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Teledramaturgia missionária: como o gênero ‘telenovela’ se insere na categoria ‘educação’ Letícia Breves Xavier 1 RESUMO: este artigo busca o entendimento sobre como as telenovelas atuais pós 1990 assumem um caráter educativo em torno de temas considerados socialmente relevantes, com o objetivo de esclarecer a população e como o gênero faz uso de diversos elementos formais e discursivos. Embasado nas concepções de Aronchi de Souza acerca da classificação dos gêneros, o artigo se propõe a identificar as características de programas televisivos da categoria ‘educação’ que são incorporadas pelas telenovelas. Para isso, faz uso das reflexões de Muniz Sodré sobre a linguagem televisiva e como ela é apropriada para atender a este objetivo. 1. Categorias e Gêneros Segundo Aronchi, “costumamos ordenar tudo que existe em diferentes grupos ou categorias: animais, vegetais, veículos automotores, eletrodomésticos, etc”. A separação dos programas de televisão em categorias, portanto, atende à essa necessidade de classificar os gêneros correspondentes. Por isso, a categoria abrange vários gêneros e é capaz de classificar um número bastante diversificado de elementos que se constituem, na concepção de MartínBarbero, no elo que une o espaço da produção, os anseios dos produtores culturais e os desejos do público receptor. A divisão dos programas de televisão em categorias inicia o processo de identificação do produto, seguindo o conceito indutrial assumido pelo mercado de produção. (SOUZA, 2006) A televisão brasileira tem seus programas classificados em cinco categorias: entretenimento, informação, educação, publicidade e outros. Os gêneros que fazem parte da categoria entretenimento são: auditório, colunismo social, culinário, desenho animado, docugrama, esportivo, filme, game show (competição), humorístico, infantil, interativo, musical, novela, quiz show, reality show, revista, série, 1 Graduanda do curso de Estudos de mídia, da Universidade Federal Fluminense. 1

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Artigo acadêmico.

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Page 1: Teledramaturgia missionária: como o gênero ‘telenovela’ se insere na categoria ‘educação’

Teledramaturgia missionária: como o gênero ‘telenovela’ se insere na

categoria ‘educação’

Letícia Breves Xavier1

RESUMO: este artigo busca o entendimento sobre como as telenovelas atuais ­ pós 1990 ­ assumem

um caráter educativo em torno de temas considerados socialmente relevantes, com o objetivo de

esclarecer a população e como o gênero faz uso de diversos elementos formais e discursivos.

Embasado nas concepções de Aronchi de Souza acerca da classificação dos gêneros, o artigo se

propõe a identificar as características de programas televisivos da categoria ‘educação’ que são

incorporadas pelas telenovelas. Para isso, faz uso das reflexões de Muniz Sodré sobre a linguagem

televisiva e como ela é apropriada para atender a este objetivo.

1. Categorias e Gêneros

Segundo Aronchi, “costumamos ordenar tudo que existe em diferentes grupos ou categorias:

animais, vegetais, veículos automotores, eletrodomésticos, etc”. A separação dos programas de

televisão em categorias, portanto, atende à essa necessidade de classificar os gêneros correspondentes.

Por isso, a categoria abrange vários gêneros e é capaz de classificar um número bastante diversificado de elementos que se constituem, na concepção de Martín­Barbero, no elo que une o espaço da produção, os anseios dos produtores culturais e os desejos do público receptor. A divisão dos programas de televisão em categorias inicia o processo de identificação do produto, seguindo o conceito indutrial assumido pelo mercado de produção. (SOUZA, 2006)

A televisão brasileira tem seus programas classificados em cinco categorias: entretenimento,

informação, educação, publicidade e outros. Os gêneros que fazem parte da categoria entretenimento

são: auditório, colunismo social, culinário, desenho animado, docugrama, esportivo, filme, game show

(competição), humorístico, infantil, interativo, musical, novela, quiz show, reality show, revista, série,

1 Graduanda do curso de Estudos de mídia, da Universidade Federal Fluminense.

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série brasileira, sitcom, talk show, teledramaturgia, variedades, western. Os gêneros que fazem parte

da categoria educação são: educativo, instrutivo.

Porém, Aronchi também indica que o processo de classificação dos programas não impede a

inter­relação de categorias.

