trecho do livro "a canção do sangue"

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L

O

N

S

BANQUISA

CIDADE CAÍDA

CARDURIN

LAGO RHIL

RIO SALGADO

ALLTOR

VARINSHOLDVARINSHOLDMEANSHALL

TORRE SUL

OFORTE ALTO

MAELINSCOVE

MARBELLISA COLINA SANGRENTA

OÁSIS LEHLUN

WARNSCLAVEWARNSCLAVE

ANDURINRENFAEL

CUMBRAEL

NILSAEL

ASRAEL

ILH

AS M

ELDENEANAS

MAR ERINEANO

TORRE NORTE

I M P É R I O A L P I R A N O

CONFINS DO NORTE

REIN

O UNIFI

CADORE

INO U

NIFICADO

PORTO GÉLIDO

FLORESTA URLISH

ANDURINFLORESTA URLISH

MAELINSCOVE

I M P É R I O A L P I R A N O

FLORESTA MARTISHE

FLORESTA MARTISHE

OS PICOS CINZENTOS

OS PICOS CINZENTOS

MARBELLIS

LINESHUNTESH

PASSO SKELLAN

PASSO SKELLAN

DOMÍNIO LONAK

DOMÍNIO LONAK

GRANDE FLORESTA DO NORTE

Parte I

A sombra do corvo Cobre meu coração,

Cessa o jorro de minhas lágrimas.

— poema seordah, autor desconhecido.

CIDADE CAÍDA

CARDURIN

LAGO RHIL

RIO SALGADO

ALLTOR

VARINSHOLDVARINSHOLD

WARNSCLAVEWARNSCLAVE

ANDURIN

RENFAEL

CUMBRAEL

NILSAEL

ASRAEL

FLORESTA URLISH

ANDURINFLORESTA URLISH

FLORESTA MARTISHE

OS PICOS CINZENTOS

OS PICOS CINZENTOS

PASSO SKELLAN

PASSO SKELLAN

OFORTE ALTO

FLORESTA MARTISHE

RelAtO de VeRnIeRS

Ele tinha muitos nomes. Embora ainda não tivesse chegado ao trigésimo ano, a História achou apropriado conferir ‑lhe títulos em abundância: Espada do Reino para o rei louco que o enviara para nos atormentar, o Jovem Falcão para os homens que o seguiam pelas provações da guerra, Lâmina Negra para seus inimigos cumbraelinos e, como eu descobriria muito mais tarde, Beral Shak Ur para as tribos enigmáticas da Grande Floresta do Norte — a Sombra do Corvo.

Porém, meu povo o conhecia por um único nome e era esse que me ecoa‑va na mente sem parar na manhã em que o trouxeram até as docas: Matador do Esperança. Logo você morrerá e assistirei. Matador do Esperança.

Embora ele fosse mais alto que a maioria dos homens, fiquei surpreso ao descobrir que, contrariando as histórias que ouvi, não era um gigante, e, apesar de ter traços fortes, não podiam ser chamados de belos. O corpo era musculoso, mas sem a definição maciça descrita com tantos detalhes pelos contadores de histórias. O único aspecto de sua aparência que tinha respaldo das lendas eram os olhos: negros como azeviche e penetrantes como os de um falcão. Diziam que aqueles olhos podiam desnudar a alma de um homem, que nenhum segredo permanecia oculto sob seu olhar. Jamais acreditei nisso, mas ao vê ‑lo agora pude entender por que outros acreditavam.

O prisioneiro era acompanhado por um destacamento completo da Guar‑da Imperial, que cavalgava em uma escolta cerrada, de lanças a postos, olhos graves a esquadrinhar a multidão de espectadores à procura de qualquer pro‑blema. A multidão, no entanto, estava em silêncio. Paravam para vê ‑lo passar, mas não havia gritos, nem insultos, ou objetos atirados. Lembrei que conhe‑ciam esse homem, pois durante algum tempo ele governara a cidade e coman‑dara um exército estrangeiro do lado de dentro das muralhas, mas ainda assim eu não via ódio algum em seus rostos, nenhum desejo de vingança. Pareciam em sua maioria curiosos. Por que ele estava aqui? Por que estava vivo?

