oitenta. suficiente mencionar o cioqentenro do nasc imento de Lutero em 1983, o aniversr io dos setecentose ciilquen anos da fundao de Berlim em 1985, ou a (controversa) inaugurao da Neue Waehe [Nova Onda] em BerEm, em 1993, como memorial central da Repblica federal . 14Memria-Histria

    Em 1974 foi publicado Faire de l histoire [His tria] e, dir igido porJacques Le Goff e Pierre Nora, que pretendia esclarecer e promover umnovo tipo de histria , A memria no fora includa entre os novos objetosou novas abordagens, Quatro anos mais tarde, o dicionrio de Ia lvouvellehistoire nova histr ia} comporta uma entrada Memria colet iva , redigida por Pierre Nora, em que se pode ler o primeirQ esboo do programa dosLieux de mmoirei5 Em 1984 sai o primeiro volume dos Lieux que, inican-... - do justamente com a comemorao, retoma em direo memria, interro-gando-se sobre a parti iha entre histria e memria e se propondo a de~monstrar que a memria tambm tem uma histria. Para faz-Ia, Nora necessi ta de um instrumento heurst ico: ser o lugar de memria .14FRANCOIS,.1994. Nation retrouve, nadou 'contre-coeur'. L'Allemagne descommmoraJ:ions . n: Le Dbat, 78,pp. 62-70.

    ~ ~ ..... _'_.. .. . ... _ .... , ... '..... 7- ; ,. ~.v,.

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    10/16

    142 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DAFRANA HOJE? FRANOlS HARTOG 143

    Lavisse representou, celtarnente, um dos pontos de partida da reflexode Nora historiador. a ele que Nora consagrou um de seus primeiros artigos(Lavisse, o instrutor nacional e o nttigvel pedagogo da naoconsumada , em 1962)16. A Histoire de Lav isse desempenhou, a, o papelde laboratrio. A Republique, primeiro tomo dos Lieux, resulta efetivamenteda leitura crtica de Lavisse. um Lavisse visto nos bastidores, de onde semost ra a fabricao de uma histria nacional, ao mesmo tempo desmontando~a como memria nac ional , tzendo justarTiente um primeiro ensaio danoo de lugar de memria. Ser ia suficiente par ti r dos lugares comuns daRepblica (as Trs Cores, 14 dejulho, o Panteo . .. ), desdobr-Ia e quest ion-ia, para chegar a uma primeira defin io de lugar como aqu ilo que aomesmo tempo material , funcional e s imblico: objeto insondvel , no qual opassado se acha recuperado no presente. Mas para Nora, hoje, o elo comes tes lugares simblicos t omou-se muit o tnue: eles so como estas con-chas que f icam nas margens quando o mar da memr ia viva se ret ira . Elesesto.l~ mas somente uma relao ativa que possamos manter com eles (oque os Lieux propem) , uma re lao de segundo grau, pode reat ivar aqui loque .eles foram na hist~ia.Em 1980, para entender o que acon tece en tre a memria e a hist ria e

    lances dessa nova demanda por memria. Nora comea por se t ranspor ta rpara um scu lo atrs quando, confo rme Lavisse, somente a h istria estavaem ques to. 1980 vem olhar 1880 , e 1880 , refl e,tindo este olhar, devolve ainteligibi i dade sobre 1980. A aproximao db:sdois momentos , em simesma, esc la recedora: e le compreende que a his tria de Lavisse , em seuprinc pio, a memria ( republicana) promovida dignidade de his tria e quea exignc ia contempornea de memr ia , de fa to, uma demanda de his tria.Ele tambm mostra que aquilo que estava atado nos anos de 1880-1890 (asn tese republicana, com a sua santss ima trindade laica da Repb lica, Nao e Frana):est, um sculo mais tarde, a um passo de se desatar. Em que---- --------------16 NORA, P.1962. E. Lavisse: sonrle dans Iaformation du sentLrnentnational . ln:Revue hstorique, juillet-septembre.

    s e transfonnam cada um desses termos, se o sopro do esp rito republicanono os une mais. ou se eles tendem a retomar sua autonomia? O que resta daNao sem a Repblica? o fim da Frana?

