valores inscritos na canção popular tatit

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Valores Inscritos na Canção Popular Luiz Tatit 1. Introdução o poder de persuasão e de interpretação da canção popular, tão analisado em seus entornos antropo-culturais e mercadológicos, possui também uma face estético-gramatical inscrita no próprio ato de composição. Produzir canções significa produzir compatibilidades entre tex- tos e melodias - aos quais se agregam recursos musicais de toda ordem - de modo a configurar um sentido coeso. Como ocorre em geral com as linguagens estéticas, ou sistemas sem i-simbólicos! , a canção também se investe contra a famigerada arbitrariedade do signo saussuriano, buscando uma remotivação das relações entre plano da expressão e plano do conteúdo em suas respectivas pro- gressões discursivas. Tentativa legítima de obter em processo o que não possui em sistema. Ao mesmo tempo que a compatibilidade entre texto e melodia é apreendida sem qualquer esforço pelo ouvinte, sua explicação em termos descritivos exige um meticuloso trabalho de abstração, que compreende a identificação das categorias comuns responsáveis pela articulação dos conteúdos do texto e dos segmentos melódico-mu- sicais. Felizmente, a fruição do ouvinte não depende de análise. 2. Adequação ao objeto Grosso modo, o plano da expressão da canção popular ar- ticula-se com elementos fonológicos e elementos melódicos. Os

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Valores Inscritos na Canção Popular

Luiz Tatit

1. Introdução

o poder de persuasão e de interpretação da canção popular,tão analisado em seus entornos antropo-culturais e mercadológicos,possui também uma face estético-gramatical inscrita no próprioato de composição.

Produzir canções significa produzir compatibilidades entre tex-tos e melodias - aos quais se agregam recursos musicais de todaordem - de modo a configurar um sentido coeso. Como ocorre emgeral com as linguagens estéticas, ou sistemas sem i-simbólicos! , acanção também se investe contra a famigerada arbitrariedade dosigno saussuriano, buscando uma remotivação das relações entreplano da expressão e plano do conteúdo em suas respectivas pro-gressões discursivas. Tentativa legítima de obter em processo oque não possui em sistema.

Ao mesmo tempo que a compatibilidade entre texto e melodiaé apreendida sem qualquer esforço pelo ouvinte, sua explicação emtermos descritivos exige um meticuloso trabalho de abstração, quecompreende a identificação das categorias comuns responsáveis pelaarticulação dos conteúdos do texto e dos segmentos melódico-mu-sicais. Felizmente, a fruição do ouvinte não depende de análise.

2. Adequação ao objeto

Grosso modo, o plano da expressão da canção popular ar-ticula-se com elementos fonológicos e elementos melódicos. Os

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primeiros mantêm a pesquisa da canção a um passo do discursooral (da fala), enquanto os elementos melódicos atraem o ana-lista para o viés musical. Essa dupla inclinação faz da cançãoum objeto de análise extremamente escorregadio e refratário àpesquisa.

Um analista que não seja ao mesmo tempo cancionista, ouainda, que não tenha a sensibilidade prática de produção e apreen-são de canções, tais como elas circulam diariamente nos meios decomunicação, muito provavelmente terminará sua pesquisa numoutro campo de investigação (como musical, por exemplo), e aculpada por esse desvio será certamente a canção, que não se mos-trou suficientemente boa para merecer a aplicação de um modelotão bem construido. Há que se verificar, a todo instante, se o mo-delo construído ainda se refere ao mesmo objeto de análise e seainda está adequado aos recursos de criação do compositor popu-lar. Todos esses problemas incidem diretamente sobre a organiza-ção do plano da expressão da canção, mormente no que diz respei-to à melodia.

Note-se que não se pode pensar em melodia de canção semaproximá-Ia da entoação lingüística, já que ambas manifestam umfazer somático fundado numa substância de expressão vocal. Umcantor sempre diz alguma coisa com suas melodias como qualquerfalante com suas entoações. Paralelamente aos investimentos modaisdisseminados no discurso Iingüístico e no discurso da canção, ocorreum acréscimo tensivo expresso pelos contornos melódicos, ondese concentra grande parte dos conteúdos epistêmicos, cognitivos evolitivos do texto.

No caso da canção, especificamente, o tratamento espe-cial dispensado à melodia, no sentido de estabilizá-Ia eprecisá-Ia em função das acentuações fonológicas, traz a essecomponente uma densidade tensiva particularmente podero-sa, uma vez que sua linearidade é criada para dar conta dosmesmos conteúdos investidos no componente lingüístico.Expliquemos melhor.

