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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 UM BREVE DEBATE SOBRE A ESCRAVIDÃO E A ELITE RELIGIOSA NO BRASIL COLONIAL: A ESCRAVARIA SETECENTISTA DOS CARMELITAS CALÇADOS NA BAHIA E EM SERGIPE 1 Roberta Bacellar Orazem 2 INTRODUÇÃO Os pesquisadores, em sua maioria historiadores, concordam que os estudos sobre a escravidão no Brasil tem crescido tanto quantitativamente quanto qualitativamente nas últimas duas décadas. Atualmente, supera-se o período de críticas aos estudos anteriores, produzidos no Brasil e no exterior ao longo do século XX, no entendimento de que todos os trabalhos, apesar de terem cometido anacronismos ou falhas conceituais, contribuíram para as reflexões e incentivaram novos e múltiplos olhares sobre diversos aspectos (econômicos, sociais, políticos, culturais, entre outros) da escravidão e do Brasil colonial. Ao apresentar novas propostas, principalmente aquelas relacionadas à história cultural e aos estudos da Micro História, os historiadores da atualidade se debruçam cada vez mais nas pesquisas sobre as minorias sociais. Tenta- se desvendar, nos documentos da época (geralmente produzidos por uma elite), os 1 Trabalho desenvolvido na disciplina “Leituras dirigidas IV: formação dos espaços coloniais ibéricos” (Pós-Graduação em História da UFRN), ministrada e orientada pelos professores Doutores Carmen Margarida Oliveira Alveal e Muirakytan Kennedy de Macedo. 2 Mestre em Artes Visuais pela UFBA, Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na UFRN, [email protected].

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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

UM BREVE DEBATE SOBRE A ESCRAVIDÃO E A ELITE

RELIGIOSA NO BRASIL COLONIAL: A ESCRAVARIA

SETECENTISTA DOS CARMELITAS CALÇADOS NA BAHIA E

EM SERGIPE1

Roberta Bacellar Orazem2

INTRODUÇÃO

Os pesquisadores, em sua maioria historiadores, concordam que os estudos

sobre a escravidão no Brasil tem crescido tanto quantitativamente quanto

qualitativamente nas últimas duas décadas. Atualmente, supera-se o período de críticas

aos estudos anteriores, produzidos no Brasil e no exterior ao longo do século XX, no

entendimento de que todos os trabalhos, apesar de terem cometido anacronismos ou

falhas conceituais, contribuíram para as reflexões e incentivaram novos e múltiplos

olhares sobre diversos aspectos (econômicos, sociais, políticos, culturais, entre outros)

da escravidão e do Brasil colonial. Ao apresentar novas propostas, principalmente

aquelas relacionadas à história cultural e aos estudos da Micro História, os historiadores

da atualidade se debruçam cada vez mais nas pesquisas sobre as minorias sociais. Tenta-

se desvendar, nos documentos da época (geralmente produzidos por uma elite), os

1 Trabalho desenvolvido na disciplina “Leituras dirigidas IV: formação dos espaços coloniais ibéricos”

(Pós-Graduação em História da UFRN), ministrada e orientada pelos professores Doutores Carmen

Margarida Oliveira Alveal e Muirakytan Kennedy de Macedo. 2 Mestre em Artes Visuais pela UFBA, Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na UFRN,

[email protected].

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O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

modos de ser e de viver dos escravos, trabalhadores livres, artesãos, mulheres, índios,

crianças, entre outros atores.

Entretanto, os trabalhos sobre o papel e os comportamentos da elite colonial

não cessaram e também tem sido reformulados ao longo dos anos. Ao deixarmos de

lado as ideias dicotômicas que limitam as relações sociais, é inegável a contribuição de

grandes atores – a Igreja (clero secular e regular), a Coroa portuguesa, os funcionários

públicos, os latifundiários, os comerciantes, entre outros – na construção histórica do

Brasil colonial.

Hoje em dia, sabe-se que, através de diversos estudos, é incontestável

afirmar que a sociedade colonial seguia regras, apesar de algumas vezes contorná-las,

sempre respeitando hierarquias de poder. Entretanto, os pesquisadores descobriram

recentemente que esse universo colonial não foi tão limitado, unilateral e estático, mas

sim que existiram diferentes estratégias, múltiplos personagens, diversos cenários.

Nesse contexto, busca-se, com este trabalho, apreender de que forma a

escravidão esteve inserida no cotidiano das ordens religiosas. Inicialmente, o trabalho

faz um breve levantamento dos principais conceitos que envolvem a escravidão no

Brasil colonial. Em um segundo momento, faz-se uma análise dos pontos de vista dos

pesquisadores em relação ao envolvimento das ordens religiosas, principalmente

aquelas detentoras de bens de raiz, com a escravidão e como os escravos

proporcionavam a manutenção dos religiosos na elite colonial.

Tendo em vista que nossas pesquisas no doutorado investigam a influência

dos carmelitas calçados nas vilas e cidades do Brasil colonial, neste artigo,

realizaremos, em um terceiro momento, um breve levantamento acerca dos escravos dos

Carmelitas Calçados – da Província Carmelitana da Bahia – na Capitania da Bahia de

Todos os Santos e na Comarca de Sergipe D’El Rei, trazendo a atuação daqueles

religiosos principalmente no século XVIII.

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Por se tratar de um breve recorte de nossa pesquisa de tese, utilizaremos o

levantamento realizado principalmente em fontes secundárias, que apontam e

transcrevem fontes primárias do século XVII e XVIII. Serão apresentados diversos

documentos - Livros de Notas, Testamentos, Correspondências, Livro de Tombo,

Escrituras, entre outros – que foram localizados pelos autores no Arquivo Histórico

Ultramarino (Portugal), no Arquivo da Província Carmelitana de Santo Elias (Belo

Horizonte), no Arquivo Público da Bahia e no Arquivo do Judiciário de Sergipe.

A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL

Ao divulgarmos antigos e novos estudos, propomos destacar, de forma

sucinta, os conceitos-chaves, com base em permanências e releituras dos autores, em

torno da escravidão no Brasil colonial.

Os escravos faziam parte dos bens materiais de uma pessoa no Brasil

colonial. Segundo Russel-Wood, a escravidão, além de colaborar economicamente,

também tinha o seu papel simbólico na sociedade:

Era componente fundamental do ‘ethos’ colonial a percepção da

distinção entre senhor e escravo e dos privilégios, prerrogativas,

obrigações mútuas e restrições impostas aos membros de cada grupo

pela lei e, de forma mais importante, pelos costumes sociais

prevalecentes. De forma ainda mais penetrante, os colonos estavam

conscientes daqueles graus variáveis de pigmentação que existiam

entre as polaridades de branco e negro e que distinguiam um mulato

de um pardo de um preto. (RUSSEL-WOOD, 2005, p.22).