    A enquete dos Lieux ps rapidamente em evidncia uma periodizaodas pulses memoriais : em torno de 1830 (com a obra de Guizot), de 1880(com a fixao dos rituais e da histria republicana), de 1980 (o ponto departida da enquete dos Lieux). Eu acrescentaria 191

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    11/16

    44 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DA FRANA HOJE? FRANOIS HARTOG 45

    feito tantos passeios e tantos sonhos . O livro termina nessa presena fsica, completamente vertical, do tempo: O homem oomo se tivesse o comprimento, no de seu corpo, mas de seus anos de vida , est equilibradosobre as ondas v ivas do tempo, algumas mais altas do que campanrios .Tal como o duque de Guermantes , vacilando sobre suas pernas .

    Proust conduz a Bergson e a suas anlises da durao . Desenha-se atoda uma configurao inte lectual, que ultrapassa em muito a Frana . Podemos tambm reunir Charles Pguy, adversrio dec larado e feroz da his triatal como a encamaram Lavisse, Langlois e Seignobos. Contra a histria,Pguy (apoiando-se em Bergson) invoca a memr ia, Contra o sacrossantomtodo histrico, ele escolheu Ruga e Michelet. Em Clio Qulho de 1913),ele ope a histria essencialmente longitudinal a uma memriae ssencialmente vertical . A histria passa ao longe , ou seja, ao largo . E'a memr ia consiste, acima de tudo, estando dentro do acontecimento, emno sair dele, a permanecer nele e a remont-Ia por dentro .17 Pguy nocessa evidentemente de sonhar com o Alfaire: Eu diria, pronunciaria, enun-

    transmitiria um certo alfaire Dreyfus, o alfaire Dreyfus real, de quetodos ns desta gerao fomos cmplices . No tota l, a his tria insc io ,enquanto a memria rememorao .

    Os historiadores profissionais ou no respondem a estes questionamentos - Lavisse publica a seqncia de sua Histria com L Histoire d eFrance contenlporaine (1789-1919) em 1922 - ou vo se desviar do nacionalpara o econmico e o social e para suas temporal idades em profundidade.

    1980: Todos constataram que, depois de meados dos anos oitenta, semultiplicaram e sucederam nas livrarias as Histrias de Frana ou da Fran-a. Seria necessrio ver nisto um prolongamento do sucesso editorial que ahist ria conhecera nos anos setenta, mas com uma clara alterao de rumo?Ao menos em princpio ser ia tambm uma resposta combinada crise dahistria na escola: as crianas no sabem mais as datas? E, em primeiro lu -

    uma resposta de direita a uma histria dita de esquerda, an tes que todo7 PGUY, C. 992. Oeuvres compte:tes JIl.Paris, Gallimard, pp. 1176-78.

    mundo abrace a defesa, justamente, da Repblica? Uma primeira percepoinsti tucional da escalada memorial e uma resposta, mais ou menos explci ta. interrogao identitria? Mas poderiam os histo riadores voltar a ser osinstrutores da Nao ou da Repblica, mesmo Com a mediao da televsoCEm seus ltimos anos Braudel, que acabara de publicar a pr imeira parte desua Identit de Ia F rance tornou-se, para grande surpresa. o encarregadodeste magistrio.18

    Uma rpida leitura dos prefcios destas primeiras Histrias convenceque o encaminhamento intelectualmente mais interessan te em relao aofenmeno da memria foi aquele proposto pelos Lieux de mmoire.Respon-dendo provocao memorial , ento em plena expanso, eles converteramas inte rrogaes em forma de questionamento da manei ra pela qual as his trias da Frana tinham sido escritas. Como, em certos momentos chave, opassado (mas qual passado e o que do passado?) teria sido retomado no presente , para faz-Ia um passado signi fica tivo? Isso sem jamais perder de vis taque o obje tivo de Nora, c laramente f ixado desde o inc io (antes de te r seguido essas vazes e retomadas do passado no presente dentro de toda umaretrica), o de se voltar em direo ao hoje, para tentar. assim instrudopelo longo desvio, melhor compreender e melhor fazer compreender. Dopresente ao presente. uma cont ribuio ao debate, de certa maneira mi litante, mas simplesmente cvico.

    O lugar , na primeira defin io que Nora daria, o lugar que operaem La Rpublique. Nos trs tomos dos LieILl encont ramos essa definio emais duas; O tomo r La Rpublique ponto de partida efetivamente necessrio, culmina, todavia, em uma Repblica que se d a ver como sendo, elamesma, sua prpria memria. um percurso um pouco nost lgico de lugares quase mortos ou bastante abandonados: o tempo praticamente passadode uma Repblica datada, que no se sustenta muito bem sobre suas alts

    : Aps a publicao de seu livro, Braudel foi considerado autoridadeno assunto esolicitado sempre que se tratava da identidade francesa. (N.T.).

