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  • 7/28/2019 StoAntonio

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    Manuel Clemente tinha sido ordenado padre h trs anos quando, em 1982, interveio no Colquio Antonianopromovido pela Cmara Municipal de Lisboa para evocar o 750. aniversrio da morte de Santo Antnio (1195-1231), doutor da Igreja e padroeiro secundrio de Portugal.

    da interveno do historiador, intitulada "Santo Antnio e a reforma do clero do seu tempo", que apresentamosalguns excertos. A conferncia incide na argumentao que o religioso franciscano moveu contra a dissoluo dos

    costumes no clero, que, segundo a sua tica, fomentava as heresias e causava o afastamento de uma condutasaudvel de vida por parte dos restantes fiis.

    Santo Antnio e a reforma do clero do seu tempo

    O seu [Santo Antnio] primeiro campo de apostolado foi a Romanha. Concretamente Rimini, onde ocatarismo j seduzira muitos. Mas, nos fins de 1224, j estava no sul de Frana, onde a oposio era amesma. A Cruzada contra os albigenses, na variedade dos seus sucessos, comeara. em 1209 eprolongar-se-a at 1229. Em bula de 14 de dezembro de 1223, o Papa Honrio III lamentava a Luis VIIIde Frana que na regio de Albi os hereges atacassem publicamente a Igreja, arruinassem a F e

    chegassem a escarnecer do Salvador. (...)

    E (...) a posio do nosso Santo? Oiamo-lo agora a ele, colhendo do que deixou.

    Em primeiro lugar, o mesmo tom proftico de denncia dos desvios do clero. Denncia que no branda nem lhe foi fcil. Ele prprio o reconheceria: Tambm hoje os fariseus (os prelados soberbos ecarnais) se esforam por apanhar o pregador de Jesus no que diz ao povo (. .. ). "Sai daqui, homem devises, foge para a terra de Jud e come l o teu po e l profetizars". Isto costumam dizer os fariseusdo nosso tempo aos pregadores, quando estes lhes repreendem a malcia.

    Mas, ainda que difcil, a denncia era imposta pela evangelizao: O povo no pode purificar-se destesvcios (avareza e luxria) (...) porque os v nos prelados. Com o mau exemplo da sua vida (o mau

    prelado), pe fora os sbditos antes de poderem voar, isto , antes de poderem desprezar o mundo eamar os bens celestes, expulsa-os do reino da f e do bom propsito. Ai! quantos pelo mau exemplo dosprelados se convertem aos hereges, abandonando o ninho da f!.

    Como ouvimos, o mesmo motivo: o mau exemplo dos prelados a causa da heresia; o exemplo quefalta. O exemplo, primeira obrigao do ministro, desde So Gregrio, desde sempre, porque oEvangelho h de ser vida para ser convite. Assim como se estava, eram entes cegos onde deviam sersentinelas: Pode porventura um cego guiar outro cego? (...) O cego o prelado ou o sacerdoteperverso, privado da luz da vida e . da. cincia (...). Mas porque se d isto? Porque as sentinelas da Igrejaso todas cegas, privadas da luz da vida e da cincia; so ces mudos que tm na boca a rzinha dodiabo e por isso no podem ladrar contra o lobo (...). O cego e o coxo no deviam entrar no templo. E aestes se confia hoje a guarda do templo. Com estes guardas cegos muitos se cegam e com eles descem

    juntos ao barranco da condenao.

    E nisto gritavam os dois vcios maiores. Os que j tinham alis motivado, duzentos anos antes, a reformagregoriana e apesar de tudo permaneciam: simonia e nicolasmo, Tentaes estruturais da sociedademedieval, a que a reforma mendicante procurara dar um remdio total:

    Mulher formosa e insensata so os clrigos: Mulher, porque so moles e corruptos, expondo-se, quaismeretrizes, nas causas e tribunais por dinheiro; formosa, pelo esplendor das vestes, multido desobrinhos e talvez de filhos, e multiplicao de prebendas; insensata, porque no entendem o que elesmesmos ou os outros dizem, clamam todo o dia na Igreja e ladram como ces. E no se entendem a simesmos, porque o corpo est no coro, mas o corao est no tribunal. Se ainda escutam a pregao,no a entendem; pregar a clrigos e falar a insensatos, que utilidade h numa e noutra coisa seno

    barulho e trabalho?. Desabafo desconsolado, que no lhe abrandava porm a veemncia.

