agatha christie - punição para a inocência

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  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    PUNIO

    PARA AINOCNCIA

    O veredicto assassinato. Porm, enquanto cumpre sua

    pena de priso perptua por matricdio, Jacko Argyle morre

    na priso. Dois anos mais tarde, um estranho abala a paz

    da famlia Argyle. Poderia Arthur Calgary apresentar o

    elemento que faltava na defesa de Jacko?. Teria Jacko sido

    condenado por um crime que no cometeu? Mas se no foi

    Jacko quem cometeu o crime, ento quem foi?

    COLEO AGATHA CHRISTIE

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    AGATHA CHRISTIE

    PUNIOPARA A

    INOCNCIATraduo de

    BARBARA HELIODORA4 edio

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    Ttulo original em ingls:

    ORDEAL BY INNOCENCE

    Capa:Rolt Gunther Braun

    Diagramao:

    Celso Nascimento

    Reviso:

    Sylvio Clemente da Motta Agatha Christie Limited, 1958

    Direitos adquiridos para a Lngua Portuguesa, no Brasil, pelaEDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.

    Rua Maria Anglica, 168LagoaCEP: 22.461 Tel.: 286-7822

    Endereo Telegrfico: NEOFRONT

    Rio de JaneiroRJ

    Proibida a exportao para Portugal

    e pases africanos de lngua portuguesa.

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    ORELHA DO LIVROPUNIO PARA A INOCNCIA

    Calgary um homem de amplos conhecimentos, e uma

    companhia agradvel. Um dia est diante do rio e precisa atravess-

    lo. D com o barco, e com seu barqueiro. No chegaria, de outra

    maneira, at o Recanto do Sol. Tudo parece muito mitolgico, mas a

    vida est ali mesmo, repleta de sua realidade, e de sua violncia.

    Uma casa com aquele nome: o leitor pensa logo em praia, prazer,

    descompromisso. E encontra as sombras. As sombras

    irresistivelmente reunidas em torno da lareira, onde as crianas se

    aqueciam, e o amor, a proteo da Sra. Argyle era a chama de maior

    constncia. Que fim levou o menino Jacko? Ele vingou, cresceu,

    traiu, negociou. E foi visto, depois, na mesma noite em que sua me

    adotiva se cobriu de mistrio e escurido. Qual a culpa de Jacko,

    desajustado, tratante, criminosoentretanto, quem sabe, destrudo

    por uma s inocncia? Ante o escuro, de novo, da priso.

    Mas no foi s no Recanto do Sol que o Sr. Calgary se viucercado de sombras. Houve, antes, o dia do estrondo, choque,

    impacto que lhe apagou todas as luzes da memria, atropelo, trapo

    de Calgary atropelado. Sol ou vbora, bom ou ruim se lembrar mais

    tarde, rever a cena, a seqncia inteira, o libi confirmado? Uma luz

    incmoda, agora, este cidado. Gostariam de apag-lo/a: os outros,

    todoscomo aceitar aquele que no esquece? O leitor acabar des-

    cobrindo um assassino. No o de Jacko, porm. Pois este crime, nem

    ele prprio o leitor pode estar certo de no ter cometido. Caso

    se sinta culpado, o melhor ficar bem quieto no seu canto,

    procurando entender por que lhe acontece isso. Ter mesmo que se

    dar por muito feliz se tiver sido vtima, to-somente, de sua

    conscincia, no da vbora que se enrosca pelos cmodos da casa e

    desde o incio o olha no fundo dos olhos, sem a menor hesitao.

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    CC

    AA

    PP

    TT

    UU

    LL

    OO

    II

    J era crepsculo quando ele chegou ao cais. Poderia ter

    chegado muito antes, mas a verdade que havia protelado aquilo o

    quanto lhe fora possvel.

    Primeiro almoara com amigos em Redquay; a conversa leve e

    inconseqente, a troca de mexericos a respeito de amigos comuns,

    tudo aquilo no significara mais do que um pretexto para justificar o

    fato de estar interiormente recuando ante o que tinha de fazer. Seus

    amigos o haviam convidado a ficar para o ch e ele prontamente

    aceitara. Porm, por fim, havia chegado o momento em que sabia

    no poder continuar a adiar as coisas.

    O carro que alugara estava esperando. Despediu-se e partiupara cobrir as sete milhas de trfego pesado da estrada da costa e,

    depois, seguir para o interior ao longo da estradinha sombreada de

    rvores que conduzia ao pequeno cais de pedra no rio.

    Havia um enorme sino que seu motorista fez soar

    vigorosamente para chamar o barco que estava na outra margem.

    No vai querer que o espere, senhor?

    No disse Arthur Calgary. J pedi um carro que mevir buscar daqui a uma hora para levar-me at Drymouth.

    O homem recebeu a corrida e a gorjeta. E acrescentou,

    espiando para o outro lado do rio atravs das sombras:

    O barco j est vindo, senhor.

    Com um suave boa-noite ele manobrou o carro e afastou-se

    morro acima. Arthur Calgary ficou s, esperando no cais. S com

    seus pensamentos e apreenses a respeito do que estava para

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    enfrentar. Como era rude a natureza por ali, pensou. Dava para se

    pensar nas bordas de algum lago escocs, longe de tudo e de todos.

    No entanto, a poucas milhas de distncia estavam os hotis, as

    butiques, os bares e as multides de Redquay. Refletiu, no pelaprimeira vez, sobre os extraordinrios contrastes da paisagem

    inglesa.

    Ouviu o suave chapinhar dos remos do barco que se

    aproximava do pequeno cais. Arthur Calgary desceu a rampa

    ngreme e entrou no barco que o barqueiro firmava com um gancho.

    Era velho e deu a Calgary a estranha impresso de que ele e seu

    barco se pertenciam mutuamente, eram um s, indivisveis.Uma brisa fresca chegou do lado do mar quando comeavam a

    se afastar.

    A noite est friadisse o barqueiro.

    Calgary deu a resposta adequada. Chegou mesmo a concordar

    que fazia mais frio do que no dia anterior.

    Estava consciente, ou pelo menos julgava estar, de uma velada

    curiosidade nos olhos do barqueiro. Era de fora. Era forasteiro que

    aparecia depois da temporada propriamente dita. Alm do mais, o

    forasteiro estava fazendo a travessia numa hora meio estranha, pois

    j era tarde demais para tomar ch no bar junto ao cais. No levava

    bagagem, logo no podia estar chegando para demorar. (Por que,

    ficou imaginando Calgary, teria vindo to tarde? Seria realmente

    porque, no subconsciente, estava tentando protelar aquele

    momento? Deixar para o mais tarde possvel o que tinha de ser

    feito?) Cruzando o Rubico, o rio... o rio... sua mente voltou-se para

    um outro rio, o Tmisa.

    Ele olhara para o rio sem v-lo (teria sido mesmo apenas

    ontem?); depois se voltara para tornar a olhar para o homem que se

    sentava sua frente mesa. Aqueles olhos pensativos traziam em si

    alguma coisa que ele no havia chegado a ser capaz de compreender.Algo mantido em reserva, algo pensado porm no expressado...

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    Suponho, pensou ele, que aprendem a jamais revelar o que

    esto pensando.

    A coisa toda era realmente assustadora quando se pensava

    bem. Ele tinha de fazer o que devia ser feito, e depois... esquecer!Franziu a testa ao relembrar a conversa da vspera. Aquela voz

    agradvel, tranqila, neutra, dizendo:

    O senhor est inteiramente decidido a respeito do caminho

    que vai tomar, Dr. Calgary?

    Ele respondera, acalorado:

    Que mais posso fazer? Por certo h de compreender isso?

    Deve concordar! uma coisa que no posso recusar-me a fazer.Mas no conseguira compreender aquele olhar cinzento e

    reservado e ficara um tanto perplexo com a resposta:

    Todo assunto tem de ser encarado sob todos os pontos de

    vista, considerado sob todos os aspectos.

    Mas sem dvida sob o prisma da justia s pode haver um

    ponto de vista!

    Havia falado acaloradamente, pensando por um momento que

    estava sendo feita alguma sugesto ignbil de se abafar o assunto.

    De certo modo, sim. Porm h mais do que isso a

    considerar. Mais do que, digamos, justia?

    No concordo. H a famlia a considerar.

    E o outro disse, rapidamente: Claro. Ah, sim, claro. Era

    nelesque eu estava pensando.

    O que parecera a Calgary a maior tolice! Porque se algum

    estivesse pensando neles...

    Porm imediatamente o outro continuara, com sua voz

    agradvel e inalterada:

    Isso inteiramente com o senhor, Dr. Calgary. O senhor

    deve, naturalmente, fazer exatamente aquilo que sentir que deve

    fazer.O barco chegou ao outro lado. Ele havia atravessado o

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    Rubico.

    A voz do barqueiro, com seu suave sotaque do oeste da

    Inglaterra, disse:

    So quatropence, senhor; ou deseja ida e volta? No disse Calgary. No vou voltar. (Como a frase

    parecia fatdica!)

    Pagou, depois perguntou:

    Conhece uma casa chamada Recanto do Sol?

    Imediatamente a curiosidade deixou de ser velada. O interesse

    nos olhos do velho saltava de avidez.

    Mas claro. ali, para a direita, d para ver no meio dasrvores. O senhor sobe a colina pela estrada, sempre direita, depois

    pega o caminho do novo conjunto residencial. a ltima casa, bem

    no fim.

    Obrigado.

    O senhor disse Recanto do Sol, no disse? Onde a Sr

    Argyle...

    Isso mesmo cortou Calgary. No queria discutir o

    assunto.O Recanto do Sol.

    Um sorriso lento e um tanto peculiar contorceu os lbios do

    barqueiro. Repentinamente ficou parecido com um fauno velho e

    safado.

    Foi elaquem deu esse nome casa, durante a guerra. Era

    casa nova, claro, tinham acabado de construir, no tinha nome.

    Mas o terreno onde ela fica, aquele bosquezinho, chama-se mesmo

    Recanto da Vbora! Mas Recanto da Vbora no ia servir para ela, no

    para ser nome da casa dela. E ento chamou de Recanto do Sol. Mas

    nssempre chamamos de Recanto da Vbora.

    Calgary agradeceu bruscamente, disse boa-noite e comeou a

    subir a colina. Todos pareciam estar recolhidos s suas casas, porm

    teve a impresso de que olhos ocultos espiavam pelas janelas detodas as casas; todos olhando e sabendo para onde ele ia. Dizendo,

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    uns para os outros: Ele vai para a Recanto da Vbora...

    Recanto da Vbora. Como o nome devia ter parecido

    horrivelmente apropriado...

    Pois mais aguda que o dente da serpente...Ele cortou bruscamente seus pensamentos. Precisava con-

    trolar-se e decidir exatamente o que iria dizer...

    IIII

    Calgary chegou ao fim da encantadora estrada recentemente

    construda, com suas encantadoras casas novas de cada lado, cada

    uma cercada por terreninhos precisamente iguais; cctus,

    crisntemos, rosas, palmas, gernios revelavam o gosto individual do

    dono de cada jardim.

    No final da estrada havia um porto no qual se podia ler

    RECANTO DO SOL em letras gticas. Ele abriu o porto, entrou e

    subiu por um pequeno caminho. L estava a casa bem na frentedele, uma casa moderna, bem construda e sem personalidade, com

    mansardas e varanda. Poderia pertencer a qualquer subrbio

    residencial de boa categoria, ou a qualquer novo bairro residencial.