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    12/16

    146 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DAFRANA HOJE? FRANOlS HARTOG

    .;~

    147

    (talvez nem to altas) ondas do tempo. Nesse primeiro volume est a mortalha de prpura em que dormem os deuses mortos .

    Para rel anar a empresa e ir alm do simples face a face 1980-1880,conviria retomar a noo de lugar , ret rabalh-Ia, propor- lhe uma concepo mais ampla, mais dinmica sobretudo, para questionar as obras LaNation eLes France. Primeira extenso: o lugar designar, ao mesmotempo, as manifestaes mais evidentes da tradio nacional, os memoriascannicos e os instrumentos que concorreram para a sua formao, como oDictionnarie pdagogique de Ferdinand Buisson, mostrando como uns eoutros criam um sistema. Para alm dos memoriais reper toriados como tais,o lugar tambm deve permiti r descort inar os blocos macios de nossasrepresentaes e de nossa mitologia nacional , revi ta lizar os lugares tomados comuns . Finalmente, o lugar de memria toda unidade s ignif icat iva,de ordem material ou ideal, cuja vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez um elemento simblico do patr imnio memorial de uma comunidadequalquer .19 Samos do quadro do pat rimnio nacional. Principalmente ahistria, sob a tica dos Lieux, uma histria de segundo grau, e Nora orepete incessantemente, uma histria simblica.

    Na contracorrente de Proust , a expresso lugar de memria remetes artes da memria, que nos conduzem arte oratria da Antigidade. Suadefinio foi dada por Ccero: O lugar, /ocus, o local (os cmodos de umacasa ou colunas) onde o orador conviddo a ordenaras imagens das coisasque ele quer ret er. Recomenda-se que ele escolha imagens vivas (imagesagentes). Neste sentido, os Lieux usam uma concepo retr icada memria .tflugar:,rCo.Fadorsempre artifciO. O mesmo vaierpMa ; ' lugar; segundd'.-' ,,,' , ',' ,_,0 .,' . - : JlN.o,r

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    13/16

    148 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DAFRANA HOJE? FRANOIS HARTOG 149nhecer pelo Estado, que quase no se reencontra mais ' na noo de patr imnio nacionaL22 Mais precisamente , a nao em si mesma se transforma empatr imnio (ao passo que, doravante , o patr imnio entendido menos comoum bem que possumos e mais como aquilo que const itui nossa identidade) .Como se a Frana deixasse de ser uma histria que nos divide para se tornar um cultura que nos rene .23 Nesse movimento que conduz do pol ti coao cultura l, Nora marca a emergncia de um nacional sem nacional ismo .A Frana do final do sculo XX estaria a um passo de se tornar uma KulturNation enquanto a Alemanha, que havia tomado este caminho em resposta ausncia de uma unidade polt ica , reencont ra-se como uma nao, talvez fora mas no podendo se poupar da questo do nacional. Estar ia a o comeo de uma interessante troca histrica.

    Em todo caso, restringindo-nos Frana, teramos passado, com aTerceira Repblica e sob o magistrio de Lavisse, de uma memria(republicana) transmutada em histria a uma histria que hoje se viveria,se ria lida e reapropriada por uns e por outros como memria, sob o est mulodo dever de memria . Os ltimos dez ou quinze anos marcariam, ento, apassagem da nao histrica nao memorial .

    Os Lieux um pouco como Em busc a do tempo perdido t enninam emum livro futuro que seria a verdadeira Histria da Frana. tal como poderamos escrev Ia hoje, e que so os livros que acabamos de ler Tomandouma outra referncia literria (e Nora no se poupa desse recurso, pois hnele uma tentao e uma ambio literria e a convico de que literatura ehistria se comunicam), os Lieux podem tambm serem lidos como umBildungsroman. 1~ Que res ta da Repblica , pergunta ele , quando lhe reti ramos o jacobinismo centralizador ( .. .)? Que resta da Nao quando lhe22 LENrAUD~ 1.M.1992. L utopiejranaise. Essai sur le patrimoine. Prface deMare fumaroli. Paris , Menges.23 NOR.4., P. Op. cito p. 29.24 Romance de aprend izagem, pedaggico. Est ilo prpr io ao f im do secu la xvm,inicio do XIX, sobre um jovem heri (ou herona) e seu amadurecimento, como p.