O destacamento parou no cais, o prisioneiro desmontou para ser condu‑zido até a embarcação à espera. Guardei minhas anotações e levantei do bar‑ril de especiarias onde descansava, acenando com a cabeça para o capitão.

16 Anthony Ryan

— Honrado seja, senhor.O capitão, um oficial veterano da Guarda, com uma cicatriz pálida que

lhe descia pela mandíbula e pele de ébano do Império meridional, retribuiu o aceno com uma formalidade praticada.

— Lorde Verniers.— Teve uma viagem sem incidentes?O capitão deu de ombros.— Algumas ameaças aqui e ali. Tive de quebrar algumas cabeças em

Jesseria, os moradores queriam enforcar a carcaça do Matador do Esperança no coruchéu do templo.

A deslealdade me deixou indignado. O Édito do Imperador fora lido em todas as cidades pelas quais passaria o prisioneiro, o significado sendo claro: o Matador do Esperança não será ferido.

— O Imperador ficará sabendo — disse eu.— Como queira, mas é algo de pouca importância. — Virou ‑se para o

prisioneiro. — Lorde Verniers, apresento ‑lhe o prisioneiro imperial Vaelin Al Sorna.

Acenei com formalidade para o homem alto, o nome um refrão constante na minha cabeça. Matador do Esperança, Matador do Esperança...

— Honrado seja, senhor — forcei a saudação a sair.Os olhos negros encontraram os meus por um segundo, penetrantes, in‑

dagadores. Por um momento imaginei se as histórias mais extraordinárias seriam verdadeiras, se havia magia no olhar desse selvagem. Poderia mesmo desnudar a verdade da alma de um homem? Desde a guerra abundavam histórias acerca dos poderes misteriosos do Matador do Esperança. Podia falar com animais, comandar os Inomináveis e moldar o clima à sua von‑tade. Sua lâmina era temperada com o sangue de inimigos caídos e jamais quebraria em batalha. E, pior de tudo, ele e seu povo idolatravam os mortos, comungando com os espíritos de seus antepassados para conjurar toda sorte de perversidade. Pouco crédito eu dava a tais tolices, pois se a magia dos nortistas era tão poderosa, como conseguiram sofrer uma derrota tão esma‑gadora em nossas mãos?

— Meu senhor.A voz de Vaelin Al Sorna era áspera e de sotaque carregado; aprendera

o alpirano em uma masmorra, e os tons sem dúvida ficaram mais grossos por anos de urros elevados acima do choque das armas e de gritos dos caídos para se conseguir a vitória em cem batalhas, uma das quais me custara meu amigo mais íntimo e o futuro deste Império.

Virei ‑me para o capitão.

17A Canção do Sangue

— Por que ele está a ferros? O Imperador ordenou que fosse tratado com respeito.

— As pessoas não queriam vê ‑lo cavalgar solto — explicou o capitão. — O prisioneiro sugeriu que o prendêssemos para evitar problemas. — Andou até Al Sorna e abriu os grilhões. O homenzarrão massageou os pulsos com as mãos cheias de cicatrizes.

— Meu senhor! — Um grito vindo da multidão. Virei e vi um homem corpulento de manto branco correndo em nossa direção, o rosto úmido pelo esforço não habitual. — Um momento, por favor!

O capitão moveu a mão para mais perto do sabre, mas Al Sorna não estava preocupado e sorria para o homem que se aproximava.

— Governador Aruan.O homem corpulento parou e enxugou o suor do rosto com um lenço

rendado. Na mão esquerda levava um pacote longo enrolado em tecido. Fez um aceno com a cabeça ao capitão e a mim, mas dirigiu ‑se ao prisioneiro.