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    Contra a simonia, levantava-se com uma fora onde ecoam os ditames gregorianos: Todo aquele, pois,que vender ou der o espiritual ou o anexo ao espiritual por orao ou dinheiro, por palavra ou dom, porpromessa ou oferta, por temor ou amor terreno e carnal, smonaco, e no pode salvar-se, a no serque renuncie e faa verdadeira penitncia (...). Ai, portanto, daqueles que de bom grado recebempresentes, que cegam os olhos dos sbios. Edificam Jerusalm no sangue, isto , com os seusconsanguneos, sobrinhos e sobrinhinhos, concedendo-lhes benefcios eclesisticos. (...)

    Entrando numa barca, que era a de Simo, rogou-lhe (o Senhor) que se afastasse um pouco da terra. OSenhor roga ao prelado da sua Igreja. que a afaste um pouco da terra, isto , que afaste do amor dosbens terrenos os que foram confiados ao seu governo. Mas se apegado terra, giboso e curvado para.a terra, como afastar os outros da terra? (...) Os prelados do nosso tempo (...) tm mulher e filhos (...).A subsistncia do sacerdote, com efeito, hoje uma mistura de coisas, a palha do negcio terreno e otrigo da oferta eclesistica. Comem tal mistura os jumentinhos, isto , os filhos dos sacerdotes. [Eainda:] (Nesses prelados) no h forma alguma de virtude, nenhuma espcie de bons costumes, masapenas o pus dos pecados, exceto os traos das unhas, com que roubam os pobres (...). Alguns preladosda Igreja no tm fora no esprito e no conseguem resistir s tentaes do diabo. Tm porm a foramxima da rapina e da luxria.

    difcil escolher entre os tantos e tantos passos em que o nosso Santo se insurge contra estes vciosmaiores do clero do seu tempo. (...) No havia maior vigor nem maior indignao nos protestos doshereges; mais relevar assim o equilbrio do nosso autor. Equilbrio e, ainda uma vez, a ironia: Foi dito aPedro trs vezes: Apascenta, e nem uma s lhe foi dito: Tosquia. (...)

    Ainda duas outras tentaes: a vontade de dominar e a sabedoria mundana. Quanto vontade dedominar, repete So Bernardo: No temo tanto o fogo como temo o prazer de dominar (...) [que] foraa sair da contemplao ntima de Deus para a solicitude exterior (...). Ai, quantos religiosos, mortos parao mundo, sepultados nos claustros, suscitou esta pitonisa, isto , o amor de dominar, do sono dacontemplao, do repouso e da paz, e os trouxe para o pblico. E quanto sabedoria do mundo, asubstituir a meditao da Escritura e da sua Teologia, a reprovao antoniana no menor; sabedoriaque o Santo via desviada na Filosofia e nas Leis, nos alvores da Escolstica e do empolamento cannico:

    A prata da eloquncia e o ouro' da sabedoria no livraro Tlio e Aristteles no dia do furor doSenhor. Ou ento: A senhora a teologia, a escrava a lei justiniana e a cincia lucrativa. Hoje aescrava est frente da senhora; Agar, frente de Sara; a lei justiniana, frente da lei divina. Osprelados do nosso tempo (...) nas crias episcopais fazem grande rudo com a lei de Justiniano e nocom a lei de Cristo.

    Mas, depois disto, o distanciamento.

    O distanciamento em relao heterodoxia que, da contestao dos vcios saltava, mais tarde ou maiscedo, para a negao do dogma. E a afirmao duma outra sensibilidade. Na orao, por exemplo:Roguemos humildemente e com lgrimas ao Senhor Jesus Cristo que expulse da sua Igreja os vendeirose compradores simonacos e ponha fora da casa da nossa conscincia, outrora sua, os sobreditos vcios,

    e faa-a casa de orao santa, para que possamos chegar casa da Jerusalm celeste.

    um acento novo e creio que nos pe na direo certa. Ainda mais, quando precisa: O pastor queabandona o rebanho a si confiado um dolo na Igreja (...), retm a imagem do Senhor, no a verdade.Inciso precioso, este do retm a imagem, sabendo ns o sentido essencial, constitutivo, que tem anoo de imagem para o nosso Santo. Censurvel e contraproducente que seja, o pastor aindaimagem de Cristo pastor: ortodoxssma afirmao sacramental e demarcao ntida doantisacerdotalismo hertico seu coevo.

