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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS
PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
TOTALIDADE EXISTENCIAL E MUNDO COMO TOTALIDADE: O CONCEITO DE TOTALIDADE NA
ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE MARTIN HEIDEGGER
DISSERTAO DE MESTRADO
Juliana Mezzomo Flores
SANTA MARIA, RS, BRASIL
2009
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TOTALIDADE EXISTENCIAL E MUNDO COMO TOTALIDADE: O CONCEITO DE TOTALIDADE NA
ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE MARTIN HEIDEGGER
por
Juliana Mezzomo Flores
Trabalho apresentado ao Curso de Mestrado do programa de Ps-Graduao em Filosofia, rea de Concentrao em Filosofias
Continental e Analtica, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em
Filosofia
Orientador: Prof. Rbson Ramos dos Reis
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Cincias Sociais e Humanas Ps-Graduao em Filosofia
A comisso examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao de Mestrado
TOTALIDADE EXISTENCIAL E MUNDO COMO TOTALIDADE: O CONCEITO DE TOTALIDADE NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE
MARTIN HEIDEGGER
elaborada por JULIANA MEZZOMO FLORES
como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Filosofia
COMISSO EXAMINADORA
______________________________________________ Prof. Dr. Rbson Ramos dos Reis (UFSM)
(Presidente/Orientador)
______________________________________________ Prof. Dr. Fernando Antonio Soares Fragozo (UFRJ)
______________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Fabri (UFSM)
Santa Maria, 26 de maro de 2009.
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Para Srgio Schultz
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AGRADECIMENTOS
UFSM, pelos 9 anos de formao.
CAPES, pelo financiamento desta pesquisa.
Ao CNPQ, pelo financiamento da pesquisa de iniciao cientfica em Heidegger.
Coordenao e Secretaria do Departamento e da Ps-Graduao em Filosofia da
UFSM.
Aos membros da banca de defesa, pelas valiosas sugestes e comentrios.
Aos professores do Depto. de Filosofia da UFSM: Hans Christian Klotz, Marcelo
Fabri e Ronai Pires da Rocha, cujos exemplos so um estmulo continuado ao
estudo filosfico.
Ao professor Frank Thomas Sautter, pela ajuda com a mereologia e, na graduao,
no primeiro contato com a Lgica.
Ao professor Abel Lassalle Casanave, pelas lies de filosofia e de conduta
acadmica.
Aos colegas no estudo de Heidegger, pelas dvidas compartilhadas, discusses,
questionamentos e (eventuais) risadas: Ademar Pires Goulart Jnior, Adel de
Almeida Vanny, Andr Ramalho da Silveira, Cristina Dias Costa, Fernando Delavy,
Hlia Soares de Freitas, Marcelo Jos Soares, Rafael Padilha e Thiago Carreira
Alves do Nascimento. Em especial, agradeo a Ronaldo Palma Guerche, primeiro
colega a enfrentar juntamente comigo o estudo, por vezes desanimador para os
iniciantes, de Ser e Tempo.
Aos colegas de mestrado: Cludio Reichert, Fabrcio Pires Fortes e Juliele Sievers.
Aos meus familiares e amigos.
Ao professor Rbson, por todas as etapas.
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O todo sem a parte no todo,
A parte sem o todo no parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
No se diga que parte, sendo todo.
- Gregrio de Matos
A libertao ante a tradio a apropriao sempre renovada
de suas foras uma vez mais reconhecidas.
- Martin Heidegger, em Os conceitos Fundamentais da
Metafsica: mundo, finitude, solido
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RESUMO
Dissertao de Mestrado Ps-Graduao em Filosofia
Universidade Federal de Santa Maria
TOTALIDADE EXISTENCIAL E MUNDO COMO TOTALIDADE: O CONCEITO DE TOTALIDADE NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE
MARTIN HEIDEGGER AUTORA: JULIANA MEZZOMO FLORES
ORIENTADOR: RBSON RAMOS DOS REIS Data e Local da Defesa: Santa Maria, 26 de maro de 2009.
O presente trabalho possui como objetivo central investigar a abordagem de Martin
Heidegger ao conceito de totalidade. Para tanto, circunscreveremos nossa
interpretao ao perodo de 1927 a 1930, concentrando-nos nas obras Ser e Tempo,
Que metafsica? e Os conceitos fundamentais da metafsica: mundo, finitude,
solido. Partiremos da reconstruo do uso do conceito de totalidade em Ser e
Tempo, buscando evidenciar a presena da teoria sobre todos e partes apresentada
na 3 Investigao Lgica de E. Husserl. Argumentaremos que a influncia da
mereologia husserliana se d em dois grandes mbitos do questionamento
ontolgico heideggeriano: a) na estruturao da analtica do ser-a e b) na
formulao do problema acerca da totalidade possvel para o ente humano
concebido como existncia. Posteriormente o conceito ser examinado nos escritos
Os conceitos fundamentais da metafsica: mundo, finitude e solido e em Que
metafsica? , tendo como foco a elucidao da noo de ente na totalidade. Por
fim, abordaremos o conceito de totalidade em Ser e Tempo e nos Conceitos
Fundamentais sob um ponto de vista especfico: os problemas vinculados ao
conceito de mundo nas obras de 1927 e 1929.
Palavras-chave: Heidegger; totalidade; mereologia; existncia; mundo.
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ABSTRACT
Master Thesis Postgraduate Program in Philosophy
Federal University of Santa Maria
EXISTENTIAL TOTALITY AND WORLD AS TOTALITY: THE CONCEPT OF TOTALITY IN MARTIN HEIDEGGERS FUNDAMENTAL
ONTOLOGY AUTHOR: JULIANA MEZZOMO FLORES ADVISOR: RBSON RAMOS DOS REIS
Date and place of the defense: Santa Maria, March 26, 2009.
The attendant work advances as a central goal the inquiry into Martin Heideggers
approach to the concept of totality. In this purpose we bound this interpretation within
the period from 1927 to 1930, focusing on the works Being and Time, What is
Metaphysics? and The Fundamental Concepts of Metaphysics: world, finitude and
solitude. Starting with the reconstruction of the concept of totality in Being and Time,
we seek to make clear the bearing of the theory about parts and wholes in the E.
Husserls 3 Logical Investigations. We shall argue that the influence of hursselian
mereology takes place within two wide ranges of the heideggerian ontological inquiry:
a) in the structuring of the analytic of being there and b) the problem formulation
concerning the possible totality for human entity conceived as existence.
Subsequently, this concept will be examined in writings such as The Fundamental
Concepts of Metaphysics and What is Metaphysics?, having as focus the elucidation
of the notion of being as a whole. Finally, we will approach the concept of totality in
Being and Time and The Fundamental Concepts under a specific viewpoint: the
problems linked to the concept of world in the works from 1927 and 1929.
Key-words: Heidegger, totality, mereology, existence, world.
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SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................1
1. O CONCEITO DE TOTALIDADE EM SER E TEMPO E A MEREOLOGIA
HUSSERLIANA...........................................................................................................6
1.1. O projeto de uma ontologia fundamental ...............................................7
1.1.1. O propsito e o mtodo da investigao.............................................7
1.1.2. O ser-a como existncia e ser-no-mundo ........................................10
1.2 A mereologia das Investigaes Lgicas.............................................13
1.3 Totalidade em Ser e Tempo: do categorial ao existencial....................20
1.3.1 A pergunta pela totalidade do ser-a .................................................20
1.3.1.1 Totalidade e a analtica do ser-a ...................................................24
1.3.1.2 Totalidade, existncia e propriedade..............................................28
2 DA METONTOLOGIA AO MUNDO COMO ABERTURA DO ENTE NA
TOTALIDADE............................................................................................................37
2.1 A lgica filosfica e o projeto de uma Metontologia .............................39
2.2 Que metafsica? Nada e o ente no todo............................................44
2.3 Os conceitos fundamentais da metafsica revisitados .........................53
2.3.1 A preleo .........................................................................................53
2.3.2 A metafsica dos organismos ............................................................58
2.3.3 Abertura pr-lgica e formao de mundo........................................59
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2.4 Ente na totalidade e formao de mundo ............................................61
2.4.1 Totalidade e abertura ........................................................................63
3 SIGNIFICATIVIDADE E ABERTURA DO ENTE NA TOTALIDADE: O CONCEITO
DE MUNDO EM SER E TEMPO E NOS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA
METAFSICA.............................................................................................................71
3.1 A mundanidade do mundo em ST .......................................................73
3.2 A mereologia na descrio do mundo como totalidade .......................77
3.2.1 Totalidade significativa: momentos, pedaos?..................................78
3.3 O ponto de partida da pergunta pelo mundo: os modos deficientes do
utenslio e o tdio...................................................................................................84
3.3.1. A determinao mundana do utenslio..............................................84
3.3.2 O tdio e as perguntas metafsicas...................................................87
3.4 Significatividade e ente na totalidade: possvel analogia? ...................90
CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................96
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................103
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INTRODUO
Nos ltimos anos, tornou-se um lugar-comum inevitvel para os estudiosos da
obra de Heidegger ressaltar o novo patamar interpretativo alcanado com a
publicao (e as tradues) das Obras Completas (Gesamtausgabe) do filsofo. A
intensa produo acadmica heideggeriana, antes restrita aos alunos e ouvintes de
suas prelees, teve o material compilado em um impressionante nmero de 102
volumes. Se considerarmos que o nmero de obras publicadas por Heidegger em
vida equivale a uma parte nfima dos volumes previstos no plano de publicao da
Gesamtausgabe, temos um aumento considervel na quantidade de material
disponvel para pesquisa. Evidentemente, no se trata apenas de nova situao em
termos quantitativos. O lanamento dos escritos de Heidegger exibe o retrato de um
profundo desenvolvimento de temas que apareceriam apenas de modo condensado
nos escritos publicados, sobretudo no livro considerado como um marco de sua
carreira (e na filosofia do sculo XX), o livro Ser e Tempo de 1927.
A Gesamtausgabe contribui com o estudo sistemtico da obra de Heidegger,
visto que propicia aos intrpretes a identificao e problematizao de temas
recorrentes em sua filosofia para alm da sempre mencionada questo do ser.