— Meu senhor. Nunca pensei que tornaria a vê ‑lo. Está bem?— Estou, Governador. E o senhor?O homem corpulento estendeu a mão direita, o lenço rendado pendendo

do polegar, anéis de joias em todos os dedos.— Não mais Governador. Apenas um pobre mercador atualmente. O

comércio não é mais o que já foi, mas fazemos o que podemos.— Lorde Verniers. — Vaelin Al Sorna gesticulou na minha direção. —

Este é Holus Nester Aruan, ex ‑governador da Cidade de Linesh.— Honrado senhor — saudou ‑me Aruan com uma mesura curta.— Honrado senhor — respondi formal. Então este era o homem de quem

o Matador do Esperança capturara a cidade. O fracasso de Aruan em tirar a própria vida em desgraça fora muito comentado após a guerra, mas o Im‑perador (que os Deuses o preservem em sua sabedoria e misericórdia) con‑cedera clemência à luz das circunstâncias extraordinárias da ocupação do Matador do Esperança. Porém, a clemência não se estendeu à permanência no cargo de Governador.

Aruan voltou ‑se a Al Sorna.— Agrada ‑me encontrá ‑lo bem. Escrevi ao Imperador implorando mi‑

sericórdia.— Eu sei, sua carta foi lida em meu julgamento.Eu sabia pelos registros do julgamento que a carta de Aruan, cuja com‑

posição colocava sua vida em risco, formara parte das evidências que descre‑viam atos de generosidade e misericórdia curiosamente incomuns da parte do Matador do Esperança durante a guerra. O Imperador ouvira paciente a

18 Anthony Ryan

tudo antes de decretar que o prisioneiro estava sendo julgado por seus crimes, não suas virtudes.

— Sua filha está bem? — perguntou o prisioneiro a Aruan.— Muito bem, se casará neste verão. Um imprestável filho de armador,

mas o que um pobre pai pode fazer? Graças ao senhor, ela pelo menos está viva para me partir o coração.

— Fico feliz. Sobre o casamento, não sobre seu coração partido. Não tenho presentes a oferecer, a não ser meus melhores votos.

— Na verdade, senhor, venho com um presente próprio.Aruan ergueu o longo pacote embrulhado nas mãos, oferecendo ‑o ao

Matador do Esperança com uma expressão de estranha seriedade.— Ouvi dizer que logo o senhor precisará disso mais uma vez.Houve uma clara hesitação nos modos do nortista antes de esticar os

braços para receber o embrulho, desfazendo os nós com as mãos marcadas. O tecido removido revelou uma espada de fabricação desconhecida; a lâmina na bainha tinha mais ou menos um metro de comprimento e era reta, dife‑rente dos sabres curvos preferidos pelos soldados alpiranos. Um único dente curvava ‑se ao redor do punho para formar uma guarda e o único ornamento da arma era um pomo de aço simples. O punho e a bainha tinham muitos cortes e arranhões que indicavam anos de uso contínuo. Não era uma arma cerimonial e percebi com uma agitação repugnante que era a espada dele. A espada que levara às nossas praias. A espada que o tornara o Matador do Esperança.

— Você guardou isso? — perguntei horrorizado a Aruan.O homem corpulento virou ‑se para mim com uma expressão gélida.— A minha honra exigia nada menos que isso, meu senhor.— Obrigado — disse Al Sorna, antes que mais indignações me saltassem

dos lábios. Ergueu a espada e vi o Capitão da Guarda empertigar ‑se quando Al Sorna sacou a lâmina cerca de um centímetro da bainha e testou o fio com o polegar. — Ainda afiada.

— Foi bem cuidada. Oleada e afiada regularmente. Tenho também algo mais. — Aruan estendeu a mão. Na palma havia um rubi, uma pedra bem lapidada de peso mediano, sem dúvida uma das joias mais valiosas da co‑leção da família. Eu conhecia a história por trás da gratidão de Aruan, mas sua evidente estima pelo selvagem e a presença nauseante da espada ainda me incomodavam muito.

Al Sorna parecia não saber o que fazer e sacudia a cabeça.— Governador, eu não posso...Aproximei ‑me e falei em voz baixa.

19A Canção do Sangue

— Ele o honra mais do que você merece, nortista. Sua recusa o insultará e você será desonrado.

Fitou ‑me de relance com aqueles olhos negros antes de sorrir para Aruan.