Nos últimos anos, em alguns países as emissoras perceberam que a televisão educativa e a de entretenimento não são necessariamente incompatíveis. Cada vez mais, os formatos de entretenimento (...) estão sendo utilizados para transmitir à audiência mensagens educativas. Essa inovadora estratégia de mídia é denominada entretenimento­educação e definida como inserção de conteúdo educativo em mensagens de entretenimento com o intuito de ampliar o conhecimento de um assunto ou tópico. (SOUZA, 2006)

Partindo da ideia de que todo programa de televisão, qualquer que seja sua categoria, deve

sempre entreter, mas pode também informar e educar, é possível levar esta discussão para o campo

das telenovelas. Nas novelas brasileiras transmitidas à partir do início da década de 1990, além do

objetivo principal de entreter, há um ensejo para tratar de temas relacionados à cidadania e esclarecer

o telespectador sobre problemas e demandas de determinados grupos sociais marginalizados, ou seja,

educar a população acerca de algum tema socialmente relevante específico.

Na programação televisiva atual é perceptível a existência de programas originalmente feitos

para entrar em outras categorias, mas que possuam algum tipo de tema relacionado à educação ou

esclarecimento do telespectador.

A telenovela, no Brasil, é um dos tipos de programa que mais consegue atingir os diferentes

públicos e, por isso, é o gênero que mais utiliza mensagens socioeducativas em seu conteúdo. Um

exemplo de sua valorização é a própria grade de programação. A novela é transmitida de 5 a 6 dias

por semana, em horário nobre (18h às 21h), sem falar nas reprises de novelas antigas na parte da tarde

­ especialmente na Rede Globo.

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Gráfico 1

Composição da programação diurna da TV aberta.

Disponível em: http://midiadados.digitalpages.com.br; Acesso em 20/02/2013

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Gráfico 2

Composição da programação noturna da TV aberta.

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Disponível em: http://midiadados.digitalpages.com.br; Acesso em 20/02/2013

Conforme pode ser visto nos gráficos 1 e 2, a telenovela tem uma participação grande na grade

de programação em diversas emissoras de TV aberta. Com destaque no SBT na grade diurna, de

forma que o gênero representa 21% da programação. No horário noturno, entre 18h e 00h, a Rede

Globo apresenta maior relevância: 48% dos programas exibidos são do gênero telenovela.

2. A televisão geralista

Há duas formas de televisão e a relação indivíduo­massa, a televisão geralista e a dos canais

fragmentados. Entre as principais características da primeira, estão: a produção massiva e lucrativa, o

fator de integração social e de identidade coletiva, o conteúdo “democrático”, a mesclagem de gêneros,

a aceitação da heterogeneidade e um princípio de comunicação que transcende as diferenças sociais.

Segundo Dominique Wolton, a televisão de massa garante um vasto mercado e, consequentemente,

grandes lucros. A televisão geralista é, portanto, aquela que permite maximizar os lucros, principalmente

pelo fato de possuir uma grade de programação bastante ampla e consequentemente atingir diversos

tipos de público.

A televisão geralista é, também, um fator de integração social e de identidade coletiva e isso se

dá pela existência de uma mistura eclética de populações, classes sociais, etnias, culturas diversificadas,

valores e religiões de todos os tipos. Este tipo de televisão também é justificada por ter sido concebida

para oferecer ao público uma diversidade de programas que permitisse ao telespectador distrair­se,

informar­se e educar­se. A televisão geralista é também a única que consegue misturar programas de

entretenimento com informação, dois grandes gêneros da origem do sucesso da televisão.

Essa ideia de programação da TV geralista é o que obriga a televisão de massa a produzir todo

tipo de programa. Ou seja, uma programação que seja aceita por todo tipo de público, mesmo que

com diferenças de horário, traduzindo uma aceitação ­ por parte dela ­ da heterogeneidade de gostos e

de aspirações. A programação da TV aberta brasileira é formatada, portanto, para captar aos poucos,

todos os membros da família. Inicia­se com apenas um e, ao final do dia, com a telenovela de horário

nobre, consegue reunir todos à sua frente.

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3. A linguagem televisiva

Antes de falar especificamente da linguagem das telenovelas, é necessário trazer à tona as

reflexões de Muniz Sodré acerca da linguagem televisiva. Para Muniz, a forma televisiva simula

operacionalmente o mundo, ou os modelos atuantes do mundo (SODRÉ, 2001). Ou seja, a realidade

contemporânea ao que é transmitido na TV e os detalhes cotidianos são retratados da forma mais

realística possível, para garantir proximidade e reconhecimento pelo público. Para garantir essa

proximidade, a linguagem da televisão tenta simular o contato íntimo, através da tela, com o

telespectador, e para isso, precisa se apoiar na família fazendo uso da função fática, que tem o

objetivo de sustentar a comunicação entre falante e ouvinte, fortalecendo uma relação de proximidade.