    No ficava altura, na opinio de Calgary, da vista que descortinava.

    Pois a vista era magnfica. O rio, naquele ponto, descrevia uma curva

    de quase 360 em torno de uma ponta. Do outro lado, descortinava-

    se colinas cobertas de rvores; um pouco mais abaixo o rio tornava a

    dar uma curva e penetrava num vale de prados e hortas.

    Por um momento Calgary olhou o rio, para cima e para baixo.

    Aqui deveria ter sido construdo um castelo, pensou ele, um castelo

    ridculo, impossvel, sado de um conto de fadas! Castelo de bolo de

    aniversrio de criana. Ao invs, ali estavam bom gosto, controle,

    moderao, muito dinheiro e nenhuma imaginao.

    Por isso, naturalmente, no se poderia culpar os Argyles, j

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    que eles haviam apenas comprado a casa, no a haviam construdo.

    Mesmo assim, eles ou um deles (a Sr Argyle?) a haviam escolhido...

    Ele disse de si para si: Voc no pode adiar mais nem um

    momento... e apertou a campainha ao lado da porta,E ali ficou ele, esperando. Aps um intervalo razovel, tornou a

    tocar. No ouviu qualquer rudo de passos no interior, porm, sem

    qualquer aviso, repentinamente a porta se abriu.

    Ele recuou um passo, assustado. Para a sua imaginao j

    superestimulada, parecia que a prpria Tragdia estava ali parada,

    cortando-lhe o caminho. Era um rosto jovem; na verdade era na

    pungncia de sua juventude que residia a prpria essncia de suatragdia. A Mscara Trgica, pensou ele, deveria sempre ser uma

    mscara jovem... desamparada, predestinada, com a desgraa se

    aproximando inexoravelmente... com o futuro...

    Controlando-se, ele raciocinou: Tipo irlands. O azul

    profundo dos olhos, a profunda sombra em torno dos mesmos, o

    farto cabelo negro, a melanclica beleza dos ossos do crnio e da

    face.

    A moa permaneceu ali, parada, alerta e hostil.

    Disse, por fim:

    Pois no. O que deseja?

    Ele respondeu convencionalmente.

    O Sr. Argyle est?

    Est. Mas no recebe ningum. Quero dizer, ningum que

    no conhea. E. ele no o conhece, conhece?

    No. Ele no me conhece, porm...

    Ento melhor o senhor escrever...

    Desculpe, mas eu precisava realmente v-lo. Estou falando

    com a... Sr.t Argyle?

    Ela confessou com relutncia.

    Sim, sou Hester Argyle. Mas meu pai no v ningum semhora marcada. melhor o senhor escrever.

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    Vim de muito longe.Ela no se deixou comover

    o que todos dizem. Mas eu pensei que finalmente esse tipo

    de coisa tivesse acabado.E continuou, acusadora.

    Suponho que seja jornalista?No, nada disso.

    Ela o olhou desconfiada, como se no acreditasse.

    Ento o que deseja?

    Por trs dela, para o fundo do hallde entrada, viu um outro

    rosto. Um rosto feio e inexpressivo. Para descrev-lo teria dito um

    rosto igual a uma panqueca, um rosto de mulher de meia idade, com

    o cabelo encaracolado de um amarelo acinzentado emplastrado noalto da cabea. Parecia sobrevoar, espreita, como um drago

    protetor.

    Trata-se de seu irmo, Sr.ta Argyle.

    Hester Argyle inspirou violentamente. Disse, sem acreditar.

    Michael?

    No; seu irmo Jack.

    Ela explodiu: Eu sabia! Sabiaque era a respeito de Jacko!

    Por que no nos deixam em paz? Est tudo acabado, liquidado. Por

    que continuar com tudo isso?

    Nunca se pode dizer que uma coisa esteja realmente

    acabada.

    Mas isso est acabado! Jacko est morto. Por que no o

    deixam em paz? Tudo isso acabou. Se o senhor no jornalista,

    suponho que seja mdico, ou psiclogo, ou coisa no gnero. Por

    favor, v embora. Meu pai no pode ser perturbado. Est ocupado.

    Ela comeou a fechar a porta. Rapidamente Calgary fez o que

    devia ter feito de sada, tirou a carta do bolso e ofereceu-a a ela.

    Tenho aqui uma carta... do Sr. Marshall.

    Ela hesitou. Seus dedos pegaram com relutncia na envelope.

    Disse, com incerteza:Do Sr. Marshall, de Londres?

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    Repentinamente a mulher de meia idade que estivera

    espreitando no fundo do halljuntou-se a ela. Espiou na direo de

    Calgary com desconfiana e a imagem de conventos distantes veio

    sua lembrana. Claro que aquele deveria ser o rosto de uma freira!Exigia o branco engomado da touca, chapu ou l o que o

    chamassem, para emoldurar severamente a face, bem como o hbito

    negro e o vu. No era o rosto de uma contemplativa, mas da irm

    leiga que espia com suspeita pela pequena abertura da porta pesada,

    antes de permitir, de m vontade, a entrada e conduzir o visitante ao

    parlatrio ou Reverenda Madre.

    O senhor vem da parte do Sr. Marshall?inquiriu ela.Parecia mais uma acusao.

    Hester olhava fixamente o envelope em sua mo.

    Repentinamente, sem uma s palavra, deu meia volta e correu pela

    escada acima.

    Calgary ficou parado na porta, enfrentando o olhar acusador e

    desconfiado do drago misto de irm-leiga.

    Ele procurou um pouco por alguma coisa a dizer, mas no

    conseguiu lembrar-se de nada. Assim sendo, manteve-se

    prudentemente calado.

    Dentro em breve a voz de Hester, fria e distante, desceu at

    eles.

    Papai disse que para ele subir.

    Um tanto a contragosto seu co de guarda afastou-se. Sua

    expresso de suspeita no se alterou. Ele passou por ela, pousou o

    chapu numa cadeira e subiu as escadas at onde Hester o

    aguardava.

    O interior da casa deu-lhe impresso vagamente anti-sptica.

    Poderia quase, pensou ele, tratar-se de uma casa de repouso

    dispendiosa.

    Hester guiou-o por um corredor, depois desceu trs degraus.Finalmente abriu uma porta e fez-lhe um gesto para que entrasse.

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    Ela entrou logo aps, e fechou a porta atrs de si.

    Estavam numa biblioteca e Calgary levantou a cabea com

    sensao de prazer. A atmosfera ali era completamente diferente da

    do resto da casa. Tratava-se de um cmodo no qual um homem viviae no qual ele tanto trabalhava quanto passava seu lazer. As paredes

    eram forradas de livros, as cadeiras amplas, um tanto surradas

    porm acolhedoras. Havia uma agradvel desordem de papis sobre

    a escrivaninha, de livros sobre vrias mesas. Vislumbrou uma moa

    deixando a sala por uma porta na outra extremidade, uma moa

    bastante atraente. Depois sua ateno foi tomada pelo homem que se

    levantou e veio saud-lo, com a carta aberta em suas mos.A primeira impresso que Calgary teve de Leo Argyle foi a de

    que estava to desgastado, to transparente, que praticamente no

    tinha presena material. O esprito de um homem! Quando falou,

    sua voz era agradvel, porm destituda de ressonncia.

    Dr. Calgary?disse.Sente-se, por favor.

    Calgary sentou-se e aceitou um cigarro. Seu anfitrio sentou-se

    em frente a ele. Tudo era feito sem pressa, como se em um mundo no

    qual o tempo tivesse muito pouca importncia. Havia o leve trao de

    um sorriso no rosto de Leo Argyle quando falou, batendo

    delicadamente na carta com um dedo exange ao faz-lo.

    O Sr. Marshall escreve que o senhor tem uma comunicao

    importante a nos fazer, muito embora no especifique sua natureza.

    O sorriso ficou um pouco mais marcado quando acrescentou:

    Todo advogado evita sempre se comprometer, no ?

    Ocorreu a Calgary, com um ligeiro choque de surpresa, que o

    homem que o confrontava era um homem feliz. No de uma

    felicidade alegre ou expansiva, como costuma ser normalmente a

    felicidade, mas feliz dentro de algum refgio sombrio porm

    satisfatrio e todo seu. Ali estava um homem ao qual o mundo

    exterior no conseguia impingir-se e que estava contente que assimfosse. No sabia por que havia de ficar surpreso com isso, mas ficou.

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    Calgary disse:

    muita bondade sua receber-me. As palavras no passavam

    de uma introduo mecnica. Julguei que seria melhor vir em

    pessoa do que escrever. Fez uma pausa, depois disse, em repentino eexcitado estouro de agitao. difcil, muito difcil...

    No h pressa.

    Leo Argyle continuava polido e distante.

    Inclinou-se para a frente; sua tmida maneira, estava

    obviamente tentando ajudar.

    J que traz esta carta de Marshall, suponho que sua visita

    tem alguma ligao como meu infeliz filho Jacko, quero dizer, Jack.Jacko era como ns o chamvamos.

    Todas as palavras e frases que Calgary preparara com tanto

    cuidado o haviam abandonado. Ficou ali, sentado, enfrentando a

    aterrorizante realidade do que tinha a dizer. Novamente gaguejou.

    to difcil...

    Houve um momento de silncio, depois Leo disse

    cautelosamente:

    Se que isso pode ajud-lo, ns temos plena conscincia de

    que Jacko... dificilmente poderia ser considerado como uma

    personalidade normal. Nada de que nos poder contar ser recebido

    com muita surpresa. Por mais terrvel que tenha sido a tragdia,

    sempre fiquei convencido de que Jack no era realmente responsvel

    por seus atos.

    Claro que no era. Era Hester; e Calgary teve um

    sobressalto ao som de sua voz. Por um instante ele a havia

    esquecido. Ela se havia sentado no brao de uma cadeira que ficava

    um pouco para trs de seu ombro. Quando ele voltou a cabea, ela

    se inclinou ansiosa para ele.

    Jacko sempre foi uma coisa horrvel disse ela em tom

    confidencial. Era a mesma coisa quando ele era pequeno, querodizer, quando perdia a cabea. Passava a mo na primeira coisa que

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    encontrava e... e partia para cima...

    Hester, Hester, minha querida. A voz de Argyle estava

    muito perturbada.

    Assustada, as mos da moa voaram para seus lbios.Enrubesceu e depois falou com a repentina falta de jeito dos muito

    jovens:

    Desculpedisse.Eu no queria, eu esqueci, eu, eu no

    devia ter dito uma coisa dessas, no agora que ele j, isto , agora

    que est tudo acabado e...

    Completamente acabadodisse Argyle.Tudo isso coisa

    do passado. Eu tento... todos ns tentamos... pensar que precisoconsiderar o rapaz como um invlido. Um dos desacertos da

    natureza. Creio que essa a melhor maneira de express-lo. Olhou

    para Calgary.No concorda?

    Nodisse Calgary.

    Houve um instante de silncio. A negativa incisiva deixou

    atnitos os dois ouvintes. Ela sara com fora quase que explosiva.

    Tentando mitigar seu efeito, ele acrescentou, canhestramente:

    Eu, eu, desculpem. Mas acontece que ainda no

    compreenderam.