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3. Critérios tipológicos para a melodia.

Quando examinamos uma canção popular qualquer, encon-tramos basicamente três modelos de construção melódica, que semanifestam como exploração tensiva dos parârnetros musicais:duração, freqüência e timbre (não considerar aqui a intensidade),

3.1. O primeiro diz respeito a um processo geral de periodi-cidade rítmico-melódica que favorece a produção de motivos rein-cidentes em forma de encadeamento, Esse tipo de progressão deelementos quase idênticos tende a demarcar uma regularidade depulsação e de tempo forte. A importância atribuída aos ataquesrítmicos repercute na escolha dos componentes fonológicos da facelingüística, dando prioridade às consoantes que funcionam comointerruptoras de sonoridade. A concentração de tensividade doparârnetro duração corresponde, nesse caso, a uma redução dapermanência vocálica, efeito produzido pela disseminação ágil dosacentos, e, conseqüentemente, a uma valorização das células rítmi-cas enquanto portadoras de pulsação e estímulos somáticos. Quantomais dinâmico o andamento dessas células, mais sintonia adquirecom relação aos movimentos regulares do nosso corpo (batimentocardíaco e inspiração/expiração por exemplo). A esse processo geralde reiteração, aceleração e regularização da pulsação rítmica, en-gendrando motivos bem definidos, chamaremos tematização deexpressão. Geralmente, a tematização conduz a um tipo deinstrumentação já comprometida com gêneros conhecidos como osamba, o rock, o bolero etc., mas em nadaimpede que sejam fim-dados novos gêneros a partir de modificações na estrutura rítmicada pulsação.

3.2. O segundo modelo caracteriza-se pelo investimentotensivo do próprio contorno em termos de ampliação do campo detessitura melódica, das durações vocálicas e das próprias pausasentre as frases. Surge, conseqüentemente, uma tendência para osgrandes saltos intervalares e para a exploração da região aguda,onde as cordas vocais manifestam fisicamente a tensividade. O pro-longamento das durações, por sua vez, tem como corolário a

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desaceleração rítmica e o abrandamento da pulsação, substituindoos efeitos somáticos por efeitos psíquicos geralmente ligados aconteúdos afetivos. Como ocorre no discurso lingüístico oral, ospontos que acumulam maior densidade tensiva são os denomina-dos tonemas', localizados nos finais das frases melódicas. Quandosão ascendentes ou suspensivos (os que permanecem na mesmafreqüência) indicam continuidade, mantendo a atenção acesa. Quan-do descendem, expressam terminatividade em decorrência dadistensão das cordas vocais. Mas, além dos tonemas, deve-se con-siderar, neste segundo modelo, todo o percurso do contorno comoum campo de investimento tensivo-emotivo. O prolongamento dasdurações, por si só, ajuda a deslocar o pólo de investimento e deconcentração tensiva, pois, na medida em que neutraliza ou, pelomenos, atenua o papel das pulsações, valoriza as permanências nasvogais e, conseqüentemente, as oscilações de freqüência em todasas fases do contorno melódico. A própria dinâmica de polarizaçãotonal, que subjaz a toda canção popular, destaca-se como impor-tante fator de tensividade em função da valorização das freqüênci-as. Quando em correlação com o componente lingüístico, essasoscilações poderão ser descritas, com certa precisão, nos termosdas modalidades: querer, dever, crer/saber e poder. Uma taltensividade, criada pela ampliação das freqüências e das durações,corresponde, pois, à passionalização de expressão.

3.3. O terceiro modelo de construção equivale ao processoinverso de distensão e, conseqüentemente, de desinvestimento dopercurso melódico, como se esse componente tendesse a atingirum grau zero de significação, por intermédio de um tratamentoque esbarra no limiar da pura entoação lingüística. Tanto a reitera-ção dos motivos quanto a configuração dos contornos melódicosperdem sua força tensiva, reduzindo-se às ondulações essenciaispróximas ao discurso oral. A autonomia melódica, muito tênue, éassegurada por algumas reiterações esparsas e pelas inflexõesasseverativas dos tonemas. A tensividade das ascendências e dassuspensões indica nada mais que a continuidade do discurso, emoposição à terminatividade das descendências. As acentuações

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melódicas permanecem atreladas às acentuações lingüísticas, as-sim como os ataques das notas podem se desdobrar ou se reduzirem função do número de fonemas consonantais. A métrica de ex-pressão fica a serviço da ordenação argumentativa e narrativa doconteúdo lingüístico. Trata-se de um procedimento muito seme-lhante ao do discurso coloquial, onde dispensamos as rimas, asaliterações e a estabilidade entoativa. Por isso, não é fácil operarmelodicamente nesse limite. Uma melodia de canção jamais podeser completamente entoativa; no entanto, o simples fato de' indicaressa tendência já revela um processo que denominaremosfigurativização enunciativa de expressão.

