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FILOSOFIATRANSCRIPT
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6 Contribuio concreta
A questo da legitimao encontra-se, desde Pla-to, indissoluvelmente associada legitimao do legislador.
Jean-Franois Lyotard. (A condio ps-moderna)
6.1. Make it new
No final dos anos 50, Haroldo de Campos reabilitaria a esquecida poesia
de Oswald de Andrade, apresentando-a, para uma nova gerao de leitores, como
um dos paradigmas fundamentais da vanguarda brasileira. A poesia concretista
florescia como uma arrojada combinao de transgresso e formalismo potico.
princpio ela tem pouca relao com a poesia do modernista, que propunha uma
poesia sem erudio, contra o lado doutor, natural e neolgica porque a
poesia existe nos fatos. A teoria da poesia concreta o oposto deste projeto,
pois formalista, erudita e impermevel contribuio milionria de todos os
erros. Oswald queria que a poesia fosse popular a massa h de comer os bis-
coitos finos que fabrico -, fosse impregnada pela energia do cotidiano, fosse an-
tdoto contra o eruditismo. A prxis concretista ser anti-popular, embora se infil-
tre pelos meios de comunicao de massa, mas como um vrus, para desestabilizar
a recepo domesticada.
A confluncia com Oswald transcende o rigor formal concretista para o
campo da em busca de um termo melhor paixo. Embora os poetas concre-
tistas desprezassem o sentimentalismo, na defesa dos seus ideais e na busca pela
correo das injustias, eles esto entre os criadores mais apaixonados da litera-
tura brasileira. Como amantes romnticos, beiram a obsesso, ao radicalismo.
justamente pelo seu carter radical que os concretistas, em termos tericos, se
identificaram com Oswald, vendo nos seus fracassos a antecipao das conquis-
tas da poesia concretista.
Neste sentido, o ttulo de um dos primeiros ensaios de Haroldo, retirado de
um trecho do Manifesto antropfago parece uma anunciao: Oswald: somos
concretistas. O trecho, manipulado pela descontextualizao concretista, soa
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como uma revelao, reforada pelo sinal de dois pontos utilizados para intro-
duzir uma fala. A revalorizao da poesia de Oswald, a descoberta de sua radical
linguagem, derivava daquilo que anunciava das prprias conquistas dos concretos.
Entre os movimentos literrios surgidos nos anos 50 e 60, nenhum outro
influiu e se expandiu pelas diversas reas do conhecimento e da cultura. Dcio
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos dominaram um repertrio intelectual
sofisticado e amplo, que abrangeu a lingstica, a semitica, a traduo, a teoria da
informao, a criao potica. Ou seja, profissionais altamente qualificados. A
mais-valia deste saber garantiu, por exemplo, lugar nos suplementos literrios, no
conselho editorial da Editora Perspectiva, nos quadros docentes das Universidades
brasileiras e estrangeiras. Na histria da literatura, somente o parnasianismo foi
to longevo e odiado quanto o Concretismo. Coincidentemente, assim como o
primeiro, a poesia concreta tambm era um triunvirato. Neo-parnasianos foi
uma das acusaes recorrentes dos opositores Affonso Romano de SantAnna e
Bruno Tolentino.
H um consenso tcito, entre os historiadores da literatura brasileira, de
que o Concretismo contribuiu mais no campo da teoria/traduo potica. Luciana
Stegagno-Picchio resume a questo nos seguintes argumentos: embora o traba-
lho de inveno de novas formas expressivas e de corroso e denncia do obsoleto
e do gasto tenha sido a tnica, preciso pr em primeiro plano a ensastica con-
cretista.
A abertura para o dilogo com as outras artes a caracterstica, primeira vista, mais saliente da poesia concreta (a sua apre-sentao grfica: abolio do verso; no-linearidade; uso cons-trutivo dos brancos; ausncia de sinais de pontuao; cons-telaes na acepo introduzida por Gomringer; sintaxe grfi-ca), [...]; ao posso que a contribuio mais substancial dos con-cretistas cultura hodierna o trabalho por eles realizado sobre a linguagem, sobre a substncia da palavra abordada no nvel da forma. (Stegagno-Picchio; 1997, p. 616).