Todavia, no se trata somente de um avano em termos sistemticos ou histricos,
ou de um ganho em complexidade e em rigor para as teses interpretativas acerca da
filosofia heideggeriana. Tambm entra em questo o reconhecimento da
proficuidade dos escritos de Heidegger para o debate contemporneo de problemas
filosficos. A leitura da Gesamtausgabe fornece argumentos para minar a acusao
de que Heidegger foi um filsofo que se dedicou exclusivamente ao problema
ontolgico e, de modo mais grave, que desprezou explicitamente outras questes e
disciplinas filosficas.
Sobretudo, a leitura de prelees, cartas, comentrios, entre outros, pode ser
utilizada como argumento para atenuar a grande acusao filosfica que pesa
contra Heidegger: a de ser um filsofo incompreensvel, sem a preocupao com
rigor conceitual e dado a formulaes que, quanto mais teimam em soar msticas,
mais parecem vazias, ambguas ou simplesmente confusas. Um exemplo importante
pode ser conferido nas prelees que circundam Ser e Tempo, onde a analtica
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existencial apresentada em 1927 minuciosamente desenvolvida por Heidegger,
bem como a explorao do vnculo entre os problemas apresentados e questes
indispensveis da tradio filosfica. Neste sentido, Heidegger continua sendo o
filsofo que procurou colocar a questo do ser, mas tambm um autor cuja leitura
pode atualmente nos dizer coisas relevantes (e inteligveis) sobre a Lgica, as
cincias, a Epistemologia, a intencionalidade, a linguagem, a natureza, o mtodo
filosfico, os animais, a tica, dentre tantos outros temas.
Dentre estes temas, destaca-se o desenvolvimento dos problemas vinculados
ao conceito central para a presente dissertao: o conceito de totalidade. Com
efeito, as elaboraes acerca do conceito de totalidade possuem uma longa e
destacada tradio na histria da filosofia. Pode-se citar desde Plato at Toms de
Aquino, passando por Kant at os problemas colocados pela filosofia de Hegel1.
Nem mesmo as reaes crticas filosofia hegeliana no final do sculo XIX e no
incio do sculo XX pareceram destituir a importncia da noo. Referindo-se
relevncia adquirida pelo conceito de totalidade nos campos da Fsica, Qumica,
Biologia e Sociologia, o filsofo Moritz Schlick, em 1935, faz a seguinte afirmao:
Totalidade quase se transformou em uma palavra mgica da qual se espera a
libertao de todas as dificuldades (Schlick, 1938, p.1). No caso da filosofia, a
abordagem da noo proposta por Schlick vincula-se concepo da filosofia como
anlise lgica da linguagem. Neste contexto, o tratamento do conceito de totalidade
(e de parte) tem como tarefas principais a fixao da gramtica lgica e a anlise do
sentido das sentenas em que estes termos ocorrem.
A abordagem de Heidegger ao conceito de totalidade certamente no pode
ser classificada como pertencendo tradio da anlise lgica da linguagem, como
o caso de Schlick. Porm, a pertinncia de suas consideraes sobre a noo a
alguma tradio filosfica no pode ser precisada to nitidamente. Uma razo
persuasiva para justificar tal dificuldade a de que o filsofo no elaborou uma
teoria ou mesmo teceu consideraes extensas sobre o conceito de totalidade.
Heidegger formulou problemas centrais para sua filosofia em torno do conceito de
totalidade, porm, na maioria das vezes, reservou para a noo comentrios
esparsos ou de natureza apenas indicativa.
Assim sendo, a investigao acerca do conceito de totalidade na obra
1 Para uma histria do conceito de totalidade na filosofia, ver o Historisches Worterbuch (Ritter, 1974).
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heideggeriana ser realizada tendo em vista duas questes principais: qual o
tratamento do conceito de totalidade na histria da filosofia relevante para as
concepes heideggerianas e quais os problemas desenvolvidos pelo filsofo esto
estreitamente vinculados ao conceito de totalidade. A circunscrio da temtica ser
realizada a partir do estudo de trs obras de Heidegger: Ser e Tempo, Que
metafsica? e Os conceitos Fundamentais da Metafsica: mundo, finitude, solido,
compreendendo o perodo dos anos de 1927 a 1930. A curta delimitao temporal,
no obstante, apanha um perodo de importantes mudanas nas concepes
heideggerianas, as quais tm incio aps a publicao de Ser e Tempo.
Os dois eixos investigativos indicados acima sero desenvolvidos em trs
captulos. No primeiro captulo, intitulado O conceito de totalidade em Ser e Tempo e
a mereologia husserliana, examinaremos o conceito de totalidade em Ser e Tempo,
buscando evidenciar e qualificar a presena da teoria sobre todos e partes
apresentada na 3 das Investigaes Lgicas de Edmund Husserl. Argumentaremos
que a influncia da mereologia husserliana se d em dois grandes mbitos do
questionamento ontolgico heideggeriano: a) na estruturao da analtica do ser-a e
b) na formulao do problema acerca da possvel totalizao para o ente humano
concebido como existncia. Para tanto, caracterizaremos brevemente o projeto
ontolgico de Ser e Tempo e a teoria proposta na 3 Investigao. Posteriormente,
reconstruiremos a elucidao da estrutura ser-no-mundo e as exigncias
metodolgicas a ela vinculadas. Por fim, enfocaremos a interpretao heideggeriana
da passagem do modo ser imprprio para o modo de ser prprio, tendo como foco o
problema acerca da definio do conceito de totalidade em termos existenciais.
Destaca-se neste captulo a vinculao do conceito de totalidade aos conceitos
centrais de Ser e Tempo, como os conceitos de existncia, de ser-no-mundo, de
analtica existencial, de ser-para-a-morte e de temporalidade.
No segundo captulo, denominado Da Metontologia ao mundo como abertura
do ente na totalidade, enfocaremos a anlise do conceito de totalidade no perodo
aps a publicao de Ser e Tempo. Iniciaremos apontando as modificaes do
projeto da ontologia fundamental de Ser e Tempo a partir da demanda
heideggeriana, na preleo de 1928 As fundaes metafsicas da Lgica, por uma
nova investigao denominada de Metontologia. A caracterizao da Metontologia
salientar que o conceito de totalidade passa a ter uma importncia central a partir
de 1928, uma vez que Heidegger coloca como tarefa fundamental da Metontologia a
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investigao da noo de ente na totalidade. Embora a noo no tenha sido
desenvolvida na preleo, bem como o projeto da Metontologia no tenha sido
levado a cabo, identifica-se um desenvolvimento da noo de ente na totalidade em
obras posteriores como Que metafsica? e Os Conceitos Fundamentais da
Metafsica: mundo, finitude, solido. Neste sentido, buscaremos elucidar a noo de
ente na totalidade a partir do exame das duas obras. Na abordagem heideggeriana
ao conceito de totalidade aps Ser e Tempo, sobressai-se a vinculao com a
investigao ontolgica de conceitos-chave, como os conceitos de mundo e de
nada.
No ltimo captulo, intitulado Significatividade e abertura do ente na totalidade:
O conceito de mundo em Ser e Tempo e nos Conceitos Fundamentais da
Metafsica, concluiremos a interpretao proposta buscando abordar o conceito de
totalidade na obra heideggeriana sob um ponto de vista determinado: os problemas
vinculados ao conceito de mundo nas obras de 1927 e 1929/30. Para tal fim,
adotaremos uma anlise comparativa entre as formulaes nas duas obras levando
em considerao trs eixos temticos. Em primeiro lugar, discutiremos o uso da
mereologia husserliana para a determinao do conceito de mundo. Em segundo
lugar, avaliaremos o ponto de partida metodolgico das duas investigaes. Em
terceiro lugar, examinaremos a noes de mundo apresentadas em Ser e Tempo e
nos Conceitos Fundamentais da Metafsica: significatividade e abertura do ente na
totalidade, respectivamente. Como tarefa preliminar, reconstruiremos o conceito de
mundo em Ser e Tempo. Nas Consideraes Finais, retomaremos os comentrios
sobre o procedimento e os resultados obtidos, alm de indicar os problemas para
um desenvolvimento futuro da temtica apresentada.
Para finalizar e passar aos captulos, registraremos algumas consideraes
metodolgicas. A utilizao de Ser e Tempo ter como base a traduo feita por
Mrcia S Cavalcante Schuback, publicada em edio revisada pela Editora Vozes
no ano de 2006. No obstante, trabalharemos com a traduo alternativa de alguns
termos, a saber: discurso substituindo fala [para o termo alemo Rede],
cuidado ao invs de cura [para Sorge], conformidade e no conjuntura [para
Bewandtnis], disponvel e disponibilidade ao invs de manual e manualidade
[para zuhanden e Zuhandenheit], subsistncia ao invs de ser simplesmente
dado [para Vorhandenheit], utenslio em substituio a instrumento [para
Zeug], tonalidade afetiva ao invs de humor [para Stimmung]. No caso das
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citaes, manteremos os termos da traduo original, indicando entre parnteses a
opo alternativa adotada. Na traduo do termo Dasein para ser-a e no para
presena, o fizemos tendo como base os argumentos de Casanova (Casanova,
2006, p.11-12).
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1. O CONCEITO DE TOTALIDADE EM SER E TEMPO E A MEREOLOGIA HUSSERLIANA
O presente captulo tem como propsito central apresentar a abordagem de
Martin Heidegger ao conceito de totalidade em Ser e Tempo (ST). A partir do
escrutnio de passagens da obra, procuraremos evidenciar que e como o uso das
noes de todo e partes so feitas em concordncia com a teoria mereolgica de
Husserl na terceira das Investigaes Lgicas (1901). Para tanto, como parte
preparatria, apresentaremos as linhas gerais do projeto da ontologia fundamental
em ST, bem como caracterizaremos a elucidao proposta por Husserl aos
conceitos de todo e parte na terceira Investigao. Com base nas reconstrues
indicadas, argumentaremos que a influncia da mereologia se d em dois grandes
mbitos do questionamento ontolgico heideggeriano: a) na estruturao da
analtica do ser-a e b) na formulao do problema acerca da possvel totalizao
para o ente humano concebido como existncia1.
