“os portugueses gostam mais de glória do que de...
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No passado, os portugueses fo-ram capazes de grandes feitos. O que mudou nos portugueses desde os tempos dos descobri-mentos até aos nossos dias?— Há um enigma que eu gosta-ria de resolver. Os portugueses não tinham condições para fazer aquilo que fizeram. Em primeiro lugar, não tinham condições para criar uma Nação. O que seria nor-mal, em termos de geopolítica, era que houvesse só uma Ibéria. O resto da Península achou que esta Nação devia ser conquistada e integrada na Ibéria, mas nunca foi. Nunca perdemos a indepen-dência, mesmo quando Espanha herdou a Coroa de Portugal. Fi-lipe I tinha de defender os inte-resses de Portugal como Nação independente. Nós é que não gos-távamos dessa situação e acha-mos que tínhamos de mandar os Filipes embora.
Não aceitamos ser subjuga-dos…— De vez em quando, não li-gamos muito ao Direito. Já D. Afonso Henriques, para ser rei de Portugal, tinha de ser reconhe-cido pela Santa Sé e era preciso pagar. D. Afonso Henriques disse que não pagava um tostão. Nós sempre fomos, de certa maneira, contra a lei que não nos agradava. Já nessa altura usávamos a objec-ção de consciência e o direito à indignação.
Mas como terão os portugueses conseguido ir tão longe, sendo uma Nação tão pequena?— Ainda hoje se discute muito onde Portugal foi buscar o di-
nheiro para os Descobrimentos. O Infante D. Henrique é o centro do enigma porque foi ele que pagou. Há várias explicações relaciona-das com os Templários. Seja como for, não ficamos mais ricos. Temos uma glória formidá-vel, mas é uma glória sem compo-nente financeira. Os portugueses gostam mais de glória do que de dinheiro. Isso, hoje, permanece. Se formos ver a forma como os próprios Governos, sucessiva-mente, gastam o produto nacio-nal, é sempre mais com o objec-tivo da glória do que da eficácia. Veja o que se passou com os cam-pos de futebol para o Campeonato Europeu [de Futebol, em 2004]. Estão às moscas! Não vai lá nin-guém! Na Europa, riam-se de nós. Se não tivéssemos perdido contra a Grécia, éramos mesmo os campeões. Mas quanto vale ser campeão? Zero! É este orgulho que nos caracteriza. Nós achamos que somos os melhores, capazes de vencer tudo, mas não acontece nada a seguir às vitórias.
Os portugueses são realmente loucos por futebol…— Nós temos os melhores joga-dores de futebol, mas jogam lá fora porque não conseguimos que triunfem em Portugal.
“As grandes famílias de origem hebraica continuam a estar
muito próximas do poder”
Será que o nosso orgulho é ge-nético ou resultante da cultura
Foi com afabilidade e o sorriso franco que lhe é característico que o Prof. Daniel Serrão recebeu, uma vez mais, o NOTÍCIAS MÉDICAS em sua casa. Desta vez, não foi para falar
sobre Medicina ou Bioética, mas sobre o que caracteriza os portugueses. O Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina do Porto diz que somos
orgulhosos, mas pouco persistentes. A corrupção é outro problema. No futuro, espera que estejamos novamente dispostos a conquistar
o mundo, mantendo sempre a esperança
O Enigma Português analisado pelo Prof. Daniel Serrão
PORTUGAL E OS PORTUGUESES AO MICROSCÓPIO DO PROF. DANIEL SERRÃO
"Os portugueses gostam mais de glória do que de dinheiro. Isso, hoje, permanece. Se formos ver a forma como os próprios Governos, sucessivamente, gastam o produto nacional, é sempre mais com o objectivo da glória do que da eficácia. Veja o que se passou com os campos de futebol para o Campeonato Europeu [de Futebol, em 2004]. Estão às moscas! Não vai lá ninguém! Na Europa, riam-se de nós"
“Os portugueses gostam mais de glória do que de dinheiro”
Quarta-feira, 23 de Setembro de 2009 Número 3045 SEMANÁRIO ANO XXXVIII
23 SETEMBRO 2009
e da educação?— Em Portugal, há duas tradi-ções com um suporte genético. A maioria da nossa população é dividida em duas partes: de ori-gem hebraica e de origem árabe. Grande parte da intelectualidade portuguesa é marcada pelo pensa-mento hebraico e grande parte da capacidade produtiva é marcada pelas competências árabes que nós aprendemos. Essa mistura acaba por não ser explosiva, mas tem uma questão de hegemonia. A inteligência hebraica gosta de assumir o poder quando chega (o poder do dinheiro e o poder polí-tico, se puder). A maior parte dos Ministros das Finanças eram he-breus. Felizmente, hoje há mais facilidade em publicar trabalhos sobre os hebreus em Portugal e hoje não há dúvida de que fo-ram importantíssimos até à sua expulsão. Isso continua até hoje. Muitos foram esquecendo a sua origem hebraica e passaram a ser católicos.
