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70 ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA Antônio Márcio Junqueira Lisboa E stava no Rio de Janeiro em um sábado atendendo no meu consultório quando chegou o Fernando, chama- do Fernandinho, que era professor e hematologista. Naquele momento, ele trabalhava em três hospitais e ganhava um salá- rio de hospital, que era, talvez, um pouco pior do que é hoje; levou o lho para eu ver e me disse que havia sido convidado para ir a Brasília. Era dezembro de 1966. Perguntou a minha opinião; disse para ele aceitar imediatamente. Fernando saiu, voltou uma hora depois e perguntou se eu aceitaria o convite e falei que não, porque minha situação não tinha nada a ver com a dele. Naquele momento, eu tinha a segunda clínica do Rio de Janeiro, atendia de 20 a 25 crianças por dia em uma clíni- ca de gente muito rica. Ganhava o meu tempo, se eu quisesse trabalhar 24 horas por dia, ganharia muito mais. Trabalhava no Hospital do Servidor do Estado, meu sonho de recém-formado. Fiz concurso e entrei lá, estava no berçário, cheando, traba- lhando, ou seja, minha situação não tinha nada a ver com a dele. Mesmo assim, ele perguntou se eu aceitaria o convite. No dia 6 de janeiro de 1967, eu estava em um restaurante chamado Centenário com Cláudio Souza Leite, que era cirur- gião pediátrico no Rio. Eu falava das minhas angústias e brin- quei dizendo que seria riquíssimo e sem fazer o que queria,

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No dia 6 de janeiro de 1967, eu estava em um restaurante chamado Centenário com Cláudio Souza Leite, que era cirur- gião pediátrico no Rio. Eu falava das minhas angústias e brin- quei dizendo que seria riquíssimo e sem fazer o que queria, 70 ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA 71 ANAIS • Ano I • Volume 1

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

Antônio Márcio Junqueira Lisboa

Estava no Rio de Janeiro em um sábado atendendo no meu consultório quando chegou o Fernando, chama-

do Fernandinho, que era professor e hematologista. Naquele momento, ele trabalhava em três hospitais e ganhava um salá-rio de hospital, que era, talvez, um pouco pior do que é hoje; levou o fi lho para eu ver e me disse que havia sido convidado para ir a Brasília. Era dezembro de 1966. Perguntou a minha opinião; disse para ele aceitar imediatamente. Fernando saiu, voltou uma hora depois e perguntou se eu aceitaria o convite e falei que não, porque minha situação não tinha nada a ver com a dele. Naquele momento, eu tinha a segunda clínica do Rio de Janeiro, atendia de 20 a 25 crianças por dia em uma clíni-ca de gente muito rica. Ganhava o meu tempo, se eu quisesse trabalhar 24 horas por dia, ganharia muito mais. Trabalhava no Hospital do Servidor do Estado, meu sonho de recém-formado. Fiz concurso e entrei lá, estava no berçário, chefi ando, traba-lhando, ou seja, minha situação não tinha nada a ver com a dele. Mesmo assim, ele perguntou se eu aceitaria o convite.

No dia 6 de janeiro de 1967, eu estava em um restaurante chamado Centenário com Cláudio Souza Leite, que era cirur-gião pediátrico no Rio. Eu falava das minhas angústias e brin-

quei dizendo que seria riquíssimo e sem fazer o que queria,

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porque o meu sonho era ser professor universitário, mas no Rio

não tinha jeito, as faculdades estavam todas ruins e, mesmo que

entrasse em uma, não iria fazer nada. Então veio o convite que

me pegou em uma fase extremamente vulnerável. Dia 10, mais

ou menos, e vim para Brasília no dia 28. Esse dia da conversa

foi em 6 de janeiro, dia do meu aniversário, há 40 anos. No fi m

do mês, eu vinha para cá e encontrei aqui com o Lobo. Já trou-

xe minha mulher e meu fi lho mais velho para perceber como

é que seria. Eu ganhava em torno de 10.000 para trabalhar e

me ofereceram 1.250 com dedicação exclusiva. As promessas

do que teria eram tão boas que meu fi lho mais velho dizia que

Luiz Carlos Lobo tinha muita força, porque tudo o que eu pedia

eles me davam. Dois dias depois, dia 1º, eu já estava com os

meninos matriculados em um colégio daqui. A promessa aqui

era um hospital, aquele de Sobradinho, em dedicação exclusi-

va, mas eu queria fazer carreira de universidade. Na época, em

todo local eu falava mal do ensino médico e fui chamado para ir

à faculdade organizar do zero o serviço; pensei: “ou eu vou ou

nunca mais vou querer saber de ensino médico”.

