laura lima - carne e sensação1
TRANSCRIPT
LAURA LIMA – CARNE E SENSAÇÃO1
Sabrina Maurília dos Santos2
Resumo
O presente artigo visa abordar as implicações críticas de três obras da artista Laura Lima. O intuito é estabelecer relações entre os trabalhos da artista, fundamentadas a aspectos que dialogam com a linha de pensamento de Gilles Deleuze e Maurice Merleau-Ponty. Busca-se também analisar implicações que congreguem um diálogo que potencialize diferentes agenciamentos entre Arte e Filosofia.
Palavras-chave: Laura Lima, corpo, arte contemporânea, sensação.
Abstrac
This article aims to address the critical implications of three works of artist Laura Lima. The aim is to establish relationships between the artist's works, based on aspects which hold discussions with the line of thought of Gilles Deleuze and Maurice Merleau-Ponty. Search also analyze the implications that bring together a dialogue that leverage different assemblages between Art and Philosophy.
Key-words: Laura Lima, body, contemporary art, sensation.
1 Artigo apresentado à disciplina Territorialidades Modernas e Contemporâneas, do Programa de Pósgraduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, ministrada pela Professora Drª Rosângela Cherem.2 Graduada em Educação Artística – Habilitação em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. Mestranda regularmente matriculada no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais na UDESC, em Florianópolis, sob orientação da Professora Drª Rosângela Cherem.
1
Homem=carne/Mulher=carne é um conjunto de trabalhos de Laura Lima que
são desenvolvidos desde os anos noventa. Com efeito, encontramos Pelos + Rede de
2010, Dopada de 1997 e Baixo de 2010, cujas conjeturas serão especificadas de maneira
especial no presente artigo.
De início, cabe ressaltar que as obras citadas acima chamam atenção porque
fazem parte, diríamos, de um mistério que entra num campo peculiar, pleno de sentidos
alhures ao que convencionalmente nossos olhos estão habituados. Tais aspectos, ligados
ao sensível, levantaram uma hipótese cara ao pintor Cézanne: a sensação. Nos estudos
filosóficos de Deleuze3, a sensação cezaniana é aquela que está no corpo, mas um corpo
que é representado como se estivesse vivenciando a sensação, de um corpo que é objeto
e ao mesmo tempo instinto, numa cisão que não se afasta, de modo que podem estar
entrelaçadas.
Como parte do pensamento de Laura Lima está à idéia de que, muito embora,
haja a inserção do corpo em seus trabalhos, este não pode ser classificado como
performance, pois a utilização do corpo do artista como suporte para obras de Arte não
é um aspecto preponderante e tampouco sua aparição vem como pretensão de chocar o
expectador. São obras que fogem ao clichê por desenvolverem-se num esquema próprio,
muito mais ligado a aspectos invisíveis. No cerne de sua conjetura, uma linguagem
silenciosa.
Pelos+Rede (fig. 1) foi concebida dentro dessa idéia. Trata-se de uma rede de
mais de 30 metros, que atravessa todo o vão central do espaço expositivo. Um homem e
uma mulher, ambos despidos, encontram-se deitados na rede de maneira contemplativa,
a mulher tem os pelos pubianos exageradamente compridos e o homem, as
sobrancelhas. Aqui, o ornamento utilizado pela artista para alongar os pelos dos corpos
não vem como intenção de deslocamento, como na obra Nômades, por exemplo, em
que pessoas “vestem paisagens”. Pelos pubianos e sobrancelhas são aspectos humanos,
o que é pertinente salientar em Pelos + Rede, ou a via que corresponde o estranhamento
da obra - tanto no homem quanto na mulher - é o exagero.
A aberração do orgânico, do humano, presente em Pelos + Rede, representada
por uma linha sutil e indiscernível que o separa do animal, poderia ser vista como uma
derivação do conceito de vianda em Deleuze. Em ambos, a representação pode fazer ver
uma “espécie de unidade original dos sentidos e fazer aparecer visualmente uma 3 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 2007. P.42.