    Fica assim aberto, ainda uma vez, o caminho da recuperao da verdade do ministrio, o que solicita aorao dos fiis: Devemos rezar para que os ancios da casa de Israel (...) no permaneam nos seuserros e no adorem pinturas de dolos, que so os seus vcios, e no suba o fumo do sacrilgio que seope a Deus.

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    E sobretudo, e contrariamente ao que vimos noutros, as denncias de Santo Antnio, clrigo tambm,no se resumem ao clero, no se contm em nenhum anticlericalismo. a Igreja toda e no S ospastores que tem de melhorar, como corpo, da cabea. aos ps: Desde a planta do p at ao alto dacabea no h nele (no corpo) nada so (...). Desde a planta do p ao alto da cabea (desde os ltimosaos primeiros; desde os leigos aos clrigos, desde os ativos aos contemplativos) no h nele (no corpo)nada so. Em ambiente maniqueu, no h em Santo Antnio nenhuma contaminao. Nem a Igreja

    j o cu dos eleitos: Assim como a Igreja est entre o cu e o inferno, assim indistintamente renebons e maus, Pedro e Judas, azeite e amurca.

    Tempos difceis, os de Santo Antnio. Vimos a abrir como da contestao do clero se seguiurapidamente at ao cisma e heresia. Tambm nisto nenhuma ambiguidade da parte do nosso autor:As obras da carne so manifestas: (...) discrdias, quando se formam partidos na Igreja; seitas, isto ,heresias.

    Obras da carne, porque os conhecia bem, aos falsos humildes: A humildade do hipcrita, sem raiz nocorao, pretende parecer grande nas obras. Porm, a verdadeira humildade, quanto maisprofundamente se mete, mais se inclina, e desta maneira se exalta (...). Tambm se chamammelanclicos os homens que fogem do trato humano, nos quais abunda o negro fel.

    E ainda mais claro noutro passo: H quatro espcies de orgulho, no dizer da Glossa: quando algumpossui um bem e julga ter ele vindo de si mesmo; ou se dado por Deus, considera-o dado em razo dosseus mritos; ou jacta-se de possuir o que no possui; ou despreza os outros e procura pr em evidnciao que possui. Daqui o provrbio: Incha falsamente dos seus mritos e quer passar frente de todos (...).Que so os outros homens, seno toda a gente, exceto ele? Como se dissesse: S eu sou justo; osdemais so pecadores.

    H entre Santo Antnio e a heresia coeva uma fronteira inultrapassvel, a sua descoberta maior: ahumildade. Se o orgulho tantas vezes o pai da heresia, Santo Antnio o mais ortodoxo dos Doutores.Mas h ainda no esplio antoniano um trecho notvel, que tem decerto por detrs o seu conhecimentodos meios herticos, haurido nas controvrsias em que andou. Creio-o um documento imprescindvel

    para a compreenso do tempo, uma anlise finssima dos motivos e das atuaes dos heterodoxos queconheceu. Vem no Sermo do oitavo Domingo depois do Pentecostes, curiosamente a seguir a maisuma denncia dos maus pastores:

    O hipcrita cava os sepulcros na noite da simulao. Penetra nas casas das mulheres, na frase doApstolo; por meio de palavras doces e bnos seduz os inocentes e desta forma se alimenta doscadveres dos pecadores. Imita as vozes, que so os louvores dos homens, persegue os estbulos dospastores, que so os lugares onde se prega, e de ouvido atento aprende a pregar, a fim de com a suapregao enganar os homens, que vm a si durante a noite. Simula tambm os vmitos humanos, queso as confisses dos pecadores. Acusa-se pecador, no se considerando tal; atrai os homens com falsossuspiros ou gemidos, para o crerem santo ao v-lo assim a gemer. Engana ainda algumas vezes osprprios justos, demasiado crdulos na sua fingida devoo (...).

    Aqueles eram os defeitos, esta a doutrina. (...)