Em Iniciao literatura brasileira, Antonio Candido define a poesia
concreta como rejeio ao subjetivismo, preconizadora do fim do verso e da
liberdade de combinar e desarticular as palavras segundo afinidades sonoras,
dispondo-as como realidade visual. No seu breve parecer, dentro do nimo pol-
mico e transformador dos concretistas, o que havia de mais importante era a
parte doutrinria e crtica. Em entrevista de 1979, Candido revelava seu desinte-
resse pelo repertrio crtico que animava os concretos: Quando leio um livro de
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semitica moderna acho interessante e posso at me entusiasmar; quando for ensi-
nar ou escrever, quase nada de decisivo entrar na minha escrita ou na minha au-
la (1992, p. 129). Massaud Moiss, em um curto pargrafo, define o Concretismo
como movimento de eruditos; internacional nos seus objetivos (...) e nos seus
fundamentos (1989, p. 440).
Como ensastas e tradutores, o trio concretista prope a retomada do di-
logo com as tendncias da vanguarda internacional, segundo eles, interrompido
desde os anos 20. No prefcio para a coletnea de textos crticos e manifestos,
declaravam que no plano nacional, haviam restaurado o contato com o moder-
nismo de 22, o qual fora interrompido por uma contra-reforma convencionalizan-
te e floral (1987, p. 7). Em poesia, a contra-reforma referia-se ao retorno ao
metro e s formas clssica proposto pela gerao de 45. Assim como a gerao de
22 imps seus padres como valor de reconhecimento de suas obras, os poetas
concretos impuseram seu vasto repertrio erudito como sustentao e legitimao
de suas teorias. Ambos lucraram com a ignorncia do meio. Haroldo de Campos,
em sua releitura de Oswald, baseou-se na lingstica estruturalista de Jakobson e
na esttica de Walter Benjamin, teorias as quais os concretistas so os primeiros
tradutores. Este aspecto contribuiu para a viso consensual nos estudos literrios:
a maior importncia do movimento foi a atualizao da crtica literria com as
correntes do formalismo russo, da poesia norte-americana, a lingstica estrutura-
lista, a semitica e a esttica da recepo.
O resgate oswaldiano permitiu a Haroldo contestar a ordem vigente em
relao ao movimento modernista e elaborar uma histria alternativa da literatura
brasileira, baseada numa linguagem (e tambm experincia) internacional. Essa
metodologia, ao mesmo tempo em que substitua, criticava a fundo as tendncias
da sociologia da literatura, que haviam dominado grande parte das teses sobre o
modernismo. O prprio modernismo, com o romance social, contribuiu para a
fundamentao da leitura sociolgica, com os estudos de Joo Luiz Lafet e Sr-
gio Miceli. Logo, no campo da prosa, o realismo de trinta significava outra verso
da contra-reforma floral. Logo, a teoria concreta ignoraria os desdobramentos
do iderio modernista para se concentrar no perodo dos anos 20, no qual o projeto
reforma esttica ainda no havia sido questionado pelo projeto poltico. Oswald de
Andrade encarnava o ponto mximo de experimentao formal, e como sua escri-
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ta cara no limbo, tambm representava o que Dcio Pignatari chamaria de com-
pl contra um pensamento experimental.
O ponto de articulao foi a inveno, ou na traduo concretista, a
conscincia radical da linguagem. Oswald, em particular, tornou-se importante
porque permitiu aos concretos re-articularem a recepo do modernismo atravs
da tradio das vanguardas histricas. At ento, a recepo orientava-se pelo
critrio nacionalista. O criador da poesia pau-Brasil foi o nico modernista que
aparecia no plano-piloto como precursor do concretismo; alis, os nicos poetas
brasileiros que figuraram foram Oswald e Joo Cabral de Melo Neto, este por
causa da linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso, aquele
por causa da inveno.