No obstante, a argumentao em torno da recepo heideggeriana da
mereologia de Husserl enfrenta uma dificuldade de princpio: Heidegger no efetua
uma exposio detalhada ou oferece elaboraes construtivas acerca do conceito
de totalidade. Ou seja, no h um desenvolvimento da noo que apontasse para
consideraes de carter mereolgico em ST. Ademais, bem como acontece com
outros conceitos-chave da fenomenologia, ao longo de ST temos apenas uma breve
1 Neste sentido, a investigao aqui proposta no seria possvel sem as formulaes de verenget (verenget 1996; 1998). Os escritos de verenget apresentam uma tentativa sofisticada e original de insero no intrincado debate sobre a recepo heideggeriana da fenomenologia de Husserl. Grosso modo, tal debate contempla como variantes, por um lado, uma abordagem que enfatiza a ruptura proporcionada pela fenomenologia hermenutica perante a fenomenologia husserliana (Dreyfus, 1991; Stein, 1988; Carman, 2003) e, por outro, o destaque para as formulaes de Husserl como as bases iniciais da ontologia proposta por Heidegger (realizada por Crowell, 2006; Kisiel, 2002, 1993; Moran 2000; Stapleton, 1983, entre outros). verenget inova ao eleger a mereologia como elemento crucial para a abordagem da relao entre Husserl e Heidegger, procurando localizar nas passagens de ST as referncias 3 Investigao, bem como demonstrar em que medida as noes de todo e partes so centrais para a analtica existencial. Em grande medida seguiremos as indicaes trazidas pelo autor, embora a proposta de classificar a influncia da mereologia nos dois grandes planos indicados decorra de nossa leitura, tanto de verenget quanto de ST.
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meno 3 Investigao, e ainda de modo a ressaltar o carter propedutico das
formulaes husserlianas2. Por outro lado, um breve mapeamento evidencia a
efetiva utilizao de conceitos presentes na mereologia das Investigaes. Assim,
embora Heidegger utilize os conceitos de todo e partes para elucidar noes
fundamentais da obra obedecendo terminologia da teoria husserliana, no h um
exame efetivo destas.
Neste sentido, a dificuldade delineada aponta para uma tarefa interpretativa
que no concerne apenas localizao precisa dos termos utilizados por Husserl ao
longo de ST. Central demonstrar que o uso est em conexo com os resultados
trazidos na 3 Investigao, bem como qualificar a importncia da teoria para a
analtica existencial proposta em ST. Deste modo, a argumentao ter como pilares
o cotejo e posterior anlise de passagens importantes da obra, de modo a evidenciar
como Heidegger ao longo de ST efetivamente apropria-se das premissas
fundamentais da mereologia husserliana.
1.1. O projeto de uma ontologia fundamental
1.1.1. O propsito e o mtodo da investigao
O intuito principal de Heidegger em Ser e tempo (1927) a elaborao da
pergunta pelo sentido do ser em geral. Alm do objetivo do tratado, bastante
difundido na literatura filosfica o modo como Heidegger realiza tal
empreendimento a partir da articulao de dois eixos investigativos: a elaborao de
uma analtica existencial e a destruio da histria da filosofia. Com a considerao
de que o ente humano um ente privilegiado na pergunta sobre o ser pois ao
2 Tal dificuldade ocorre no apenas com a mereologia, mas com conceitos importantes da fenomenologia husserliana, como intuio categorial, ego transcendental, representao, etc. Embora Heidegger dedique-se a examinar alguns conceitos centrais da fenomenologia em prelees em torno da publicao de ST, como no caso dos Prolegmenos histria do conceito de tempo (Heidegger, 1992, p. 27-128), muitas noes tm espao em ST apenas a partir de notas marginais. Um exemplo importante o conceito de intencionalidade, que ganhou um extenso exame na preleo Os problemas fundamentais da fenomenologia (Heidegger, 2000), mas apenas breves menes em ST. A referncia escassa ao conceito de intencionalidade em ST comentada detalhadamente por Moran (Moran, 2000).
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existir j se relaciona tanto com seu ser quanto com o ser dos demais entes a
realizao da analtica busca expor conceitualmente as estruturas (os existenciais)
que unificadas mostram-se determinantes em todos os modos de ser deste ente. J
a destruio apresenta-se como a concepo heideggeriana da incorporao da
histria da filosofia no exame da historicidade do problema do ser. Deste modo, a
tradio conceitual elaborada para tratar da pergunta pelo ser (e pelo tempo) deve
ser submetida a um exame de seus pressupostos ontolgicos, tendo como guia as
premissas que caracterizam historicidade prpria do ser-a3.
Apresentada de modo esquemtico, a hiptese delineada na introduo de ST
a de que o tempo a perspectiva na qual o ser-a compreende e interpreta ser, o
tempo o sentido do ser do ser-a. Na medida em que a temporalidade constitui o
sentido do ser do ser-a e se constituio do ser deste ente pertence a
compreenso de ser, ento a compreenso somente pode ser possvel tendo como
base a temporalidade. Se esta hiptese for comprovada, abrir-se-ia a possibilidade
da demonstrao da tese de que o tempo o horizonte a partir do qual ser se faz
compreensvel.
Com a designao de que se trata de realizar uma analtica da existncia
humana, torna-se central o problema acerca do modo adequado de acesso ao ente
visado. O estabelecimento do campo temtico a ser investigado traz consigo a
necessidade da discusso em torno das questes sobre o mtodo a ser utilizado na
investigao. Neste sentido, o campo temtico da analtica a cotidianidade
mediana do ser-a inquirido a partir do que Heidegger determina como mtodo
fenomenolgico-hermenutico. O pargrafo metodolgico de ST corresponde a um
duplo movimento: primeiramente uma caracterizao formal, a partir do
estabelecimento dos significados dos dois conceitos componentes do termo
(fenmeno e logos) e em segundo lugar a desformalizao da noo de fenmeno,
com a posterior fixao da referncia da expresso resultante da composio
(Heidegger, 2006, p.67).
Grosso modo, o mtodo fenomenolgico-hermenutico consiste na operao
interpretativa de apresentao de algo sob a forma de fenmeno. Tal procedimento
3 Para observar a relao entre a historicidade do problema do ser e a historicidade do ser-a no mbito das tarefas da destruio da histria da filosofia, conferir o 6 de ST.
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incorporaria centralmente a exigncia da exibio conceitual4 do que est velado
perante o que est desvelado nos entes, a saber, seu sentido e fundamento. Sentido
e fundamento constituem o marco estruturante que torna possvel o manifestar-se
dos entes, o ser dos entes. Assim, a assuno da diferena entre os entes e as condies da inteligibilidade dos entes como entes, a diferena entre ser e ente,
constitui-se como o premissa central no desdobramento da ontologia fundamental5.
O ente a ser interpretado como ser-a apresenta-se como a dimenso do ser
humano que no apenas lida com entes, mas que, ao faz-lo, vincula-se
compreensivamente com as condies do aparecimento e inteligibilidade destes o
ser-ai ente que possui compreenso de ser6.
Por conseguinte, a filosofia como fenomenologia a cincia do ser, e tem
como tarefa retirar os encobrimentos que impedem o fenomenalizar-se dos entes, a
considerao do ente em seu ser. O conceito de encobrimento vincula-se
diretamente concepo de hermenutica elaborada por Heidegger em meados dos
anos 20 (Heidegger, 1999b). Neste contexto as operaes hermenuticas deixam de
ter relevncia apenas como tcnicas interpretativas de textos, de fenmenos
lingsticos e de artefatos histrico-culturais, ou mesmo como modelo
epistemolgico para as Cincias Humanas7, e passam a definir ontologicamente a
condio existencial do ser humano. A prpria existncia acontece
hermeneuticamente, e o conceito de compreenso localizado primordialmente no
nvel cotidiano (prtico-operativo) e social da relao do ser-a com outros entes e
consigo mesmo.
No obstante, o empenho compreensivo no mundo cotidiano, conquanto seja
a condio para lidar com os entes, envolve estruturalmente a possibilidade da m
compreenso e do encobrimento nivelador de seus diferentes modos de ser. Com
4 Neste sentido, Heidegger reivindica que a exibio do ser dos entes precisa valer-se de um instrumental conceitual prprio (cf. 1 de ST). A concepo dos conceitos filosficos como indicaes formais na filosofia heideggeriana possui um tratamento sistemtico em autores como Dahlstron (Dahlstrom,1994) e Streeter (Streeter, 1997). 5 Aqui, tomamos premissa bsica a interpretao do conceito de ser em ST de Robert Brandom (Brandom, 1992). 6 Para fins da reconstruo esquemtica de ST, apresentamos a noo de ser-a sem a discusso detalhada das implicaes da definio de ser-a como uma dimenso do ser humano. No obstante, o debate em torno da semntica da noo de ser-a (Dasein) ocupa um papel importante na recepo de ST. Para uma problematizao da noo de Dasein, ver Martin (Martin, 2006) & Carman (Carman, 2003). 7 Sobre a histria da hermenutica ver Jean Grondin (Grondin, 2001) e Schndelbach, (Schndelbach, 1991, p. 139-172).
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efeito, os encobrimentos radicam-se no em insuficincias do aparato cognitivo
humano, mas dizem respeito s prprias condies nas quais a compreenso se
estabelece e se explicita, sobretudo no seu vnculo necessrio com a tradio de
compreenses e interpretaes j ocorridas8. Neste sentido, os encobrimentos com
os quais se ocupa a fenomenologia envolvem centralmente o velamento do
problema do ser, seja nas elaboraes conceituais na histria da filosofia, seja em
relao tendncia apresentada em nvel existencial pelo ser-a de se auto-
compreender desconsiderando constantemente seu modo prprio de ser.
1.1.2. O ser-a como existncia e ser-no-mundo
Para dar incio analtica da existncia, Heidegger estabelece como condio
ontolgica mais geral a respeito do ser-a o factum de que neste ente o seu ser est
sempre em jogo. Que o ser do ser-a esteja sempre em jogo indica que o que cada
um no est definido de antemo, no vem determinado em cada caso, por
exemplo, pela posse de um conjunto de propriedades fixas submetidas
modificaes acidentais. A relao do ser-a com seu ser no um trao contingente
ou neutro, mas apresenta-se como um comportamento estruturante deste ente. No
obstante, a relao para consigo mesmo definitria do ser-a no tem carter
primariamente reflexivo, mas sobretudo permeada pela relao com os objetos,
utenslios, com a natureza e com os outros entes que tambm so ser-a.