    Vi sete candelabros de ouro. Nestes candelabros notam-se os sete predicados necessrios ao preladoda Igreja: pureza de vida, cincia da divina :Escritura, eloquncia de lngua, instncia de orao,misericrdia para com os pobres, disciplina para com os sbditos, cuidado solcito do povo que lhe foiconfiado. Ou, reforando as virtudes que mais urgiam e lhe eram mais caras: O rei montado najumenta o bispo que governa a plebe a si confiada (...). Este rei deve ser manso, justo, salvador epobre. maneira de Jesus portanto, pobre e montado numa jumenta, porque a divindade absteve-seaos olhos humanos do poder do prprio fulgor. Prateiem, portanto, as suas palavras os prelados com ahumildade da humanidade de Jesus Cristo para que mandem benigna e afavelmente, prvida emisericordiosamente, porque o Senhor no est no vento, no movimento, no fogo, mas no sibilar tnue

    da brisa. A humildade maneira de Cristo, princpio, meio e: fim da vivncia antoniana, tambm opadro da reforma.

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    Mas a humildade de Santo Antnio - ser preciso demonstr-lo ainda? - no tem nada a ver com atimidez. uma fora afvel: O pregador, portanto, deve sentar-se na cadeira da humildade (...). (H deser) prncipe pela constncia do esprito, para que, semelhana. do leo fortssimo, no tema ainvestida de alguma das bestas (...). Deve tocar duramente os coraes dos ouvintes; se, porem, ele empessoa tocado pela afronta, deve ser doce e afvel. (...)

    Cristo pobre, exemplo de prelados, prelados exemplares para a salvao do povo. Resumindo assim,resumimos com o Santo, quando repete So Gregrio: Livre de vcios tem de estar quem tem o cuidadoda correo das faltas alheias. Tinha sido a grande descoberta de So Domingos ao contactar com osctaros e foi depois a dos outros mendicantes e a raiz do seu sucesso: Despreza-se a pregao daquelede cuja vida se diz mal (...). Se o pregador fala somente sem que a sua vida tambm se faa ouvir, nosai agua da pedra.E, continuando a constatar: A linguagem viva quando falam as obras. Cessem, porfavor, as palavras; falem as obras. Estamos cheios de palavras, mas vazios de obras (...). Em vo se gabado conhecimento da lei quem destri com as obras a doutrina.

    Humildemente, a edificar na doutrina e na vida: Assim h de proceder o prelado. Mas, se bispo, h decumprir o timo. Principalmente em tempo de heresia: prelado, conhece diligentemente o aspeto doteu rebanho, isto , do teu sbdito, se tem na fronte o Tau da paixo do Senhor, recebido no Batismo,

    ou ento, se o raspou e escreveu por cima o sinal da besta. E considera os teus rebanhos, no sucedaque algum infecionado com a doena da heresia ou do cisma mate os outros. (...)

    Concluamos: Contra a corrente dos pseudo-espirituais e herticos (Ctaros, Fraticelli, Valdenses, etc.),Antnio demonstra que membros da Igreja no so s os santos (...) mas tambm ()S pecadores. esteo ponto de demarcao a reter. Entre as vozes de reforma do seu tempo, a de Santo Antnio ecoa a deSo Francisco: de dentro. de dentro da Igreja que fala, no s institucional, mas misticamente, apartir da compreenso ortodoxa do seu mistrio. Como bom mendicante, leva o mpeto reformador questo da pobreza dos ministros; mas esta pobreza entendida, bem a seu modo, em termos dehumildade: configurao dos ministros com Cristo Pastor, em cuja humildade transparece aautenticidade da misso. Por isso, um corao indiviso, concretamente, arredado da simonia e donicolasmo. Por isso, a coerncia entre a palavra e a vida. - E as fontes? As essenciais: A Escritura

    constantemente meditada e a conformao com o Prncipe dos Pastores.

    Tocando assim no mago da misso, a sua proposta simultaneamente prtica e fundamental: Asprdicas do Doutor Evanglico tm sobretudo em vista a reforma dos costumes. sobretudo esta a suafinalidade. Mas a prpria sntese teolgica a que Santo Antnio recorre ordena o conhecimento dasverdades reveladas vida e ao amor. De facto, pe a teologia nas mos dos bispos como instrumento deapostolado e indica como finalidade da ao dos telogos a promoo da vida crist, da. f, do amor deDeus e do prximo no corao dos fiis e a extirpao dos vcios contrrios. Proposta que mantm hojetoda a veemncia.

    Dr. Manuel Macrio ClementeFaculdade de Teologia de Lisboa - Universidade Catlica PortuguesaIn Colquio Antoniano, Lisboa, 1982

    SNPC 12.06.13