Há canções que manifestam inclinações para o primeiro mo-delo de construção melódica (exs.: Águasde março, Tom Jobim;Aquarela do Brasil, Ary Barroso; e O que é que a baiana tem,Dorival Caymmi); outras, para o segundo (exs.: Nervos de aço,Lupicínio Rodrigues; Travessia, Milton Nascimento/FernandoBrant; e Pedaço de mim, Chico Buarque); e outras, ainda, para oterceiro modelo (exs.: Conversa de botequim, Noel Rosa/Vadico;Estatutos da gafieira, Billy Blanco; e Ouro de tolo, Raul Seixas).O mais natural, porém, é a presença dos três modelos oscilando naconstrução melódica de uma mesma canção. Se cantarolarmos, porexemplo, a primeira parte de Garota de Ipanema - Tom Jobim/Vinicius de Morais (Fig. 1)3,

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podemos identificar rapidamente o primeiro modelo referente àtematização de expressão (ou seja, um motivo fartamente reitera-do). Na segunda parte, ocorre a expansão das freqüências no cam-po da tessitura, ao lado de um prolongamento das durações, deslo-cando o pólo de tensividade para o próprio desenho da curva me-lódica (Fig. 2):

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Não é dificil compreender esta oscilação de tensividade. Areiteração regular de um motivo e sua aceleração transferem o focode investimento tensivo de cada motivo isolado para o seu encade-amento, o que neutraliza, de certa forma, o parâmetro musical re-lativo às freqüências, em função do privilégio dado ao parâmetrodas durações (responsável pelo ritmo). De maneira inversa, o pro-longamento das durações, que faz desacelerar o andamento, mais aampliação do espaço de articulação das alturas melódicas rumo àregião aguda da tessitura, atenua a pulsação rítmica e dilui a mar-cação do tempo forte, concentrando o foco de tensividade no de-senho registrado em cada contorno melódico. Ganha relevo, por-tanto, o parârnetro freqüência, maior responsável pela configura-ção do perfil da curva.

Uma vez que todos os parâmetros musicais (timbre, intensi-dade, duração e freqüência) manifestam-se a partir da emissão deum único som, diremos que a oscilação entre duração e freqüênciase dá em termos de maior ou menor acúmulo de densidade tensiva.Assim sendo, a distensão simultânea dos dois parâmetros podeevidenciar a presença do timbre vocal, elemento especificado r dainstância de enunciação, que vem reforçar o terceiro modelo deconstrução melódica, a que chamamos figurativização enunciativa.

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A função normalmente desempenhada pelo timbre, entretanto, é a.de ponte de ligação entre as zonas de densidade tensiva dos enun-ciados melódicos e o sujeito da enunciação que, na canção popu-lar, vem manifestado pelo cantor.

4. A relação com o texto

Esses três modelos de construção melódica da canção tor-nam-se ainda mais interessantes quando verificamos sua compati-bilidade com o desenvolvimento do componente lingüístico.

À tematização melódica corresponde, em geral, a tematizaçãonarrativa. Um outro tipo de reiteração, de natureza sêmica, qua-lifica o /ser/ de um actante', dotando-o de aptidões que se desen-volvem em performances (/fazer/) geralmente pragmáticas. Si-multaneamente, este actante é atorializado' com inúmeros traçosfigurativos vinculados ao que a semiótica chama de expressão domundo natural. Tudo ocorre como se a concretização do motivomelódico representasse a manifestação do ator ou da figuradiscursiva.

À passionalização melódica corresponde a passsionalizaçãocomo estado modal narrativo. Nesse sentido, a tensividade contidanos contornos melódicos representa, no plano da expressão, atensividade decorrente das disjunções e conjunções dos actantes nar-rativos do plano do conteúdo. Não é à toa que quase todas as can-ções do segundo modelo tratam do tema da separação ou da uniãoamorosa.