A partir da indicao de que o ser do ser-a est sempre em jogo, abre-se
caminho para a caracterizao deste como existncia. Na ontologia heideggeriana, a
existncia marca a determinao ontolgica prpria dos entes humanos (assim
como para Kierkegaard), e distancia-se do sentido tradicional de existncia como
perceptibilidade ou efetividade9. Antes de tudo, existncia no qualifica uma
8 Para uma descrio sobre a compreenso, bem como de suas relaes com a interpretao, cf. 32 de ST. 9 Na preleo Os problemas fundamentais da fenomenologia Heidegger interpreta desconstrutivamente o par conceitual essncia/existncia na filosofia medieval como os conceitos que interpelam o ente a partir das perguntas o que (essncia) e se (existncia). Um dos principais resultados crticos desta interpretao o da afirmao de que o ser-a possui um modo de ser que
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propriedade do ser-a, mas o modo como este possui propriedades. Neste sentido, o
ser-a determinado por propriedades apenas como possibilidades. A caracterstica
ontolgica mais geral das possibilidades que do identidade ao ser-a sua no
efetividade, ou seja, a possibilidades existenciais somente determinam o ser-a
enquanto este se projeta nelas e no ganham consistncia efetiva, no se atualizam.
Existir significa estar em, projetar-se em possibilidades, o que corresponde a uma
relao compreensiva e vincula-se fundamentalmente a um poder-fazer, um poder-
desempenhar, um poder lidar com o ser dos entes10.
Do mesmo modo que a noo de existncia, o par conceitual
autenticidade/inautenticidade (ou propriedade/impropriedade) qualifica no os tipos
de possibilidades em que o ser-a se lana, mas o modo como este pode estar em
possibilidades. Assim, o ser-a pode estar em possibilidades de uma maneira
autntica ou inautntica. A primeira parte da analtica contempla a interpretao do
modo de ser cotidiano inautntico do ser-a, conduzida principalmente pelas anlises
do impessoal e do fenmeno da decadncia. De acordo com Heidegger, o impessoal
no deve ser concebido como algo subsistente ou como uma espcie de sujeito
universal, muito menos o gnero do ser-a ou uma propriedade essencial do
existente humano. Desta forma, como resposta pergunta pelo quem da
cotidianidade mediana Heidegger oferece a descrio das caractersticas
ontolgicas do impessoal: afastamento, medianidade, nivelamento e desencargo de
ser (Heidegger, 2006, 184-85).
O si-mesmo do existente disperso no impessoal um modo de ser no qual
este ente encontra-se absorvido pelo empenho no mundo das ocupaes cotidianas.
As possibilidades de ser do ser-a, assim como sua interpretao acerca dos outros
e dos demais entes intramundanos, se encontram primeiramente j disponibilizadas
e normatizadas pela publicidade do impessoal, que uniformiza as operaes
compreensivas e interpretativas na cotidianidade. O manuseio de utenslios, por
exemplo, estabelecido publicamente. O uso adequado do utenslio para a
satisfao das finalidades para as quais foi projetado definido impessoalmente,
no poder ser compreendido a partir do sentido tradicional destas duas categorias. 10 A interpretao das possibilidades como capacidades encontra um debate profcuo em obras de autores como Okrent (Okrent, 1988) e Blattner (Blattner, 1999).
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no dependendo de um uso singular. Do mesmo modo, o utenslio deve poder ser
utilizado por todos os que praticam uma ao com a mesma finalidade.
O modo de ser imprprio o modo de ser da cotidianidade mediana do ser-a,
caracterizado sobretudo pela disperso no impessoal11. Por sua vez, estar disperso
no mundo das ocupaes impessoalmente definido faz parte da constituio bsica
do ser-a e denominado de decada. A decada caracterizada em termos gerais
como uma tendncia do ser-a e empenhar-se de forma impessoal no mundo das
ocupaes e preocupaes cotidianas. Tal situao incide diretamente na auto-
interpretao do ser-a, uma vez que o que leva, ao tomar como parmetro o modo
de ser de outros entes com os quais lida, a desconsiderar seu modo prprio de ser
como existncia (Heidegger, 2006, p.240).
Na interpretao do fenmeno da decada, Heidegger procura ressaltar que
esta no pode ser concebida como uma queda de um estado original ou como a
corrupo da natureza humana, ou ainda como uma propriedade negativa da
existncia que possa vir a ser superada por estgios mais desenvolvidos da cultura.
Com a apresentao da decada como um trao que pertence constituio
ontolgica do ser-a, Heidegger delineia a descrio do modo de ser imprprio:
Impropriedade tambm no diz no mais ser e estar no mundo. Ao contrrio,
constitui justamente um modo especial de ser-no-mundo em que totalmente
absorvido pelo mundo e pelos outros no impessoal (Heidegger, 2006, p.241).
A pergunta pelo modo de ser do ser-a na cotidianidade mediana apresenta
uma das direes de anlise da estrutura ser-no-mundo, a qual articula as definies
do ser-a como existncia e modos prprio/imprprio de ser. Heidegger insiste que
ser-no-mundo deve ser concebido como uma totalidade, embora o procedimento
seja o de identificar e analisar cada momento estrutural que a compe. (Heidegger,
2006, p.75). Os trs momentos pertencentes estrutura ser-no-mundo so: o
mundo, o ente que no mundo e o modo de pertinncia, de abertura para o mundo, o ser-em. Resumidamente, da considerao de cada momento obtm-se os
seguintes existenciais: a significatividade (no caso do mundo), o ser-com outros
(relativo ao ente que ser-no-mundo) e as tonalidades afetivas, a compreenso e o
discurso (relativos ao ser-em). Desta forma, ser-no-mundo relacionar-se com os
11 Como bem atenta Steven Crowell, o impessoalidade no pode ser meramente descrita como anloga impropriedade. (Crowell, 2006, p.126-127).
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utenslios, com outros entes que tambm so ser-a e consigo mesmo a partir da
abertura proporcionada pelas tonalidades afetivas e a compreenso, articuladas
discursivamente.
Os resultados da anlise da estrutura ser-no-mundo possibilitam uma primeira
delimitao do ser do ser-a como cuidado. Dada a exigncia de que a estrutura
ser-no-mundo deva ser determinada como uma totalidade, temos no conceito de
cuidado o ponto de partida para a confirmao desta perspectiva unificadora. De
acordo com Heidegger, o cuidado como ser do ser-a formalmente definido como o
anteceder-se a si mesmo por j ser junto aos entes que vm ao encontro dentro do
mundo (Heidegger, 2006, p.257). Alm disso, completa o plano de exposio das
estruturas do ser do ser-a a exigncia de que a interpretao seja retomada a partir
de demonstrao destas como modos da temporalidade cujo conceito elaborado
de forma a distinguir-se da determinao do tempo encontrada na histria da
filosofia, nomeadamente em Aristteles.
A partir da breve apresentao do projeto de ST, passaremos reconstruo
da 3 Investigao Lgica de Husserl. A caracterizao da 3 Investigao ser
acompanhada de uma descrio sumria do propsito da obra husserliana, bem
como do contexto de discusso sobre a distino ente contedos independentes e
no-independentes no campo da psicologia descritiva da conscincia. Destacar-se-
a classificao dos tipos de partes em pedaos e momentos, alm dos tipos de
totalidades e dos problemas advindos da concepo da ontologia sobre os todos e
partes como o desdobramento de uma ontologia formal.
1.2 A mereologia das Investigaes Lgicas
Sob um ponto de vista geral, as Investigaes Lgicas (IL) de Husserl
apresentam um complexo conjunto de estudos sobre as estruturas formais e
legalidades que constituem as operaes epistmico-veritativas no campo da
conscincia intencional. Assim, a fenomenologia caracteriza-se como uma cincia
que tem por propsito examinar os elementos que perfazem os fundamentos das
demais cincias. A obra divide-se em 6 investigaes, sendo precedidas pelos
Prolegmenos para uma Lgica Pura, nos quais Husserl procura qualificar a
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concepo da lgica por meio da tematizao crtica da interpretao dos princpios
lgicos a partir da psicologia12 (Husserl, 2001, p.11-13).
No 67 dos Prolegmenos, temos a caracterizao das tarefas a serem
desdobradas ao longo das Investigaes, dentre as quais se encontra a de explicitar
as categorias puras do significado e as categorias puras dos objetos, bem como as
leis que governam a vinculao entre estas. As categorias puras so definidas por
Husserl como os conceitos primitivos que esto na base das teorias cientficas,
sejam quais forem suas particularizaes temticas. No caso das categorias puras
do significado temos as noes de proposio, conceito, verdade, etc.; com as
categorias puras objetivas entram em questo as noes de objeto, pluralidade,
nmero, relao, unidade, conexo, etc. (Husserl, 2001, p. 153).
A 3 Investigao Lgica, denominada Sobre a teoria dos todos e das partes
insere-se no desenvolvimento do campo de problemas vinculado ao tratamento das
categorias puras dos objetos. Como uma teoria sobre todos e partes, pode ser
tambm designada como um estudo de mereologia. De origem etimolgica na palavra grega meros (parte), o termo foi utilizado pela primeira vez em 1916 por
Stanislaw Lesniewski (Imaguirre, 2007; Varzi, 2006). Contudo, as formulaes
husserlianas so comumente consideradas como as primeiras em termos
mereolgicos em filosofia, sobretudo por tratar-se da tentativa de desenvolvimento
sistemtico de uma teoria formal sobre todos e partes13.
Com efeito, Husserl ressalta j na introduo da 3 Investigao que esta de
importncia capital no conjunto da obra. Assim, embora muitas vezes vista como um
apndice ou um parntese na descrio propriamente fenomenolgica das outras
investigaes14, a mereologia central para a elucidao de noes fundamentais
das IL15 como, por exemplo, na anlise proposta na 4 Investigao sobre
12 Para um estudo minucioso dos Prolegmenos, ver Rosado-Haddock (Rosado-Haddock, 2000). 13 Imaguire (Imaguire, 2007, p.315) um dos autores que, embora reconhecendo o carter contemporaneamente pioneiro da 3 Investigao, procura ressaltar que Aristteles foi o primeiro grande merelogo da tradio, seguido na modernidade por Leibniz. Neste sentido, a mereologia estaria presente na obra dos autores clssicos e seria um erro histrico atribuir originalidade a Husserl. Para fins do presente trabalho nos limitamos a apontar tal problema, sem avanar numa discusso detalhada de diversas questes que o envolvem, como, por exemplo, o estabelecimento e adequao de critrios comparativos para a classificao de uma teoria como mereolgica. 14 Scherr (Schrer, 1969, p. 200) aponta para esta possvel interpretao do papel da 3 Investigao no conjunto das IL. 15 A literatura atual sobre as Investigaes tende a concentrar esforos em salientar qualificadamente a importncia filosfica da 3 Investigao para o conjunto da obra husserliana (cf. Drummond, 2003; Willard, 2007), no tendo apenas como propsito sua interpretao para linguagens formalizadas,
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15
significados independentes e no independentes, bem como nas investigaes
seguintes sobre a estrutura dos atos da conscincia intencional.