Cheguei aqui e fui morar em um apartamento na 313. Fi-

quei cerca um ano almoçando e jantando em caixote, pois es-

tava de mudança. Fui para Sobradinho e me deparei com uma

situação que adorei, pois aquilo casava com tudo o que eu pen-

sava em pediatria: prevenção da doença, recuperação, reabi-

litação. E com o diferencial de ter liberdade para fazer o que

eu quisesse em termos de ensino. Podíamos fazer o currículo

de maneira diferente, assim como a metodologia e as técnicas.

O local escolhido foi Sobradinho. Naquela época, a cidade ti-

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nha de 35 ou 36 mil habitantes, 61% com menos de 20 anos e

25% com menos de quatro anos e um nível de educação muito

baixo. 84% das famílias recebiam menos de um salário mínimo.

Outra desafi o seria ter um hospital comunitário, pequeno, numa

cidade em que seríamos responsáveis pela saúde de todos. En-

tão nós tínhamos que formar médicos. Havia dois titulares com

livre docência: Luiz Carlos Lobo e Hélio Barbosa. Os outros ti-

nham, no máximo, residência. Aquele desafi o para mim foi o

máximo. Cheguei e não tinha nada. Era meu sonho, do jeito que

pensei no Rio de Janeiro.

No dia 31 outubro de 1966, foi confi rmado um convênio

entre a coordenação da Faculdade de Ciências Médicas, repre-

sentada por Lobo e o secretário de Saúde, Pinheiro, por quem

foi cedido, por quase dez anos, um hospital para a Faculdade

de Ciências Médicas em Sobradinho, utilizado para a presta-

ção de serviços. Achei ótimo, por isso, vim trabalhar. Havia um

hospital provisório, de madeira. Ali havia ratos, cobras e até um

museu de escorpiões e cobras vivas para mostrar que, além de

gente, havia outros habitantes estranhos. No tempo em que

eu estive lá, todos os prematuros morreram. A enfermaria e o

pronto socorro co-existiam. Tínhamos uma biblioteca pequena

da qual tirávamos os livros e colocávamos as crianças para se

hidratar nas prateleiras, como um beliche.

Ficamos nesse prédio um tempo, até 15 de maio, cerca

de dois meses e meio. Foram iniciadas as atividades no hospi-

tal Unidade Integrada de Sobradinho. Nesse dia, começava um

grande desafi o: um punhado de médicos, somente dois com

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titulação universitária, com muita garra e vontade de ensinar,

se propunha a formar médicos em um hospital comunitário com

200 leitos e localizado numa cidade com população de 30 mil

pessoas. Até então, isso parecia impossível.

Comecei a trazer os médicos do Servidores do Estado e a

luta foi tremenda, porque a maioria desse pessoal queria trans-

formar o hospital comunitário em “hospital da USP”. Isso foi

uma luta, e até acho que, na clínica médica, conseguiram. Mas

aquilo não tinha em nada a ver com o Servidores. Tínhamos que

fazer diferente. Não iríamos competir, e nunca competiríamos,

com a USP. Tínhamos que fazer uma coisa que não existia. Esse

foi um dos trabalhos mais difíceis que tive.

Em 1969, foram instalados os postos periféricos urbanos

e rurais. Em março de 1969, as disciplinas de pediatria e obs-

tetrícia foram colocadas em centros de saúde de área rural, e,

nisso, fomos pioneiros. Nessa época, já havia duas modifi ca-

ções importantes. Os berçários funcionavam em três divisões:

normais, prematuros e infectados. Havia crianças prematuras

de três quilos que fi cavam em um berçário de cuidados espe-

ciais e recém-nascidos mais doentes, que fi cavam no normal.

Passamos a dividir os berçários em baixo, médio e alto risco,

e infectados. Essa divisão no Hospital de Sobradinho foi di-

fundida pelo Brasil inteiro. Além disso, as primeiras disciplinas

de Neonatologia e Crescimento foram criadas, em 1969, aqui.

Não existia nenhuma faculdade de Medicina no Brasil que ti-

vesse a disciplina de Neonatologia e nem de Crescimento do

embrião. Hoje todas têm.

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Tivemos uma integração muito boa nas áreas de obstetrí-

cia e de pediatria. Tão boa que, pela primeira vez, os residentes

e internos de pediatria tinham que estagiar na sala de parto

e no pré-natal. Outra coisa que fi zemos foi essa colocação na

área rural. Em Belo Horizonte, onde falei sobre ensino médi-

co, houve um colega que defendeu a existência de preceptor.

Discordo disso. O problema do preceptor é que o professor

começa a tentar modifi car o serviço de saúde. Quando cheguei

lá, a primeira coisa que Átila falou foi em fazer sessões clínicas,

mas isso seria mau. Por exemplo: se chegasse uma requisição

de doença infecciosa, como faríamos? Como vacinar toda a po-

pulação? Assim, montamos o serviço. E muitos iam para a área

rural aprender coisas que não tinham dentro do Hospital. Ali, eu

quis que eles aprendessem coisas de centros de saúde. E foi um

sucesso tão grande que os alunos não tinham subsídio nenhum

– eles tinham que arranjar o transporte, comer sanduíche pago

– mas nunca reclamaram, porque estavam aprendendo. Quan-

do o aluno aprende, ele é um indivíduo tranquilo, mas quando

o aluno sente que aquilo não o leva a nada, começa a criar caso

por estar insatisfeito.