Ao dar legitimidade a um autor historicamente importante como Oswald,
mas cuja obra seus contemporneos no julgaram altura do seu gnio, os con-
cretistas legitimavam sua prxis, pois a aceitao do autor passou imediatamente
pela aceitao dos argumentos. Aqueles que questionaram a teoria concreta, inevi-
tavelmente negaram ou minimizaram o objeto sobre o qual os concretistas ilustra-
ram o seu pensamento.
Fundamental para a teorizao de Haroldo de Campos foi os conceitos
lingsticos de diacronia e sincronia desenvolvidos por Jakobson, o que lhe per-
mitiu pensar a historiografia no como uma articulao entre autores-contexto
social-obras, mas como uma seleo textual regida pelo critrio da inveno.
Deste modo, a diacronia - seleo cronolgica de autores e obras reunidos em
estilos de poca - cedia lugar sincronia - a inter-relao temporal entre autores
e obras, ou seja, a constante atualizao do passado pelo presente. Nas pginas
finais do ensaio Potica sincrnica, Campos esboava um elenco para uma obra
ambiciosa, jamais concretizada: A antologia da poesia brasileira de inveno. Em
todos os autores abordados, o ensasta escolhia um ponto de vista desconsiderado;
por exemplo, a respeito de Gregrio de Matos: Em lugar de discutirmos sobre as
influncias de Gngora e Quevedo, por que no pensar em certa parte da obra de
GM como traduo criativa? (1977, p. 209).
Traduo criativa tem dupla funo na argumentao concretista, serve
tanto como teorizao para transcriao de obras quanto para discutir a influncia
externa. Em sua polmica com Antonio Candido, Haroldo resumiriu assim uma
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tradio da inveno: uma dialtica de pergunta e de resposta, um constante e
renovado questionar da diacronia pela sincronia (1989, p. 63).
O concretista problematiza a excluso de Gregrio de Matos (e por exten-
so o Barroco) da Formao da literatura brasileira, a opus magma de Candido.
No prefcio, A literatura como sistema, o historiador justificava a excluso,
afirmando que a literatura brasileira, como fenmeno de nossa civilizao, s co-
meou a existir quando surgiram escritores conscientes do seu papel e dispostos a
fazer literatura brasileira, transformando as veleidades mais profundas do indi-
vduo em elemento de contato e interpretao das diferentes esferas da realida-
de (1959, p. 23). A transmisso deste iderio de gerao a gerao formava uma
tradio.
O sistema de Candido, para Haroldo, revelava-se excludente ao eleger o
logos nacional como critrio de seleo, pois propunha uma identidade coesa,
a partir de um corpus homogno, que exclua o diferente (1989, p. 74). O modelo
sincrnico, seu argumento nos leva a pensar, seria inclusivo. Mas como? Em sn-
tese, a tradio da inveno to ou mais excludente do que o sistema de Can-
dido. O importante nela a substituio do logos nacional, pelo logos internacio-
nal. O critrio de valorao minimiza a representao da realidade nacional por
extenso, enfraquece a linha sociolgica reinante nos 50/60 - para valorizar o do-
mnio dos cdigos estrangeiros. Isso implicou uma subordinao autoridade de
Mallarm, Ezra Pound, Joyce e Jakobson. O papel de tradutores e o prprio sen-
so comum ao premi-los nesta funo transformava-os numa espcie de antro-
pfagos da cultura literria.
A poesia concreta representa o momento de sincronia absoluta da literatura brasileira. Ela no apenas pde falar a diferena num cdigo universal (como Gregrio de Matos e Pe. Viera no Barroco; como Sousndre recombinando a herana greco-latina, [...]; como Oswald de Andrade pau-brasilizando futu-rismo italiano e cubismo francs). [...]. A diferena (o nacional) passou a ser com ela o lugar operatrio da nova sntese do c-digo universal. (CAMPOS, 2004, p. 246).
