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- 251 - Magnani, José Guilherme. Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole, São Paulo, Studio Nobel, 1999, 143pp. Leila Amaral Professora do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião – UFJF O cenário de Mystica Urbe é a cidade de São Paulo. Através dela, o autor persegue a caminhada de “pedestres” que, em seus percursos variáveis, serpenteiam a cidade a procura de “valores alternativos”, “novos paradigmas de conhecimento” e “desenvolvimento espiritual”, independentes de sistemas religiosos institucionalizados. Mas a pesquisa realizada por José Guilherme Magnani o legitima a estender suas hipóteses para além desta cidade que lhe serve de campo etnográfico. Observação e análise estão focalizadas nos cruzamentos inevitáveis de práticas religiosas, espirituais e terapêuticas que certos caminhantes citadinos realizam a partir de uma visão holística do homem e da natureza. Impelidos pelo desejo de integração das dimensões corpo-mente-espírito, combinam estilos e usos terapêutico-espirituais provenientes de uma freqüência diversificada por entre espaços filosófico-espiritualistas, centros voltados para a pesquisa e ensino de temas esotéricos e pontos de vendas. Freqüentam, principalmente, certos espaços que Magnani denomina Centros Integrados. Nesses Centros, gerenciados em moldes empresariais, seus freqüentadores não se restringem a uma atividade básica; não se prendem a concepções dogmáticas, nem apresentam um corpo doutrinário fechado; não dispõem de rituais iniciáticos; nem centram suas atividades na mera venda de produtos e serviços. Apresentam, todavia, propostas no interior do difuso discurso esotérico, fundamentando suas escolhas “com base em uma corrente em particular ou num conjunto de discursos mais

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    Magnani, Jos Guilherme. Mystica Urbe: um estudo antropolgicosobre o circuito neo-esotrico na metrpole, So Paulo, Studio Nobel,1999, 143pp.

    Leila Amaral

    Professora do Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio UFJF

    O cenrio de Mystica Urbe a cidade de So Paulo. Atravs dela, oautor persegue a caminhada de pedestres que, em seus percursosvariveis, serpenteiam a cidade a procura de valores alternativos, novosparadigmas de conhecimento e desenvolvimento espiritual, independentesde sistemas religiosos institucionalizados. Mas a pesquisa realizada por JosGuilherme Magnani o legitima a estender suas hipteses para alm destacidade que lhe serve de campo etnogrfico.

    Observao e anlise esto focalizadas nos cruzamentos inevitveis deprticas religiosas, espirituais e teraputicas que certos caminhantescitadinos realizam a partir de uma viso holstica do homem e da natureza.Impelidos pelo desejo de integrao das dimenses corpo-mente-esprito,combinam estilos e usos teraputico-espirituais provenientes de umafreqncia diversificada por entre espaos filosfico-espiritualistas, centrosvoltados para a pesquisa e ensino de temas esotricos e pontos de vendas.Freqentam, principalmente, certos espaos que Magnani denominaCentros Integrados. Nesses Centros, gerenciados em moldes empresariais,seus freqentadores no se restringem a uma atividade bsica; no seprendem a concepes dogmticas, nem apresentam um corpo doutrinriofechado; no dispem de rituais iniciticos; nem centram suas atividadesna mera venda de produtos e servios. Apresentam, todavia, propostasno interior do difuso discurso esotrico, fundamentando suas escolhas combase em uma corrente em particular ou num conjunto de discursos mais

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    ou menos sistematizado, podendo, contudo, combinar elementos de vriastendncias filosficas, religiosas e esotricas clssicas (: 27).

    Toda essa atividade busca sua fundamentao em alguns sistemas depensamento e religies de origem oriental, em cosmologias indgenas, emcorrrentes espiritualistas, no esoterismo clssico europeu e at em propostasinspiradas em certos ramos da cincia contempornea; e no poucas vezesem todos eles simultaneamente, resultando em surpreendentes bricolagens(: 12). Trata-se, enfim, de um fenmeno cuja proporo sofre constanteampliao devido possibilidade sempre presente de invenes de ritos enovas propostas de utilizao do tempo livre. Assim, nem mesmo o lazere o consumo de bens culturais encontram-se ausentes dessa busca deaprimoramento espiritual que caracteriza as terapias corporais, as inumerveispalestras, cursos, demonstraes, workshops, congressos, encontros,vivncias, cerimnias e ritos envolvidos.