    CA. A montanha mgica de T. Mano ou David Copperfiled de C. Dickens. (N.R.).

    ret iramos o nacionalismo (...)? Que resta da Frana quando lhe retiramos ouniversal ismo? Uma aprendizagem de si , Assim se acaba, se posso escrev10 cum grana salis.25 o romance de aprendizado de Pierre Nora.

    Os Lieux como sintomaOs Lzeux foram considerados sobretudo um diagnst ico da situao

    presente e uma resposta a essa situao, e tambm um prognstico. Parafinalizar, gostaria de prolongar algumas das minhas observaes, encarandoos Lieux como um sintoma. Evidentemente, eles pertencem ao momento aoqual se consagram a configurar, mas a maneira pela qual eles operam nosalgo mais sobre nosso presente. Pela permanente preocupao historiogrfica que os atravessa. eles testemunham, com efeito. esta tendncia do presente a se his toricizar . No se trata de egocentr ismo, mas de explic itao dospressupostos do trabalho do historiador.

    A exemplo da unidade nacional criada pela Revoluo que, paraLavlsse, era definit iva e indestrutivel, sua Histoire se apresentava como ahistria definitiva da nao acabada, endereada ao presente e aouma espcie de ktma para sempre.26 Tratava-se de aperfeioar a Repblicamas nada de fundamental deveria mudar. ainda nisto que Lavisse gostariade poder acreditar em 1921, quando redigiu a concluso de sua Histoire naqual chegara at 1919. Os Lieux de mmoire se pretendem uma histria dopresente, para o presente, respondendo crise do presente, j que este, conforme afinna Nora, tornou-se a categoria de compreenso de ns mesmos .Se h um momento dos Lieux os Lieux so portanto, tambm, os lugaresdo momento, ou lugares para o momento. Histr ia da Frana para o hoje, osLieux escrevem tambm (conscientemente) uma histria de nosso presente.25Comum gro de sal, comuma pitada de malcia . (N.R.)26Vma possesso, um dado adquirido para restar atravs dos tempos. Aluso expresso utilizada por Tucdides no Livro Ida Histria da Guerra do Peloponeso.N.R.

    _ ...__.,---,._-----_._---~

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    14/16

    S TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DAFRANA HOJE? FRANOlS HARTOG 151Resulta que, para Nora, o histor iador no pode mais ser aquele que atravessapassado e futuro, pontfice como Monod ou profeta como Michele t, que li a,no passado, o futuro advindo ou a advir, e o proclamava. Se ele aindaaquele que atravessa, o faz apenas no interior do crculo do presente, entrea demanda cega e a resposta esclarecida, entre a presso pblica e a sol itr iapacincia do laboratr io , entre aquilo que ele sente e aquilo que ele sabe .

    Mas o presente e o presentismo que o acompanham se revelaram insustentveis. tambm possvel interpretar a demanda de memria comouma expresso desta crise de nossa relao com o tempo e uma forma deresponder-lhe (mas a memria que se recl ama e se proclama no transmisso, mas preci samente reconstruo de um passado ignorado, esquecido,falsi ficado, ao qual ela deve permit ir a reapropriao e at mesmo a reativao). Um dos problemas que se apresentam atualmente o de restabeleceruma circulao entre o presente e o passado, e tambm o futuro, sem nosabandonarmos t irania de nenhum dos tres termos.

    Ora, a epistemologia desenvolvida nos Lieux ao mesmo tempo queapresenta e reivindica a centralidade do presente, a contorna e dela escapa.Como? Fazendo justamente da passagem do passado ao presente, de suacomunicao que caract eriza o funcionamento da memria, o ponto de part ida de sua operao his toriogrf ica: converter a memria no em contedo,mas em forma do questionamento histri co e da esc ri ta da histria. J evo-

    aqui que o historiador clssi co comeava por estabelece r a cl ara separao entre os dois (a histria deveria ser somente a cincia do passado e ohistor iador um simples olhar f lutuante no s ilncio dos arquivos) . Na contracorrente, a lgica dos Lieux; leva a considerar o prprio historiador como umlugar de memria. Encontramos a figura de Michelet, mas tambm a deNora, editor dos Ensaios de ego histria.27

    Mais globalmente , nos lt imos dez anos, vemos um sinal dessa relao diferente com o tempo no movimento de retorno sobre si mesmas que asdisciplinas, inclusive as cientficas, as instituies e mesmo as empresas27 Essais d ego histoire.1987. Paris, Gallimard.

    conheceram, repentinamente preocupadas com seus arquivos e sua histr ia .A discip lina histr ica tambm conhece essa perspect iva e esse encaminhamento hi storiogrficos, notadamente como t rabalho reflexivo sobre seuspressupostos e suas prticas,28 mas a empresa dos Lieu:r os impulsionou paramais longe, se esforando em incluir sua prpria his toriografia na medida deseu prprio desenrolar.