2
Figura multissensível” 4. Homem=carne/Mulher=carne - Pelos +Rede, é tratada aqui
como se fosse à representação de uma força ou potência invisível, já que a imagem
torna-se carne no corpo de quem as vê, bem como as pinturas de Francis Bacon, base
para o conceito deleuziano. A carne, que é vianda “é o “fato” é o próprio estado em
que o pintor se identifica com os objetos de seu horror ou de sua compaixão”5.
Portanto, a figura de Bacon, sob a ótica do filósofo francês, além de ser deformada é
aquela que escapa. A vianda não é a carne morta, mas o confronto entre carne e ossos e
nesse duelo há um corpo que sofre, um corpo que é vianda. Sendo assim, num
importante aspecto, cabe salientar que Deleuze privilegia no estudo da figura o corpo e
Bacon pinta o material corpóreo da figura ou como a figura experiência uma sensação,
pois “em vez de correspondências formais, a pintura de Bacon constitui uma zona de
inderscinibilidade, de indecidibilidade entre o homem e o animal”6 . Nesse caso, se
tratássemos a sensação como uma maneira de ultrapassar a figura, caberia ressaltar que
as obras de Laura Lima sugerem a representação de uma sensação.
Figura 1: Laura Lima: Rede+Homem=carne/Mulher=carne – Pelos - 2009-2010 e 1997- 2010.
4 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.49.5 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.31.6 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.29.
3
Os trabalhos de Laura Lima fulguram sentidos, desvelam o invisível, revelam a
junção do que é possível ao inimaginável e esse entrelaçamento pode fazer surgir o que
nunca foi instituído e é esse o campo pertencente à sensação, lembra Deleuze: “A
sensação é o contrário do fácil e do lugar comum7”. Um lugar que dispensa o enfado
causado pelo óbvio, é o contrario do óbvio porque ao mesmo tempo em que é cisão
temporal é também a promiscuidade dos significados, o que resulta numa linguagem
outra, na qual impera a ausência de sentidos, talvez uma linguagem muda , assim como
um poema que, no momento em que pensamos que está pronto para ser lido, se fecha. O
que prevalece nessas obras pode ser um movimento de busca, em que sempre há a
procura por um centro que não encontramos.
A “linguagem indireta e as vozes do silêncio” em Merleau-Ponty evocam a
montagem e desmontagem do pensamento, ou seja, não copiam um pensamento, pois “a
linguagem diz peremptoriamente quando renuncia a dizer a própria coisa” 8, elucida o
filósofo. Por esse viés, convém pensar que a carência de sentido dos trabalhos tratados
aqui, insere a verdadeira presença, pois a presença, que não é designação comum, é
silêncio e imbrica significado por uma via errante, que nada fala ou pela impossibilidade
de garantias.
As obras de Laura Lima, tratadas nesse artigo, estão conectadas a um conjunto
imagético visível e tecem um campo invisível, diríamos até, sob certo ponto,
perturbador, porque talvez haja - não somente na obra Rede + Pelos, como também em
Dopada e Baixo (fig. 2 e 3) - uma peculiar ressonância do conceito freudiano9 de
estranhamento, aquilo que pode ser assustador, que causa medo ao mesmo tempo em
que é familiar, ao passo que essa “familiaridade” torna-se inesperadamente estranha.
Ainda na continuidade da abordagem, diríamos que o estranho provém o seu
medo não de algo desconhecido, ao contrário, o estranho vem deste “ser” semelhante,
como se nos sentíssemos fora de casa em casa, tal como em Dopada, em que uma
mulher veste uma camisola presa a um tubo de crochê ligado a parede, aqui o
estranhamento é dado pelo deslocamento já que é incomum ver uma pessoa - dada as
condições que já foram descritas acima - dormindo sob o chão frio do museu. Em
Rede+Pelos o foco não é o deslocamento dos corpos e sim o adorno colocado
7 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.42.8 MERLEAU-PONTY,Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p.73.9 FREUD, Sigmund. O estranho (1919). Ediçao Standart das obras completas de Zigmund Freud. V. XVII. Rio de Janeiro: Editora Amago, 2006.