Podemos dizer que Portugal é ainda influenciado pelos he-breus?— Muito mais. As grandes fa-mílias de origem hebraica conti-nuam a estar muito próximas do poder ou mesmo no poder.
Isso é bom?— É indiscutível que os hebreus têm mais de 60% dos Prémios Nobel. O melhor violinista ou o melhor pianista são hebreus…
Consequentemente, não era de esperar que os portugueses fos-sem melhores?— Nós somos formidáveis! E acho que é essa a justificação. As Descobertas tinham a compo-nente de negócio e uma compo-nente espiritual. Não há povo que tenha uma vinculação mais forte à transcendência do que o povo hebraico. Quando dizemos que espalhámos a Cristandade, espa-lhámos a doutrina de um judeu formidável que se chamava Jesus Cristo. A sua Palavra transformou o mundo. Também Marx, Einstein e Freud viraram o mundo.
Mas, hoje em dia, nós não temos figuras desse gabarito…— O mundo mudou muito. Um povo pode ter muito boas ideias, mas ou tem uma tecnologia muito desenvolvida, ou está arrumado. Antigamente, a melhor tecnolo-gia estava em Portugal. Hoje não porque não temos dinheiro sufi-ciente. Nós perdemos esse com-boio. Mas continuamos cheios de convicção de que somos os pri-meiros. Qualquer indivíduo que se destaca, em Portugal, é endeu-sado.
O Cristiano Ronaldo até pode ser visto como um deus, mas os portugueses não são, também, um pouco invejosos?— Muitos portugueses são mes-
quinhos no reconhecimento do valor dos outros. Na área cien-tífica, há muito isso. É raro os cientistas portugueses citarem um autor português nos trabalhos que publicam. Quando algum au-tor português faz uma coisa boa, é esquecido. Os outros investi-gadores fazem de conta que não existe. Acontece o mesmo noutras áreas, mesmo nas ciências huma-nas e sociais. Há a tendência para minimizar um trabalho que tenha sido publicado anteriormente por um português. Pior do que isso: não lêem.
Não é contraditório. Achamo-nos os máximos, mas não nos lemos uns aos outros?— (Risos) É para ser o melhor do mundo que não se vai citar o outro.
“Dificilmente baixamos a cabeça”
Era capaz de fazer uma lista das qualidades e dos defeitos dos portugueses?— Vou tentar. Uma qualidade que reconheço nos portugueses, em geral, é um enorme capital de esperança. O português vive da esperança e, por isso mesmo, dificilmente entra em depressão como povo. Tem sempre a pers-pectiva de que as coisas vão cor-rer bem. Depois, apesar de todas as crises na família, a estrutura familiar continua a ser reconhecida como importante, como um garante da segurança dos seus membros e da tal esperança de futuro. Eu que-ro dar um bom futuro aos meus filhos. Uma coisa herdada da nossa raiz hebraica é dificilmente baixar-mos a cabeça. Esta capacidade de pôr em causa os poderes consti-tuídos é que tem tornado um bo-cado difícil uma boa instituição da democracia em Portugal. Há uma incapacidade de aceitar uma génese do poder que seja apenas numérica. O nível das abstenções significa que, para esse grupo de portugueses, o processo de selec-
ção começa a ser desinteressante. O que é preciso fazer?— É necessário que os níveis de corrupção baixem. Se os níveis de corrupção se mantiverem, muitos portugueses podem entrar em in-dignação. É bom que quem tem responsabilidades trabalhe para convencer os abstencionistas de que o exercício do direito de voto é uma forma de intervir na reso-lução dos problemas de cada país.
Como se explica que os portu-gueses tenham suportado com razoável bonomia a ditadura durante tantos anos?— Por causa do mito de superio-ridade e de uma espécie de san-tidade que Salazar criou à sua volta. O homem respeitador da lei. Estava no poder quase por direito divino. Exerceu o poder
por carisma pessoal. Os primei-ros 20 anos foram um tempo de sonho, em que aquele homem deu esperança aos portugueses. A fra-se chave era que Portugal poderia ser, se quiséssemos, uma grande e próspera Nação. Tudo pela Na-ção e nada contra a Nação. Estes valores foram instilados em toda uma geração. Eu fui ensinado as-sim. Eu queria que Portugal fosse uma grande e próspera Nação.