À figurativização melódica, finalmente, corresponde o aumentoda deitização" lingüística. A distensão dos parâmetros duração efreqüência visa romper, até certo ponto, com a autonomia do enun-ciado musical, atraindo a atenção para a situação enunciativa. Estatendência ocasiona no componente lingüístico um acréscimo con-siderável dos imperativos, vocativos, demonstrativos e de todos oselementos que servem para dar impressão de presentificaçãoenunciativa. Este processo atinge o auge quando o cantor, duranteum samba de breque por exemplo, interrompe a melodia progra-

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mada e passa a improvisar uma fala, cujas entoações, exclusiva-mente circunstanciais, jamais poderão ser novamente repetidas,

Entretanto, o papel mais significativo da figurativização nacanção popular não se refere aos casos de distensão melódica esim à presença da instância enunciativa (relativa à enunciação)na articulação das tensividades enuncivas (relativas aos enunci-ados), O timbre da entoação vem sempre realizado por um in-térprete-cantor que dosa os investimentos tensivos de acordocom seu estilo de tratamento no plano da manifestação, firman-do a cada execução um novo contrato enunciativo com o ou-vinte, A partir desse contrato, os pólos de tensividade propos-tos pela composição são relativizados e reescalonados em no-vas bases fiduciárias. Tudo depende da habilidade persuasivado intérprete no manejo das tensividades já sugeri das na com-posição, Num sentido mais abstrato, podemos dizer que oparâmetro timbre regula, numa perspectiva enunciativa, as os-cilações de tensividade entre os parâmetros duração e freqüên-cia dos enunciados melódicos,

5. Projeto enunciativo

Chegamos, assim, àquilo que podemos chamar de projetoenunciativo de uma canção, Todas as possibilidades oscilatóriasentre tensões temáticas e tensões passionais, bem como o processode desativação dessas tensões, estão inscritas, de algum modo, noseu projeto enunciativo. Quando ouvimos diferentes execuções deuma mesma composição, entramos em contato com diferentes in-terpretações do mesmo projeto geral criado pelo cancionista. Aprópria noção de intérprete, geralmente próxima à de cantor, ga-nha, nesse sentido, nova dimensão: o intérprete é também aqueleque realiza a primeira leitura interpretativa do projeto enunciativodo compositor, orientando, com sua intermediação, a segunda lei-tura que será praticada pelo ouvinte.

O projeto enunciativo pode ser desdobrado em projeto entoativo(recursos investidos na melodia) e projeto narrativo (recursos inves-

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tidos no texto). Uma canção tradicionalmente interpretada numa li-nha temática pode conter, em seu projeto entoativo, alguns traços deprolongamento vocálico ou de pausas que, uma vez valorizados,transferem toda a canção para uma linha de leitura passional. Damesma forma, se seu texto - além da exaltação de seus personagens,objetos e acontecimentos - configura alguma situação passiva, ouum sentimento de perda e carência, tais características podem seaflorar em ressonância à nova inflexão melódica.

Uma canção como Felicidade - Lupicínio Rodrigues -, porexemplo, conheceu, até o momento, pelo menos duas versõesinterpretativas diametralmente opostas: a do Quarteto Quitandinhaem 1947 e a de Caetano Veloso em 1974. A primeira destaca astematizações investidas no projeto enunciativo. No projetoentoativo, temos as seqüências descendentes que, em versão ace-lerada, perfazem um encadeamento recorrente típico da tematização(Fig. 3):

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E, no interior dessas seqüências, outras células se sobressaemcomo alinhavos rítmicos que garantem a expansão dos temas-cha-ves (em destaque pela ampliação simultânea de duração e altura)por todo o encadeamento (Fig. 4),

A segunda parte nos traz uma reiteração temática explícitaque dispensa comentários (Fig. 5):

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Quanto ao projeto narrativo do texto, a valorização recai, nessaversão, sobre os conteúdos que apontam para uma direcionalidaderesolvida. Assim como a melodia constrói um itinerário previsível,através de células reiterativas, o texto revela as conjunções eufóri-cas do actante sujeito EU ("eu gosto lá de fora .. " / "a minha casa ...")e a passagem livre que leva o sujeito até seu objeto de valor ("maseu vou em um segundo ... "). O sujeito ainda conta com dois instru-

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mentos do poder/, manifestados pelo "canto" (" ... eu vou em umsegundo quando começo a cantar") e pelo "pensamento" ("como éque a gente voa quando começa a pensar"), adjuvantes infalíveisde suas ações.

A versão de Caetano Veloso apresenta, entre outras coisas,um significativo alongamento vocálico que repercute imediatamentena individualização dos contornos melódicos (e conseqüente sus-pensão do encadeamento). Acontece que o projeto entoativo destacanção permite também uma leitura passional a partir de uma sim-ples desaceleração. Sobre a base de um campo de tessitura extre-mamente amplo (22 semitons), há uma programação para saltosintervalares ascendentes de 12semitons e para as retenções vocálicasnas sílabas assinaladas abaixo (Fig. 6):

Para manter o efeito durante a segunda parte - onde a progra-mação é eminentemente temática - o arranjo instrumental sustentao caráter passional com as amplas inflexões e amplas durações doestribilho do Luar do sertão - Catulo da Paixão Cearense - soladasao fundo.