Em pleno alvorecer dos anos 60, a escrita de Oswald fornecia, aos concre-
tistas, os argumentos necessrios para questionar a corrente sociolgica, atacando-
a no cerne do problema da literatura brasileira: o nacionalismo literrio. Afinal,
fra o profeta de uma literatura de exportao, um pensamento antropofgico,
um internacionalismo. Ao sincronizar-se com o modernista, Haroldo de Campos
re-introduzia a obra do autor no circuito literrio, propondo outros valores em sua
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poesia, justificveis pela teoria concreta, provando tanto a mais valia de sua obra
quanto a mais valia do crtico.
6.2. Devorando Joyce e Mallarm
Se a poesia concreta era o momento mximo de sincronia na literatura bra-
sileira dos anos 60, o resgate de Oswald se dava pelo que se podia construir de
comum com o concretismo e suas fontes. A atualidade do modernista no residia
na iluso da eternidade (como rezamos no templo Classicista), mas naquilo que
prev do referencial da potica concretista.
Em Estilstica mimarina, Haroldo definia Memrias sentimentais de
Joo Miramar como um romance cubo-futurista, pois o cubismo histrico ser-
viu-lhe como ilha de montagem, influncia que configurava sua escrita como re-
sidualmente icnica em relao ao mundo exterior (2004, p. 120). A questo re-
sidia no deslocamento da experincia vivida, implcita no ttulo memrias, para
o campo da experincia de linguagem, desfiguradora do contedo autobiogrfico.
Deste modo, o romance-experincia torna-se tpico central para a demonstrao
da teoria de Jakobson a respeito da metonmia e da metfora.
A metonmia, concorda Campos, o mais indicado para as discrimina-
es psicolgicas e a criao de caracteres, por isso o escritor do realismo tradi-
cional recorria a ela para compor as articulaes temticas. Em Oswald, conclui,
o processo metonmico reelabora os dados da realidade trivial, fundando um
realismo especial, quase etimolgico, fundado na realidade do texto como
coisa de palavras. Assim, apesar do romance ser uma stira social, portanto com
um referente no mundo exterior, a propenso da prosa miramina em fundar
na realidade do texto sua prpria realidade que se impe (2004, p. 105).
A prxis concretista est entre as melhores tradues brasileiras do concei-
to de desumanizao da arte. Ortega y Gasset, no clssico texto de 1925, des-
crevendo o surgimento da vanguarda, percebia que para os jovens artistas a ar-
te uma coisa sem transcendncia alguma. A tendncia de fazer da obra arte
outra coisa seno obra de arte marcava um outro compromisso tico, porque a
arte nova considera os dramas humanos como fraude esttica (1999, p. 31).
preciso acabar com o Eu e toda a psicologia, escrevia Marinetti no Manifesto
tcnico da literatura futurista.
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A arte do sculo XIX, prossegue Gasset, fez com que a obra consistisse,
quase por completo, na fico de realidades humanas. Neste sentido, foi realis-
ta. Beetthoven e Wagner, realistas na msica; Chateaubriand e Zola, realistas na
literatura. Para ler um romance realista, o leitor no precisa ser dotado de uma
elevada sensibilidade artstica, basta possuir sensibilidade humana, pois o
realismo um extrato da vida. Por isso, conclui, a arte do sculo XIX foi to
popular, uma vez que em todas as pocas houve uma arte para minoria e outra
para a maioria, esta ltima sempre foi realista (idem. p. 18).
A vanguarda, ao recusar a fico humana, dividia o pblico entre aqueles
que a entendiam, uma minoria dotada de sensibilidade esttica, e a maioria, que
via na arte uma extenso da vida, frustrados por no encontrarem nela os meca-
nismos de identificao emotiva. A conseqncia: a vanguarda impopular.