O mesmo autor afirma que encontrou o exemplo da necessidade da

escravidão na sociedade colonial, em um documento baiano do ano de 1781, no qual se

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afirmava: “He prova de mendacidade extrema o não ter um escravo: ter-se-ão todos os

incommodos domésticos, mas um escravo a toda lei” (RUSSEL-WOOD, 2005, p.362).

Independentemente dos falsos julgamentos dos autores sobre preconceitos

ocorridos no período colonial, foi fato que a sociedade colonial, principalmente a elite,

utilizou variáveis através da classificação da pigmentação (pardos, pretos, crioulos,

entre outros) para identificar e controlar diferentes condições sociais e econômicas. Os

significados dos termos utilizados nos documentos eram entendidos por todos, e,

segundo Farias (1998), havia significados específicos para cada designação.

Em relação ao significado de “Preto”:

Sinônimo principalmente de escravo e, mais comum ainda, de

africano escravo, trazia em si um significado claro. Quando alforriado,

havia uma necessidade social de frisar que a pessoa assim qualificada

estava liberta. Filhos de pretos forros já não eram mais pretos; eram

pardos, sempre ‘forros’, apesar de muitas vezes nunca terem sido

escravos. Se casassem com pretos forros, voltavam a ser preto.

(FARIA, 1998, p.137).

Em relação ao significado de “Crioulo”:

O termo ‘crioulo’ refere-se exclusivamente a escravos. Não há

referência, em toda documentação com que trabalho, a ‘crioulo forro’;

nascido no Brasil como escravo (portanto crioulo), quando se libertava

era comumente designado de ‘pardo’, sempre seguido de ‘forro’. No

dicionário de Moraes Silva, o termo ‘crioulo’ tem o seguinte

significado: ‘o escravo, que nasce em casa do senhor’. (FARIA, 1998,

p.161).

Quanto aos nomes dos escravos nos documentos: “[...] as informações

usuais eram nome (João Minas, Maria Crioula, Antônio Mulato, Preto Pardo), idade e

estado civil; raramente havia informações sobre sua qualificação ou atividade

profissional” (LUNA & KLEIN, 2010, p.8). Não havia informações detalhadas sobre o

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escravo, até mesmo sabemos que algumas localidades africanas inseridas junto aos

nomes dos escravos (exemplo: Antônio da Guiné) não querem dizer exatamente que

aquele cativo veio daquela região. Sabemos, através de estudos, que os navios com

escravos, antes de chegarem ao Brasil, passavam em diversos portos africanos e até

mesmo asiáticos, tornando confuso e dificultoso a procedência exata dos escravos.

É certo afirmar que os pesquisadores não conseguem descartar a relação da

escravidão com a violência, apesar de ter ampliado os estudos e de se ter relativizado

algumas afirmações:

[...] em tarefas que requerem maior esforço físico, pouca habilidade e

pouco cuidado, a violência física e a necessidade de rigorosa

supervisão constituem as características essenciais. Nesses casos,

pode-se obter mais produção dos escravos com violência efetiva ou

pelas ameaças. Os custos de usar a violência e supervisionar mais de

perto são compensados por uma produção maior. [...] Em todas as

outras variadas atividades espalhadas pelo Brasil houve uma mistura

de incentivos negativos e positivos. Foram os incentivos positivos que

ensejaram a alforria dos escravos, voluntária ou por auto compra.

Todos - desde os cativos que trabalhavam nas casas, mascates e

mineiros itinerantes, até os jornaleiros – tinham acesso a uma renda ou

a outras formas positivas de incentivo ao trabalho. (LUNA& KLEIN,

2010, p.133).

Uma das vertentes que vem sendo trabalhada pelos historiadores é a alforria.

Segundo Vainfas (2001, p.29): Alforria: palavra que vem do árabe ‘Al-hurruâ’, que

significa liberdade do cativeiro concedida ao escravo. Utilizava-se também, a partir do

século XVII, como sinônimo de dar alforria, ‘manumitir’, do latim ‘manumittere’,

propriamente ‘libertar das mãos’.”. Os pesquisadores descobriram que havia uma

vontade do cativo se tornar liberto ou do senhor em libertar a escravaria por conta de

sua fé religiosa, pois, acreditava-se que, libertando os escravos, os pecados do senhor

seriam redimidos e a alma dele conseguiria subir ao céu. Nesse sentido, surgiram as

manumissões, onde tinha pelo menos três modos legais de um escravo comprovar seu

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estado de forro perante a sociedade: “a carta ou ‘papel de liberdade’, assinada somente

pelo senhor ou por outro, a seu rogo, algumas vezes registrada em cartório em livros de

notas, outras somente como um papel particular; o testamento ou ‘codicilo’; a pia

batismal” (VAINFAS, 2001, p.30). Entretanto, esse autor afirma que nem sempre a

carta de alforria era uma garantia de que o escravo deixaria de fazer favores ao seu

antigo dono.

A maioria dos estudos sobre a escravidão no Brasil colonial revela,

estatisticamente, que o número de escravos que obtiveram a liberdade era

consideravelmente baixo, entre 0,5 a 2% da população escrava no Brasil colonial. É

unânime também se afirmar que as mulheres foram as mais privilegiadas no acesso à

alforria.

Por outro lado, há situações atípicas, que confirmam o aspecto plural e

dinâmico da sociedade colonial, como aquelas abordadas por Vainfas (2001, p.31):

“Pesquisas mais recentes, entretanto, mostram forros bem aquinhoados, pela fortuna,

sobretudo mulheres. Muitos forros se tornaram proprietários de escravos e bens, o que

faz deste grupo um interessante objeto de pesquisa histórica”.

Havia também situações recorrentes, as quais foram apontadas por Luna &

Klein (2010, p.134-135):

[...] o senhor tinha poder absoluto sobre o escravo e podia infligir

castigos físicos sérios. [...] O senhor controlava a liberdade do

escravo, e do filho do escravo caso nascesse de mãe cativa. Alguns

cativos obtinham a própria liberdade, mas não a de sua mulher,

filhos ou pais.

Assim como o qualquer agente social do contexto colonial, o escravo não

era somente uma categoria específica, fechada e estática, havia uma diversidade dos

tipos e usos de escravos:

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Durante quatro séculos, escravos foram usados tanto na produção para

o mercado exportador quanto para o mercado local e em todos os

aspectos da produção agrícola, inclusive a de gêneros alimentícios e

na agricultura de subsistência, além de serem empregados em

numerosas ocupações artesanais. Embora os cativos fizessem parte da

força de trabalho rural, compondo as turmas que trabalhavam nas

fazendas, grande parte da população escrava era usada em serviços

domésticos e na agricultura de subsistência, em manufaturas e em

atividades voltadas ao mercado local. (LUNA & KLEIN, 2010,

p.137).