Essa sutil inclinação para os recursos passionais, também ins-critos no projeto entoativo de felicidade, é suficiente para "libe-rar" do texto os conteúdos emocionais do projeto narrativo ocul-tados na primeira versão. A perda da "felicidade" e a conjunçãocom um valor disfórico - a "saudade" (que implicita a disjunçãocom o valor realmente desejado) -, vêm à tona e se expandem so-bre os demais conteúdos, tornando-os recessivos.

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o projeto enunciativo criado pelo compositor representa, emprimeiro lugar, uma seleção inicial dos valores temporais, missivos',que estão na base de toda produção de sentido. A opção pela re-tenção do tempo significa um compromisso com os valores remis-sivos manifestados pela lembrança e pela expectativa. A opção peladistensão do tempo se transforma em satisfação eufórica com osvalores emissivos. São paradas e continuidades que fazem oscilar a.elasticidade do "continuum" temporal e que se convertem em pro-gramação comum ao plano da expressão e ao plano do conteúdo",

No exemplo de Felicidade, os valores emissivos foram ressal-tados na versão do Quarteto Quitandinha pela exploração dasvirtualidades temáticas (melódicas e lingüísticas) inscritas no projetoenunciativo. Na versão de Caetano Veloso, os valores remissivos domesmo projeto foram traduzidos em termos de passionalização (me-lódica e lingüística). A solução no tratamento desses valores tempo-rais depende, evidentemente, de cada composição.

O projeto enunciativo contém as possibilidades persuasivasde uma canção que deverão ser absorvidas e selecionadas por umintérprete-cantor e, por fim, apresentadas ao ouvinte para a últimafase interpretativa. O estudo deste projeto é, a nosso ver, o núcleoprincipal de investigação das estratégias persuasivas do próprioobjeto de análise. Tal enfoque preencheria talvez boa parte da la-cuna deixada pelo abandono precoce (salvo honrosas exceções)das pesquisas sobre a linguagem, em função de suas causas e con-seqüências no meio sócio-cultural.

NOTAS

l. Semi-simbolicos são os sistemas significantes que não possuem a mesmaconformidade entre as unidades do plano da expressão e as do plano doconteúdo, como ocorre no sistema lingüística (considerado, em semiótica,sistema simbólico por excelência). As relações entre os dois planos sãoestabelecidas por categorias. Por exemplo, a categoria que articulaascendência e descendência melódicas, no plano da expressão, pode estarrelacionada à categoria que articula, no plano do conteúdo, as noções deprossecução e conclusão.

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2. Os tonemas, segundo Navarro Tomas (Manual de entonación espano/a,México, Málaga, 1966), correspondem às terminações melódicas das frasesenunciativas. Neles se concentra a maior parte do teor significativo dasunidades entoativas.

3. O semioticista Claude Zilberberg emprega o termo missivo para designar acategoria que traduz a tensão temporal ora num viés expectante, remissivo,ora num viés originante, emissivo. Ver,principalmente, seu capítulo intitulado"Pour introduire le faire missif', in Raison et poétique du sens, PUF, 1988.

4. Desenvolvemos este tema no artigo intitulado "Tempo e tensividade naanálise da canção", in Cadernos de Estudo: Aná/ise Musical Ill, São Paulo,Atravez,out. 1990.

5. A noção de atorialização refere-se à passagem do nível narrativo ao níveldiscursivo, quando o actante ganha investimentos semânticos e setransforma num ator com todo o enriquecimento de sentido próprio desseprocesso.

6. A deitização é o processo pelo qual os enunciados se reportam à instânciade enunciação. por intermédio dos dêiticos (tempo, espaço, demonstrativos,imperativos, vocativos ...) o enunciador se projeta no discurso e simula apresença da enunciação no enunciado.

7. O semioticista Claude Zilberberg emprega o termo missivo para designara categoria que traduz a tensão temporal ora num viés expectante, remissivo,ora num viés originante, emissivo. Ver, principalmente, seu capítulointitulado "Pour introduire le faire missif", in Raison et poétique du sens,PUF,1988.

8. Desenvolvemos este tema no artigo intitulado "Tempo e tensividade naanálise da canção", in Cadernos de Estudo: Análise Musical Ill, São Paulo,Atravez,out. 1990.

Luiz Tatit é Professor no Departamento de Lingüística daF.F.L.c.H. da Universidade de São Paulo.