    Sintoma, el a o tambm no sentido de que o lugar de memria obtevesucesso: ele ascendeu rapidamente ao uso e aos fatos. a t mesmo lei. Classificao a ttulo de lugar de memria do Olympia ou do Fouquet's.29 Olugar veio em socorro do Patr imnio nacional , t ransbordado e ul trapassad~~bido ~~~~~gi;-~ d~histria nacional, o Patrimnio, aquel~ d~Direl;o do Patrimnio do ministrio da Cultura e da iei de 9 3 se viu.com efeito, intimado a responder s demandas de uma memria nacionali rradiada. Parece que o lugar poderia for ;- ;cera categor ia que os legislado- ,res da Terceira Repblica no puderam evideotemence conceber. (vIa s, derepente, o lugar encontra-se recuperado petO fenmeno histr ico que ter iaconduz ido a sua elaborao e sobre o qual e le pretendia proje tar, inversamente, a sua intel igibilidade. O inst rumento cognitivo que deveria servirpara ce rcar e meihor compreender a invasora comemorao tornou-se, e lemesmo, um elemento a mais do disposi ti\o. chamado a socorre r o Patrimnio e a comemorao. Prova de que o diagnsti co de Nora acertado, embora corra o ri sco de ver sua empresa dirigida unicamente atual idade e consumida pelo prprio fenmeno que ela ajudaria a compreender.

    Os Lieux t ambm so sintoma do hoje quanto concepo de memria neles utili zada. Suponhamos por um inst ante esta eoquete do's lugaresfeita h vint e anos, e estouconvencido que o inconsciente (lapso, o vazio dememria , a anamnsia, o des locamento etc .) ter ia desempenhado um papel

    2 Ver, por exemplo: BOUTIER, J. JULIA, D (dr.) Pass recomposs. Champset chantiers de I'histoire. 1995. Paris, ditions Autrement.

    29 Olympia, uma casa de shows e Fouquet, umdos restaurantes mais requintados ecaros de Paris. (N.T.)

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    15/16

    nacr tica de R. Aron causalidade segundo Simiand. Esse passado reaber t;1

    nem linear e nem unvoco, um passado que vamos percorrer como umU.&campo onde se entrecmzam os passados que foram um tempo de futuros 1\possveis: a lguns vieram a ser, outros foram impedidos, massacrados.31 OsLieux, mostrando como certos lugares so cristalizados, remodelados,deformados e esquecidos par ticipam, indiscut ivelmente, de um inventr iocr tico da histria-memria da Frana. Atentos a toda economia do passadono presente, e les propem um modo de circulao entre passado e presente.

    1989 tambm conduziu ou reconduziu a nao ao primeiro plano: anao causa furor ou pelo menos, traz problemas. Ferimos muitos em seunome e sob o seu manto. Entretanto, convm no negl igenciar que a questonacional surgira antes de 1989. Estas questes, de forma e intens idade varivei s. podem se reatar, de certo modo, crise do presentismo. Elas so umaexpresso e uma forma de responder a ele. Mas na Alemanha ainda noreunificada, que se definiria voluntariamente como um Estado ps-nacional,os anos 1980 viram a publicao de inmeras Histrias da Alemanha, t antoquanto se multipl icaram os colquios sobre a ident idade alem, no momentoexato em que est vamos convencidos - dos dois lados - do carter durvel daruptura entre os dois Estados . Na Frana, os LiezLc levaram a reconhecer, aomesmo tempo, a presena do nacional e sua profunda transformao. Noseria mais a nao messinica, mas uma nao-patrimnio, ou ainda umanao como cultura partilhada, portadora de um nacional sem nacionalismo,vivendo pacif icada dentro de uma Frana qual restaria cult ivar sua memria corno se cultiva um jardim. esta considervel mutao que os Lieux. seesforam em mostrar, acompanhando-a e formulando-a. Este seria o momento dos Deux.