Outro aspecto que está sendo trabalhado hoje em dia é a ideia da mobilidade

espacial e a dinâmica social, conceitos-chaves que explicam que a sociedade colonial no

Brasil não era estática e muito menos dicotômica. A elite e demais atores sociais

sofriam altos e baixos no quesito econômico, além disso, os cargos públicos e religiosos

provocavam diversos deslocamentos espaciais. Constatou-se que, no Brasil colonial,

não se vivia em um local somente, as famílias se mudavam, vendiam seus bens, tanto

religiosos, quanto funcionários públicos, ou latifundiários, por uma questão econômica

e administrativa, mudavam-se constantemente, existiam muitas vendas de propriedades

e diversas ofertas de alugueis de casas. De acordo com Luna & Klein (2010, p.23):

Essa homogeneidade no mercado nacional também resultou da

mobilidade geográfica dos senhores e seus escravos. Em todas as

sociedades americanas escravistas de fronteira em expansão,

proprietários de escravos puderam mudar-se constantemente com seus

cativos para regiões econômicas recém-abertas.

Sabe-se, também, que o perfil do senhor de escravos era diverso:

Pelo menos de 1700 em diante, em nenhum momento da história da

escravidão brasileira os cativos dos engenhos, minas e cafezais

compuseram a maioria dos escravos residentes no Brasil. Na verdade,

a maior parte da população cativa pertencia a proprietários muito

diferentes dos grandes fazendeiros e mineiros. Podemos classificar

nessa categoria econômica e social o padre que tinha uma velha

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escrava para ajudá-lo no trabalho da igreja? Ou a negra forra que, nas

Minas Gerais do século XVIII, declarou-se pobre apesar de possuir

sete escravos? Ou os milhares de agricultores que se dedicavam ao

cultivo para o mercado interno, além de produzir para subsistência

empregando um ou dois escravos que ajudavam a família no trabalho

em seu pequeno pedaço de terra? Como definir o senhor que

empregava seus cativos no comércio urbano, ou o falsificador que

possuía alguns escravos a quem ele dava total liberdade de movimento

e do qual recebia uma remuneração diária em ouro? [...] Tudo isso

sugere uma estratificação e organização social muito mais complexas

do que aquela apontada pelas análises tradicionais sobre a escravidão

no Brasil. A atual historiografia sobre a escravidão mostra situações

cada vez mais complexas e peculiares, embora igualmente frequentes,

que marcaram a escravidão no Brasil. (LUNA& KLEIN, 2010, p.130-

131).

Diante do exposto, concordamos com os autores que são diversos os

desafios e as possibilidades para a construção da história da escravidão no Brasil

colonial. As releituras da historiografia, diante do passado, abriram um leque de

possibilidades de pesquisas com uma visão multidisciplinar. Adiante, trabalharemos

essas questões aqui abordadas relacionando-as à problemática central de nosso artigo.

AS ORDENS RELIGIOSAS DETENTORAS DE BENS DE RAIZ E A SUA

ESCRAVARIA

O clero, durante o período colonial no Brasil, foi dividido em secular e

regular. O clero secular era composto por bispos e sacerdotes que faziam parte da

hierarquia direta da Igreja Católica e respondiam diretamente ao Papa,

consequentemente, através do sistema de Padroado Régio, deviam obediência à Coroa

portuguesa. Já o clero regular formou o conjunto frades e padres de ordens e

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congregações religiosas, que seguiam regras de vida próprias e tinham autonomia dentro

da Igreja, mesmo tendo que seguir normas da Coroa portuguesa.

Durante quase todo o período colonial, a autonomia das ordens religiosas,

principalmente daquelas que eram detentoras de bens de raiz, foi uma preocupação

dentro do sistema colonial para as autoridades, ocasionando diversos conflitos entre a

Coroa e as ordens religiosas. Entretanto, no Brasil colonial, as ordens religiosas

dependiam de concessões dadas pelo Coroa portuguesa: como a doação de sesmarias,

autorização para pedir esmolas, permissão para erigir templos, entre outros assuntos que

exigiam uma dependência e uma submissão, até certo ponto, das instituições religiosas

diante da Coroa.

A primeira ordem religiosa a se fixar no século XV no Brasil foram os

jesuítas, que permaneceram até a sua expulsão em 1765. A partir de 1580, chegam os

carmelitas, os beneditinos e os franciscanos. Com exceção dos franciscanos, que era

uma ordem totalmente mendicante e, portanto, seguia severamente o voto de pobreza,

dependendo somente de esmolas para se sustentar, as demais ordens citadas formavam

uma elite econômica-religiosa, porque também eram detentora de bens de raiz. Além de

adquirir bens através de doação de esmolas, os jesuítas, carmelitas e os beneditinos

podiam solicitar à Coroa e aos fiéis a ampliação de seus bens e comprar bens para o

sustento e crescimento de sua ordem religiosa. Em meio aos tipos de bens adquiridos

pelas ordens religiosas, estavam os escravos, que auxiliavam no cotidiano dos religiosos

dentro da sociedade colonial.

Como acumulavam bens, os religiosos no Brasil se justificavam,

principalmente à Coroa portuguesa, que precisavam de recursos para conseguir realizar

os serviços prestados à comunidade colonial (trabalho em missões, aplicação de missas

pelas almas dos fiéis, sacramentos, assistência espiritual, organização de festas, entre

outros). Sendo assim:

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[...] as instituições religiosas no Brasil dependiam de ‘plantations’ de

açúcar e de fazendas de gado, e, até certo ponto, de propriedades

urbanas, para gerar a renda necessária ao funcionamento. Jesuítas e

Beneditinos, principalmente, eram grandes proprietários de terras e de

escravos. Os religiosos estavam plenamente integrados à sociedade, e

por isso estavam sujeitos, em certos casos, às mesmas pressões

sofridas por qualquer outro grupo de interesse. (LOCKHART;

SCHWARTZ, 2002, p.282).

Ao longo do século XVI, as ordens religiosas (principalmente carmelitas,

beneditinos e jesuítas) acumularam seus bens através de recebimento de sesmarias, de

esmolas, de compra de bens como terrenos e escravos, do aluguel de casas nas vilas e

cidades. Além disso, eram os próprios administradores de suas propriedades,

trabalhando diretamente no controle da escravaria. Segundo Hernández (2009), não

havia nenhuma lei (interna) que impedisse os religiosos (não mendicantes) de atuar na

administração direta de seus bens:

A participação de monges beneditinos na manufatura açucareira data

do século XVI. Este acontecimento coincide exatamente com a sua

incorporação ao exercício de explorar extensas e longínquas

propriedades, trabalho desenvolvido diretamente até o século XIX e

indiretamente até o início do século XX. Não havia nos estatutos nada

que os proibia de trabalhar na roça (ora et labora). Entre os

franciscanos era trabalho vil, só os seculares podiam. (HERNÁNDEZ,

2009, p.87).