No caso da teledramaturgia, Aronchi nos auxilia nessa questão quando diz que o gênero telenovela

desafia o conceito de telespectador passivo ou de TV como fonte de alienação, visto que o brasileiro

percebe que sua vida está retratada nos folhetins diários. (SOUZA, 2006)

Isso ocorre porque o ambiente de recepção das mensagens passadas pela TV é o espaço

familiar. O telespectador é interpretado pela televisão como indivíduo membro da comunidade familiar

e isso explica, portanto, porque as telenovelas usam a casa como unidade de lugar de seus dramas.

Através da simulação do espaço íntimo e familiar, a linguagem da TV reforça o estatuto individualista da

pessoa humana. Com isso, os personagens se dirigem aos telespectadores, através desse contato

individualizado, supostamente em condições idênticas. Aqueles que estão do outro lado da tela são

vistos em termos de igualdade pelo receptor.

A linguagem televisiva é preparada com diversos objetivos, e um deles é o de atingir todos os

tipos de público ­ neste caso, falando da TV geralista, pois ela aposta nos grandes fatores de

identificação coletiva (WOLTON, 1996). Há um efeito provocado pela linguagem televisiva que Muniz

Sodré chama de desindividualização do sujeito e isto ocorre pelo uso de uma linguagem uniformizante.

É pelo uso desse tipo de linguagem que a televisão consegue atingir todos, ou pelo menos, quase todos

os tipos de público ­ em relação a gênero, idade, classe social, entre outros. A televisão faz uso de um

outro recurso, com o objetivo de simular um diálogo em contato familiar com o público, a retórica do

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direto, onde o que aparece no vídeo pretende ser apreendido como simultâneo ao tempo do

espectador. Isso pode ser notado, em telenovelas brasileiras, por exemplo, quando se faz menção a

alguma campanha real, em que os personagens da trama se dispõem a participar. Além disso, a TV

também tenta se aproximar do ritmo vivo e concreto do espectador. Isso significa que, para dar a ideia

de que o que está aparecendo no vídeo procura acompanhar o tempo que se levaria no real para

cumprir certas tarefas, como por exemplo: o tempo de fazer uma ligação na cena tenta ser o mesmo

tempo entendido pelo telespectador como “tempo real de se fazer uma ligação”.

4. A telenovela como gênero

Para criar a resposta desejada do telespectador, a produção das novelas faz uso de diversos

elementos: melodrama, tipos, atores, diálogos, locações, cenários, propriedades, música, figurino,

maquiagem, planos de câmeras, horário, edição e outros recursos discursivos ou formais que ajudam a

criar o ar ficcional do gênero. O melodrama apresenta uma estrutura simples: num plano “opõe

personagens representativos de valores opostos: vício e virtude” e num outro “alterna momentos de

extrema desolação e desespero com outros de serenidade ou de euforia, fazendo a mudança com

espantosa velocidade”. No final a virtude é recompensada e o mal, punido; a boa ordem confirma­se e

é assim que deve permanecer para sempre. (SILVA, 2005) Na telenovela brasileira, embora a

estrutura seja um pouco mais complexa que “bem versus mal” e as personagens tenham um

aprofundamento psicológico maior, os elementos básicos do melodrama se fazem presentes. A

oposição “Bem/Mal”, momentos de serenidade, alegria e felicidade alternando­se com outros de

aflição, tristeza e desolação ­ os sentimentos positivos logo ameaçados por interferência e atuação do

Mal (SILVA, 2005) são elementos clássicos do melodrama que ainda são encontrados na

teledramaturgia atual.

A telenovela é ainda o gênero campeão de audiência da televisão brasileira e reflete momentos

da história, dita modas, mexe com o comportamento da sociedade, influencia outras artes, presta

serviços sociais, e assim, se liga à vida do brasileiro de diversas faixas etárias e classes sociais. A

novela brasileira busca ­ e consegue captar ­ vários públicos com a mesma fórmula, já que seu formato

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é utilizado em praticamente todas as produções do gênero: capítulos diários sequenciados com duração

de 30 a 40 minutos, contendo as matrizes do melodrama clássico, já citadas acima.