    Oh! disse Argyle, parecendo avaliar a situao. Depois virou-

    se para a filha:

    Hester, penso que talvez seja melhor, voc nos deixar.

    Eu no vou sair! Tenho de ouvir, tenho de saber do que se

    trata.

    Pode ser desagradvel.

    Hester exclamou, impaciente:

    E o que importa que outra coisa horrvel Jacko possa ter

    feito? Acabou.

    Calgary falou rapidamente.

    Por favor, acredite-me, no se trata de qualquer coisa que oseu irmo tenha feito, muito pelo contrrio.

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    No vejo...

    A porta no fundo da sala se abriu e a moa que Calgary apenas

    vislumbrara antes entrou na biblioteca. Usava agora um mant e

    portava uma pasta.Dirigiu-se a Argyle.

    J vou indo. H mais alguma coisa?

    Houve uma ligeira hesitao por parte de Argyle (sempre

    hesitaria, pensou Calgary), depois ele pousou a mo no brao da

    moa e trouxe-a para a frente.

    Sente-se Gwendadisse ele.Este , hum, o Dr. Calgary.

    Esta a Sr.ta Vaughan, que , que ... que j minha secretria halguns anos. A explicao saiu aps uma pausa e nova hesitao.

    Acrescentou: O Dr. Calgary veio para nos dizer alguma coisa, ou

    para nos perguntar alguma coisa, a respeito de Jacko.

    Para dizer-lhes alguma coisa. interrompeu Calgary. E

    muito embora no o percebam, a cada momento esto tornando mais

    difcil para mim diz-lo.

    Todos olharam para ele um tanto surpresos, mas nos olhos de

    Gwenda Vaughan pde ver a chispa de algo que parecia

    compreenso. Era como se eles fossem, momentaneamente, aliados,

    e ela estivesse dizendo: , eu sei o quanto os Argyles podem ser

    difceis.

    Era uma jovem atraente, pensou ele, embora no assim to

    jovem, talvez uns trinta e sete ou trinta e oito anos. Corpo cheio,

    cabelos e olhos escuros, todo um ar de sade e vitalidade. Dava a

    impresso de ser ao mesmo tempo competente e inteligente.

    Argyle disse, com alguma coisa gelada em seus modos: No

    tenho a menor conscincia de estar tornando as coisas mais difceis

    para o senhor, Dr. Calgary. Por certo no foi essa a minha inteno.

    Se quiser dizer do que se trata...

    Sim, eu sei. Desculpem-me pelo que disse, porm apersistncia com a qual o senhor e sua filha esto continuamente

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    salientando que as coisas esto acabadas, liquidadas. Elas noesto

    terminadas. Quem foi que disse Nada fica bem terminado...

    Enquanto no termina certo concluiu para ele a Sr.ta

    Vaughan. Foi Kipling.Ela sacudiu a cabea para encoraj-lo eele sentiu-se agradecido.

    Mas irei logo ao assunto continuou Calgary. Quando

    tiverem ouvido o que tenho a dizer, compreendero minha...

    relutncia. Mais ainda, minha angstia. De incio devo dizer algumas

    coisas a meu prprio respeito. Sou geo-fsico e acabo de tomar parte

    numa expedio Antrtida. S voltei Inglaterra faz poucas

    semanas.A expedio Hayes Bentley?perguntou Gwenda.

    Ele se voltou para ela agradecido.

    Exato. A expedio Hayes Bentley. Estou dizendo tudo isso

    para explicar quem sou e tambm por que perdi contato durante

    aproximadamente dois anos com... os acontecimentos

    contemporneos.

    Ela continuou a ajud-lo.

    Est querendo falar de coisas assim como julgamentos e

    assassinatos?

    Sim, Sr.ta Vaughan, era exatamente a isso que me referia.

    Ele se voltou para Argyle.

    Por favor, desculpe-me se isto doloroso, porm preciso

    verificar com o senhor certas horas e datas. No dia 9 de novembro do

    ano atrasado, cerca das seis horas da tarde, seu filho Jack Argyle (a

    quem chamam Jacko), veio aqui e teve uma entrevista com sua me,

    a Sra Argyle.

    Com minha mulher, sim.

    Disse-lhe que estava em apuros e pediu dinheiro. Isso j

    acontecera anteriormente.

    Muitas vezesdisse Leo Argyle, com um suspiro.A Sr.a Argyle recusou. Ele se tornou ofensivo e ameaador.

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

    19/266

    Finalmente saiu, muito irritado e gritando, do lado de fora, que

    voltaria e que ela ia ver se tinha ou no tinha de entregar a gaita.

    Disse No vai querer que eu v para a priso, vai?, tendo ela

    respondido Estou comeando a crer que isso seria a melhor coisaque poderia acontecer a voc.

    Leo Argyle remexeu-se inconfortvel.

    Minha mulher e eu havamos conversado a respeito. Ns

    estvamos... estvamos profundamente insatisfeitos com o rapaz. J

    o salvramos no sei quantas vezes, tentando dar-lhe uma nova

    oportunidade. Havia-nos parecido que o choque de uma condenao

    priso... a disciplina... Sua voz apagou-se.Mas, faa o favor decontinuar.

    Calgary continuou:

    Mais tarde, nessa mesma noite, sua mulher foi morta.

    Atacada com um atiador de lareira e abatida. As impresses digitais

    de seu filho estavam no atiador e uma considervel soma em

    dinheiro havia desaparecido da gaveta na qual sua mulher o havia

    colocado mais cedo naquele mesmo dia. A polcia capturou seu filho

    em Drymouth. O dinheiro foi encontrado com ele, a maior parte em

    notas de cinco libras, sendo que em uma delas havia um endereo

    escrito que permitiu sua identificao, pelo Banco, como sendo uma

    das que haviam sido entregues Sra Argyle naquela manh. Ele foi

    acusado e julgado. O veredicto foi de assassinato premeditado.

    Pronto. A palavra fatal havia sido dita. Assassinato... No

    uma palavra que ressoe; uma palavra sufocada, uma palavra que

    absorvida pelas cortinas, os livros, os grossos tapetes... A palavra

    podia ser sufocada, mas no o ato...

    Fui informado pelo Sr. Marshall, o advogado de defesa, que

    seu filho proclamou sua inocncia, ao ser preso, de modo alegre,

    para no dizer desrespeitoso. Insistia que tinha um libi perfeito

    para a hora do crime, que havia sido previsto pela polcia entre assete e as sete e meia. Naquele momento, disse Jack Argyle, ele estava

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    indo de carona para Drymouth, tendo sido apanhado por um carro

    na estrada principal entre Redyn e Drymouth a cerca de uma milha

    daqui, um pouco antes das sete horas. Ele no sabia qual era a

    marca do carro (estava j bastante escuro naquele momento), mas setratava de um sed de quatro portas preto ou azul marinho, guiado

    por um homem de meia idade. Todos os esforos foram feitos para

    encontrar o carro e o homem que o guiava, porm no foi possvel

    obter-se qualquer confirmao daquela afirmativa, sendo que os

    prprios advogados ficaram convencidos de que se tratava de uma

    histria fabricada s pressas pelo rapaz... e nem sequer

    particularmente bem fabricada.No julgamento a linha principal de defesa foi o depoimento

    de psiclogos que tentaram provar que Jack Argyle sempre havia

    sido mentalmente instvel. O juiz teceu comentrios arrasadores

    sobre tais depoimentos e seu sumrio era radicalmente contra o

    prisioneiro. Jack Argyle foi condenado priso perptua. Ele morreu

    de pneumonia seis meses aps ter comeado a cumprir sua pena.

    Calgary parou. Trs pares de olhos estavam agarrados a ele.

    Havia interesse e ateno nos de Gwenda Vaughan, mas ainda havia

    suspeita nos de Hester. Os de Leo Argyle pareciam totalmente

    privados de expresso.

    Calgary disse: Podem confirmar se eu descrevi os fatos

    corretamente?

    Est perfeitamente corretodisse Leo,embora eu ainda

    no perceba por que ter sido necessrio rememorar todos esses

    fatos dolorosos que vimos todos tentando esquecer.

    Desculpem-me, Mas era necessrio. Os senhores, pelo que

    sei, no discordam do veredicto?

    Admito que os fatos foram os que apresentaram, ou seja,

    que se no se olhar para nada alm dos fatos, o que houve, em

    termos rudes, foi assassinato. Porm se se olha para algo mais doque os fatos, h muitos atenuantes a serem considerados. O rapaz

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    era mentalmente instvel, muito embora, infelizmente, no no

    sentido legal da palavra. A jurisprudncia McNaughten estreita e

    insatisfatria. Eu lhe garanto, Dr. Calgary, que a prpria Rachel,

    minha finada mulher, seria a primeira a perdoar e justificar o infelizrapaz por seu ato impensado. Ela era uma pensadora avanada e

    profundamente humana, tendo grande conhecimento de fatores

    psicolgicos. Elajamais o teria condenado.

    Ela sabia como Jacko podia ser terrvel disse Hester.

    Era assim sempre... ele simplesmente no conseguia fazer nada para

    alterar esse fato.

    Quer dizer que ningum aquidisse Calgary lentamentetinha qualquer dvida? Dvida, digo, a respeito de sua

    culpabilidade?

    Hester fixou os olhos nele.

    E como poderamos ter? claro que ele era culpado.

    No realmente culpadodiscordou Leo.No gosto dessa

    palavra.

    E a palavra no realmente verdadeira.Calgary respirou

    profundamente.Jack Argyle era inocente!

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    CC

    AA

    PP

    TT

    UU

    LL

    OO

    IIII

    Deveria ter sido uma proclamao sensacional. Ao invs, foi

    um fracasso. Calgary havia esperado perplexidade, alegria incrdula

    em luta com incompreenso, perguntas apaixonadas... No houve

    nada disso. Parecia existir apenas desconfiana e suspeita. Gwenda

    Vaughan franzia a testa. Hester o encarava com olhos esbugalhados.

    Bom, talvez fosse natural. Afinal de contas, uma afirmativa como

    aquela no poderia ser assimilada toda de uma s vez.

    Leo Argyle disse, hesitante:

    Quer dizer que o senhor concorda com a minha atitude, Dr.

    Calgary? No cr que ele tenha sido responsvel por seus atos?

    Quero dizer que no foi ele!No compreende, homem? Nofoi ele. No podiater sido ele. A no ser por uma srie extraordinria

    e muito infeliz de circunstncias, ele poderia ter provado que era

    inocente. Eupoderia ter provado que ele era inocente.

    O senhor?

    Eu era o homem do carro.

    Ele o disse com tal simplicidade que por um instante eles no

    compreenderam. E, antes que se pudessem recuperar, houve umainterrupo. A porta se abriu e a mulher com o rosto feio entrou. Ela

    falou com objetividade e preciso.

    Enquanto passava, ouvi suas palavras. Ele diz que Jacko

    no matou a Sra Argyle. Por que diz? Como est sabendo?

    Seu rosto, que antes fora militante e feroz, repentinamente

    enrugou-se e caiu.

    Vou ficar tambm disse implorando. No posso estar

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    fora sem saber.