É de conhecimento dos historiadores que as ordens religiosas,

principalmente as detentoras de bens de raiz, considerassem os escravos negros como

parte dos seus bens em meio a outras posses como alfaias, terras, engenhos, templos,

entre outros. O trabalho escravo era necessário, principalmente nas fazendas de gado, de

fumo e de cana:

Para o trabalho da produção agrícola, os religiosos adotavam o braço

escravo. Os negros eram recebidos por doação ou herança, ou

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adquiridos através de compra. Além dos trabalhos no eito, os escravos

eram também utilizados para os serviços domésticos nos mosteiros e

claustros. Seguindo o comportamento da classe senhorial, os

religiosos serviam-se dos escravos para o atendimento de suas

necessidades materiais. Também as religiosas enclausuradas tinham

escravas para o serviço particular. (AZZI, 2008, p.42).

Todavia, como vimos em capítulo anterior, não existia somente o escravo

que trabalhava na lavoura ou no engenho, também existiam aqueles escravos que

acompanhavam seus amos, que se caracterizavam em escravos de luxo. Os religiosos

também se beneficiavam desses escravos:

A escravidão começou nos canaviais e nas fábricas de fazer açúcar,

mas logo ela se estende pelas residências dos senhores, porque o

senhor de engenho apresenta compulsivamente todo um aparato de

luxo que exige a subserviência. Quem mais senão o escravo poderia

envolver o senhor na ostentação dessas vidas rurais e urbanas [...].

(NASCIMENTO, 1990, p.9).

Existiam também os escravos que trabalhavam no comércio, os chamados

escravos de ganho ou de aluguel, mas não encontramos na literatura a menção de algum

dono desse tipo de escravo que fosse religioso. Ao analisar o contexto geral, não deve

ter sido difícil ter ocorrido essa realidade.

A ordem religiosa fazia parte da elite colonial, como muitos historiadores

apontam, os padres e frades participavam dos serviços burocráticos e acumulavam

cargos públicos. Além disso, ter um filho em uma ordem religiosa garantia a família um

status elevado. Segundo um memorando enviado por um procurador padre fransciscano

em 1799, Azzi (2008, p.41) afirma que:

Na época, acrescentava ele, já não havia verdadeiras vocações para a

vida monástica, mas ela era procurada como meio de ascensão social.

Nesse caso, as vagas dos conventos deviam ser preenchidas pelos

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filhos da terra, pois eram seus pais que sustentavam a vida monástica

tanto na colônia como na metrópole.

Ao entrar nas ordens religiosas, os bens de herança do noviço religioso eram

doados integralmente à ordem, auxiliando no processo de acúmulo de bens:

Estabelecidas na colônia por desejo expresso dos moradores, as ordens

religiosas receberam auxílios valiosos para sustento de seus membros

por parte da nobreza local e da população em geral. Muitos dos filhos

dessa aristocracia ingressavam nas fileiras dessas instituições,

marcadas na época pelo prestígio social. Esses religiosos tornaram-se

progressivamente senhores de grandes latifúndios e inúmeras

fazendas, tanto na região sudeste, como no nordeste e norte do país. O

próprio governo luso e hispânico colaborou com dotações régias.

Muitos conventos sustentavam-se mediante administração de

engenhos e fazendas recebidos como doações, seja em cumprimento

de promessas, sejam transmitidos como herança por testamento.

(AZZI, 2008, p.42).

Portanto, a escravaria desses religiosos, por representar para a sociedade

colonial um símbolo de nobreza, era necessária para sustento do seu status. Nessa

análise, notamos que o uso do escravo na sociedade colonial não estava restrito a

nenhum personagem, sendo sinônimos de status e de necessidade social, os religiosos

os mantinham como bens, acumulando consideravelmente suas posses. Em alguns

casos, esse acúmulo de bens das ordens religiosas não foi muito bem visto nem por

outras elites e muito menos pela Coroa. Principalmente, na segunda metade do século

XVIII, as ordens religiosas foram sendo cada vez mais pressionadas pela Coroa, tendo

que relatar constantemente as suas posses, inclusive seus escravos, sendo pressionados

também a pagar taxas:

As notificações solicitando informações acerca do número de

religiosos, patrimônios e atividades, fizeram-se presentes em diversas

oportunidades. Os relatórios, realizados em decorrência desses

pedidos, constituem uma fonte informativa importantíssima para o

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conhecimento do conjunto das propriedades dos beneditinos e outras

ordens instituições religiosas existentes no território. Assim, tem-se o

documento, de 12 de maio de 1765, solicitando que fosse enviada,

conforme ordens de Portugal, a relação exata dos Mosteiros, casas e

residências, declarando o número de religiosos e mostrando as rendas

que tinham para o sustento. Outro documento a se ressaltar, é o Mapa

sobre as ordens religiosas da Bahia, de 26 de fevereiro de 1797, que

continha bens e rendas de todos os listados. Finalizando o século

XVIII, tem-se a Carta Régia de 9 de maio de 1799, enviada à

Capitania da Bahia, na qual estão relacionados assuntos a serem

cumpridos, referentes ao estabelecimento da Décima nas casas das

Cidades marítimas. Tratava-se da contribuição conhecida como

décima urbana, aplicada aos imóveis da Cidade, cuja tentativa de

cobrança feita na Bahia. Tratava da captação anual de taxas sobre

todos os ‘Escravos de luxo das cidades, e que não servem à

agricultura’. (HERNÁNDEZ, 2009, p.70).

Por fim, existiram também os escândalos relacionados à posse de escravos,

onde frades também eram acusados de maus tratos à escravaria ou, até mesmo, de

envolvimento carnal ou vivendo em concubinato com escravas ou escravos.

OS ESCRAVOS DA PROVÍNCIA CARMELITANA DA BAHIA EM SERGIPE E

BAHIA SETECENTISTA

Neste capítulo pretendemos estudar a relação das ordens religiosas com suas

escravarias, trabalhando um caso específico, os dos escravos da Província Carmelitana

da Bahia. Essa temática relaciona-se diretamente com nosso objeto de estudo de tese de

doutorado, onde investigamos a influência dos carmelitas calçados da Província

Carmelitana da Bahia nas vilas e cidades do atual nordeste do Brasil colonial. Para

compreendermos a influência desses religiosos, é necessário que encontremos indícios

relacionados à sua atuação ao longo do período colonial, mas, principalmente, devemos

inventariar os seus bens (templos, alfaias, propriedades de terra, fazendas, sítios,

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alugueis). Um desses bens, como vimos ao longo do trabalho, que simbolicamente

representava status quo para os carmelitas, certamente eram os escravos.

O Carmo é uma ordem Mariana desde suas origens, pois tem devoção à

Nossa Senhora do Carmo, e que tem como inspiração de suas fundações o Profeta Elias,

mas que surge no século XII como uma ordem de monges e monjas em clausura e

mendicantes. No século XVI, a ordem passa por uma reforma interna, e através de Santa

Teresa D’Ávila e São João da Cruz, e dividem-se em duas vertentes: os carmelitas

calçados, representados simbolicamente pelo uso do sapato fechado, aqueles chamados

da Antiga Observância; os carmelitas descalços, representados pelo uso da sandália, que

são seguidores Teresianos e que se voltam para o extremo recolhimento e dedicação à

vida contemplativa.