    H garantias disso? Esse deslocamento de um modelo de nao paraout ro to claro e ineversve ? Aquilo que se passa nos ltimos seis anos a

    3 RICOEUR, P. 985.Temps et rei 111[Tempo e narrativaJ.Paris, di tions du Seui ,p. 3 3. LEPETIT, B. 1995. Le prsent de l 'histoire 1n: Les formes del exprience. Une autre historie socia/e. Paris, Albin Michel, pp. 295-8.

    152 TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVER A HISTRIA DAFRANA HOJE?importante. A memria dos Lieux uma memria sem inconsciente, salvometafrico, no por princpio mas de fato: eu falo da concepo retrica dolugar. O investigador no visa mais atingir o impensado do lugar, mas sobretudo reconstituir aquilo que o tomou pensvel. Da, talvez. uma certadificuldade de dizer os no lugares , ou os maus lugares de histr ia ou da'memria nacional?

    O apelo memria manisfesta a crise do presentismo (os Lieux averiguam essa demanda e lhe respondem de maneira cr tica , propondo o lugarcomo instmmento cognitivo). El'1t~l1d~)'(lijresentismf' assim nomeado pelareferncia e oposio ao futurismo, c6 .J.l2~a.:C?}{pressoe um profundo que.~tiniiii::ntq ~d.regime' moderno de histor ic idad~. O futuro , o progresso e asideologias que a ele se prendem perderam sua fora de convico no momento mesmo que a distncia ent re horizonte de espera e campo da experincia t9maram:se,mximos. notvel como, atualmente, a rein troduo dadimenso do futuro se d principalmente p~lo desvio da preocupao com aconservao: sobre um modo negativo, para impedir, ou s implesmente retar dar a destru io, o empobrecimento, a poluio de nosso mundo. O sucessoda ecologia pressupe um reconhecimento part ilhado da conser,rao, em simesma, como valor.

    E veio 1989, que simboliza o 9 de novembro coma queda do muro deBerlim e o fim da ideologia que se concebera como o degrau mais alto damodemidade. No o fim da histria, mas hippteticamente, fim ou quebra noregime moderno de historicidade. Depois de 1989,.podemos apreender melhor as novas relaes com o tempo que se procura. Fim no significa queno haja mais futuro, mas que se reconhea que, mais que nunca, ele imprevisvel (tanto quanto 1989 obriga a repensar o mundo e que as regras dojogo mudaram). Do ponto de vista do passado, o fim da tirania do futuroteve como conseqncia tom-Ia opaco, faz-Ia igualmente um passado emgrande parte imprevisve1.3o No se trat a apenas de contingncia, tal como

    30 Sobre as reviravol tas do tempo histrico na Rssa, ver: GAR..1Z0S, V.1992. Dausj'ex-URSS: de Iadifficult d'crire 'histoire .ln: Annales ESC, n. 4-5, pp. 9891002.

    IIIj

    FRANO S HARTOG

    ~\

    153

    ,)

  • 7/27/2019 HARTOG, Franois - Tempo e histria - Como escrever a histria da Franca hoje IN Historia Social Nr. 3 1996

    16/16

    154 TEMPO E H ISTRIA: COMO ESCREVER A H ISTRJA DA F RANA HOJE?

    Leste, mas tambm a Oeste e na prpria Frana leva a reabrir a questo.Como a Alemanha viver como nao? E a Europ~ o que pode ela ser?Como fazer sua histria? E1:to~QifiQ.re: 5:11iStridb;;J~67p,j';ife;?P~~~ ~~~~~~~~;~1~E~~n.~~9Ealfomo escrev-Ia ou reescrev-Ia,sem reativar a historia magistra a t irania do passado nem os pressupostosdo sculo XIX, unindo progresso e nao. nac ional e nacionali smo? Nesteaspec to, com cincia e inventividade os Lieux balizaram um caminho a seretomar e levar adiante, em uma perspectiva decididamente comparativista,e colocaram uma noo nossa disposio.H Escrever tambm propor umaresposta l questo de como circular entre passado, presente, e tambm futuro Porm, um futuro l iber to de pretensiosos futurismos e pouco monopolizado pelos futurlogos, estes de atitude sria e sempre certos de suas opinies (e af ina , o que aconteceu com eles nestes ltimos anos?)

    3 Le Dbat 78, 1994.