    Claro que no, Kirsty. Voc da famlia. Leo Argyle

    apresentou-a. Miss Lindstrom, Dr. Calgary. O Dr. Calgary est

    dizendo uma coisa incrvel.Calgary ficou atnito com o nome escocs de Kirsty. O seu

    ingls era fluente mas havia nele algo de estrangeiro. Ela dirigiu-se a

    ele acusadora.

    O senhor no devia vir aqui dizer coisas assim para amolar a

    gente. J tiveram seus problemas. Agora s perturba dizendo isso. O

    que aconteceu foi vontade de Deus.

    Ele se sentiu repugnado pela fcil complacncia da atitudedela. Era possvel, pensou ele, que ela fosse do tipo mrbido que

    floresce com catstrofes. Bem, teria de ser privada de tal prazer.

    Ele falou em tom rpido e seco.

    s cinco para as sete naquela noite, na estrada principal de

    Redmyn para Drymouth, eu apanhei um rapaz que estava pedindo

    carona. Levei-o at Drymouth. Conversamos. Ele me pareceu ento

    um rapaz simptico e interessante.

    Jacko possua muito charme disse Gwenda. Todo

    mundo o achava encantador. Era a violncia de seu temperamento

    que o prejudicava. E era desonesto, naturalmente acrescentou

    pensativa. Mas as pessoas sempre custavam a descobrir esse

    aspecto.

    A Sr.t Lindstrom virou-se contra ela.

    No deve falar assim de quem est morto.

    Leo Argyle disse com certa aspereza:

    Faa o favor de continuar, Dr. Calgary. Por que no se

    apresentou, na poca?

    Isso mesmodisse Hester, que parecia no ter flego para

    falar.Por que preferiu ficar de fora?

    Houve apelos nos jornais, anncios. Como pde ter sido toegosta, to malvado.

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    Hester, Hester disse o pai, controlando-a. O Dr. Calgary

    ainda est contando sua histria.

    Calgary dirigiu-se diretamente moa.

    Sei muito bem como se sente. Sei o que eu mesmo sinto, oque sempre sentirei... Controlou-se e continuou.

    Permita-me continuar minha histria. Havia muito trfego

    nas estradas naquela noite. J passava bastante das sete e meia

    quando deixei o rapaz, cujo nome eu no sabia, no centro de

    Drymouth. Isso, pelo que compreendo, o inocenta completamente, j

    que a polcia afirmou definitivamente que o crime foi cometido entre

    as sete e as sete e meia.Seidisse Hester.Mas o senhor...

    Por favor tenha pacincia. Para poder faz-la compreender,

    devo voltar atrs um pouco. Eu estava passando dois ou trs dias no

    apartamento de um amigo em Drymouth. Esse amigo, que da

    Marinha, estava no mar. Havia-me emprestado tambm seu carro,

    que guardava num estacionamento particular. Naquele dia

    especfico, 9 de novembro, eu devia voltar a Londres. Tinha resolvido

    ir pelo trem noturno e passar a tarde visitando uma velha ama de

    quem toda a minha famlia gostava muito e que vivia numa casinha

    em Polgarth, cerca de quarenta milhas a oeste de Drymouth. Cumpri

    meu programa. Embora muito idosa e com tendncia para lapsos de

    memria, ela me reconheceu e ficou muito contente de me ver, muito

    excitada porque havia lido nos jornais a respeito da minha ida ao

    Plo, como dizia. Fiquei pouco tempo, para no cans-la e, ao sair,

    resolvi no voltar diretamente para Drymouth pela estrada da costa,

    como fizera na ida, mas, ao invs, seguir em direo ao norte at

    Redmyn para ver o velho Cnego Peasmarsh, que tem alguns livros

    rarssimos em sua biblioteca, inclusive um tratado antiqssimo de

    navegao do qual eu desejava copiar um trecho. O velho recusa-se a

    ter telefone, que ele encara como obra do diabo, junto com o rdio, ateleviso, os rgos eltricos e avies a jato, de modo que tive de

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    arriscar-me a encontr-lo em casa. No tive sorte. A casa estava toda

    trancada e era evidente que ele estava fora. Passei uns momentos na

    catedral, depois parti de volta para Drymouth pela estrada principal,

    cobrindo assim o terceiro lado do tringulo. Eu havia planejado tudocom suficiente margem de tempo a fim de voltar ao apartamento

    para apanhar a mala, deixar o carro no estacionamento e pegar o

    trem. No caminho, como j lhes disse, peguei um, carona

    desconhecido e, depois de deix-lo na cidade, continuei com meus

    planos normais. Quando cheguei na estao ainda tinha um pouco

    de tempo sobrando e resolvi atravessar a rua para comprar cigarros.

    Ao atravessar fui apanhado por um caminho que virou umaesquina a alta velocidade e me derrubou.

    Segundo o que disseram alguns transeuntes, eu me levantei,

    aparentemente sem ter sofrido nada e me comportando de forma

    perfeitamente normal. Disse que estava bem e, tendo de pegar meu

    trem, corri de volta estao. Quando o trem chegou a Paddington

    eu estava inconsciente e fui levado de ambulncia para um hospital,

    onde foi constatado que sofria de uma sria concusso, com efeito

    retardado, o que no absolutamente raro.

    Ao recobrar os sentidos, alguns dias mais tarde, no me

    lembrava nada a respeito do acidente ou da minha vinda para

    Londres. A ltima coisa de que conseguia lembrar-me era o fato de

    ter sado para visitar minha velha ama em Polgarth. Depois disso,

    branco total. Senti-me melhor ao garantirem-me que isso acontece

    com bastante freqncia. Nem eu mesmo e nem mais ningum tinha

    a menor idia de que eu havia passado de carro pela estrada de

    Redmyn a Drymouth naquela noite.

    Havia muito pouco tempo at que eu tivesse de deixar a

    Inglaterra. Fui mantido no hospital em repouso absoluto, sem acesso

    a jornais. Sa do hospital direto para o aeroporto, de onde voei para a

    Austrlia, e l me reuni aos outros membros da expedio. Houvealgumas dvidas a respeito de eu estar ou no em condies de ir,

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    mas resolvi ignor-las.

    Estava por demais envolvido por meus preparativos e

    preocupaes para me interessar com reportagens sobre

    assassinatos e, de qualquer forma, o interesse havia diminudomuito depois de efetuada a priso. Quando o caso chegou aos

    tribunais e tudo foi publicado em detalhe, eu estava em alto mar, a

    caminho da Antrtida.

    Fez uma pausa. Os outros escutavam-no com a maior ateno.

    Foi h cerca de um ms, logo depois de minha volta

    Inglaterra, que descobri tudo. Estava precisando de papis velhos

    para embrulhar umas amostras. Minha senhoria me trouxe umapilha de jornais que tinha guardado. Abrindo um deles sobre a mesa

    vi nele a fotografia de um jovem cujo rosto me pareceu familiar.

    Tentei lembrar-me onde o havia encontrado e quem seria. No

    conseguia e, no entanto, tinha a lembrana de ter conversado com

    ele, conversado a respeito de enguias. Ele havia ficado interessado,

    fascinado mesmo, com a epopia da vida da enguia. Mas quando?

    Onde? Li um pargrafo no jornal que dizia que o rapaz era Jack

    Argyle, acusado de assassinato, e li tambm que ele havia dito

    polcia que tinha ganho uma carona de um homem num carro de

    quatro portas preto.

    E nesse momento, repentinamente, aquele pedacinho

    perdido da minha vida reapareceu. Eu tinha apanhado aquele rapaz

    e o levado at Drymouth, onde me separara dele, para voltar ao

    apartamento, e logo depois lembrei-me de atravessar a rua para

    comprar cigarros. Tive uma rpida viso do caminho antes de ser

    atropelado e depois... nada, a no ser quando acordei no hospital.

    Continuava a no me lembrar de ter ido at estao e tomado o

    trem para Londres. Li e reli o pargrafo. O julgamento havia

    terminado havia mais de um ano, o caso estava quase esquecido.

    Foi um rapazola que liquidou a me, foi como minha senhoriadescreveu o caso, vagamente. No sei o que aconteceu. Acho que foi

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    enforcado. Fui procurar os arquivos das datas indicadas, depois

    procurei a firma Marshall & Marshall, que havia feito a defesa.

    Descobri que era tarde demais para meu depoimento poder livrar o

    rapaz, que havia morrido de pneumonia na priso. Muito emborano fosse mais possvel fazer-lhe justia, poderamos fazer justia

    sua memria. Fui com o Sr. Marshall polcia. O caso vai ser

    apresentado Promotoria. Marshall tem muito poucas dvidas de

    que de l o levaro ao Secretrio do Interior.

    O senhor, naturalmente, receber dele um relatrio

    completo, que s ainda no foi remetido porque eu estava ansioso

    por ser o primeiro a comunicar-lhe a verdade dos fatos. Senti que erauma situao difcil que me cabia enfrentar pessoalmente. O senhor

    h de compreender, e disso eu tenho a certeza, que sempre

    continuarei a sentir uma imensa carga de culpa. Se tivesse sido um

    pouco mais cuidadoso ao atravessar a rua... Ele se interrompeu.

    Compreendo que seus sentimentos a meu respeito jamais podero

    ser amistosos. Muito embora moralmente eu no seja culpado, todos

    aqui, inevitavelmente, terode me culpar.

    Gwenda Vaughan disse rapidamente, com a voz quente e

    bondosa:

    claro que no o culpamos. Foi s... uma dessas coisas

    trgicas, incrveis, mas que acontecem.

    Eles acreditaram no senhor?inquiriu Hester.

    Ele olhou para ela surpreendido.

    A polcia... acreditou no senhor? Por que razo o senhor no

    poderia estar inventando tudo isso?

    Ele sorriu um pouco, inconscientemente.

    Eu sou uma testemunha de boa reputao e merecedora de

    confiana respondeu delicadamente. No tenho qualquer

    interesse no caso e minha histria foi examinada em todos os seus

    detalhes; h os testemunhos mdicos e inmeros detalhes foramconfirmados por investigaes em Drymouth. No tenha dvida de

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    que o Sr. Marshall foi muito cuidadoso, como costumam ser todos os

    advogados. No quis trazer-lhes esta esperana enquanto no tive

    bastante certeza de obter sucesso.

    Leo Argyle remexeu-se na cadeira e falou pela primeira vez.E o que quer dizer exatamente com sucesso?

    Peo desculpas disse rapidamente Calgary. No a

    palavra adequada. Seu filho foi acusado de um crime que no

    cometeu, foi julgado e condenado, morrendo na priso. A justia,

    para ele, chegou tarde demais. Porm a justia que ainda poder ser

    feita... quase que certamente o ser e providncias sero tomadas

    para que seja feita. O Secretrio do Interior provavelmenteaconselhar a Rainha a conceder um perdo integral.

    Hester riu.

    Um perdo integral por alguma coisa que ele no fez?

    Eu sei. A terminologia sempre parece absurda. Porm me foi

    dado a entender que o hbito manda que uma indagao a respeito

    seja feita nos Comuns e que a resposta deixe perfeitamente claro que

    Jack Argyle no cometeu o crime pelo qual foi condenado, sendo

    tudo amplamente divulgado pela imprensa.

    Ele parou. Ningum falou. Sups que o choque houvesse sido

    grande demais para eles. Mas, ao menos, fora um choque alegre.

    Levantou-se.