No Brasil, os carmelitas que chegam a partir de 1580 são os da Antiga

Observância que vieram de Portugal, esses fundam conventos e adquirem fazendas e

engenhos em diversas localidades do litoral do Brasil. No século XVIII, os carmelitas

calçados no Brasil estavam divididos em três Províncias Carmelitanas: do Pará e

Maranhão, que administrava as casas carmelitas da Diocese do Grão Pará e Maranhão;

do Rio de Janeiro, que administrava casas carmelitas na Diocese do Rio de Janeiro; da

Bahia, que administrava as casas carmelitas nas Dioceses da Bahia e de Pernambuco.

Para a análise deste artigo, consideraremos o nosso universo de estudo da

Província Carmelitana da Bahia, que atuou nas regiões da Capitania da Bahia de Todos

os Santos, na Comarca de Sergipe D’El Rei, na Comarca das Alagoas, na Capitania de

Pernambuco e Itamaracá. Por fim, sabemos que as fontes, de que dispomos em nossa

pesquisa de Tese de doutoramento, revelam que a maior atuação dos carmelitas

calçados da Província da Bahia, ao longo do século XVIII, foi em terras de Bahia e

Sergipe (esta, diretamente submetida à Capitania da Bahia até o ano de 1822).

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OS BENS DOS CARMELITAS CALÇADOS NO SÉCULO XVII E XVIII

Como já foi relatado anteriormente, sabemos que os carmelitas calçados,

por ser uma ordem religiosa detentora de bem de raiz, acumularam diversos bens ao

longo do século XVII e XVIII. E a Província Carmelitana da Bahia não fugiu da regra,

sendo uma das maiores províncias dos carmelitas calçados no Brasil colonial.

Em relação aos carmelitas calçados da Província Carmelitana da Bahia,

estes adquiriram bem ao longo do século XVII e XVIII. Ao fazer uma leitura e análise

do I Livro do Tombo do convento sede dos carmelitas calçados na cidade de Salvador,

Pedras (2000) relata que: “Estão reproduzidas no I Livro de Tombo dos Carmelitas, na

Bahia, doze Cartas de Sesmaria de terras que, por diferentes meios, vieram a constituir

bens de raiz do Convento. Destas, somente cinco foram cedidas diretamente aos frades.”

(PEDRAS, 2000). Segundo a autora, os argumentos dos pedidos de sesmarias,

solicitados no século XVII pelos carmelitas calçados da Província da Bahia à Coroa, em

sua maioria, alegavam a ocupação de terras para a luta contra os gentios, a falta de

recursos dos conventos e a justificativa de se terminar de construir e ornamentar as

igrejas conventuais, capelas e hospícios.

Ao longo do século XVII, os padres do Carmo da Província da Bahia,

através dos bens do convento de Salvador, por exemplo, fizeram algumas transações de

Escrituras: 14 de Compra e Venda, 1 de troca, 1 de Partido, 1 de Débito, 1 de Dote, 1 de

Transação, 3 de Doação, que se encontram inscritas no I Livro do Tombo do convento

do Carmo da Bahia. Através dessas transações, os religiosos adquiriram diversos bens:

terrenos, fazendas de cana, engenho, fazendas de gados, sítios, terras para plantar

mandioca, principalmente na Capitania de Sergipe D’El Rei (do Rio Real ao Rio São

Francisco), no Recôncavo Baiano e em diversas proximidades da cidade de Salvador.

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A posse de escravos pelos carmelitas calçados do convento sede de Salvador

já é atestada no século XVI, Pedras (2000) menciona o seguinte documento:

Procuração datada de 15.11.1634: os frades do Carmo passaram uma

procuração aos senhores Mathias Lopes mercador, Duarte da Silva e

Francisco Fernandes Furna, moradores em Lisboa, para representá-los

como seus administradores a fim de cuidarem de todos os seus bens,

‘ouro, prata, asucares, escravos, fazendas, cousas outras’, e

especialmente para cobrarem do Frei Sebastião dos Anjos, religioso da

ordem do Carmo, residente em Lisboa, a quantia de cento e vinte mil

réis. (PEDRAS, 2000, p.79).

Além de mencionar os escravos, o documento revela a relação dos

carmelitas com os comerciantes, que deles dependia para vender suas produções,

certamente para comprar seus escravos, e fazer transações além-mar.

Na comarca de Sergipe, os carmelitas calçados do convento da Bahia já

aparecem no início do século XVII, fundando o convento da cidade de são Cristóvão,

comprando terras e fazendas e à frente de missões indígenas, desde o Rio Real até o Rio

São Francisco. Nunes relata os bens setecentistas da Província Carmelitana da Bahia em

Sergipe:

Explica-se, assim, porque chegaram a possuir um patrimônio

considerável de propriedades através do recebimento de sesmarias,

doações ou herança de terras, e também por compra. Em 1716, era

registrada a posse, pelos Carmelitas na Capitania de Sergipe, dos

seguintes bens: Um convento de bastante religiosos, com Prior e

Superior em S. Christóvão; uma capela nas proximidades da cidade,

onde reside um religioso administrador. A Fazenda Gravatá, distante

légua e meia, onde reside um administrador (doação de Manuel

Antunes Pereira com a condição de celebrar missas anuais); um

Engenho, de invocação a São José, onde reside um Religioso

administrador; uma Fazenda na Praia, no momento sem administrador,

distante quatro léguas; um hospício com Vigário-Prior e demais

Religiosos, a Igreja de devoção a Santo Amaro na vila de Sto. Amaro

das Brotas distante doze léguas; uma missão de índios com Superior,

outro religioso e igreja de invocação de Santo Antônio, distante 12

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léguas da Vila de Santo Amaro; uma fazenda dos Bananais, de Capela

de invocação de S. Gonçalo e um religioso administrador; outra

Capela e Fazendas em número de 13, chamada Palmares, distante 12

léguas, na Vila do Lagarto; uma Fazenda, que dizem 12, chamadas

Fazendas de Sta. Izabel, e um religioso administrador, distante 25

léguas na Vila Nova do Rio São Francisco. O patrimônio da Ordem

continuou a crescer, e, em 1760, era registrada a posse dos engenhos

Quindongá, Comandaroba e Vassalo, este na ribeira do Vasa-barris

[...]. Possuíam também o sítio Escurial comprado a Diogo Pimentel,

acrescentado no terreno Pitanga. (NUNES, 1996, p.235).

A partir desses dados, podemos afirmar que a Província Carmelitana da

Bahia, no século XVIII, tinha a posse de grande parte das terras na Comarca de Sergipe

d’El Rei.