“Muita gente acha que chegar
um quarto de hora depois não tem
importância”
E quanto aos defeitos?— O defeito principal é que o português faz uma flor e depois desinteressa-se. Faz uma tese de doutoramento formidável e, de-pois, nunca mais estuda aquele assunto. Falta-nos a persistência. Não tínhamos grandes resultados na investigação científica por causa da falta de persistência e de um certo aborrecimento pela falta de novidade. Essa falta de persis-tência manifesta-se na nossa in-capacidade de organização, quer do trabalho científico, quer do trabalho em geral. É tudo impro-
visado na hora. Vamos desenras-car-nos porque somos muito inte-ligentes. Quando chegar a altura, a gente resolve. Por isso, não se programa a quatro ou cinco anos. Seria completamente impossível, em Portugal (o Marcelo Caetano tentou fazer isso e foi um fracas-so), fazer um plano quinquenal de desenvolvimento como a Rússia. Nós gostamos de pensar no que se vai fazer amanhã. Depois, lá se verá. Queremos ser livres para mudar a trajectória constante-mente. Já não falo na pontualidade… Está a melhorar, mas há muita gente que acha que chegar um quarto de hora depois não tem importância, é normal. Esse as-pecto é mais árabe do que he-braico. Na agricultura, esperamos que a semente dê frutos, mas não
tem pressa. Mais semana, menos semana. Ficamos à espera que algo aconteça. Quando acontecer, celebramos.
“A corrupção é o cancro principal
da democracia”
Falou há pouco na corrupção. Acha que somos mais corruptos do que outros povos?— A corrupção precisa de duas pessoas: de quem quer corromper e de quem se deixa corromper. Só assim é eficaz. Achamos que, tal-vez, na classe política e adminis-trativa, haja muitas pessoas com disposição prévia para se deixar corromper e quem quer corrom-per já sabe que vai ter um interlo-cutor que vai acolher favoravel-mente a sua proposta. Se houver a convicção de que o Presidente da Câmara ou um Director de Serviço não são corrompíveis, a corrupção acaba. Esperava que todos os indivíduos fossem edu-cados, na Universidade, para que a corrupção é o cancro principal da democracia. Ela pode acabar com o regime democrático.
Não foi sempre assim?— A tradição portuguesa nunca
foi de incorruptibilidade.
Mas nós somos cada vez mais confrontados com pessoas que se aproveitam da sua posição para recolher benefícios, Veja-se a crise em que estamos mer-gulhados…— … São pessoas em quem tí-nhamos confiança absoluta e são capazes das maiores patifarias. A crise financeira actual é baseada na ambição e na corrupção.
“Portugueses devem estar preparados
para trabalhar em qual-quer parte do mundo”
O que nos reserva o futuro?— Nós precisamos de mudar. Pre-cisamos de convencer dos portu-gueses de que o espaço para o de-senvolvimento é o mundo. Cada português tem de estar 100% pre-parado, sem perder o seu víncu-lo a esta terrinha e à sua Língua, para falar uma língua estrangei-ra, nomeadamente inglês, e para trabalhar em qualquer parte do mundo.
Esse não será um grande pro-blema para quem sempre emi-grou…— Pois não.
Acha, então, que podemos e devemos partir novamente à conquista de novos mundos? Quais?— Acho que sim. Isso está a acontecer em Angola. Depois de virada a página, há condições para que a iniciativa portuguesa possa desenvolver-se lá. O Insti-tuto Piaget criou lá uma Faculda-de de Medicina que, segundo di-zem, está a funcionar muito bem. Angola não se desenvolve se não tiver saúde.
Se tivesse 30 anos, era capaz de ir para Angola?— Era. Tenho muitas saudades.
E quanto aos portugueses que ficarem por cá? O que têm de mudar?— Do meu ponto de vista, preci-sam de acabar totalmente com a desigualdade entre a faixa litoral e o interior do País, precisam de fazer uma Nação única. Não sou contra a regionalização, mas não quero que se parta o País em pe-quenos Estados, em autonomias. Era um erro completo. Mas se for uma autonomia funcionar para resolver os problemas específi-cos… Não quero que [o poder] seja descentralizado, mas que deixe de ser centralizados, num sítio ou noutro. Tem de ser des-centrado.
Portanto, há esperança?— Há esperança. n
"O defeito principal é que o português faz uma flor e depois desinteressa-se. Faz uma tese de doutoramento formidável e, depois, nunca mais estuda aquele assunto. Falta-nos a persistência"
Cláudia Azevedo