    Receiodisse ele hesitante,que no haja mais nada que

    eu possa dizer... Repetir o quanto o sinto, como me sinto infeliz com

    tudo isso, implorar seu perdo, tudo isso todos j devem saber mais

    que bem. A tragdia que acabou com a vida dele sombreou a minha.

    Mas ao menos falou quase que implorando por certo h de

    significar alguma coisa saber que ele no cometeu aquela ao

    terrvel, que o nome dele, o seu nome, ficar imaculado aos olhos do

    mundo...?

    Se esperava alguma resposta, no a recebeu.Leo Argyle estava mais desarmado que sentado em sua cadeira.

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    Os olhos de Gwenda estavam no rosto de Leo. Hester olhava

    fixamente para a frente, com seus imensos olhos trgicos. A Sr.t

    Lindstrom resmungou algo inaudvel e sacudiu a cabea.

    Calgary ficou sem saber o que fazer, junto porta, olhandopara os outros.

    Foi Gwenda Vaughan quem assumiu o controle da situao.

    Foi at ele, colocou a mo sobre seu brao e disse em voz baixa:

    melhor o senhor ir agora, Dr. Calgary. O choque foi muito

    grande. Precisam de tempo para assimil-lo.

    Ele concordou com um aceno de cabea e saiu. No patamar a

    Sr.ta Lindstrom reuniu-se a eles.Eu o acompanhareidisse ela.

    Ele ainda percebeu, ao voltar-se para trs antes que a porta se

    fechasse, que Gwenda Vaughan havia cado de joelhos junto

    cadeira de Argyle. Ficou um pouco surpreendido.

    Virada para ele, no patamar, a Sr.ta Lindstrom parecia um

    soldado dos Regimentos de Guarda em posio de sentido e falou

    com amargura.

    No pode ele voltar vida. Por que trazer tudo de volta ao

    pensamento dos outros? At ento, todos estavam resignados. Agora

    vo sofrer. sempre melhor deixar as coisas quietas.

    Ele revelava seu total desprazer.

    Sua memria precisa ser limpadisse Arthur Calgary.

    Bons sentimentos! Tudo muito bem. Mas o senhor no

    pensa realmente no que isso significa. Os homens, eles nunca

    pensam. Bateu irritada com o p no cho.Eu os amo a todos. Vim

    para aqui, ajudar a Sra Argyle, em 1940, quando ela abriu uma

    creche de guerra para crianas de casas bombardeadas. Quase

    dezoito anos. E agora, mesmo ela morta, continuo aqui, para tomar

    conta deles, para manter a casa limpa e confortvel, ter certeza que a

    comida deles boa. Amo a todos eles, sim, amo, sim... e quanto aJacko... ele no prestava! Ah, sim, amava ele tambm. Mas nunca

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    prestou!

    Afastou-se repentinamente. Parecia ter esquecido que deveria

    acompanh-lo. Calgary desceu lentamente a escada. Enquanto se via

    atrapalhado com a porta da frente, que tinha uma fechadura que noconseguia compreender, ouviu passos leves na escada. Hester voava

    por ela abaixo.

    Ela destrancou a fechadura e abriu a porta. Ficaram-se

    olhando os dois. Ele compreendia cada vez menos por que ela o

    encarava com aquele olhar trgico e condenatrio. Ento ela disse,

    mal sussurrando as palavras:

    Por que voc veio? Mas por que voc haveria de vir?Ele a olhou, desamparado.

    No compreendo. No deseja que limpem o nome do seu

    irmo? No quer que lhe seja feita justia?

    Ora, a justia!Parecia estar atirando as palavras nele.

    Eu no compreendo...repetiu ele.

    Tanta preocupao com a tal da justia! Que diferena faz

    isso para Jacko agora? Ele est morto. No Jacko que importa.

    Somos ns!

    Do que que est falando?

    No o culpado que importa. So os inocentes.

    Ela agarrou o brao dele, fincando os dedos.

    Somos nsque importamos. Ser que ainda no percebeu o

    que fez com todos ns?

    Ele ficou olhando para ela.

    Da escurido da noite apareceu a figura de um homem.

    Dr. Calgary?disse ele.Seu txi est aqui, senhor. Para

    lev-lo a Drymouth.

    O qu? Ah! Obrigado.

    Calgary tornou a voltar-se para Hester, porm ela havia

    entrado.A porta da frente bateu.

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    CC AA PP TTUU LLOO II II II

    Hester subiu vagarosamente a escada, empurrando para trs o

    cabelo escuro que lhe caa na testa. Kirsten Lindstrom esperava-a no

    alto.

    Ele j foi?J; j foi.

    Voc recebeu um choque, Hester. Kirsten Lindstrom pousou

    uma mo delicada no ombro da moa. Venha comigo. Tome um

    pouco de brandy.Tudo isso foi demais.

    No creio que queira brandy, Kirsty.

    Talvez no queira, mas faz bem.

    Sem resistir, a moa deixou-se ser guiada pelo corredor at

    pequenina sala de estar da prpria Kirsty. Pegou o clice que lhe era

    oferecido e bebeu aos poucos. Kirsten Lindstrom disse, exasperada:

    Tudo muito rpido. Devia ter prevenido. Por que o Sr.

    Marshall no escreveu primeiro?

    Suponho que o Dr. Calgary no deixou. Ele queria vir aqui e

    nos comunicar pessoalmente.

    Comunicar o qu, pessoalmente? O que que ele acha que

    as novidades vo-nos fazer?

    Suponhodisse Hester, numa voz estranha, sem timbre

    que pensou que ficaramos satisfeitos.

    Satisfeitos ou no, tinha de haver choque. No devia ter feito

    assim.

    Mas de certo modo ele foi corajoso disse Hester. A corsubiu-lhe s faces.Quero dizer, no pode ter sido uma coisa fcil

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    de fazer. Vir e dizer a uma famlia que um membro dela foi

    condenado por assassinato e morreu na priso sendo na verdade

    inocente. sim, acho que ele teve muita coragem, mas mesmo assim

    preferia que no tivesse vindoacrescentou.Isso o que todos ns preferimos disse a Sr.t Lindstrom

    rispidamente.

    Hester olhou para ela, seu interesse fazendo-a repentinamente

    sair um pouco de suas preocupaes.

    Quer dizer que voc tambm sente isso, Kirsty? Eu pensei

    que talvez fosse s eu...

    No sou nenhuma tonta disse cortantemente a Sr.taLindstrom. Sou capaz de pensar em algumas possibilidades que

    parece que no ocorreram a esse seu Dr. Calgary.

    Preciso ir ver papaidisse Hester, levantando-se.

    Kirsten Lindstrom concordou.

    Vai. Agora ele j teve tempo de pensar no que melhor fazer.

    Quando Hester entrou na biblioteca Gwenda Vaughan estava

    ocupada ao telefone. Seu pai chamou-a e Hester foi sentar-se no

    brao da cadeira dele.

    Estamos tentando falar com Mary e com Micky disse ele.

    Eles precisam ser informados disto imediatamente.

    Al disse Gwenda Vaughan. a Sr Durrant? Mary?

    Aqui Gwenda Vaughan. Seu pai quer falar com voc.

    Leo foi at o telefone e tomou-o.

    Mary? Como vai? E Philip?... timo. Aconteceu uma coisa

    realmente extraordinria... Achei que vocs precisavam ser

    informados imediatamente. Um certo Dr. Calgary veio ver-nos. Trazia

    uma carta de Andrew Marshall. sobre Jacko. Parece, realmente

    extraordinrio, parece que a histria que Jacko contou nojulgamento de ter apanhado uma carona at Drymouth

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    perfeitamente verdadeira. Esse tal Dr. Calgary o homem que deu a

    carona... Ele parou, para ouvir o que a filha tinha a dizer na outra

    extremidade do fio.Eu sei, Mary; no vou dar todos os detalhes a

    respeito das razes pelas quais ele no se apresentou na poca. Foiacidentado, teve concusso. Parece que est tudo perfeitamente bem

    comprovado. Telefonei para dizer que acho que deveramos todos ter

    uma reunio aqui o mais breve possvel. Talvez ns consegussemos

    que o Marshall tambm viesse para discutir o assunto conosco. Creio

    que devemos procurar a melhor orientao legal. Ser que voc e

    Philip?... Eu sei, eu sei... Mas eu realmente creio, minha querida,

    que isto muito importante... Est bem... Telefone mais tarde, sepreferir. Vou tentar falar com Micky. Desligou.

    Gwenda Vaughan foi para o telefone.

    Devo tentar a ligao para Micky agora?

    Se for demorar, ser que eu poderia telefonar antes,

    Gwenda? Quero falar com Donalddisse Hester.

    claro disse Leo. Voc vai sair com ele hoje noite,

    no vai?

    Iadisse Hester.

    O pai dirigiu-lhe um olhar incisivo.

    Voc ficou muito perturbada com tudo isso, querida?

    No sei disse Hester. Eu no sei exatamente o que

    que estou sentindo.

    Gwenda cedeu seu lugar junto ao telefone e ela discou um

    nmero.

    Ser que eu poderia falar com o Dr. Craig, por favor? .

    Quem fala Hester Argyle.

    Aps alguns instantes de espera ela disse:

    voc, Donald?... Estou telefonando para dizer que no vou

    poder ir conferncia com voc hoje noite... No, no estou doente,

    no, que, s que, bem, que ns... ns recebemos umas notciasmuito estranhas.

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    Novamente o Dr. Craig falou.

    Hester voltou a cabea na direo do pai. Cobriu o bocal com a

    mo e perguntou:

    No segredo, ?Nodisse Leo lentamente. No, no exatamente um

    segredo, mas... bem, melhor pedir a Donald para no comentar,

    por enquanto. Voc sabe que toda novidade piora quando contada.

    , eu sei. Novamente falou no telefone. De certo modo,

    pode-se dizer que so notcias boas, Donald, mas... um pouco

    perturbadoras. Eu prefiro no falar nada pelo telefone... No, no

    venha aqui... Por favor, no venha. Hoje, no. Amanh, a qualquerhora. sobre Jacko. , meu irmo. s que ns acabamos de

    descobrir que afinal no foi ele quem matou mame... Mas, por favor,

    no diga nada, Donald; no comente com ningum. Amanh eu conto

    tudo... No, Donald, no... Hoje eu no posso ver ningum, nem voc.

    Por favor. E no diga nada. Ela desligou o telefone e fez um gesto

    mostrando que Gwenda podia falar agora.

    Gwenda pediu um nmero em Drymouth. Leo disse com

    delicadeza:

    Por que voc no vai conferncia com Donald, Hester? Ia

    ajudar voc a no ficar remoendo tudo isso.

    No quero, papai. No posso.

    Leo disse:

    Voc falou, voc deu a ele a impresso de que no eram boas

    notcias. Mas voc sabe que isso no verdade, Hester. Ns ficamos

    surpreendidos. Mas ficamos todos contentes com o fato, muito

    contentes... O que mais poderamos estar?

    isso que vamos dizer a todos, no ?disse Hester.

    Leo advertiu-a:

    Minha filha, minha querida...

    Mas no verdade, ?perguntou Hester.No so boasnotcias. apenas uma coisa tremendamente perturbadora.

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    Mick est ao telefonedisse Gwenda.