No livro de Nunes (2006, p.336-337), há um documento transcrito da

“Relação dos engenhos que fabricavam açucares em toda esta Capitania da Bahia, cuja

averiguação se fez pelo contrato real dos dízimos para conhecimento do que atualmente

rendem os ditos engenhos”, publicado no ano de 1759, dentro das “Notícias Geral de

toda esta Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759”.

Este documento descreve o nome de todos os proprietários de engenho de Sergipe,

tendo 31 engenhos no vale do Rio Cotinguiba e 8 engenhos próximos à São Cristóvão.

Dentre todos os proprietários, o único que era de propriedade de religiosos, situado

próximo à região da cidade de São Cristóvão, era dos religiosos do Carmo, e sabemos

que eram aqueles da Província Carmelitana da Bahia.

Nas terras da Capitania da Bahia, os carmelitas calçados ocupavam grande

parte da região norte da cidade do Salvador: nas intermediações de seu convento,

tinham também algumas hortas na parte oeste da cidade, e grandes fazendas nas

intermediações de Itapuã, cidade de Salvador, além disso, possuíam fazendas de

mandioca, fumo e cana no Recôncavo Baiano, além de alguns engenhos.

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Um mapa de 13 de janeiro de 1750 detalha os seguintes bens do convento

sede do dos carmelitas calçados da Província Bahia, revelando que as suas propriedades

situavam-se majoritariamente em Bahia e em Sergipe:

Estão apontadas neste mapa as seguintes propriedades, mencionadas

no Livro de Tombo em questão: Conventos e Hospício -1 - Convento

do Carmo – Salvador; 2 - Convento do Carmo – São Cristovão; 3 -

Hospício do Rio Real – Sergipe; terrenos com capela; 4 - Hospício de

Santo Amaro de Brotas (SE) – terreno com capela; Missões - 1 –

Missão de Japaratuba – (Santo Amaro de Brotas – SE); 2 – Missão do

Rio Real; Engenho - 1 – Engenho do Carmo – Freguesia de São

Sebastião das Cabeceiras de Passé – Bahia; Fazendas: 1 - Fazenda na

Terra dos Palmares (hoje Anápolis, Campos e Riachão - SE), com

capela sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo; 2 - Fazenda de

canas, na frequezia de Cotegipe – (BA); 3 - Fazenda Forras, em

Estância (SE); 4 - Fazenda de Santa Izabel do Rio de São Francisco –

(SE); 5 - Fazenda de Santo Antonio do Rio das Pedras, com capela do

mesmo nome (BA); 6 - Fazenda de Jacaracanga, com capela em honra

a Santo Antônio em Nossa Senhora da Encarnação do Passé (BA); 7 -

Fazenda de Itapoan (Salvador- BA); 8 - Fazenda de Pirajá com capela

de São Braz (BA). (PEDRAS, 2000, p.115-116).

Desde o século XVI, atestamos que as autoridades incomodavam-se com o

acúmulo de bens das ordens religiosas, principalmente as que detinham bens de raiz.

Desde então, existem algumas medidas que foram tomadas para que o patrimônio

desses religiosos não crescesse, mas os esforços não foram suficientes para diminuir o

acúmulo de bens dessas instituições. Segundo Pedras (2000), os oficiais da Câmara da

Bahia já se preocupavam e solicitavam à Coroa que tomasse medidas:

[...] através de Carta datada de 06/02/1656, (1º volume - pg. 54/55), na

qual pedem ao Rei que tome providências para que nenhuma ordem

religiosa possa comprar bens de raiz, alegando que os jesuítas,

carmelitas e beneditinos, além de não cederem as propriedades

doadas, continuavam comprando cada vez mais engenhos, canaviais,

terras para criação de gado, bem como escravos para serviço nestas

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propriedades. Sendo muito comum a alegação dos padres, nos pedidos

de terras ao governo português, ‘que as necessitam para seu sustento’,

os oficiais confirmam, na Carta acima citada, que as propriedades já

são mais do que suficientes para este fim e chegam até a fazer ameaças veladas, exigindo do Rei providências imediatas. (PEDRAS,

2000, 113).

No século XVIII, percebemos inquietações por conta das autoridades,

principalmente eclesiásticas, justamente a partir da segunda metade do século. Esses

incômodos são percebidos através de queixas relatadas pelos Arcebispos à Coroa,

reclamavam principalmente dos carmelitas calçados (da Província Carmelitana da

Bahia), mas também dos Beneditinos. Segue a primeira carta datada de 1755:

Carta do Arcebispo da Bahia, D. Joaquim Borges de Figueirôa,

dirigida ao Rei [no período Pombalino, após 1755] [...]. Estes ditos

Regulares [Carmelitas Calçados] administrão há muitos anos neste

Arcebispado (e dizem elles que em todo o Brazil) os sacramentos a

todos os seus escravos dentro e fora da clausura, ou seja, nos

Engenhos ou nas Fazendas de cannas ou de gados, dando-os por

desobrigados do preceito da comunhão pascal, sem o legitimo parocho

ter noticia, nem ser avizado. Fazem os baptismos dos filhos dos ditos

escravos e os matrimônios sem embargo da nullidade imposta pelo

Concílio, não sendo celebrados na presença do parocho de um dos

contraentes. E a tanto se extende esta relaxação que athé alguns frades

Carmelitas calçados tem suas fazendas próprias, que administrão com

consentimento dos seus Prelados e nelas praticão o mesmo abuso, sem

que os parochos, por medo e por não serem inquietados, os demandem

ou ajuízem. Estes Carmelitas calçados são os mais relaxados, porque

vivem dispersos, tem fazendas suas, outros com o titulo de Mães ou

Irmans, o que assistem e não vivem no convento e ainda na Cidade

vivem alguns em cazas separadas com licenças antigas dos Prelados,

renovadas sempre pelos que entrão. [...] Estes e os Carmelitas

calçados esperao há muitos anos huma rigorosa reforma (porque

sabem o quanto merecem) temerao que eu tivesse alguma comissão de

V. M. e no primeiro anno da minha rezidencia nesta Cidade dizião que

estavão por tudo, offerecião largar os Aldeias (como se eu devesse ou

podesse aceitar esta administração sem ordem de V. M.) para tudo

dizião que estavão obedientes; fizeram o Capitulo e como não houve

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inspeção n’este ponto, perderão o receio e mostrarão que aquella

obediência era só de vozes e toda affectada [...]. (CERQUEIRA E

SILVA, 1937, p.207).

Esse documento revela a visão de um Arcebispo que visitou principalmente

as terras dos carmelitas da Província da Bahia no Recôncavo Baiano e se deparou com

uma realidade de uma elite de religiosos dispersos, fora da reclusão dos conventos,

administrando fazendas, dando concessões a escravos e vivendo em casas na cidade.