— Não posso recusar tamanha generosidade. — Pegou a pedra preciosa. — Eu a guardarei para sempre.

— Espero que não — respondeu Aruan com uma risada. — Um homem só pode guardar uma joia se não precisar vendê ‑la.

— Vocês aí! — A voz vinha de uma embarcação atracada não muito longe ao longo do cais, uma galé meldeneana de tamanho considerável, a quantidade de remos e a largura do casco indicando que era um cargueiro, e não uma das lendárias belonaves daquela gente. Um homem forte com uma longa barba negra, marcado como capitão pelo lenço vermelho na cabeça, acenava da proa. — Tragam a bordo o Matador do Esperança, seus cães alpi‑ranos! — gritou ele com a costumeira cortesia meldeneana. — Se demorarem mais, vamos perder a maré.

— Nosso transporte para as Ilhas nos aguarda — disse eu ao prisioneiro, juntando minha bagagem. — É melhor evitarmos a ira de nosso capitão.

— Então é verdade — disse Aruan. — O senhor está indo para as Ilhas para lutar pela senhora? — Não me agradava o tom de sua voz, que soava de forma inquietante como reverência.

— É verdade. — Apertou ligeiro a mão de Aruan e acenou com a cabeça para o capitão de sua guarda antes de virar ‑se para mim. — Meu senhor. Vamos?

— Você pode ser um dos primeiros da fila para lamber os pés de seu Impe‑rador, escrevinhador — disse o capitão do navio, batendo um dedo em meu peito —, mas este navio é meu reino. Ou dorme aqui, ou passa a viagem amarrado ao mastro principal.

Levara ‑nos a nossos alojamentos, uma seção com cortina no porão de carga, próximo à proa do navio. O porão fedia a água salgada e suja e ao odor misturado da carga, uma miscelânea nauseante de frutas, peixes secos e a miríade de especiarias pelas quais o Império era famoso. Fiz o possível para não vomitar.

— Sou o Lorde Verniers Alishe Someren, Cronista Imperial, Primeiro dos Eruditos e servo honrado do Imperador — respondi, o lenço que me co‑bria a boca abafando um pouco as palavras. — Sou emissário dos Senhores

20 Anthony Ryan

Marinhos e acompanhante oficial do prisioneiro imperial. Você me tratará com respeito, pirata, ou trarei a bordo em um instante vinte soldados para açoitá ‑lo na frente de sua tripulação.

O capitão curvou ‑se para frente; seu hálito fedia mais do que o porão, por incrível que pareça.

— Então terei vinte e um corpos para alimentar as orcas quando deixar‑mos o porto, escrevinhador.

Al Sorna empurrou com o pé um dos sacos de dormir no chão e deu uma olhada rápida ao redor.

— Servirá. Precisaremos de água e comida.Fiquei indignado.— Está mesmo sugerindo que passemos a noite neste buraco de rato?

É nojento.— Deveria tentar dormir em uma masmorra. Lá também há ratos em

abundância. — Virou ‑se para o capitão. — O barril d’água está na coberta de proa?

O capitão passou um dedo gordo pela barba, contemplando o homem alto, sem dúvida pensando se lhe zombavam e calculando se poderia matá ‑lo se precisasse. Eles têm um ditado na costa setentrional alpirana: dê as costas para uma serpente, mas nunca para um meldeneano.

— Então você é aquele que vai cruzar espadas com o Escudo? Estão ofe‑recendo vinte para uma contra você em Ildera. Acha que devo arriscar uma moeda com você? O Escudo é a lâmina mais afiada das Ilhas, pode cortar uma mosca ao meio com um sabre.

— Tal fama é digna de respeito. — Vaelin Al Sorna sorriu. — O barril d’água?

— Está lá. Podem beber uma cabaça cada um por dia, não mais. Minha tripulação não ficará com pouca água por causa de gente como vocês dois. Podem pegar comida na cozinha, se não for incômodo comer com uma es‑cória como nós.

— Sem dúvida já comi com piores. Se precisar de mais um homem nos remos, estou à disposição.