    Novamente Leo tomou-lhe o telefone da mo. Falou ao filho de

    modo muito semelhante ao que falara filha. Porm a notcia foi

    recebida de modo diverso do que o havia sido por Mary Durrant. Nohouve protesto, surpresa ou descrena. Ao invs, apenas uma pronta

    aceitao.

    Que diabo! disse a voz de Mick. Depois desse tempo

    todo? A testemunha desaparecida! Puxa, o Jacko estava mesmo de

    azar naquela noite, hem?

    Leo tornou a falar e Mick escutou.

    Simdisse ele,concordo plenamente. melhor ns nosreunirmos o mais depressa possvel e pegar o velho Marshall para

    nos aconselhar tambm. Repentinamente ele deu um riso rpido, o

    riso que Leo lembrava to bem no menininho que brincava no

    jardim, debaixo da janela. Como esto as apostas? perguntou

    Qual foi de ns que matou?

    Leo deixou cair o fone e se afastou abruptamente do aparelho.

    O que foi que ele disse?perguntou Gwenda.

    Leo disse-lhe.

    Parece-me um tipo tolo de brincadeira para se fazer numa

    hora dessascomentou Gwenda.

    Leo lanou-lhe um olhar rpido. possveldisse ele, com

    suavidade,que no fosse bem uma piada.

    IIII

    Mary Durrant atravessou a sala e apanhou algumas ptalas

    que haviam cado de um vaso de crisntemos. Deixou-as cair

    cuidadosamente na cesta de papis. Era uma jovem de vinte e sete

    anos, alta e de aparncia serena, cujo rosto sem sombra de marcas

    ou rugas sugeria mais idade do que ela realmente tinha,

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    possivelmente em funo de uma harmoniosa maturidade que

    parecia fazer parte de sua personalidade. Era bonita, mas totalmente

    destituda de encanto. Feies perfeitamente regulares, boa pele,

    olhos de um azul vivo e cabelos claros penteados para trs,arrumados num grande coque na nuca. Esse penteado estava muito

    em moda, mas essa no era a razo pela qual ela o usava. Era uma

    mulher que sempre mantinha seu prprio estilo. Sua aparncia era

    como a de sua casa, arrumada e bem cuidada. Qualquer tipo de

    poeira ou desarrumao a perturbava.

    O homem na cadeira de rodas que a observava enquanto

    apanhava as ptalas e as colocava na cesta sorriu um sorrisoligeiramente tortuoso.

    Sempre a mesma criatura arrumada disse ele. Um

    lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Ele sorriu com uma

    conotao ligeiramente maliciosa, porm Mary Durrant permaneceu

    imperturbvel.

    Gosto das coisas arrumadas concordou. Sabe, Phil,

    voc mesmo no iria gostar se a casa fosse uma baguna.

    Seu marido retrucou com ligeira sugesto de amargura:

    Bom, pelo menos eu no tenho qualquer oportunidade de

    bagunar nada.

    Pouco tempo depois de seu casamento Philip Durrant havia

    sido vitimado por uma poliomielite paralisante. Para Mary, que o

    adorava, ele se havia transformado em filho, alm de marido. Ele por

    vezes sentia-se ligeiramente constrangido pela possessividade do

    amor da mulher. Ela, no entanto, no tinha suficiente imaginao

    para perceber que o prazer que sentia na dependncia dele por vezes

    o irritava.

    Ele continuou, rapidamente, como se temesse qualquer palavra

    de comiserao ou piedade por parte dela.

    Devo dizer que as notcias que seu pai deu so indescritveis!Depois de todo esse tempo! Como que voc consegue ficar calma

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    assim?

    Suponho que ainda nem compreendi bem... to fantstico.

    A princpio eu no conseguia acreditar no que papai estava dizendo.

    Se fosse a Hester no telefone eu apostava que tinha sido tudoinveno dela. Voc sabe como ela .

    O rosto de Philip Durrant perdeu um pouco de sua amargura

    quando disse:

    uma criatura assustadoramente passional, que parte para

    a vida em busca de problemas e sem dvida os encontrar.

    Mary ficou indiferente anlise. O carter de outras pessoas

    no a interessava. Ela disse, meio desconfiada: Acho que verdade, no ? No acha que esse tal homem ia simplesmente

    imaginar tudo isso?

    O cientista distrado? Seria agradvel pensar que sim

    disse Philip,porm parece que Andrew Marshall levou o assunto a

    srio. Garanto-lhe que Marshall, Marshall & Marshall tm suas

    cabeas legais muito no lugar.

    O que ser que isso vai realmente significar, Phil?

    perguntou Mary Durrant, franzindo a testa.,

    Philip respondeu: Vai significar que Jacko ser

    completamente excludo de qualquer culpa, isto , desde que as

    autoridades se dem por satisfeitas. E pelo que compreendi, no h

    qualquer impedimento ou outra coisa no gnero.

    Ai, ai disse Mary com um ligeiro suspiro suponho que

    tudo seja muito bom.

    Philip riu novamente, com o mesmo riso contorcido e amargo.

    Polly!disse ele,voc ainda acaba me matando.

    S seu marido jamais chamava Mary Durrant de Polly. O nome

    era completamente inadequado sua aparncia imponente. Ela

    olhou para Philip ligeiramente surpreendida.

    No sei por que o que eu disse haveria de lhe parecer todivertido.

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    Porque voc falou com tanta magnanimidade! respondeu

    Philip. Parecia a Lady Fulana de Tal elogiando os trabalhos do

    Bazar do Orfanato da Aldeia.

    Mary retrucou, perplexa: Mas muito bom! Voc no vaiquerer dizer-me que achava timo ter um assassino na famlia.

    No se pode dizer realmente nafamlia.

    Bem, praticamente a mesma coisa. Quero dizer, foi muito

    desagradvel, deixava todos ns embaraados. E todo o mundo

    sempre olhando e querendo saber mais. Como eu odiei tudo aquilo.

    Mas se saa muito bem disse Philip.Congelava todo o

    mundo com o gelo azul dos seus olhos. Era o bastante para todos secalarem e se sentirem envergonhados. maravilhoso esse seu jeito

    de jamais mostrar qualquer emoo.

    Eu realmente detestava aquilo tudo. Era muito desagradvel

    respondeu Mary Durrant, mas pelo menos estava tudo

    aquietado, acabado. E agora... agora vai ver que vo remexer tudo de

    novo. Que coisa cansativa.

    disse Philip Durrant, pensativo. Ele mexeu um pouco

    os ombros, com uma ligeira expresso de dor no rosto. Sua mulher

    aproximou-se rapidamente.

    Est com cibras? Espere um instante. Deixe eu mudar o

    travesseiro um pouco. Pronto. Est melhor?

    Voc devia ter sido enfermeiradisse Philip.

    No tenho a menor vontade de cuidar de uma poro de

    gente. S de voc.

    Tudo foi dito com grande simplicidade, porm por trs

    daquelas palavras havia uma real profundidade de sentimentos.

    O telefone tocou e Mary foi atend-lo.

    Al... ... ela... Ah, voc?...

    Disse, parte, para Philip: Micky.

    J... j soubemos. Papai telefonou... Bem, claro... ... Sei...Philip diz que se os advogados aceitaram porque deve estar tudo

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    certo... Ora, Micky, no sei por que voc haveria de ficar to aflito...

    No acho que eu seja assim to tapada... Ora, Micky, eu acho que

    voc... Franziu a testa, irritada. Desligou. Ela recolocou o

    fone no lugar. Sabe, Philip, eu realmente no compreendo oMicky.

    O que foi que ele disse, exatamente?

    Bem, ele parecia fora de si. Disse que eu era tapada, que

    no estava compreendendo as... repercusses. Vai ser o diabo! Foi

    isso que ele disse. Mas por qu? Eu no compreendo.

    Quer dizer que ele est com a corda toda, no ?

    Mas por qu?Bem, ele tem razo. Haver repercusses.

    Mary encarou-o um tanto perplexa.

    Voc quer dizer que vai haver uma nova onda de interesse

    no caso? claro que eu fico muito contente que Jacko seja inocente,

    mas vai ser bastante desagradvel se uma poro de gente comear a

    falar sobre o assunto de novo.

    Mas no se trata do que os vizinhos possam dizer. muito

    mais do que isso.

    Ela olhou para ele de forma inquisidora.

    A polcia tambm vai interessar-se.

    Apolcia?Mary falou com voz rspida.O que que eles

    tm com isso?

    Minha queridadisse Philip.Pense.

    Mary caminhou lentamente para ir sentar-se ao lado dele.

    No percebeu que esto novamente com um crime por

    resolver nas mos?disse Philip.

    Mas seria incrvel que eles fossem incomodar-se com isso,

    depois de tanto tempo.

    Isso s o que voc quer que eles achemcomentou Philip,

    mas como raciocnio, est muito mal fundamentado. Mas com certeza disse Mary, depois de serem to

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    estpidos, depois de cometerem um erro assim to clamoroso com

    Jacko, eles no vo querer ficar falando nisso?

    possvel que no queiram, mas provvel que tenham de

    faz-lo! Dever dever. Ora, Philip, tenho certeza de que voc est enganado. Vai

    haver um pouco de falatrio, mas daqui a pouco acaba.

    Depois do que nossas vidas continuaro a ser felizes para

    todo o sempredisse Philip com sua voz mordaz.

    E por que no?

    Ela sacudiu a cabea. No assim to simples... Seu pai

    tem razo. Temos todos de nos reunir e conversar. E conseguirMarshall, como ele sugeriu.

    Voc quer dizer... Ir ao Recanto do Sol?

    .

    Mas ns no podemos.

    Por qu?

    No possvel. Voc um invlido e...

    Eu no sou invlidodisse Philip irritado. Estou forte e

    bem de sade. Acontece apenas que perdi o uso das pernas. Poderia

    ir a Timbuctu desde que tivesse o transporte adequado.

    Mas eu estou certa de que ir ao Recanto do Sol faria mal a

    voc. Ver toda essa coisa sendo remexida de novo...

    No minha mente que est incapacitada.

    No vejo como que poderamos deixar a casa. Tem havido

    tanto roubo por a ultimamente.

    Arranje algum para vir dormir aqui.

    Isso fcil de dizer, como se fosse a coisa mais simples do

    mundo.

    Aquela velha, como o nome dela, pode vir aqui todos os

    dias. Pare de apresentar empecilhos domsticos, Polly. Na verdade

    voc quem no quer ir.E no quero, mesmo.

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    No vamos demorar muito l disse Philip, para

    reconfort-la.Porm creio que temos de ir. Este um momento no

    qual a famlia tem de apresentar ao mundo uma fachada de unidade.

    E temos de descobrir exatamente qual nossa situao.

    IIIIII

    No hotel em Drymouth, Calgary jantou cedo e foi para seu

    quarto. Estava profundamente abalado pelo que se passara no

    Recanto do Sol. Tinha esperado que sua misso fosse dolorosa e

    tinha usado toda a sua fora de vontade para lev-la avante. Porm

    tudo havia sido doloroso e perturbador de forma totalmente diversa

    da que havia esperado. Atirou-se na cama e ficou remoendo tudo o

    que acontecera.

    A imagem que lhe ficara mais claramente fora a do rosto de

    Hester no momento em que a deixou. Com que desprezo rejeitara seu

    grito em defesa da justia! O que dissera ela? O que importa no oculpado, so os inocentes. E depois: Ser que ainda no

    percebeu o que fez com. todos ns? Mas o que havia feito ele? No

    conseguia compreender.