Tínhamos lá o ensino em unidade; em área urbana, na

quadra 16, a visitação domiciliar; na Fercal, o atendimento

das crianças em área rural, e atendimento em centros de saú-

de e nos postos ligados ao centro. Isso porque o aluno tem

que aprender que, se há uma criança com diarreia e dali a um

mês ela volta, é necessário ver onde essa criança mora para

entender porque ela está voltando todo mês. Caso contrário,

ele não terá esse conceito ecológico. Havia um mapa e, para

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todo o pessoal que chegava, nós alfi netávamos esse mapa no

local onde a pessoa vivia. Se uma favelinha, por exemplo, fi ca-

va cheia de alfi netes, ou se consertava a favelinha, ou não se

conseguia atender o número de pacientes no hospital. O pro-

blema não é dentro do hospital. Ele está nas comunidades. Eu

queria que o aluno tivesse essa visão. Os alunos também par-

ticipavam de projetos de desenvolvimento comunitário. Havia

uma rua em que havia muitos casos de verminose, o local não

tinha esgoto e não havia coleta de lixo. Então, os alunos iam

com a Míriam, assistente social, para mobilização comunitá-

ria. Assim, aprendiam como usar as comunidades para ajudar

a saúde. Então a Miriam chegou lá e fez um convênio com a

prefeitura. O pessoal pagava o que podia mensalmente, ela

arranjou um empréstimo no BRB e a população pagava R$ 20,

R$ 30 ou o que decidisse pagar. Foi feita a ligação de esgoto

e depois fi zemos exame de fezes para verifi car a incidência

de diarreia. O médico tem que saber que ele não resolve o

problema de saúde sozinho. Ele tem que resolver junto com

a população.

O único problema que tive durante minha gestão apare-

ceu em uma reunião mensal com a comunidade. Eles estavam

aborrecidos com a parte de obstetrícia porque não estávamos

dando canja de galinha para as pacientes e, culturalmente, eles

achavam que a canja era uma forma de recuperação rápida para

a mulher que pariu. Então, mandei dar a canja e todos fi caram

satisfeitos. Em 1972, Simões Barbosa assumiu com o Átila. Em-

bora exitoso, o programa foi desativado em 1980 pela reitoria.

E os resultados: grande número de estudantes brasileiros e es-

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trangeiros queria conhecer o pioneirismo dos trabalhos produ-

zidos em Sobradinho.

Estava vencido o desafi o. O trabalho desenvolvido em So-

bradinho provou que, na Medicina, podem-se formar médicos

em hospitais comunitários de baixo custo utilizando professo-

res profi ssionais que, embora sem titulação acadêmica, sejam

competentes. A meu ver, não é necessário fazer mestrado e

doutorado, a não ser que seja para ser professor, e o profes-

sor tem que saber muita coisa: pedagogia médica e avaliação.

Aqui, tudo funcionou bem com dois titulares.

Uma das coisas de que tenho certa mágoa da universida-

de é que, quando cheguei, o primeiro que convidei para ser

professor foi o Cristovam do L2 e o Edson Porto, também do

L2, e abri o convite. Antes de convidar qualquer outro, cha-

mei o pessoal de Brasília, que não queria, porque teria que ter

dedicação exclusiva para ganhar cerca de R$ 1.200,00. Redigi

três convênios, mas, no fi nal, o pessoal da universidade não

assinava. Entendo o porquê. No momento em que se demo-

cratiza o ensino, existe o pensamento de que “sou professor

com mestrado e doutorado e aquele carinha ali de Taguatinga

é o paraninfo, porque os alunos gostam dele e acham que ele

sabe mais do que eu”.

Outra coisa que nós fi zemos lá em Sobradinho foi esse

programa de Mãe Acompanhante. Até aquela época, a criança

era deixada no hospital e as visitas eram feitas em 30 minutos.

Resolvi mudar isso. No programa, as mães poderiam fi car com

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a criança. Muitas pessoas não gostavam disso. Um dia, o Mo-

zart reclamou porque uma criança teve uma parada e a mãe acordou a todos. Disse que o fi lho dela teria morrido se todos estivessem dormindo. Conseguimos passar esse programa para os outros hospitais de Brasília e para a Sociedade Brasileira de Pediatria. Tive a satisfação de introduzi-lo no Estatuto da Crian-ça e do Adolescente. Esse programa começou em Sobradinho em 1969 e hoje é lei, coisa que ninguém sabe.

Acadêmico Antonio Márcio Lisboa: Médico pediatra e professor aposentado da Facul-

dade de Medicina da UnB.