O segundo documento é novamente uma carta do Arcebispo da Bahia

reclamando das ordens religiosas e enfatizando os carmelitas calçados da Bahia como os

mais desregrados:

“He muito conforme ás regras, disciplinas e cânones da Egreja, que os

Regulares vivão nos seus conventos e não fora d’elles, como fazem os

da Bahia, desamparando-os ao ponto de não haver côro nos ditos

conventos, por falta de religiosos, ao mesmo tempo que o recôncavo

daquela Capital abunda em frades, vivendo em casas próprias ou

alugadas, sem diferença alguma dos seculares, tudo na forma que o

Arcebispo da Bahia e o antecessor V. Ex. representão nas suas

redisciplinas e cânones da Egreja que o Prelado diocesano não tolere

este escândalo de tão perniciosas consequências e obrigue aos ditos

regulares a se recolherem aos seus claustros. [...] informou o

Arcebispo da Bahia em carta de 23 de julho de 1778, nos termos

seguintes: ‘Tem esta Capitania frades que innundão o Reconcavo,

principalmente Carmelitas calsados, admoestados os Prelados para

que os fação recolher aos conventos; dizem que não tem com que os

sustentar, talvez porque, os que administrão os engenhos e fazendas

são os do governo a quem se não pede conta. E pedem a V. M. licença

para admitir outros, dizem eles que para desempenhar os conventos

com estes dotes; dias ha em que não há côro pelos não haver no

Convento, estando na Cidade em casas suas ou alugadas, cousa

escandalosa mas de que esta gente já não se escandaliza’.

(CERQUEIRA E SILVA, 1937, p.207).

Novamente, o perfil do religioso/administrador é revelado nessa carta, onde

os carmelitas justificam suas atividades porque não tem como se sustentar. A última

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carta Setecentista relatada, a qual demonstra o descontentamento das autoridades com

os carmelitas da Província Carmelitana da Bahia:

Em 1800, o Ouvidor Antônio Pereira de Magalhães Paços, em

Correspondência ao Capitão General e Governador da Bahia [...]: ‘Nas

correições que esta Vara faz em Vila Nova do São Francisco, os

Juízes ordinários, os oficiais da Câmara se queixam que a Religião dos

P.P. do Carmo Calçados possuem no termo daquela vila desessete

fazendas de Gado, muita escravatura, e não contribuem para Fintas, ou

outro ônus da República, nem fornecem a vila de Carnes, inda rogados

durante a época da correição. A mesma Religião no Rio Real possui

dezoito fazendas grandes de gado vacum e cavalar, as quais chamam

Palmar, e igualmente no termo desta cidade de Sergipe um engenho de

fazer açúcar, e vários sítios de terras, o que participo a V. Excia. Que,

dignando-se propor a S. A. Real, providenciará o que do seu Real

Agrado’. (NUNES, 1996, p.234-235).

Nessa carta, referente à Comarca de Sergipe d’El Rei, atesta-se que o

descontentamento por parte das autoridades é o de que os religiosos não pagam os

devidos impostos, apesar de terem muitos bens como escravos e fazendas, e nem

fornecem carne, apesar de terem um patrimônio considerável de fazendas de gado.

AS RELAÇÕES DE ESCRAVOS DOS CARMELITAS CALÇADOS EM BAHIA E

SERGIPE (SÉCULO XVIII)

Nesse momento, tentaremos fazer um breve levantamento das fontes

primárias (com base em fontes secundárias), principalmente em relação às cartas de

alforria, que atestam a escravaria da Província Carmelitana da Bahia.

Antes de discutirmos as cartas de alforria, gostaríamos de apresentar pelo

menos dois fatos escandalosos, envolvendo a relação escravo e carmelita calçado,

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encontrados no trabalho de Nunes (1996), duas cartas que foram localizadas no Arquivo

Histórico Ultramarino. Em meados do século XVIII:

‘A correspondência de Frei José do Egito, Religioso do Convento do

Carmo de São Cristóvão, relatando o comportamento de Frei

Domingos de São Felipe Nery, administrador do engenho Camaçari

[...]’. ‘Saindo Padre Frei Domingos e San Felipe Nery da

administração do Engenho Camaçari, pertencente ao convento de

Pernambuco, deixou a uma negra dele com um cadeado de ferro nas

partes pudentas a fim de não desonestar [...] AHU – Sergipe, Caixa 6,

doc. Nº 12. [...] relata-se que o Ouvidor Amaro Luiz de Mesquita

Pinto Pena, em 1748 na cidade de São Cristóvão, denunciou o Prior Frei Antônio de São Agostinho: ‘de estar publicamente concubinado

com uma mulata que forrou com o dinheiro do convento, bem como

demais frades que eram coniventes’. (NUNES, 1996, p.237).

Nesses dois documentos, podemos perceber algumas questões curiosas do

cotidiano colonial, no primeiro, o ato de deixar usar cintos de castidade em seus

escravos, e o outro, a infração do voto de castidade pelo religioso carmelita em Sergipe

d’El Rei, que se envolvia sexualmente com uma escrava e que ainda cedeu a alforria

com o dinheiro do convento com o consentimento dos demais religiosos daquele local.

Ambos os casos precisam ser melhor estudados para que tiremos melhores conclusões a

respeito, mas, com base na literatura estudada, existem muitos casos de religiosos que

se envolviam com seus escravos e poucos foram os casos que o próprio senhor pagava a

alforria de seu escravo.

Ao fazer um levantamento da escravaria da Província Carmelitana da Bahia,

encontramos uma pequena relação de escravos no I Livro do Tombo da Província

Carmelitana da Bahia, Pedras (2000) identificou a menção, nesse Primeiro Livro, de

pelo menos quatorze escravos de posse dos religiosos ao longo do século XVIII:

João e Maria Arsequa (da Guiné); Simeão (moleque); Paulo (negro

curraleiro – Sergipe); Catherina, Mulher de Paulo (Sergipe), Pedro

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Mallemba (Curraleiro - Sergipe); Luzia, Mulher de Pedro (Sergipe);

Antônio, Matheus, Domingos, Izabel e Gonçalo - Filhos Pedro e

Luzia; Miguel de Freitas (Fazenda dos Palmares – SE); Maria May

(alforriada em 1796). (PEDRAS, 2000, p.189-190).

Nota-se que os escravos que foram mencionados com suas funções e

localidades onde trabalhavam, em sua maioria, procediam das propriedades dos

carmelitas calçados em Sergipe.