    E os outros. A mulher a quem chamavam Kirsty. (Por que

    Kirsty? Esse um nome escocs. Ela no era escocesa, devia ser

    dinamarquesa ou norueguesa.) Ela havia falado com tal severidade,

    como se o acusasse!

    Houvera qualquer coisa de estranho, igualmente, em Leo

    Argyle. Ficara retrado, alerta. Nem sequer a mnima sugesto de um

    Graas a Deus meu filho era inocente!, que obviamente seria a

    reao natural.

    E aquela moa, a que era a secretria de Leo. Havia ajudado,

    sido bondosa. Porm tambm ela havia reagido de modo estranho.

    Lembrou-se do modo pelo qual ela se ajoelhara junto cadeira de

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    Argyle. Como estivesse confortando-o, consolando-o. Mas

    consolando-o de qu? Do fato de seu filho no ser um assassino? E

    sem dvida, mas sem dvida alguma, havia ali sentimentos mais

    fortes do que os de uma secretria; mesmo uma secretria de hmuitos anos... Que histria era aquela?O que ser que eles...

    O telefone da mesa de cabeceira tocou. Ele atendeu.

    Al?

    Dr. Calgary? H algum aqui procurando pelo senhor.

    Por mim?

    Ficou surpreendido. Na medida em que lhe era dado saber,

    ningum estava informado de que pretendia passar a noite emDrymouth.

    Quem ?

    Houve uma pausa. Depois o porteiro disse:

    o Sr. Argyle.

    Diga-lhe... Arthur Calgary interrompeu-se nessa altura,

    quando estava a ponto de dizer que iria descer. Se, por alguma

    razo, Leo Argyle o havia seguido at Drymouth e conseguido

    descobrir onde ele estava hospedado, era de supor que o assunto

    poderia ser constrangedor se discutido diante de toda a gente que

    ocupava a sala do hotel. Ao invs, disse:

    Quer fazer o favor de pedir a ele que suba?

    Ele se levantou e ficou andando de um lado para outro at

    ouvir baterem porta.

    Atravessou o quarto e abriu-a:

    Faa o favor de entrar, Sr. Argyle; eu...

    Parou, atnito. No era Leo Argyle. Era um rapaz de vinte e

    poucos anos, cujo rosto belo e moreno era marcado pela amargura

    de sua expresso. Era um rosto sofrido, revoltado, infeliz.

    No estava esperando por mim disse o rapaz. Estava

    esperando meu pai. Eu sou Michael Argyle.Entre.Calgary fechou a porta. Como descobriu que eu

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    estava aqui?perguntou, ao oferecer um cigarro ao rapaz.

    Michael Argyle aceitou e depois deu um risinho breve e

    desagradvel.

    Essa foi fcil! Resolvi telefonar a todos os hotis principais,contando com a possibilidade de voc ter resolvido passar a noite por

    aqui. Acertei no segundo.

    E por que desejava me ver?

    Michael Argyle disse lentamente:

    Queria ver que tipo de sujeito voc era... Correu os olhos,

    como que querendo avali-lo, dos ps cabea de Calgary, notando

    os ombros um tanto curvados, o cabelo comeando a ficar grisalho, orosto fino e sensvel. Quer dizer que voc foi um dos tipos que

    foram ao Plo na Hayes Bentley. Pois no parece ser muito rijo.

    Arthur Calgary deu um ligeiro sorriso.

    As aparncias s vezes enganam respondeu.Agentei

    tudo muito bem. No necessariamente fora muscular que se

    precisa. H outras qualificaes importantes: resistncia, pacincia,

    conhecimento tcnico.

    Que idade voc tem? Quarenta e cinco?

    Trinta e oito.

    Parece mais.

    , acho que pareo. Por um instante uma sensao de

    tristeza aguda o dominou, ao observar aquele rapaz viril que estava

    sua frente.

    Perguntou, abruptamente:

    Por que voc queria me ver?

    O outro franziu a testa.

    normal, no ? Depois de ouvir as novidades que voc nos

    trouxe. As novidades a respeito do meu querido irmo.

    Calgary no respondeu.

    Michael Argyle continuou:Voc veio um pouco tarde para ele, no veio?

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    Vimdisse Calgary em voz baixa.Para ele j um pouco

    tarde.

    Por que foi que voc ficou na moita? Que histria de

    concusso essa?Com toda a pacincia Calgary narrou-lhe tudo. Por estranho

    que parea, sentiu-se reconfortado com o tom rude e agressivo do

    rapaz. At que afinal aparecia algum que reagia violentamente por

    causa do irmo.

    Quer dizer que a questo toda dar um libi ao Jacko, no

    ? E como que voc sabe que as horas so as que voc diz que

    eram? Tenho certeza absoluta a respeito dos horrios disse

    Calgary com firmeza.

    Mas pode ter-se enganado. Cientista s vezes d para ser

    distrado a respeito de coisinhas como tempo e lugar.

    Calgary pareceu divertir-se.

    Voc est pensando na imagem do professor distrado de

    fico, com as meias desparelhadas, sem noo muito clara do dia

    ou do lugar, no ? Pois, meu rapaz, acontece que o trabalho tcnico

    exige a maior preciso; quantidades, tempo e clculos da maior

    exatido. Garanto-lhe que no h qualquer possibilidade de eu me

    ter enganado. Peguei seu irmo logo antes das sete e deixei-o em

    Drymouth s sete e trinta e cinco.

    Seu relgio poderia estar errado. Ou voc poderia estar se

    guiando pelo relgio do carro.

    Meu relgio e o do carro estavam exatamente sincronizados.

    Jacko podia ter dado um jeito de fazer voc se atrapalhar.

    Ele inventava as coisas mais incrveis.

    No houve truques. Por que que voc haveria de estar to

    ansioso para provar que eu estou enganado?Um tanto acalorado,

    Calgary continuou: Eu esperava ter dificuldade em convencer asautoridades de que haviam condenado um homem injustamente.

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    No esperava que fosse to difcil convencer sua prpria famlia!

    Quer dizer que nos achou todos difceis de convencer?

    A reao pareceu-me um pouco... digamos, inesperada.

    Micky olhou-o atentamente.No queriam acreditar em voc?

    Bem... Parecia quase isso.

    No parecia. Era. O que muito natural, se se pensar bem.

    Mas como? Natural por qu? Sua me foi assassinada. Seu

    irmo foi acusado e condenado pelo crime. Agora fica esclarecido que

    era inocente. Devia estar contente, grato. Seu prprio irmo.

    Ele no era meu irmo. Nem ela era minha me disseMicky.

    O qu?

    Ningum lhe contou? Somos todos adotados. Todos ns.

    Mary, minha irm mais velha, em Nova York. Todo o resto, durante

    a guerra. Minha me, como voc diz, no podia ter filhos. Ento

    arranjou toda uma famlia por adoo. Mary, eu, Tina, Hester, Jacko.

    Com todas as vantagens de casa luxuosa, passadio do melhor e

    grandes quantidades de amor materno! Meu palpite que, no fim,

    ela j tinha esquecido que ns no ramos realmente seus filhos.

    Mas ela estava de azar no dia em que escolheu Jacko para ser um de

    seus filhinhos queridos.

    Eu no tinha a menor idia.

    De modo que no adianta ficar falando de minha prpria

    me ou meu prprio irmo comigo! Jacko no prestava para nada!

    Mas no era um assassinodisse Calgary.

    Ele falou de modo enftico e Micky, olhando para ele, acenou

    com a cabea.

    Muito bem. o que voc diz, o que insiste em dizer. Jacko

    no a matou. Pois muito bem, ento quem a matou?Nessa voc no

    pensou, no ? Pois trate de pensar agora. Pense um pouco... e vejao que est fazendo a todos ns...!

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    CC AA PP TTUU LLOO II VV

    muita bondade sua receber-me novamente, Sr. Marshall

    disse Calgary, em tom de desculpa.

    Nem por issorespondeu o advogado.

    Como o senhor sabe, estive no Recanto do Sol e visitei afamlia de Jack Argyle.

    Exato.

    Creio que a esta altura j est informado a respeito da

    visita?

    Sim senhor, Dr. Calgary. Estou informado.

    O que o senhor pode considerar difcil de compreender a

    razo pela qual eu haveria de tornar a procur-lo... preciso que

    compreenda que as coisas no correram exatamente como eu julgava

    que correriam.

    Noretrucou o advogado, possvel que no. Sua voz,

    como sempre, era seca e destituda de emoo; porm alguma coisa

    nela encorajou Arthur Calgary a continuar.

    Quero que compreenda que eu pensava continuou

    Calgary que com isso tudo ficasse terminado. Estava preparado

    para uma certa quota de... como direi... ressentimento natural por

    parte deles. Muito embora uma concusso possa ser classificada,

    suponho, como um Ato de Deus, mesmo do ponto de vista deles, tal

    sentimento seria perfeitamente justificado. Porm, ao mesmo tempo,

    eu esperava que esse sentimento fosse contrabalanado pelo regozijo

    que teriam pelo fato de o nome de Jack Argyle ser redimido. Pormas coisas no se deram como eu havia esperado. Longe disso.

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    Compreendo.

    Ser possvel, Sr. Marshall, que o senhor tivesse antevisto

    algo do que realmente ocorreu? Seu comportamento, lembro-me

    bem, deixou-me um tanto perplexo quando estive aqui da outra vez.O senhor estava realmente prevendo o tipo de reao que eu iria

    provocar?

    O senhor ainda no me disse, Dr. Calgary, qual a reao que

    encontrou.Arthur Calgary puxou sua cadeira para a frente.Eu

    pensei que estaria concludoalguma coisa, dando, poderamos dizer,

    um final diferente a um captulo j escrito. Porm fui levado a sentir,

    fui levado a ver, que ao invs de concluir alguma coisa, eu estavainiciandoalgo mais. Algo completamente novo. O senhor considera

    que essa uma descrio vlida da atual situao?

    O Sr. Marshall anuiu lentamente com a cabea.Simdisse

    ele,podemos apresentar o caso nesses termos. Realmente pensei,

    confesso, que o senhor no tinha compreendido inteiramente as

    implicaes do seu gesto. E nem poderia t-lo feito, j que no

    conhecia nada dos fatos ou das circunstncias, tendo lido apenas os

    autos do processo.

    Claro que no. o que percebo agora. E como o percebo!

    Sua voz elevou-se quando continuou, excitado: No foi alvio que

    sentiram, no foi gratido. Foi apreenso. Terror do que poderia vir a

    acontecer agora. No isso?

    Marshall respondeu, com cuidado:Eu me sinto levado a crer

    que provavelmente o senhor est absolutamente certo. Lembre-se de

    que no falo com conhecimento de causa.

    E, nesse caso continuou Calgary, no posso mais

    sentir que possa voltar ao meu trabalho tendo feito a nica

    reparao que estava em mim fazer. Continuo envolvido no assunto.

    Sou responsvel por ter trazido um fator novo para a vida de vrias

    pessoas. No possoapenas lavar as mos da coisa toda.O advogado limpou a garganta. Esse, possivelmente, ser

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    um ponto de vista um tanto imaginoso, Dr. Calgary.