O artista de vanguarda se negava aceitar a arte como extenso da vida,
como reproduo dos dramas humanos, enfim, como catarse ou div da humani-
dade. S consegue ver o humano com uma distante ironia. Essa era a sua tica.
Lembremos de uma anedota: diante do quadro As meninas, um diletante dizia a
Matisse: Belas cores, mas isto no so meninas. E o pintor respondia: No,
um quadro. Aqui residia, para Ortega y Gasset, o gesto libertador de Mallarm,
o primeiro homem do sculo passado que quis ser poeta, por que produziu pe-
quenos objetos lricos diferentes da fauna e da flora humana (ibid, p. 34). Um po-
ema de Mallarm no para ser sentido, as palavras so as protagonistas de
sua empreitada lrica.
O texto de Gasset antecipava toda uma linha de pensamento na literatura
ocidental preocupada com a imanncia do texto. Os concretistas, no seu plano-
piloto, declaravam-se produto de uma evoluo crtica de formas esta evolu-
o, ao nosso ver, era a desumanizao -, no qual o poema um objeto em si e
por si mesmo, no um intrprete de objetos exteriores e/ou sensaes mais ou me-
nos subjetivas (1975, p. 156).
O processo de concretizao de Oswald de Andrade envolvia a desuma-
nizao de sua escrita. No caso de Memrias sentimentais de Joo Miramar, a
fragmentao narrativa e a ruptura com os cnones realistas no s autorizavam
como pediam esta leitura. Antonio Candido havia sinalizado nesses dois aspectos
a qualidade dos romances experimentais do autor. Haroldo de Campos esforou-se
ao mximo para desassociar a escrita oswadiana do Modernismo tout court. A
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tendncia nos textos de Haroldo, para legitimar a prosa nova de Oswald de An-
drade, foi associ-la escrita de Ulisses. No paideuma concreto, James Joyce
o equivalente, na prosa, a Mallarm na poesia: inventores. Seria extenso citar as
centenas de vezes que Joyce referido nos textos dogmticos do concretismo.
Desta forma, o trabalho do crtico consiste na descoberta e criao de laos co-
muns entre os dois romancistas.
No artigo Sobre o romance, Oswald de Andrade, ao comparar Joyce
com Thomas Mann, para escolher qual dos dois inaugurava o romance moderno,
define Ulisses como um grande marco antinormativo. Haroldo de campos toma
este juzo como mais uma evidncia da aproximao de Miramar com a escrita
joyceneana. O prefcio para Memrias Sentimentais Miramar na mira reve-
lava esta aproximao, ou antecedncia, j em sua introduo:
Em 1922 ano que se assinalaria entre ns pela ecloso da Semana de Arte Moderna era publicada em Paris, [...], a pri-meira edio de um livro destinado a alterar os rumos da fico moderna: Ulisses, de James Joyce. [...]. Memrias sentimentais de Joo Miramar, [...], sai em 1924, dedicado a Paulo Padro e Tarsila do Amaral. (CAMPOS, 1978; p. xivv).
O caminho terico tomado por Haroldo para fundamentar a sincronia
passa pela pardia como elemento comum na escrita dos autores. No entanto,
para poder prosseguir neste caminho, precisava por Mario de Andrade no barco,
uma vez que os dois Andrades usaram este recurso estrutural com ativa fun-
o de stira social. Da a ressalva de que este caminho deveria ser seguido com
a maior cautela. No entanto, afastada a pardia como elemento comparativo,
Memrias sentimentais se distanciava da intricada e complexa estrutura, o carter
monumental do Ulisses joyciano.
O Miramar, como todo, poder ser posto em cotejo com um captulo isolado do Ulisses (VII-olo), passado numa redao de jornal, e onde so aproveitadas as tcnicas de manchete, ti-tulagem e tpico da imprensa diria. O Miramar, com seu estilo telegrfico, bem um misto de dirio sentimental e de jornal dos faits divers duma sociedade provinciana [...]. No falta tambm ao Miramar j est no ttulo, a investir onomastica-mente, duma perptua vocao martima a idia de priplo, idia que no Ulysses joyciano transposta para uma jornada terrestre e pedestre no enclave urbano de Dublin. (CAMPOS, 1978; p. xxix).