Em relação às alforrias, Pedras (2000) identificou três no I Livro de Tombo

do Convento do Carmo da Bahia, sendo que duas delas a autora descreveu a seguir:

Especificamente com relação aos carmelitas, existe um ‘Escrito de

Liberdade’, datado de 16/04/1792, assinado por Frei Antônio de Santa

Eufrásia Barboza, Mestre de Púlpito e Justiça, Ex-Provincial e Vigário

Prior do Convento do Carmo da Bahia e demais frades, no qual eles

declaram: que são senhores de um escravo pardo, já velho, por nome

Miguel de Freitas, oriundo de uma Fazenda dos Palmares; que o dito

escravo pede a sua liberdade, dando em troca aos padres ‘cem mil réis

em dinheiro, mais um mulato vaqueiro moço e duas escravas’; há uma

condição: ‘que por sua morte e de sua mulher, a religião será herdeira

de todos os seus bens’; que eles, ‘inclinados à Piedade’ lançaram esta

Carta de Alforria. Está copiada a seguir uma Declaração, onde se lê

que foi expedida pela Ouvidoria Geral do Crime uma Carta precatória,

ordenando a prisão dos seis escravos do dito Miguel de Freitas, que

‘andam fugidos nos sertões’, como também que haviam passado uma

outra “carta de liberdade” para a crioula Maria May em 1796. Esta

carta é mencionada também no Livro de Memórias Históricas da

Bahia (Arquivo do Carmo) à fl. 213. (PEDRAS, 2000, p.106).

A carta de liberdade demonstra o que percebemos na literatura, que

claramente o escravo comprou sua alforria dando em troca não somente 100 mil réis,

como também mais três escravos. Mesmo assim, isso não o desvinculou aos religiosos

carmelitas, que fizeram a exigência de receber, com sua morte e o de sua mulher, todos

os seus bens.

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Na Comarca de Sergipe D’El Rei, encontramos, no livro de Notas do

Cartório do 1º Ofício (localizado no Arquivo do Judiciário de Sergipe), algumas

manumissões dos carmelitas calçados da Província da Bahia a algumas escravas. Segue

relação:

- Documento nº 357 – 28-8-1758: Carta de alforria que passou o

Reverendo Padre do Convento do Carmo, Ângelo Theicheira Joseph a

escrava Luisa. (Original complete). Ref. Arq.: SCR/C.1º OF. Livro de

Notas Cx 01-62-52-Lv. 05 – Fls. 200-202; - Documento nº 366 – 11-

11-1758: Carta de Alforria que passou o Reverendo Padro Prior do

Convento do Carmo a crioulinha Anna. (Original completo). Ref.

Arq.: SCR/ C. 1º OF. Livro de Notas Cx 01-62-52-Lv.05 – Fls. 225-

227; - Documento nº 370 – 07-12-1758: Carta de alforria que passou o

Reverendo Prior do Convento do Carmo desta cidade [São Cristóvão]

Frei Joze de Angelo Theicheira a escrava Joanna do Gentio de

Angola. (Original Completo) Ref. Arq.: SCR/ C.1º OF. Livro de Notas

Cx 01-62-52-Lv. 05 – Fls. 236-238; - Documento nº384 – [1759]:

Carta de Alforria que passou o Reverendo Prior do Convento do

Carmo da Capitania de Sergipe Del’Rey José Ângelo Theicheira a

escrava Izabel do Gentio da Angola. (Original completo) Ref. Arq.:

SCR/C.1º OF. Livro de Notas Cx 01-62-52-Lv. 05 – Fls. 268-269; -

Documento nº 629 – [1782]: Carta de Liberdade da Preta Maria

escrava que foi dos religiosos da Nossa Senhora do Carmo. (Original

completo) Ref. Arq.: SCR/C. 1º OF. Livro de Notas Cx.02-53- Lv. 02

– Fls. 67-68. (SANTOS, 2008, s./p.].

Nota-se uma concentração de cartas de liberdade no ano de 1758 e 1759,

sendo uma somente no ano de 1782. Das 5 cartas de liberdade, duas mencionaram a

região, da Angola, não sabemos se a procedência dessas escravas era mesmo de Angola

ou se também tinham laços de parentesco. A menção a crioulinha Anna faz-nos crer que

esta era uma criança nascida no Brasil, e que as demais escravas adultas.

As cartas de alforria de que aqui dispomos são poucas, se pensarmos no

grande patrimônio dos carmelitas calçados da Bahia e, consequentemente, na

quantidade de escravos que eles tiveram para a manutenção de todo seu patrimônio.

Mesmo assim, cumpre-se o que diz na literatura, uma vez que era realmente um número

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reduzido de manumissões cedidas pelos senhores, e com os carmelitas calçados da

Província da Bahia a regra não foi diferente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, entendemos que a historiografia está buscando, para os

estudos da escravidão e da história do Brasil colonial, ampliar suas pesquisas para que

também os olhares se ampliem diante das diversidades de fontes e de pesquisas

regionais e pontuais que hoje em dia utilizamos. A tendência da historiografia é ver a

realidade da escravidão no período colonial como um estudo ainda a ser bastante

aprofundado, principalmente no tocante aos estudos comparativos, com muito mais

perguntas do que respostas. Certamente, os olhares diante dos novos trabalhos

proporcionaram a quebra ou a confirmação de antigos paradigmas, ampliando o campo

de visão para um universo mais diversificado e plural.

Os estudos sobre escravidão apontam que, ao se respeitar as hierarquias, os

atores sociais seguiam regras. Todavia, as regras também não eram seguidas, em alguns

casos que ainda são isolados, mas significativos para repensarmos novos olhares diante

da sociedade colonial. Existiram diversos perfis de senhores e de escravos, e, em meio a

esses atores, surgiram outros personagens como comerciantes, latifundiários, entre

outros.

Pretendemos, em nossos estudos, trabalhar com dois agentes sociais: a

Igreja, em nome da ordem carmelita calçada, e o escravo, em nome de seus escravos. Os

bens dos carmelitas calçados foram essenciais para se detectar tanto a sua influência,

principalmente na capitania da Bahia e Sergipe d’El Rei, quanto para se ter uma ideia de

uma parte de seu vasto patrimônio, incluindo então os escravos. Como no período

estudado não encontramos listas que descrevessem os escravos dos carmelitas,

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O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

procuramos localizar, através de fontes secundárias, alguns documentos que

mencionassem indiretamente a escravaria dos religiosos.

Diretamente, optamos por procurar as cartas de alforria, pois relatam mais

detalhes acerca do escravo como agente social. Sabe-se que a maioria das cartas aqui

trabalhadas estão relacionadas ao patrimônio de somente um dos conventos da

Província da Bahia, que é o da cidade de Salvador, que era sede de toda a Província

Carmelitana da Bahia. A maioria dos escravos aqui relacionados serviu nas terras de

Sergipe, porque é naquele local que aquele convento tinha mais propriedade, tais como:

fazendas de gado, missões e engenhos.

Como esse trabalho é apenas um recorte do nosso estudo de tese, muito

ainda se tem para pesquisar a respeito do patrimônio da Província Carmelitana da Bahia

e, consequentemente, da sua escravaria, que era em proporções bem maiores do que

vimos aqui, pois a Província atuou nas Capitanias Gerais da Bahia e Pernambuco.

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