— Já remou antes, é?— Uma vez.— Damos conta — grunhiu o capitão. Virou ‑se para ir, resmungando

por sobre o ombro: — Vamos zarpar dentro de uma hora. Fiquem fora do caminho até sairmos do porto.

— Ilhéu selvagem! — exclamei, desembrulhando meus pertences, arru‑mando minhas penas e tinta. Conferi para ver se não havia ratos à espreita

21A Canção do Sangue

debaixo de meu saco de dormir antes de sentar ‑me para escrever uma carta ao Imperador. Tinha a intenção de informá ‑lo de todos os detalhes deste in‑sulto. — Ele não poderá atracar em nenhum porto alpirano, acredite.

Vaelin Al Sorna sentou ‑se, encostando ‑se no casco.— Fala minha língua? — perguntou ele, mudando para o idioma nor‑

tista.— Eu estudo línguas — respondi da mesma forma. — Sei falar fluente‑

mente as sete línguas principais do Império e me comunicar em outras cinco.— Impressionante. Conhece a língua seordah?Ergui os olhos do pergaminho.— Seordah?— Os seordah sil da Grande Floresta do Norte. Ouviu falar deles?— Meu conhecimento dos selvagens nortistas está longe de ser abrangen‑

te. Até agora vi pouca razão para aumentá ‑lo.— Para um homem instruído, você parece feliz com sua ignorância.— Sinto que falo por minha nação inteira quando digo que gostaria que

tivéssemos permanecido ignorantes a seu respeito.Inclinou a cabeça, estudando ‑me.— É ódio que ouço em sua voz.Ignorei ‑o, minha pena movia ‑se ligeira sobre o pergaminho, preparando

a saudação formal das correspondências imperiais.— Você o conhecia, não? — prosseguiu Vaelin Al Sorna.Minha pena parou. Recusei ‑me a olhá ‑lo nos olhos.— Conhecia o Esperança.Coloquei a pena de lado e levantei. O fedor do porão e a proximidade

desse selvagem de repente tornaram ‑se insuportáveis.— Sim, eu o conhecia — respondi ríspido. — Conhecia ‑o como o melhor

de nós. Conhecia ‑o como aquele que seria o maior Imperador que esta terra já viu. Mas não é essa a razão do meu ódio, nortista. Odeio ‑o porque eu conhecia o Esperança como meu amigo, e você o matou.

Afastei ‑me, subindo a escada para o convés principal, desejando pela primeira vez na vida que pudesse ser um guerreiro, que meus braços fossem musculosos e meu coração duro feito pedra, que eu pudesse empunhar uma espada e vingar ‑me. Mas tais coisas estavam além das minhas capacidades. Meu corpo era bem cuidado, mas não forte; minha mente era ligeira, mas não implacável. Eu não era um guerreiro. Assim, não haveria vingança para mim. Tudo o que eu podia fazer por meu amigo era testemunhar a morte de seu assassino e escrever o final formal de sua história para o prazer de meu Imperador e a verdade eterna de nossos arquivos.

22 Anthony Ryan

Fiquei no convés por horas, apoiado no parapeito, observando as águas esver‑deadas da costa setentrional alpirana escurecerem para o azul do Mar Erineano interior enquanto o contramestre do navio batia o tambor para os remadores, e nossa jornada teve início. Assim que nos afastamos da costa, o capitão ordenou que a vela mestra fosse desfraldada e nossa velocidade aumentou, a proa pon‑tuda da embarcação atravessava as ondas suaves, a figura de proa, um entalhe meldeneano tradicional da serpente alada, um de seus inúmeros deuses, mer‑gulhava a cabeça de muitos dentes no meio da espuma. Os remadores mantive‑ram o ritmo por duas horas até o contramestre anunciar um intervalo, quando largaram os remos e marcharam para a refeição. O efetivo diurno permaneceu no convés, cuidando do cordame e realizando as tarefas intermináveis da vida a bordo de um navio. Alguns me lançaram um ou dois olhares como de costume, mas ninguém tentou conversar, uma graça pela qual fiquei grato.