At aqui, suas justificativas estavam repletas de ressalvas, a comear pela
base de comparao desigual, um captulo de Memrias em relao a todo roman-
ce de Joyce. O fato do captulo do irlands se passar numa redao de jornal justi-
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ficava a comparao com o estilo telegrfico? A apropriao da estilstica do
jornal j era feita pelos futuristas e dadastas antes de Joyce e Oswald. Astuciosa-
mente, Haroldo invertia as diferenas em semelhanas, claramente na comparao
entre o priplo martimo e o priplo terrestre.
O ltimo refgio do sincronismo Joyce-Oswald foi o futurismo como in-
fluncia comum. Haroldo demonstra, no sem um pouco de diacronismo, que U-
lisses tem razes futuristas, o que confere legitimidade histrica comparao.
A senha o simultaneismo. Palavras em liberdade. Imaginao sem fios(ibid,p.
xxxiii). Ou seja, em seu (super) romance, Joyce sofrera a mesma influncia, isto ,
bebeu na mesma fonte, que Oswald. E os outros modernistas que tambm bebe-
ram nesta fonte? Macunama no seria tambm um romance prximo escrita de
Joyce? A intricada escrita marioandradiana em sua rapsdia no teria um contato
slido com os jogos de palavras, as desordens sintticas e os neologismos
joyceanos?
Ao buscar em todo lugar a semelhana, Haroldo de Campos, pela insistn-
cia, ergueia Ulisses como marco normativo. A consagrao de Memrias senti-
mentais ocorre sob a beno de Joyce, o pai do romance-inveno, precursor
do Concretismo. Se ambos foram publicados com dois anos de diferena, e como
admite Haroldo, Oswald provavelmente no lera Joyce na poca, foi apenas um
detalhe diacrnico.
O princpio da literariedade, o predomnio da escritura sobre o autor, a
lio de Roland Barthes na Morte do autor como reao ao determinismo vida e
obra, regeu os textos de Haroldo; porm, aqui entra a visvel paixo dos concretis-
tas pelos seus dolos, a reabilitao de Oswald no deixava de ser uma celebrao
do indivduo. Segundo Antonio Candido, Oswald de Andrade era um problema
literrio no s por causa da passionalidade com que sua obra fora julgada, mas
tambm devido s reviravoltas em sua escrita.
Ao publicar A Estrela do Absinto, em 1927, j lanara h trs anos a stira maravilhosa das Memrias, que contradiz grande parte das tendncias manifestadas naquele livro. [...]. Portanto, de 1920 a 1930 o sr. Oswald de Andrade atravessa um perodo contraditrio, cheio de alto e baixos, procurando encaminhar para o nacionalismo potico um misticismo que no o satisfa-zia mais, malhando a ambos com anarquia de um protesto ain-da incoordenado, invertendo de novo os termos, baralhando-os adiante (CANDIDO, 1992, p. 25).
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A trilogia Marco-zero no resolvia as contradies estilsticas, pelo con-
trrio, apostava no realismo social, anttese da linha experimental do par Mira-
mar-Serafim. Haroldo de Campos, para construir uma persona linear, ignora tanto
a trilogia do exlio, marcada pelo decadentismo finisecular, quanto a trilogia
social, para fincar os ps na fase acentuadamente de vanguarda. Nada de errado
nisto, pois toda a leitura implica em opes, escolhas, recortes. Se privilegiasse no
mesmo grau a fase social, cedo ou tarde, o crtico teria que se apoiar na biblio-
grafia sociolgica, corrente a qual pretendia questionar. A linearidade, no entanto,
tacitamente projetava uma imagem total do autor, no admitindo em nenhum
momento a fuga da moldura vanguarda, isto , do repertrio referencial da teoria
da concreta.