Husserl inicia a 3 Investigao distinguindo entre objetos simples e
compostos, de acordo com o critrio de possurem ou no partes. Os objetos
simples so caracterizados como no decomponveis em uma pluralidade de partes,
so objetos onde no se podem distinguir ao menos duas partes.
Fenomenologicamente, a noo de parte definida num sentido amplo como o que
pode ser discernido perceptivamente num objeto e expresso como um atributo por
meio de um predicado16. Contudo, nem todo predicado que est por um atributo
uma parte: Husserl estabelece que o predicado necessita ser real, ou seja, precisa
ter relao com, ser constitutivo do objeto. Deste modo, predicados como existente,
algo, entre outros, no so predicados reais, conquanto que predicados como
redondo e vermelho o so (Husserl, 2001, p. 5). Com a investigao sobre os tipos
de partes, temos o trnsito para o exame das noes de contedos independentes e
no-independentes, com base na distino proposta no campo de psicologia
descritiva por Carl Stumpf.
A distino entre contedos independentes e no-independentes feita por
Stumpf insere-se num importante debate17 em torno do status ontolgico das
chamadas qualidades de forma, as Gestaltqualitten, que contempla, entre outros,
von Ehrenfels e Meinong. A premissa bsica em discusso a de que nos atos
perceptivos algumas totalidades sensveis so apreendidas juntamente com certas
unidades organizacionais, certas formas, que conservariam um carter ideal. Neste
sentido, a distino entre os dois campos traz a necessidade de conceitualizao
das relaes estabelecidas entre os mesmos. Para von Ehrenfels as qualidades de
forma seriam dados sensoriais de ordem superior percebidas imediatamente e que
no modificariam os dados sensoriais que lhe servem de base. J Meinong introduz
na discusso a noo de produo, uma vez que considera que os dados sensoriais
de base, embora sejam indispensveis para o aparecimento dos dados superiores,
no so suficientes para determin-los, sendo necessria uma atividade mental
como no caso de Fine (Fine, 1995); Smith (Smith, 1982; 1998) e Simons (Simons, 1992). 16 Scherr classifica a definio fenomenolgica de parte como apresentando uma complementao entre uma anlise perceptiva e lgica da expresso (Scherr, 1969, p.202) 17 Faremos a contextualizao de tal discusso a partir das indicaes reconstrutivas de Schrer (Scherr, 1969, p.203-207) e Smith (Simons, 1992)
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16
particular. Contudo, Meinong interpretaria a relao entre as qualidades de forma e
os dados sensveis como de subsistncia (Bestand) da primeira em relao
segunda, promovendo uma interpretao psicolgica das idealidades dos objetos
superiores.
A contribuio de Stumpf se d principalmente pelo conceito de fuso, noo
que caracteriza os fenmenos de organizao das formas nos contedos intuitivos
como a condio de combinao invarivel entre alguns tipos de dados sensoriais.
noo de fuso pertence a anlise da relao entre contedos independentes e no-
independentes, feita atravs do exame da relao entre cor e extenso em uma
figura cujos resultados sero retomados por Husserl18 e interpretados como pilares
para uma teoria dos objetos em geral (Husserl, 2001, p.3).
A distino bsica da qual parte Husserl, entre partes independentes e no-
independentes de um todo, tem como critrio elementar a possibilidade das partes
serem separada ou inseparadamente representadas. A separabilidade no
definida como a possibilidade de que uma parte seja representada fora de uma
conexo com outras partes, sendo, por exemplo, separada dos contedos
concomitantes a ela por meio de um ato de abstrao. Antes, separabilidade
significa a condio de que a parte representada permanea sem variaes mesmo
quando se alterem ou se anulem as partes que esto dadas concomitantemente a
ela (Husserl, 2001, p.7). Em caso positivo, as partes so denominadas pedaos (Stcke); no segundo, em caso negativo, so designadas como momentos (Momente). Husserl examina como exemplos de pedaos as partes de uma planta e
as partes do corpo humano. Como exemplo de momentos, temos a relao entre
cor, superfcie e extenso como partes de uma figura determinada, as notas de uma
melodia, entre outros.
A diferena entre um tipo de parte e outra est fundada no carter da parte
mesma; assim, o momento no pode, por sua prpria constituio, ser representado
separadamente de outro momento ou da totalidade na qual est inserido. No caso
da fenomenologia husserliana, tal necessidade funda-se numa lei de essncia, que
diz respeito s idealidades veiculadas pelos atos intencionais dirigidos a objetos.
Para Husserl, os objetos da experincia nos so dados atravs das intuies num
18 A recepo de Husserl tanto das teorias de Stumpf quanto de Meinong e von Ehrenfels encontra-se nos s 3 e 4 da 3 Investigao. Sobre o conceito de fuso, ver o 9.
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17
conceito que se diferencia da tradio kantiana, por exemplo, onde as intuies so
imediatas e particulares. As intuies que temos de objetos individuais, na
concepo husserliana, apontam para algo que no contingente e nem particular,
a saber, para uma essncia (ou eidos) (Husserl, 2001; 2006). As essncias so, por
sua vez, necessrias e possuem diversos graus de universalidade, de acordo com
seu gnero e espcie.
A incapacidade subjetiva de no poder representar as partes a no ser de um
modo independente ou no-independente, repousa, por conseguinte, numa
necessidade das idealidades que se expressa por meio de uma legalidade. A
dependncia ontolgica entre as partes de um todo concebida por Husserl como a
condio necessria de existncia dada pela pertinncia das partes s essncias de
maior ou menor grau de generalidade. De acordo com Husserl:
O no-poder-existir-por-s de uma parte no-independente, quer dizer, portanto, que existe uma lei de essncia, segundo a qual, em geral, a existncia de um contedo da pura espcie desta parte (por exemplo, da espcie cor, forma, etc.) pressupe a existncia de contedos de certas espcies puras correspondentes (...). Simplificadamente podemos dizer: objetos no-independentes so objetos de espcies puras tais que com referncia a elas existe a lei de essncia que diz que estes objetos, se existem, somente podem existir como partes de todos mais amplos de certa espcie correspondente. (HUSSERL, 2001, p.12, traduo nossa)
Assim, as partes no-independentes so definidas como entidades nas quais
a sua constituio ontolgica dada pela pertinncia, juntamente com outras partes,
a uma totalidade. Tal pertinncia s outras partes e ao todo est dada por uma
relao que se caracteriza como dependncia e diz respeito a uma legalidade ideal.
Assim, a determinao sobre com quais outros momentos um momento determinado
entra em relao de dependncia e qual o tipo de dependncia em questo dado
pelo gnero ideal ao qual o momento pertence.
A teoria sobre todos e partes, Husserl argumenta, pertencente a uma teoria
acerca da categoria formal de objeto, isto , ela um tema de ontologia formal. A noo de ontologia formal elucidada inicialmente a partir da distino entre
ontologia formal e material, mais precisamente, atravs da classificao de
conceitos em formais e materiais. No caso dos conceitos materiais, temos como
exemplo conceitos como casa, mesa, rvore, etc. A considerao dos conceitos
formais, contudo, requer uma diferenciao interna: os conceitos podem ser lgicos
ou ontolgicos. Os conceitos lgico-formais incluem os operadores lgicos, como os
conceitos de negao, conjuno, implicao. J os conceitos ontolgico-formais
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18
caracterizam os objetos como tais, como o conceito de relao, propriedade,
unidade, entre outros.
Os conceitos de parte e todo so conceitos ontolgico-formais, e devem ser
tratados no interior de uma ontologia formal composta por proposies analticas a
priori19. A distino entre proposies analticas a priori e sintticas a priori traada
no 12 e leva Husserl a formular a diferena entre as noes de analtico e sinttico
no a partir da natureza do enlace dos conceitos no juzo, mas tendo como base a
natureza dos gneros ideais intudos. A relao entre conceito, proposio e gnero
no campo das leis a priori assim determinada por Husserl:
Conceitos como algo, um, objeto, propriedade, relao, enlace, pluralidade, nmero, ordem, nmero ordinal, todo, parte, magnitude, etc., tm um carter totalmente distinto dos conceitos de casa, rvore, cor, som, espao, sensao, sentimento que, por sua vez, expressam um contedo genuno. Enquanto que os primeiros esto agrupados em torno da idia vazia de algo ou de objeto em geral e esto associados com este algo ou objeto mediante axiomas ontolgico-formais, os ltimos ordenam-se em torno de diferentes gneros supremos das coisas (categorias materiais), nos quais as ontologias materiais tm sua base. Esta diviso cardinal entre esferas formais e materiais nos fornece a verdadeira distino entre disciplinas (ou leis ou necessidades) analticas a priori e sintticas a priori. (Husserl, 2001, p. 19)
A distino entre proposies analticas a priori e sintticas a priori tem como
base o critrio de preservao de verdade sob formalizao. O conceito de
formalizao determinado no 12 como uma operao que envolve dois
momentos: a substituio de todo o contedo material mediante a conservao da
forma lgica da proposio, bem como a excluso da forma da proposio de toda
afirmao de existncia. No caso de proposies analticas, sob formalizao,
qualquer instanciao das categorias formais ser verdadeira. J com as
proposies sintticas, a forma da proposio no garante sua verdade necessria;
assim, a preservao de verdade no garantida sob qualquer instanciao dos
conceitos: Toda lei pura, que inclui conceitos materiais de modo tal que no admita
formalizao destes conceitos salva veritate (em outras palavras: toda lei que no
seja uma necessidade analtica) uma lei sinttica a priori (Husserl, 2001, p.21).