    Para caracterizar o universo de valores, hbitos e discursos veiculadosatravs da trajetria particular desses caminhantes e para designar adistribuio e a articulao entre os espaos e prticas concretas queintegram esse universo, Magnani reserva o adjetivo neo-esotrico. Seuobjetivo observar e captar as regularidades e a dinmica prpria desseuniverso, atravs dos vnculos e pactos que ele estabelece com o ritmo, asinstituies e a paisagem da cidade, descrevendo e classificando a formade implantao de seus diferentes espaos e prticas, na cidade, e aspossibilidades de contatos e articulaes entre eles. Recorre, com tal fim,s categorias circuito neo-esotrico, para se referir a um uso do espaoque no se atm contigidade, e trajeto neo-esotrico, para se referirao movimento realizado por um usurio ou um grupo homogneo deles aotransformar as possibilidades oferecidas pelo circuito em uso real.

    Concentrando sua ateno nos trajetos e circuitos, Magnani nos fazperceber a interpenetrao dos diferentes campos espirituais e noespirituais entre si e com os diversos domnios da existncia social, quandoas atividades espirituais, religiosas e no religiosas se misturam muito,atravs de um conjunto de servios que esto na cidade, em diferentes

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    espaos que no se fecham em um nico pedao. Torna-se visvel, dessaforma, a aquisio de instrumentos variados de espiritualidade atravsde escolhas pessoais que, no entanto, no se deixam confundir comanonimato, fragmentao, desordem ou caos semiolgico. Observandoas prticas neo-esotricas desvinculadas dos limites da contigidadeespacial, Magnani pode perceb-las situadas em um horizonte mais amplode contatos, em um fluxo aberto de trocas entre agentes que circulamem uma bem estabelecida teia de solidariedade. Pode perceber tambma extenso das esferas da espiritualidade e da religiosidade em dilogocom outros lugares da cidade: praas pblicas, parques, regies tursticas,shopping centers, teatros, casas de show, livrarias e, at mesmo, instituiesuniversitrias e cientficas.

    Consciente da impossibilidade de definir o fenmeno que constitui oobjeto de seu estudo como um movimento, porque impossvel reconhecernele uma unidade interna e consistente de doutrina, a qualidade do trabalhode Magnani est em destacar a positividade do fenmeno, em contraposios teses que exploram essa caracterstica por um vis negativo. Distanciando-se das explicaes que percebem o universo do neo-esoterismo como umagregado de crenas e prticas dspares a constituir um imenso mosaicodesprovido de sentido, Magnani persegue o movimento do fenmeno paraapreender uma dinmica ordenada de circuitos e trajetos, retirando-odo limbo das superties e dos simulacros de nossa poca.

    Em dilogo com as mais recentes pesquisas de autores brasileiros sobreo tema e a partir de uma clara opo terico-metodolgica, alia sua minuciosaobservao de campo s referncias bsicas que encontra nos trabalhosde Lvi-Strauss, sobre o modo de operar dos mitos e sua anlise estrutural;Clifford Geertz e sua teoria de modelos de e modelos para, para ainterpretao de um determinado ethos cultural; Max Weber e sua propostametodgica dos tipos ideais; e Pierre Bourdieu a partir das categoriasestrutura e habitus, especialmente de sua expresso unidade de pro-priedade, em correspondncia com a tese da existncia de um conjuntode produtos, valores e smbolos associados a um determinado universo

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    que, devido a sua recorrncia, acaba por conformar um padro decomportamento ou estilo de vida. Sob essa orientao, o esforo deMagnani se concentra em detectar os princpios de ordenamento douniverso neo-es, na base de seu funcionamento e organizao: a) nadistribuio das vivncias e celebraes no tempo o calendrio neo-esotrico; b) na oferta, em termos de implantao e distribuio de seusespaos na cidade o circuito neo-esotrico; c) no discurso que lhes servede fundamento a existncia de uma grande narrativa neo-esotrica e d)no mbito de seus freqentadores e seus comportamentos a constituiode um ethos neo-esotrico que conforma um estilo de vida com valores,padres de consumo e formas de sociabilidade peculiares.