4
diretamente nos corpos, com a intenção de exagero.
A mulher está dopada, pois tomou um comprimido para dormir, e vai ficar ali,
durante o tempo em que estiver sob efeito do remédio, quase imóvel sob o olhar de
quem visita o espaço expositivo. Tal condição, além de questionar o objeto museológico
passivo de ser colecionado, amplia o conceito da performance, pois o que vale aqui é a
transformação do corpo ao longo da história da arte. Em Dopada, há um corpo que se
ausenta, tornando-se tão inerte quanto uma pintura na parede, quem sabe se
compuséssemos com a idéia de anacronismo, diríamos que sua pertinência permanece
positiva no arsenal imagético de Laura Lima.
Figura 2: Laura Lima: Homem = carne/ Mulher=carne - Dopada -1997.
Do mesmo modo que em Dopada, em seu trabalho Baixo, a artista pensa a
condição de um corpo deitado no chão, só que agora os espectadores são convidados a
se abaixar para olhar, por se tratar de uma sala sem qualquer tipo de abertura, onde um
homem parece estar adormecido ao lado de uma lâmpada. O teto do ambiente é
rebaixado e ele só se movimenta naquele espaço, quase escuro, se arrastando. Ao olhar
a cena os visitantes podem se sentir como alguém que espia através da fechadura.
5
Figura 3: Laura Lima: Homem= carne/ Mulher=carne - Baixo - 2010.
Notemos agora as três obras de Laura Lima, podemos encontrar em seu conjunto
de trabalhos diferentes tipos ou níveis de sensação, em Pêlos + Rede existe um
determinado nível de sensação, originada, quem sabe, pela idéia do orgânico, do corpo
que sofre uma espécie de anomalia, já em Dopada, o tubo vermelho - que liga o corpo
da mulher adormecida - a parede, também se estende para uma experiência dos sentidos.
Em Baixo, quando o expectador é convidado a olhar o corpo deitado no espaço
rebaixado, como se estivesse olhando pela fechadura, não seria fortuito lembrar que sua
postura muda de visitante para voyeur, o espaço é modificado, trazendo um misto de
conforto, prazer e claustrofobia.
O filósofo da Lógica da Sensação fala que existem duas violências que se
diferem, uma é a do representado, o clichê, o sensacional ou o lugar comum, o outro
tipo de violência, que se opõe à primeira, é a violência presente na sensação, que age
sobre nossos órgãos dos sentidos e nosso sistema nervoso. No conjunto imagético de
cada trabalho de Laura Lima não existem modelos da mesma figura, o que há é uma
combinação de elementos formais distintos, e nesse processo a artista institui uma
instabilidade, ou seja, um oco que só é percebido no efeito total da sua obra.
Merleau-Ponty fala que “a visão e o corpo encontran-se imbricados um no
outro” 10, abraçados e entrelaçados, porque o olho que observa o mundo é também
corpo que se entrega ao mundo, e nessa entrega o olhar dá ao mundo a sua visão de
mundo, e então esse mesmo olhar, que também é corpo, passa a ser operante. Isso
porque o corpo se envolve com as coisas do mundo, porque não é porção no espaço, é
um corpo que toca e é tocado. Dessa maneira, Merleau-Ponty explica que o corpo 10 MERLEAU-PONTY, Maurice. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.147.