A ontologia formal visa investigar as leis analticas a priori sobre os todos e as
partes; entretanto, as leis que regem os tipos de todos e partes se referem s
19 Uma apresentao reconstrutiva que procura apontar os problemas trazidos pela noo de ontologia formal husserliana realizada por Poli (Poli, 1993). Sobre ontologia formal, h tambm os estudos de Smith (Smith, 1982; 1998).
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19
essncias materiais so sintticas a priori. Neste sentido, por exemplo, a lei uma
cor no pode existir sem uma superfcie que seja recoberta por ela difere
fundamentalmente da proposio analtica um todo no pode existir sem partes,
uma vez que cor e extenso no esto em relao analtica, no podendo ser
substitudas por quaisquer classes de variveis. Por conseguinte a constituio de
uma ontologia formal supe que possam ser formuladas leis que pertenam aos
objetos em geral e, portanto, que as leis do a priori material possam ter uma
expresso analtica em leis que contenham apenas categorias formais. Neste
sentido, a ontologia formal relaciona-se com a ontologia material na medida em que
procura investigar as leis que regem as essncias de generalidade formal a que
esto subordinadas as essncias e os gneros materiais.
pelo conceito de fundao que Husserl procura dar incio a uma
formalizao das leis que regem os todos e as partes. O conceito de fundao20
apresentado atravs de seis axiomas, sendo posteriormente problematizado por
Husserl com os conceitos de fundao unilateral ou bilateral (ou mtua) e fundao
mediata ou imediata, (17-21). Os seis axiomas de fundao so os seguintes:
(1) Se um a, como tal, necessita ser fundado por um m, ento um todo que tenha
como parte um a, mas no um m, necessitar igualmente da mesma
fundao.
(2) Um todo que compreenda como parte um momento no independente, sem
compreender, contudo, a complementao exigida por tal momento,
tambm no-independente.
(3) Se T uma parte independente de T, ento toda parte independente de T
ser tambm parte independente de T.
(4) Se p parte no-independente do todo T, ser tambm parte no-
independente de qualquer outro todo do qual T seja parte.
(5) Um objeto relativamente no-independente tambm absolutamente no-
independente. Por outro lado, um objeto relativamente independente pode
ser no-independente em sentido absoluto.
20 Dado que uma anlise detalhada da 3 Investigao foge ao escopo deste trabalho, apenas apontaremos a definio de totalidade mediante o conceito de fundao, sem um exame detalhado dos axiomas propostos por Husserl acerca deste tpico. Para uma anlise do conceito de fundao desenvolvido por Husserl no 14 das Investigaes, ver Correia (Correia, 2003).
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20
(6) Se a e b so partes independentes de um todo T, sero relativamente
independentes uma de outra.
Completando a descrio acerca do carter dos todos e das partes, Husserl
discrimina diferentes conceitos de totalidade, a saber, uma totalidade em sentido
estrito, totalidade em sentido amplo21, ou como um agregado, e uma totalidade em
relao de fundao. No primeiro caso, denominada de totalidade a juno de
objetos atravs de um terceiro que Husserl determina como momento unificador.
Numa totalidade em sentido amplo, o que est em questo a soma de suas partes
de forma a perfazer uma unidade. H ainda uma totalidade na qual cada uma das
suas partes est em relao de fundao para com a outra, de modo que a
totalidade formada no esteja fundamentada por nada fora do mbito das prprias
partes. A unidade desta totalidade intrnseca, por contraste da unio de uma mera
soma ou agregado. (Husserl, 2001 p. 23). Alm disso, a relao de fundao entre o
todo e as partes a priori22, no no sentido de que o todo apresenta uma prioridade
causal ou temporal perante as partes, mas porque o todo aparece com as partes,
porm as partes no podem aparecer sem o todo.
1.3 Totalidade em Ser e Tempo: do categorial ao existencial
1.3.1 A pergunta pela totalidade do ser-a
A segunda parte de Ser e Tempo inicia com uma considerao de mtodo.
Juntamente com a recapitulao dos resultados obtidos na primeira parte colocam-
se as tarefas metodolgicas advindas de uma imprescindvel interpretao originria
do ser-a. Tais requerimentos metodolgicos nascem da necessidade de ajustar os
passos interpretativos compreenso pr-ontolgica dos fenmenos. Este ajuste
justifica-se como necessrio uma vez que a interpretao caracterizada como a
elaborao e apropriao de uma compreenso, operaes sempre estruturadas por
21 A denominao dos dois primeiros conceitos de totalidade proposta por Simons (Simons, 1992, p. 80-81) 22 Sobre o conceito de a priori na fenomenologia, ver HEIDEGGER (Heidegger, 1992 p.73-75).
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21
um conjunto de pressupostos: uma posio prvia, uma viso prvia e uma
conceitualizao prvia. Por outro lado, a interpretao modaliza-se e est presente
tanto no lidar com os utenslios como na investigao ontolgica. A analtica
existencial, enquanto investigao ontolgica, intrinsecamente interpretativa. Com
efeito, a analtica do ser-a no apenas envolve interpretao por ser um tipo de
investigao ontolgica, mas, sobretudo, porque reivindica a interpretao como um
dos seus pilares metodolgicos. Ou seja, a analtica desenvolvida como uma
descrio fenomenolgica que tem como cerne um conjunto de operaes
interpretativas (Heidegger, 2006, p.77). Por conseguinte, a explicitao do conjunto
de pressupostos interpretativos da investigao a elucidao da situao
hermenutica torna-se tarefa fundamental da analtica proposta.
No obstante, a noo de uma interpretao ontolgica originria no envolve
apenas a explicitao da situao hermenutica e seus vnculos com a
compreenso. Heidegger argumenta que a exibio da posio prvia, da viso
prvia e da conceitualizao prvia requer duas tarefas adicionais: a conduo de
todo o ente tematizado posio prvia, bem como a preservao da unidade dos
modos de ser do ente na viso prvia. As duas exigncias so apresentadas como
condies sem as quais no possvel colocar a questo do sentido da unidade da
totalidade ontolgica do ser-a o que eliminaria a possibilidade do cumprimento do
propsito de uma anlise da existncia com vistas formulao da pergunta pelo
sentido do ser em geral (Heidegger, 2006, p.304-305).
A situao hermenutica que orientou o procedimento ontolgico da primeira
parte de ST assim caracterizada no 45: a viso prvia investiu-se da idia de
existncia enquanto possibilidades e modos prprio e imprprio de estar em
possibilidades com o privilgio para o modo imprprio; a posio prvia
apresentou o ser do ser-a a partir da cotidianidade mediana como cuidado. De
posse do esclarecimento sobre a situao hermenutica, Heidegger indaga se at
aquele momento a analtica foi capaz de oferecer uma interpretao ontolgica
originria do ser do ser-a, o que habilitaria o trnsito para a questo das condies
da unidade de sua totalidade. A resposta indagao negativa, pois as duas
exigncias concernentes viso e posio prvias no foram satisfeitas: o modo de
ser prprio no foi contemplado na anlise da existncia, bem como o conceito de
-
22
cuidado apresentado a partir da interpretao do modo de ser imprprio e cotidiano
parece impedir por princpio que o ser-a seja uma totalidade23.
Assim, o problema metodolgico assinalado no incio da segunda parte de ST
desdobra-se em duas linhas investigativas, que, por fim, acabam convergindo: o
ente a ser tematizado deve ser levado sua posio prvia em sua totalidade, bem
como a anlise do modo de ser prprio necessria para a completude da
descrio do ser-a como existncia. Tendo em vista a caracterizao das tarefas
atribudas por Heidegger a uma interpretao existencial originria, a possibilidade
do ser-a ser descrito como uma totalidade apresenta-se no apenas como uma
mera precauo a ser tomada para o bom prosseguimento da investigao, mas sim
como um problema metodolgico determinante para a ontologia fundamental.
Ademais, ela complexifica e problematiza a questo metodolgica predominante ao
fim da primeira parte de ST: a pergunta pelo conceito que responde pela totalidade
das estruturas conquistadas no percurso interpretativo da anlise da cotidianidade
mediana do ser-a.
A conduo do ser-a posio prvia em termos de uma totalidade
desenvolvida a partir da pergunta sobre como o ser-a pode ser total; em outras
palavras, se e como o existente humano, a despeito de sua disperso
compreensiva em possibilidades nas relaes com outros, com outros utenslios e
consigo mesmo pode ser uma totalidade em sentido ontolgico. Na terminologia
heideggeriana, o problema diz respeito pergunta por um poder-ser total, por uma
possibilidade na qual o ser-a encontre a totalizao. Contudo, os desdobramentos
desta questo conduzem Heidegger a um tema bastante conhecido na tradio
filosfica24, envolvendo os conceitos de morte, situao limite, angstia, deciso,
entre outros. Sobretudo, a vinculao entre totalidade e propriedade encontra-se de
forma explcita na filosofia existencial de S. Kierkegaard25.
Em que pese s contribuies originais de Heidegger temtica referida,
importante ressaltar que a pergunta metodolgica acerca da possvel totalidade do
existente humano leva o filsofo a formular uma posio que dir respeito no
23 Detalharemos este problema na seo 1.3.1.2 deste captulo. 24 Sobretudo de importncia crucial para a tradio denominada de Filosofia Existencial, cujos maiores representantes so K. Jaspers e S. Kierkegaard. Um exemplo de exame da vinculao da filosofia Heidegger com conceitos centrais da filosofia existencial pode ser encontrado em Blattner (Blattner, 1994). 25 Aqui seguimos a indicao de Stephen Mulhall (Mulhall, 1997, p.95)
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somente a uma descrio fenomenolgica adequada, mas que se vincula ao
problema, exemplificado na anlise kierkegaardiana, de como pode ocorrer a
formao de unidade para o ser humano concebido como existncia. Na concluso
da interpretao da existncia prpria, Heidegger afirma:
A questo do poder-ser todo , portanto, uma questo ftica e existenciria, a que a presena [o ser-a] responde numa deciso. A questo sobre o poder-ser todo da presena [do ser-a] desvinculou-se agora, por completo, do carter inicialmente apontado em que ela se apresentava como questo terica e metodolgica da analtica da presena [do ser-a], nascida de um esforo por alcanar o dar-se da presena [do ser-a] em seu todo. Esta questo, de incio discutida apenas do ponto de vista de uma metodologia ontolgica, era legtima, mas somente porque a sua base remonta a uma possibilidade ntica da presena [do ser-a]. (HEIDEGGER, 2006, p. 392).