Estávamos a muitas léguas do porto quando apareceram barbatanas negras cortando as ondas, anunciadas por um grito animado vindo do cesto da gávea.

— Orcas!Não podia ver quantas eram, moviam ‑se rápido demais pelo mar, vez

ou outra vindo à superfície para lançar uma nuvem de vapor antes de tor‑narem a mergulhar. Foi só quando se aproximaram que tive uma noção ple‑na de suas proporções, com mais de seis metros do focinho à cauda. Eu já tinha visto golfinhos nos mares do sul, criaturas prateadas e brincalhonas que podiam aprender truques simples. Estas eram diferentes; o tamanho e as formas oscilantes e escuras que traçavam pela água pareciam agourentos, sombras ameaçadoras da crueldade indiferente da natureza. Meus colegas de bordo tinham uma opinião bem diferente, gritando saudações do cordame como se cumprimentassem velhos amigos. Até mesmo a carranca habitual do capitão parecia ter se suavizado um pouco.

Uma das orcas emergiu de forma espetacular em meio à espuma, giran‑do no ar antes cair de volta ao mar com um estrondo que sacudiu o navio. Os meldeneanos urraram sua aprovação. Oh, Seliesen, pensei. O poema que você teria escrito em homenagem a essa visão.

— Eles as consideram sagradas. — Virei ‑me e vi que o Matador do Espe‑rança juntara ‑se a mim na amurada. — Dizem que quando um meldeneano morre no mar, as orcas levam seu espírito para o oceano infinito além da borda do mundo.

— Superstição — desdenhei.— Seu povo tem Deuses, não?— Meu povo, não eu. Deuses são um mito, uma história consoladora

para crianças.

23A Canção do Sangue

— Tais palavras o fariam bem ‑vindo em minha terra natal.— Não estamos em sua terra natal, nortista. E jamais desejarei estar.Outra orca veio à tona, erguendo ‑se três metros no ar antes de mergulhar

de volta.— É estranho — disse Al Sorna. — Quando nossos navios atravessaram

esse mar, as orcas os ignoraram e aproximaram ‑se apenas dos meldeneanos. Talvez compartilhem da mesma crença.

— Talvez — disse eu. — Ou talvez apreciem a refeição gratuita. — In‑diquei a proa com a cabeça, onde o capitão jogava salmões no mar, as orcas lançando ‑se sobre os peixes mais rápido do que eu podia acompanhar.

— Por que está aqui, Lorde Verniers? — perguntou Al Sorna. — Por que o Imperador o enviou? Não é um carcereiro.

— O Imperador teve a bondade de aceitar meu pedido para testemunhar seu duelo vindouro. E para acompanhar a Senhora Emeren de volta para casa, é claro.

— Veio me ver morrer.— Vim para escrever um relato desse evento para os Arquivos Imperiais.

Sou um Cronista Imperial, afinal de contas.— Assim me disseram. Gerish, meu carcereiro, era um grande admira‑

dor de sua história da guerra com meu povo e a considerava a maior obra da literatura alpirana. Ele sabia muito para um homem que passa a vida em uma masmorra. Sentava durante horas do lado de fora da minha cela e lia páginas e mais páginas, em particular as batalhas, ele gostava delas.

— A pesquisa cuidadosa é a chave para a arte do historiador.— Então é uma pena que a tenha interpretado de forma errada.Mais uma vez me vi desejando ter a força de um guerreiro.— Errada?— Muito.— Entendo. Se puder vasculhar esse cérebro selvagem, talvez possa me

dizer que seções estavam tão erradas.— Oh, você acertou nas pequenas coisas, na maioria das vezes. Exceto

por ter dito que comandei a Legião do Lobo. Na verdade, foi o Trigésimo Quinto Regimento de Infantaria, conhecido entre a Guarda do Reino como Lobos Corredores.

— Vou me certificar em apressar uma edição revisada assim que chegar à capital — disse eu com frieza.

Al Sorna fechou os olhos, recordando.— “A invasão do litoral norte pelo Rei Janus foi apenas o primeiro passo

no caminho de sua grande ambição, a anexação de todo o Império.”