    Com a tipologia do material coletado, Magnani tenta manter e visualizara diversidade de prticas, espaos, discursos e freqentadores, reco-nhecendo a inegvel heterogeneidade de prticas, propsitos, crenas erituais e os diferentes graus de formas de adeso, elaborao e sofisticaona fundamentao das atividade, ao mesmo tempo que procura determinar,atravs de uma observao sistemtica, a lgica de um universo identificvelpelo adjetivo neo-esotrico. Oferece, enfim, em Mystica Urbe, um princpiode classificao aplicvel em diferentes nveis de abrangncia, permitindodistinguir tantos planos quanto sejam necessrios para estabelecer umconjunto homogneo e comparvel (: 68-9). Com seu olhar ao mesmotempo totalizador e para dentro do universo pesquisado, Magnaniprocura escapar das abordagens que se dirigem para o fenmeno com umolhar de longe e de fora com o qual sustentam a tese do caos semiolgico.Em conseqncia, o autor de Mystica Urbe derruba algumas imagensestereotipadas em relao ao universo neo-esotrico, inclusive no meioacadmico, particularmente no mbito das pesquisas sociais, ao enfatizar:a) a existncia de formulaes altamente sofisticadas, destinadas a umpblico exigente e bem informado, erudito e participativo, em corres-pondncia com o padro econmico, social e cultural de classes mdia ealta, principais alvos das atividades neo-es, apesar da heterogeneidadede seus adeptos; b) a possibilidade de uma vivncia comunitria que se

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    constri na metrpole efmera e se dissolve no final de cada palestra,curso ou vivncia, mas que permanece viva e ancorada no circuito, narede de sociabilidade e de trocas entre pessoas que, em seus trajetos,compartilham valores, um padro discursivo e de comportamento e umcdigo amplamente reconhecido e aplicado s situaes do cotidiano, ec) a existncia de atividades realizadas no meio neo-es que no soexclusivamente individualistas, privadas e narcisicamente centradas emescolhas e desejos pessoais de sucesso e prosperidade, mas que sopassveis de envolver trabalhos sociais voltados, para alm do engajamentoecolgico, para populaes carentes, mulheres em situao de violnciae postos de sade, por exemplo. Fica tambm em questo o isolamentodas atividades envolvidas no circuito neo-es, como um gueto excntricoe parte. Com sua descrio, percebe-se uma sada das tribos umareverso do indivduo acuado por trs de barricadas comunitrias eidentidades fechadas, constitudas pelas metforas de proteo e defesa para oferecer um sentido de comunidade aberta, sem muros ou portes,em sintonia com a dinmica da cidade e seu correspondente desenvolvimentode redes de solidariedade.

    Mystica Urbe traz tona, atravs da tica de Magnani, um debate entreduas abordagens que, a partir de pontos de vistas opostos, tentam ofereceruma explicao do universo aqui denominado neo-esotrico.

    Em um plo, tem-se a afirmao de que no existiria um significadoou sentido possvel nas combinaes heterodoxas realizadas nesseuniverso, porque suas prticas no passariam de combinaes indivi-dualizadas que se perdem em uma mirade de experincias moda deum relativismo radical.

    Em reao a essa abordagem, Magnani esfora-se para apreender, nadinmica dos circuitos, uma estrutura de significado, reconhecendo emsuas diferenas variantes de um mesmo sistema. Apesar de observar,atravs de exemplos etnogrficos, e advertir seus leitores sobre a comple-xidade das combinaes, articulaes, invenes e trocas que apontampara a riqueza e variao no uso dos servios e tcnicas em oferta, na

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    extenso e na sobreposio de diferentes sistemas em cruzamento, Magnaniopta por oferecer a descrio de um plano geral: tipos de operaese equilbrios estruturais. No contempla, com a mesma intensidade, osmodos de usar os produtos, as tcnicas, as orientaes e as palavras quecirculam no universo em questo, o que poderia reforar sua crtica tesedo caos semiolgico, ao apontar para a riqueza semntica que produzidaquando os sistemas de representaes ou os procedimentos de fabricaono aparecem mais s como quadros normativos mas como instrumentosmanipulveis por usurios (Certeau, 1999). O desenho de circuitos etrajetos, totalizvel pela vista, porque circunscrito a espaos flexveis, masprontamente delineados e configurados um lugar supostamente sincrnico privilegiado em relao aos atos, s performances indissociveis demomentos singulares, cujo movimento subreptcio e astucioso tem a vercom atividades de fazer com o material oferecido durante o percurso depedestres caminhando na cidade (: 98-9).