5. A novela como “entretenimento­educação”

Há um caráter socioeducativo nas telenovelas atuais, e isto pode ser notado pelo uso de

diversos recursos discursivos e formais na construção da trama e dos personagens.

As redes brasileiras desenvolveram um tipo de texto na novela que estimula a interação familiar cotidiana até quando come, lê e conversa, possibilitando ao telespectador deixar de assistir alguns capítulos sem perder a sequência da trama. Os assuntos tratados são conflitos de interesses, luta de classes sociais, frequentemente no cenário urbano. (SOUZA, 2006)

A inserção da novela brasileira na categoria “educação” pode ser justificada à partir de uma

prática que iniciou­se à partir do início dos anos 1990, quando a novela passa a tratar a realidade social

contemporânea ao telespectador, e principalmente para esclarecê­lo sobre problemas e demandas de

determinados grupos sociais marginalizados pela sociedade brasileira, como homossexuais, deficientes,

portadores de doenças que sofrem algum tipo de preconceito, e outros assuntos considerados

relevantes para a sociedade. Até o fim da década de 1980, as telenovelas tratavam de temas mais

genéricos, como a corrupção, ou a impunidade, com narrativas mais gerais sobre o assunto. À partir

dos anos 1990, o gênero passou a tratar de temas mais específicos, relacionados à cidadania de grupos

sociais considerados fora do padrão da maioria, tentando à partir daí exercer um papel educativo sobre

o comportamento do público e mostrando modelos de cidadania em torno dos quais os personagens da

trama são construídos de forma idealizada.

Uma prática chamada Merchandising Social, é um dos recursos utilizados pelas telenovelas da

Rede Globo desde o início dos anos 1990, e iniciou­se a partir de uma consultoria realizada pela

empresa Comunicarte. Seu objetivo é a inserção sistematizada e com fins educativos de questões

sociais em telenovelas e minisséries (SCHIAVO, 2002), com o objetivo de esclarecer o público acerca

destes assuntos à partir dos personagens da trama, que se tornam formadores de opinião e agentes de

disseminação das inovações sociais e, muitas vezes, com os quais o público mantém uma identificação.

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Segundo pesquisa da Comunicarte, só em 2001 foram feitas 483 cenas socioeducativas contendo

merchandising social nas oito telenovelas transmitidas pela Rede Globo naquele ano.

Entramos aqui em uma questão mercadológica. A telenovela é o gênero mais rentável na

história da televisão mundial, é ela que sustenta a televisão brasileira. Esse sucesso perceptível do

gênero é composto pela atração do público pelo universo ficcional que molda as novelas e pela

rentabilidade econômica que ela proporciona. Segundo Aronchi, o gênero telenovela despontou como

uma das maiores linhas de entretenimento­educação nos países em desenvolvimento.

O merchandising social é tido como uma das mais poderosas ferramentas de pedagogia

social. Seus impactos são mensurados ao fim de cada produção teledramatúrgica, em termos de

eficácia, eficiência e efetividade das ações e cenas de merchandising social veiculadas.

Um aspecto importante deste recurso é o tratamento dado às questões sociais que são abordadas: não se limita somente a mostrar os problemas, há uma ênfase nas alternativas de solução, de forma que indicam­se estratégias de ação simples, eficazes e de fácil aplicação pelos telespectadores em seu cotidiano. (SCHIAVO, 2002)

Portanto, o objetivo maior do merchandising social é o de obter ações que enfatizem as

alternativas de solução, indicando estratégias de ação simples, eficazes e de fácil aplicação pelo

telespectador, possibilitando a ele, após refletir e criticar, tirar suas conclusões – orientadas pelas

mensagens educativas embutidas nas cenas – e adotar possíveis soluções.

6. Referências bibliográficas

SOUZA, José Carlos Aronchi de. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo:

Summus, 2004.

SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala – Função e linguagem da televisão no Brasil.

Petrópolis: Vozes, 2001.

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WOLTON, Dominique. Elogio do grande público ­ Uma teoria crítica da televisão. São

Paulo: Ática, 1996.

SCHIAVO, Márcio Ruiz. As telenovelas e a Construção da Cidadania. In: NP14 ­ Núcleo de

Pesquisa Ficção Seriada, XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, 2002, Salvador.

SILVA, Flávio Luiz Porto e. Melodrama, folhetim e telenovela ­ anotações para um estudo

comparativo.

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