Na passagem destacada, Heidegger indica trs campos onde se apresenta a
pergunta pela totalidade do ser-a, um metodolgico, um ontolgico-existencial e
outro existencirio, afirmando o carter derivado dos dois primeiros em relao ao
ltimo. A pergunta terica sobre a totalidade do ser-a articula-se
metodologicamente. O questionamento existencirio, rebatido ao plano de cada
existncia determinada, respondido sob condio de uma deciso. No obstante, o
posicionamento sobre a possvel totalidade do ser-a fruto de uma descrio
fenomenolgica desenvolvida no apenas como uma questo de metodologia
filosfica, mas em termos da elaborao de uma ontologia da existncia humana.
Neste sentido, na formulao filosfica da pergunta pela totalidade do existente
humano concorrem uma contraparte metodolgica e outra ontolgico-existencial.
Ambas conduzem interpretao ontolgica das condies para a resposta
questo sobre a totalidade em termos de cada existncia singular26.
Inserida no legado de problemas da filosofia existencial, contudo, a questo
ontolgica sobre a totalidade pode aparentemente implicar um tratamento do
problema que se afaste dos resultados de uma teoria formal sobre os conceitos de
todo e parte por exemplo, da ontologia formal representada pela mereologia
husserliana. No obstante, argumentaremos no que segue em favor da influncia da
mereologia nos planos metodolgico e ontolgico-existencial indicados. Para tanto,
na primeira seo abordaremos os temas predominantes em termos ontolgicos e
26 Dada a restrio da temtica no poderemos aprofundar outra questo central que advm da passagem citada: ao tornar dependente a questo ontolgica sobre a totalidade da deciso em termos nticos, Heidegger estaria formulando no apenas as condies existencirias (de cada existncia singular) para a resposta ao problema da totalidade, mas tambm, e, sobretudo, as condies para uma ontologia que procurasse dar respostas para tal problema.
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metodolgicos na primeira parte de ST, a partir caracterizao de Heidegger da
estrutura ser-no-mundo e as exigncias metodolgicas a ela vinculadas. Na seo
posterior enfocaremos a interpretao heideggeriana da passagem do modo ser
imprprio para o modo de ser prprio e da totalizao possvel para o ser-ai
concebido como existncia.
1.3.1.1 Totalidade e a analtica do ser-a
A analtica proposta por Heidegger delineada de forma a tornar
conceitualmente explcito o ser do existente humano. Entretanto, o ente a ser
conceitualizado possui como caracterstica ontolgica mais geral possuir atributos
apenas como possibilidades singularmente projetadas. Heidegger reivindica que as
estruturas a serem descobertas no podem ser categorias, mas devem adequar-se
a uma ontologia do existente humano como possibilidades. Deste modo, os
existenciais qualificam estruturalmente as possibilidades do ser-a e sua adequada
conceitualizao possibilita que a analtica existencial seja levada a cabo. No que
segue, tomando como base a primeira parte de ST, argumentaremos que, por meio
da formulao das tarefas metodolgicas pertinentes ao desenvolvimento da
analtica, Heidegger caracteriza os existenciais e o ser do ser a em termos
ontolgicos a partir das relaes todo-parte advindas da mereologia de Husserl.
Na introduo da primeira seo de ST, Heidegger enuncia como uma
exigncia metodolgica que tanto a estrutura ser-no-mundo da qual parte a
analtica pretendida como o ser do ser-a possam ser definidos sempre em
referncia a uma totalidade, no obstante na anlise se recorra a uma nfase em
seus elementos constitutivos:
Mantendo-se o ponto de partida j estabelecido na investigao, deve-se liberar uma estrutura fundamental da presena [do ser-a], o ser-no-mundo. Este a priori da interpretao da presena [do ser-a] no uma interpretao adicional, mas uma estrutura originria e sempre total. No obstante, oferece perspectivas diversas dos momentos que a constituem. Mantendo-se constantemente presente a totalidade preliminar desta estrutura, devem-se distinguir fenomenalmente os respectivos momentos. (..) Com base nos resultados da anlise desta estrutura fundamental ser, ento, possvel delinear provisoriamente o ser da presena [do ser-a]. (HEIDEGGER, 2006, p. 83)
A estrutura ser-no-mundo, no obstante oferea perspectivas variadas dos
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elementos que a constituem, necessita ser considerada como uma estrutura total.
Deste modo, a analtica visada deve se tornar possvel com a demonstrao de que
as estruturas a serem explicitadas no so elementos independentes entre si, mas
exibem uma co-pertinncia originria. A analtica ser bem sucedida
metodologicamente se exibir a estrutura ser-no-mundo como esta sempre se
apresenta: como uma totalidade. As estruturas da existncia so concebidas como
formando uma totalidade no composta por pedaos, e sim por momentos. A anlise
da estrutura ser-no-mundo central, na medida em que Heidegger prope que esta
considere os momentos que constituem tal estrutura, porm, reiterando que se trata
de um fenmeno de unidade. Justificando o uso da expresso ser-no-mundo, antes
de consider-la em suas estruturas componentes (ser-em, o ente que no mundo e
o mundo), Heidegger observa:
A expresso composta ser-no-mundo, j na sua cunhagem, mostra que pretende referir-se a um fenmeno de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu todo. A impossibilidade de dissolv-la em elementos, que podem ser posteriormente compostos, no exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compem esta constituio. O achado fenomenal indicado nesta expresso comporta, de fato, uma trplice visualizao. (HEIDEGGER, 2006, p. 98-99)
Ao reiterar que a expresso ser-no-mundo se refere a um fenmeno de
unidade, Heidegger caracteriza-o ontologicamente: a unidade deste fenmeno tal
que impede sua dissoluo em elementos apresentados como unitrios (mesmo que
por meio de uma elaborao conceitual). Constitudo de tal modo, contudo, o
fenmeno ser-no-mundo comporta uma multiplicidade de traos estruturais. Ou seja,
no o caso que o fenmeno em questo tal que no possua partes. A concepo
da impossibilidade da dissoluo do fenmeno em elementos, no implica uma
perspectiva atmica do ser-no-mundo, concebido como um objeto simples em
termos husserlianos. Antes, Heidegger enfatiza que esta totalidade constituda por
uma multiplicidade de momentos estruturais.
Tal concepo possvel se o prprio conceito de parte envolvido esteja
prximo ao de momento husserliano. No apenas a terminologia empregada est de
acordo com a 3 Investigao: a caracterizao do fenmeno supe que a totalidade
em questo seja composta por momentos, no por pedaos. Caso contrrio, a
noo de uma totalidade no decomponvel, mas que possua uma multiplicidade de
elementos sugeriria inconsistncia. Por outro lado, Heidegger aqui, ao que parece,
no se refere apenas impossibilidade de uma anlise do conceito mediante uma
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decomposio das notas que o constituem. Com a ajuda penltima passagem,
poder-se-ia afirmar que se trata do modo como o prprio fenmeno compreendido
e interpretado pelo ser-a.
No pargrafo que conclui a anlise preparatria da estrutura ser-no-mundo,
apresenta-se uma observao complementar sobre a totalidade a ser considerada
na analtica existencial. A interpretao da estrutura ser-no-mundo resultou em uma
diversidade de existenciais, desde a significatividade, o impessoal, a compreenso,
o discurso, a decada, at os modos de abertura cotidiana, como a curiosidade, o
falatrio, a ambigidade, entre outros. Em termos gerais, a questo que se
desenvolve no 39 incorpora como ponto crucial para a analtica a confirmao de
que o conjunto de momentos estruturais obtidos durante o percurso da investigao
perfaz um todo unificado embora o ponto de partida da investigao seja o de
conceber a estrutura ser-no-mundo como uma totalidade. Na delimitao negativa
acerca do acesso totalidade visada, Heidegger ressalta que esta no pode ser
obtida mediante uma montagem, pois a conjugao das estruturas obtidas deve
apontar para uma totalidade composta por momentos:
Negativamente, est fora de questo: a totalidade do todo estrutural no pode ser alcanada fenomenalmente mediante uma montagem de elementos. Para isso seria necessrio um plano. O ser da presena [do ser-a], que sustenta ontologicamente o todo estrutural, torna-se acessvel num olhar completo que perpassa esse todo no sentido de um fenmeno originariamente unitrio, que j se d no todo, de modo a fundar ontologicamente cada momento estrutural em sua possibilidade. A interpretao conectadora no pode, portanto, ser uma coletnea que rene o que j foi conquistado at aqui. (HEIDEGGER, 2006, p. 247)
O ser do ser-a a perspectiva que responde pela totalidade das estruturas
obtidas com a interpretao da estrutura ser-no-mundo. Esta perspectiva no pode
ser obtida atravs da descrio de como os elementos se conectam, ou mesmo pela
proposta de coligir os elementos obtidos com base no que comum entre eles. O
ser do ser-a um fenmeno originalmente total e funda seus momentos estruturais.
A totalidade em questo, uma vez composta por momentos, no pode ser alcanada
pelo acrscimo sucessivo das partes, pois estas somente so o que so se
pertencerem a um todo e se j estiverem em conexo com outros momentos. Neste
sentido, a totalidade anterior no por aparecer temporalmente antes ou de modo
destacado perante os momentos, mas por aparecer com os momentos como sua
unidade, como sua condio de possibilidade.
A pergunta pela totalidade das estruturas existenciais vinculada
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tematizao do modo de acesso ao ser do ser-a. Heidegger volta-se ento para a
interpretao do campo temtico de uma tonalidade afetiva em particular, a
angstia. A angstia apresenta-se como um modo de acesso privilegiado, pois
provoca uma modificao na auto-compreenso cotidiana do ser-a, promovendo
uma descontinuidade na funo identificadora desempenhada pela insero
ocupacional no mundo. A interpretao da angstia evidencia que os existenciais
descritos no apenas possuem base fenomenal, mas tambm que aparecem como
partes no-independentes de uma totalidade. com a determinao do ser do ser-a
como cuidado que a exigncia de que as estruturas existenciais sejam
apresentadas em uma unidade, em sua co-originariedade e em suas possibilidades
de modificao existencial, preliminarmente satisfeita (Heidegger, 2006, p. 247).