    Em concordncia com Magnani, eu diria que as prticas incessantementeinventadas nesse universo e por ele classificadas e organizadas em tiposlgicos no se apresentam como um moinho satnico de combinaesque se perdem na atomizao de experincias puramente individuais erelativistas. Mas, em contraposio a Magnani, eu diria que elas no brotamde uma matriz estrutural capaz de ser apreendida pelo pesquisador, no seuaf de encontrar snteses coerentes e lgicas estruturais. Tais combinaesheterodoxas formam snteses, sim, mas snteses provisrias, nas quais osdiferentes sistemas, filosficos, religiosos, cientficos, psicoteraputicos emticos, em interao, deixam-se possuir uns pelos outros, fazendo queelementos opostos e mesmo contraditrios, retirados de diferentes con-textos de significado, tendam a estarem ali se tocando e se deixandocontaminar mutuamente.

    Essas snteses provisrias e ambguas, realizadas atravs dos incontveiscasos de tcnicas inventadas a partir da juno de elementos de sistemasdiferentes e da imaginao do terapeuta, escapam da classificao oferecidapor Magnani, como ele mesmo observa (: 54, nota 15). Isso se d, porque

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    a lgica dessas combinaes no a da imitatio, mas a da inuentio. Aoinvs de uma representao ou de um ritual que se faz ou que se realizasegundo um molde ou gnero prexistente uma regra , as vivncias,workshops, encontros, feiras e cerimnias acontecem como performancesque substituem o culto e aplicam-se descoberta de algo verdadeiramentenovo e inusitado. So a novidade e a singularidade de falas e gestosperformticos que tm valor preponderante em relao a uma norma a serrepetida ou reatualizada. Trata-se, pois, de um universo aberto a experimen-taes, atraindo, inclusive, uma parcela representativa de cientistas eintelectuais, personalidades respeitadas e de renome na comunidadeacadmica nacional e internacional, como fica significativamente sugeridono esclarecedor relato de Magnani (: cap. 2).

    Ao invs da apresentao do universo em questo como um campo dapura diferena ou de um relativismo radical, como fica sugerido na abor-dagem criticada com pertinncia por Magnani, ou de um campo no qualse reconheceria uma identidade estrutural, na base da orientao tericaque sustenta a classificao oferecida por Magnani, poder-se-ia sugerir,pelo menos no que diz respeito aos Centros Integrados, uma apreensodo universo neo-es menos como um sistema e mais como um esforoperformtico para colocar diferentes sistemas simblicos em comunicao.Tal sugesto pode apresentar-se produtiva para se pensar a comunicao,na sociedade contempornea, no tanto a partir de um acordo necessrioquanto ao sentido do smbolo, mas, principalmente, quanto ao seu podersemitico. Algo que acontece, entre outros exemplos possveis, com oconceito de unidade essencial, no universo das performances nova eraou neo-es, nas quais o significado de unidade supostamente compar-tilhado menos importante do que o poder na crena em uma unidade,quaisquer que sejam os sentidos que ela possa adquirir nos diferentessistemas simblicos em interao.

    Poder-se-ia reconhecer, nesse esforo de comunicao ampliada, acontemporaneidade do universo neo-es, em relao dinmica dacidade, como a inteno de Magnani. Mas poder-se-ia tambm reco-

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    nhecer nele a sua contemporaneidade em relao possibilidade deoferecer recursos simblicos para enfrentar os desafios colocados pelanova ordem social global, atravs de suas prticas combinatrias e desua retrica ambulatria.

    Bibliografia

    CERTEAU, M.

    1999 Inveno do cotidiano. I Artes do fazer, Petrpolis, Vozes.