6
precisa fazer parte do mundo, precisa estar no entorno, precisa se mover no mundo. Ele
fala de um entrelaçamento entre visão e movimento, cuja mudança não seria de um
lugar ou espaço físico, mas o amadurecimento de uma visão. Para o filósofo, o
entrelaçamento do corpo que é visível ao que é tecido, que não é coisa, mas
possibilidade de um universo invisível, é, por si só, a carne das coisas, ou um ser em
duas dimensões, que é visível e ao mesmo tempo textura de uma profundidade que é a
carne ou Quiasma, visível por si mesma sem ser matéria.
Assim, as três obras apresentadas aqui poderiam evocar o meio que nos é dado
de estar num mundo habitado por significações encarnadas, com meu corpo que é
interioridade e que se exterioriza e cintila sentidos, significações na própria estrutura
ausente ou invisível da sensação. Tal idéia poderia ser especificada através de quatro
ordens hierárquicas de signos - mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos - Os signos
descobrem seus sentidos numa essência ideal, explica Roberto Machado no livro
Deleuze, a arte e a filosofia11. O mundo revelado da Arte reage sobre todos os outros,
principalmente sobre os signos da sensação ou signos sensíveis. Por isso Deleuze
compreende que os signos sensíveis já remetiam a uma essência ideal que se encarnava
no seu sentido material.
Debrucemo-nos por um instante sobre esse tema: os signos da natureza remetem
ao sensível, é nele que está à essência, a verdade, a tão aspirada busca do escritor
Marcel Proust e do pintor Cézanne, o mais comum está na experiência da memória.
Por último, os signos artísticos, que são capazes de decifrar a essência ou a
diferença, explica Roberto Machado. É na diferença, ou nos signos artísticos que todas
as essências são reveladas e os três signos citados anteriormente - mundanos, amorosos
e sensíveis - convergem para a verdadeira adaptação de signo e sentido, o signo
artístico. É nos signos da Arte que está à singularidade, a revelação da verdade, em que
nada aliena, porque seus objetos estão no ponto de vista da essência. Mas para se chegar
à essência são indispensáveis os signos mundanos, visíveis, o estar no mundo e fazer
parte desse mundo, como afirmara o filósofo da fenomenologia, ao passo que a
percepção do visível e do invisível para Merleau- Ponty pode ser a via de acesso para a
verdade.
Olhar as obras de Laura Lima é perceber que há presença, mas com certa
ausência. Seus trabalhos estão integrados em uma relação com o mundo, porque o olhar
da artista é um olhar poético, da memória que carrega o visível e o invisível, de sua
11 MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2009, p.193.
7
experiência com os indivíduos e o mundo. Quando a artista percebe isso e faz dessa
percepção a obra, tudo pode estar interligado, porque não há mais separação entre o que
vê e sente.
Homem=carne/Mulher=carne são os sentidos dos corpos. Não são somente
olhares tocados, mas parte de corpos que se envolvem com as coisas, são peles do
invisível, são essência. Muitas vezes, poderão ser trabalhos que interrogam o
impensado, porque se entrelaçam com a ordem das coisas do mundo visível. Olhar as
obras do conjunto imagético de Laura Lima é aprender a ver sensações.
REFERÊNCIAS
8
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
FREUD, Sigmund. O estranho (1919). Ediçao Standart das obras completas de Zigmund Freud. V. XVII. Rio de Janeiro: Editora Amago, 2006.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2009.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
_________________ , O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Figura 1: Laura Lima: Rede+Homem=carne/Mulher=carne – Pelos - 2009-2010 e
1997-2010. Disponível em: < http://www.premiopipa.com.br/?page_id=951> acesso
em: 14 jul de 2011.
Figura 2: Laura Lima: Homem = carne/ Mulher=carne - Dopada -1997. Disponível em:
<http://www.premiopipa.com.br/?page_id=951> acesso em 14 jul de 2011.
Figura 3: Laura Lima: Homem= carne/ Mulher=carne - Baixo - 2010. Disponível em: <http://bravonline.abril.com.br/conteudo/artesplasticas/fazer-quarto-escuro-621756.shtml> acesso em 14 de jul de 2010.
9