Na definio do cuidado, reafirma-se que as determinaes existenciais
obtidas no so partes de um composto. Alm disso, temos a indicao no apenas
sobre o tipo de totalidade em questo mas sobre o modo como suas partes se
relacionam: a unidade por elas formada tal que para sua correta determinao no
se pode prescindir de nenhuma parte. As partes so partes no-independentes de
um todo. Nas palavras de Heidegger:
Os caracteres ontolgicos fundamentais desse ente so existencialidade, facticidade e decadncia. Essas determinaes existenciais, no entanto, no so partes integrantes de um composto em que se pudesse ou no prescindir de alguma. Ao contrrio, nelas se tece um nexo originrio que constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas determinaes ontolgicas da presena [do ser-a] que se poder apreender ontologicamente seu ser como tal. (HEIDEGGER, 2006, p. 258)
Alm da determinao dos momentos da totalidade do ser-a como no sendo
partes de um composto, a relao entre estes determinada como de co-
originariedade. Ou seja, alm das partes apenas aparecerem na conexo com
outras partes num todo, esta conexo tal que no pode ser concebida como uma
relao hierrquica. Um exemplo aparece na anlise dos existenciais da abertura: a
disposio, a compreenso e o discurso. De acordo com Heidegger:
Encontramos os dois modos constitutivos do ser do pre [do ser do a], igualmente originrios, na disposio e no compreender; sua anlise sempre recebe a confirmao fenomenal necessria da interpretao de um modo concreto e importante para toda a problemtica seguinte. A disposio e ao compreender so, de maneira igualmente originria, determinadas pela fala [pelo discurso]. (HEIDEGGER, 2006, p. 192)
Desta forma, a relao de co-originariedade entre os momentos, em termos
da mereologia husserliana, pode ser esclarecida como a de uma fundao bilateral
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entre as partes, ou seja, as partes esto em relao de fundao mtua. Transposta
para os existenciais da abertura, esta concepo implica que disposio sempre
pertence uma compreenso e um discurso, e vice-versa, bem como que nenhum
destes existenciais tem a primazia do ponto de vista ontolgico em relao ao outro.
Entretanto, a caracterizao ontolgica do ser-a como cuidado obtida a partir
da anlise do modo de ser imprprio considerada apenas provisria. Ela
completada com a descrio do modo de ser prprio do ser-a, a partir do exame do
conceito ontolgico-existencial de morte.
1.3.1.2 Totalidade, existncia e propriedade
A pergunta pela totalidade do existente humano a partir da interpretao do
cuidado problematizada atravs da exigncia heideggeriana (que descrevemos
anteriormente) de uma interpretao ontolgica originria. Para tanto, temos
tambm a requisio de que a resposta a tal questionamento possa ser acessada a
partir de uma possibilidade atestada no cotidiano do ser-a. resposta a pergunta
pelo poder-ser total da existncia deve corresponder uma confirmao ntica.
Contudo, a descrio do prprio modo de ser do ente questionado feita no decorrer
da analtica parece ser um impedimento de princpio possibilidade da totalidade do
ser-a. Nos 45 a 52 de Ser e Tempo, Heidegger defronta-se com este problema.
Ao incio do 46, Heidegger pronuncia-se claramente acerca das tarefas
advindas da avaliao dos resultados da anlise do cuidado com vistas a uma
interpretao originria do ser-a:
Antes de se anular o problema da totalidade da presena [do ser-a], devem buscar-se as respostas reclamadas por estas questes. A questo sobre a totalidade da presena [do ser-a] que, do ponto de vista existencirio, emerge como a questo da possibilidade dela poder-ser toda e, do ponto de vista existencial, como a constituio de ser de fim e totalidade, abriga a tarefa de uma anlise positiva dos fenmenos da existncia at aqui postergados. No centro destas consideraes acha-se a caracterizao ontolgica do ser-para-o-fim em sentido prprio do ser-a e a conquista de um conceito existencial de morte. (Heidegger, 2006, p.310-311)
Assim, a questo de levar o ser-a sua posio prvia em seu todo, para
posteriormente questionar-lhe a unidade, envolve a considerao da estrutura do
cuidado a partir de dois eixos investigativos que possuem como ponto central a
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elaborao do conceito de morte.
Heidegger define o cuidado como o anteceder-se a si mesmo por j ser-em
um mundo como ser junto aos entes que vem ao encontro no mundo (Heidegger, p.
259-260), indicando que nesta definio se encontram unificados os caracteres da
existencialidade, da facticidade e da decadncia. Contudo, tal caracterizao do ser
do ser-a aponta para uma dificuldade aparentemente insupervel na determinao
deste como uma totalidade. Com efeito, Heidegger detecta no anteceder-se a si
mesmo uma caracterstica de ainda-no, de pendente, de no concluso. A
definio da existncia cotidiana como um poder-ser aparentemente indicaria que o
ser-a um ente que sempre pode ser, mas ainda no alguma coisa, ainda no se
efetivou, no se tornou real (Heidegger, 2006, p.310). Desta forma, torna-se um
problema importante investigar se esta caracterstica implica que o ser-a no pode
chegar a ser uma totalidade. A investigao levada a cabo pela formulao do
conceito ontolgico de morte.
Na interpretao heideggeriana, o carter de ainda-no pertencente ao
anteceder-se a si mesmo do ser-a no nem algo que possa ser caracterizado
como pendente numa juno aditiva nem algum aspecto que no esteja acessvel
para o ser-a (Heidegger, 2006, p.318). Antes, o anteceder-se aponta para a
dimenso de projeo em possibilidades constitutiva da existncia. Neste sentido,
Heidegger insiste que o ser-a como um todo pode ser alcanado pela morte. No
nos termos uma finalizao, um completar-se, um chegar ao fim, como um trmino
ou um acabamento, mas sim na acepo de ser-para-o-fim, de ser-para-a-morte. Ou
seja, a totalizao possvel para o ser-a possvel a partir de uma relao com a
morte. Porm, a morte e o modo de relacionar-se com a morte so entendidos numa
acepo peculiar, o que faz com que esta abordagem se afaste do conceito de
morte em sentido biolgico.
Grosso modo, o conceito de ser-para-a-morte diz respeito ao modo finito da
projeo das possibilidades humanas, uma vez que as possibilidades somente o so
enquanto projeo e lanamento e no se efetivam, no podem constituir um feixe
de propriedades a serem portadas pelo ser-a. pelo reconhecimento de que sua
identidade est dada por possibilidades que o ser-a pode estar nelas de modo
prprio, preservando-as ou projetando-se em outras. Projetando-se decididamente
em possibilidades impessoalmente recebidas, finitas e reconhecidas como tais, o
ser-a ganha sua identidade prpria, formando um todo autntico/prprio.
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Na interpretao do ainda-no, Heidegger indaga se este ainda-no deve ser
entendido como uma pendncia. Com o exame do conceito de pendncia, temos
uma delimitao negativa ao modo como a totalidade do ser-a deve ser concebida.
Nas palavras de Heidegger: Estar pendente significa, portanto: o que co-pertinente ainda no est ajuntado. Do ponto de vista ontolgico, as partes a serem ajuntadas nesse caso no esto mo, embora possuam o mesmo modo de ser das que j se acham mo que, por sua vez, no se modificam com a entrada do resto. O remanescente parte do conjunto liquidado, ajuntando-se sucessivamente s partes. O ente em que alguma coisa est pendente tem o modo de ser do que est mo. Chamaremos de soma a juno ou a disjuno nela fundada. Essa disjuno que pertence a um modo de juno, a falta enquanto o que est pendente, no proporciona, de forma alguma, a determinao ontolgica do ainda-no que, como morte possvel, pertence presena [ao ser-a]. (...) A juno daquilo que a presena [o ser-a] em seu percurso at completar o seu curso, no se constitui como um ajuntamento ininterrupto de pedaos que, de algum modo e em algum lugar, estariam mo por si mesmos. (HEIDEGGER, 2006, p. 317)
Na passagem citada temos a tematizao acerca do modo no qual o existente
humano pode ser uma totalidade, oferecendo uma definio negativa do fenmeno a
partir da caracterizao da condio de estar pendente do ser-a. Se tivermos em
mente que a pendncia anloga a uma dvida, na qual o que est pendente
liquidado com a juno da parte que est faltando, apenas teremos visado uma
possvel totalidade que no diz respeito ao modo de ser do ser-a. Estar pendente
neste sentido diz respeito aos utenslios, ao sentido de ser da disponibilidade. Tomar
o carter de pendncia do ser-a como o que falta para uma totalizao, concebida
como a soma de partes, um erro que atribui um modo de ser alheio ao da
existncia do ser-a.
A totalizao possvel para o ser-a no pode ser uma juno, ou seja, trata-se
de uma totalidade que no uma soma de pedaos. O uso da terminologia
husserliana aponta para outra caracterstica das partes que compem uma
totalidade no modo de ser dos entes disponveis: a totalidade no se modifica com a
entrada das partes pendentes e, por conseguinte, com a prpria pendncia, ou seja,
com a falta das partes. A caracterizao adequada do carter de ainda-no, com o
qual o ser-a se relaciona, possvel se temos como ponto de partida a
determinao de um tipo de totalidade que seja adequado ao modo de ser do ser-a.
Ou seja, o que se requer no uma totalidade que seja apenas uma soma na qual o
acrscimo de pedaos que esto faltando no a modifique, mas que seja composta
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por partes que pertencem necessariamente totalidade em questo que seja
composta por momentos. Alm disso, a caracterizao do ainda-no como um
momento central para o contraste heideggeriano desta noo com o conceito de
pendncia como uma falta. Na medida em que no se pode falar numa pendncia
na existncia, o carter de ainda-no das possibilidades do ser-a elucidado como
um tipo de negatividade vinculada com a noo ontolgica de nada27.
Destarte, a pergunta pela constituio de ser de fim e totalidade levada a
cabo, por um lado, pela tematizao dos conceitos de ser-para-o-fim e enquanto ser-
para-a-morte. Ademais, a discusso do anteceder-se a si mesmo do ser-a revela
que o carter de pendncia nas possibilidades algo constitutivo deste ente e no
indica a falta um algum elemento para a completude da existncia. Por outro lado,
Heidegger conclui a anlise da pergunta pela totalidade do ser-a com a investigao
do poder-ser total testemunhado existenciariamente como deciso antecipadora.
Sobre os resultados obtidos a partir destes eixos investigativos, Heidegger afirma no
63 que as tare