    No creio que seja, no na verdade. Cada um de ns tem de

    assumir a responsabilidade por seus atos, e no s por seus atos

    como tambm pela conseqnciade seus atos.H cerca de dois anos eu dei uma carona, na estrada, a um

    rapaz. Ao faz-lo eu desencadeei uma srie de acontecimentos. No

    creio que possa dissociar-me deles.

    O advogado continuou a sacudir a cabea.

    Muito bem, entodisse Arthur Calgary, com impacincia.

    Diga que imaginao minha, se quiser. Porm meus

    sentimentos, minha conscincia, continuam envolvidos. Meu nicodesejo era o de reparar alguma coisa que no esteve em minhas

    mos evitar. Porm ainda no consegui fazer essa reparao. De

    algum modo estranho eu consegui agravar a situao de pessoas que

    j haviam sofrido. Porm ainda no consegui compreender

    exatamente por qu.

    No disse Marshall lentamente, no, o senhor no

    perceberia por qu. Nos ltimos dezoito meses o senhor esteve

    afastado da civilizao. No lia os jornais, os relatos nele publicados

    a respeito dessa famlia. possvel que mesmo que estivesse aqui

    no os lesse, porm teria sido impossvel no ouvir falar neles. Os

    fatos so muito simples, Dr. Calgary. E no so confidenciais. Foram

    tornados pblicos na poca. Podem ser resumidos da seguinte forma:

    Se Jack no cometeu (como, segundo o seu depoimento, no poderia

    ter cometido) o crime, ento quem o cometeu? Isto nos leva de volta

    s circunstncias em que estvamos quando o crime foi cometido. O

    que se deu entre sete e sete e meia da noite de um dia de novembro

    em uma casa na qual a falecida estava cercada por membros de sua

    famlia e seus empregados domsticos. A casa estava toda fechada e

    trancada, e se algum de fora entrasse, teria de ter sido

    necessariamente admitido pela prpria Sr Argyle ou ento teria deestar de posse de uma chave. A situao assemelha-se, sob alguns

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    aspectos, com o caso Borden, na Amrica, no qual o Sr. Borden e

    sua esposa foram abatidos a golpes de machado numa manh de

    domingo. Ningum na casa ouviu coisa alguma, ningum foi visto se

    aproximando da casa. O senhor pode ento perceber, Dr. Calgary,por que razo os membros da famlia ficaram, como o senhor diz,

    mais perturbados do que aliviados com as novidades que o senhor

    tinha a contar, no pode?

    Calgary respondeu, pesadamente: Quer dizer que eles

    prefeririam que Jack Argyle fosse o culpado?

    Sem dvidadisse Marshall.Mas sem a menor sombra

    de dvida. Se me permite apresentar a questo de modo um poucocnico, Jack Argyle era a soluo ideal para o desagradvel fato de

    acontecer um assassinato na famlia. Ele havia sido uma criana

    problema, foi um adolescente delinqente e um homem de

    temperamento violento. Dentro do crculo familiar era possvel

    encontrar-se atenuantes para ele, como de fato eles foram

    encontrados. Era-lhes possvel chor-lo, sentir por ele, dizer a si

    mesmos, uns aos outros e ao mundo em geral que no havia

    realmente sido culpa sua, que os psiclogos explicavam toda a

    situao muito bem! Sim, era realmente muito conveniente.

    E agora...Calgary parou, de repente.

    E agora disse o Sr. Marshall, tudo diferente,

    naturalmente. Muito diferente. Uma diferena quase que alarmante,

    poderamos dizer.

    Calgary disse, com grande percepo: As minhas novidades

    tambm no foram bem-vindas para o senhor, foram?

    Devo admitir que verdade. Sim. Devo admitir que fiquei

    perturbado. Um caso que havia sido encerrado satisfatoriamente...

    sim, continuarei a usar a palavra satisfatoriamente, e est reaberto.

    Isso a atitude oficial? perguntou Calgary. Quero

    dizer, do ponto de vista policial, o caso ser reaberto? Mas sem dvida respondeu Marshall. Quando Jack

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    Argyle foi considerado culpado com base em evidncias concludentes

    (o jri s deliberou por quinze minutos), o assunto estava encerrado

    aos olhos da polcia. Porm, agora, com a concesso de um perdo

    integral pstumo, o caso est naturalmente reaberto.E a polcia far novas investigaes?

    Diria eu que inevitavelmente. claro acrescentou

    Marshall, esfregando pensativamente o queixo, que duvidoso

    que, depois de tanto tempo e dadas as caractersticas peculiares do

    caso, cheguem aalcanar qualquer novo resultado... Quanto a mim,

    tenho, srias dvidas que o consigam. Podero ficar certos de que

    algum na casa culpado. Podero mesmo chegar a ter uma idiabastante precisa de quem seja esse algum. Porm obter provas

    concretas ser extremamente difcil.

    Compreendo disse Calgary. Compreendo, sim, era

    disso que ela estava falando.

    O advogado disse, rspido:De quem o senhor est falando?

    Da moarespondeu Calgary.Hester Argyle.

    Ah, sim. A jovem Hester. O que lhe disse ela?

    perguntou, com curiosidade.

    Falou dos inocentesrespondeu Calgary.Disse que no

    era o culpado que importava e sim os inocentes. Agora compreendo o

    que estava querendo dizer.

    O advogado lanou-lhe um olhar penetrante. Creio que

    possivelmente o compreenda.

    Queria dizer exatamente o que o senhor est dizendo

    disse Arthur Calgary. Queria dizer que novamente a famlia est

    toda sob suspeita.

    Eu no diria novamenteinterrompeu Marshall. Nunca

    houve tempo para se suspeitar da famlia. Jack Argyle foi cogitado

    desde o incio.

    Calgary ignorou a interrupo.A famlia ir ficar sob suspeitadisse ele,e poder ficar

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    sob suspeita por muito tempo, possivelmente para sempre. Se um

    dos membros da famlia for o culpado, eles mesmos possivelmente

    nunca sabero qual deles. Podemos ficar olhando um para o outro,

    imaginando... Sim, isso que ser o pior. Que eles mesmos possamficar sem saber quem foi...

    Houve um silncio. Marshall ficou observando Calgary com um

    olhar parado, avaliador, mas no disse nada.

    uma coisa horrvel, sabe.disse Calgary.

    Seu rosto magro e sensvel revelava as emoes que o

    perturbavam.

    realmente horrvel... Ficar ano aps ano sem saber, cadaum espreitando o outro, possivelmente com a suspeita a afetar os

    relacionamentos entre eles. Destruindo o amor, destruindo a

    confiana...

    Marshall limpou a garganta.

    Ser que o senhor no est pintando tudo com... cores

    muito vivas?

    No disse Calgary, no creio que esteja. Creio, talvez,

    se me permite, Sr. Marshall, que estou vendo tudo um pouco mais

    claro que o senhor. Por favor compreenda que eu sou capaz de

    imaginar o que tudo isso pode vir a significar.

    Novo silncio.

    Significar continuou Calgary, que sero os inocentes

    que viro a sofrer... E os inocentes no devem sofrer. S os culpados.

    por isso... por isso que eu no posso lavar as mos nessa questo.

    Nopossoir embora e dizer Fiz o que era certo, o reparo que estava

    em mim fazer, servi causa da justia, porque o senhor compreende

    que o que eu fiz no serviu causa da justia. No trouxe

    condenao ao culpado, no livrou os inocentes da sombra da culpa.

    Parece-me que o senhor est-se torturando um pouco

    demais, Dr. Calgary. O que o senhor diz tem alguma base deverdade, sem dvida, porm no consigo ver exatamente o que...

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    bem, o que o senhor possa fazer.

    Nem eu. Nem eu disse Calgary com franqueza. Porm

    mesmo assim tudo me diz que terei de tentar. E na realidade por

    isso que eu vim procur-lo, Sr. Marshall. Eu quero, eu creio quetenho o direito de conhecer... as circunstncias gerais.

    Ora disse o Sr. Marshall em tom um pouco mais

    animado, no h segredos a respeito disso. Posso dar-lhe todos os

    jatosque quiser. Mais do que fatos no estou em posio de lhe dar.

    Nunca conheci ningum naquela casa muito intimamente. Nossa

    firma representou a Sr Argyle durante vrios anos. Colaboramos

    com ela no estabelecimento de uma srie de fundos e tratamos dealguns assuntos legais. Conhecia a prpria Sr Argyle razoavelmente

    bem e conhecia tambm seu marido. Quanto atmosfera do Recanto

    do Sol, ao temperamento e carter das vrias pessoas que l

    moravam, minhas informaes so todas, como diria, de segunda

    mo, por intermdio da prpria Sr Argyle.

    Compreendo tudo isso respondeu Calgary, porm

    tenho de comear em algum ponto. Pelo que soube, os filhos no

    eram dela. Foram todos adotados?

    Exato. A Sr Argyle foi, em solteira, Rachel Konstan, filha

    nica de Rudolph Konstan, homem muito rico. Sua me era

    americana e pessoalmente dona de grande fortuna. Rudolph Konstan

    exercia muitas atividades filantrpicas e educou a filha no interesse

    permanente desses projetos caritativos. Ele e a mulher morreram

    num desastre de avio e Rachel passou a dedicar a imensa fortuna

    que herdou dos pais ao que poderemos chamar, a grosso modo,

    projetos filantrpicos. Sempre teve grande interesse pessoal nessas

    beneficncias e chegou mesmo a realizar algum trabalho na rea dos

    servios sociais. Foi justamente quando trabalhava num desses

    projetos que conheceu Leo Argyle, que era professor em Oxford e

    tinha enorme interesse por problemas econmicos e reformas sociais.Para compreender a Sr Argyle preciso ter em mente que a grande

  • 7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia

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    tragdia de sua vida foi o fato de no poder ter filhos. Como no caso

    de muitas mulheres, tal incapacidade gradativamente veio a dominar

    toda a sua vida. Quando, depois de visitar um sem-nmero de

    especialistas, ficou claro que no podia ter a menor esperana de setornar me, partiu em busca da compensao que lhe fosse possvel.

    Primeiro adotou uma menina de uma rea de favelas em Nova York,

    que a atual Sr Durrant. A Sr Argyle dedicava-se quase que

    exclusivamente a atividades de caridade relacionadas a crianas.

    Quando eclodiu a guerra em 1939, ela fundou, sob os auspcios do

    Ministrio da Sade, uma espcie de creche de guerra para crianas,

    comprando para isso a casa que o senhor visitou, ou seja, o Recantodo Sol.

    Ento conhecida como o Recanto da Vboradisse Calgary.

    Exato. Era esse, eu creio, o nome original. E, possivelmente,

    fosse em ltima anlise um nome mais adequado do que aquele que

    ela escolheu, o Recanto do Sol. Em 1940 ela tinha l cerca de doze

    ou dezesseis crianas, a maioria por ter anteriormente guardios

    insatisfatrios, as outras por no poderem ser evacuadas com suas

    famlias. L faziam tudo por essas crianas. Foi-lhes dada uma casa

    luxuosa. Repreendi-a por isso, salientando como seria difcil para as

    crianas, depois de vrios anos de guerra, deixar aquele ambiente de

    luxo para voltar a seus prprios lares. No me prestou a menor

    ateno. Estava mui