6.3. Regurgitando Mrio
Da crtica romntica crtica moderna, as cincias sociais forneceram as
bases epistemolgicas para a construo do saber literrio. Compreende-se a evo-
luo da literatura em sintonia ao desenrolar dos eventos histricos: o Romantis-
mo e a Independncia; Machado de Assis e o Segundo Reinado; Modernismo e a
Repblica velha; o ps-modernismo e a Ditadura Militar.
O Concretismo prope outro estado de coisas, a partir de outros referenci-
ais: a lingstica, a semitica, a teoria da informao. Desvincula-se escrita e his-
tria, esttica e poltica. Em relao ao Modernismo, h todo um esforo especial
em minimizar a escrita de Mrio de Andrade. No fundo, atravs da negao do
autor, nega-se o lugar que o legitimou, ou seja, a corrente histrica-sociolgica.
Nas palavras de Antonio Candido, Macunama a mais alta expresso da antro-
pofagia (1965, p. 113); Mrio construiu mais, foi a individualidade intelectual
mais poderosa, quem pensou em profundidade a realidade brasileira (1992
p.244). Segundo Joo Luiz Lafet, em Mrio h o esforo maior e mais bem su-
cedido de uma posio coerente entre a revoluo esttica e a revoluo ideol-
gica (2000, p. 158). J para Haroldo de campos: A Paulicia, com tudo o que
trazia de novo, ainda no era a revoluo; era a reforma, com seu lastro de conci-
liao e palavrosidade (1978, p. 15).
A poesia de Oswald, expunha Haroldo no prefcio de Poesias reunidas,
era regida pela radicalidade; neste sentido, foi revolucionria. Radical, explica-
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va citando Marx, significava tomar as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem,
o prprio homem. Como no estamos diante de um crtico marxista, a radicali-
dade da poesia oswaldiana se realiza no campo especfico da linguagem, sendo
uma verdadeira tomada pr-concreta (1978, p. 44).
Se no romance o autor sincronizava-se com Joyce; na poesia, sincroniza-
va-se com Mallarm. A poesia pau-Brasil, argumentava, rompia com a tradio
discursiva-sentimental, para fundar, a partir da devorao crtica da vanguarda
europia, um lirismo objetivo e pardico. O projeto nacionalista desaparece na
argumentao de Haroldo. A releitura da histria do Brasil, atravs dos poemas-
pardia, funcionavam como dessacralizao das peas do florilgio nacional e
construo de uma potica baseada no ready made como princpio formal. Havia,
no entanto, uma pedra no meio do caminho concretista: Mrio de Andrade. Afi-
nal, coube ao autor de Paulicia desvairada o mrito do marco inicial da poesia
modernista, e tambm da teoria com o Prefcio interessantssimo e A escrava
que no Isaura. Para Haroldo, contudo, Mrio o reformador, tem a consci-
ncia do novo, mas ao mesmo tempo preservava uma paixo secreta pela esttica
parnasiana.
Mrio sempre se preocupou a srio com a esttica parnasiana (vejam-se os seus estudos Mestres do passado e o que neles h de implcita reverncia) e mais de uma vez, em diferentes pocas, quis mostrar que sabia fazer sonetos em clave urea ao gosto dessa esttica. (CAMPOS, 1978, p. 19).
A acusao mais recorrente era de que Mrio sofreria do mal eloqncia,
no havia seguido o conselho de Verlaine: toma a eloqncia e torce-lhe o pes-
coo. O que tornava o poeta ainda mais intragvel foi a sua recusa em letras
maisculas a um dos prceres do Concretismo: PRECISO EVITAR MAL-
LARM1. A dupla recusa, tanto de Verlaine quanto Mallarm, revelava, segundo
Campos, um elogio do sentimento e do subconsciente, que significava um mo-
dernismo conservador. O Modernismo revolucionrio, na construo concretista,
negaria a eloqncia preservada por Mrio para opor-lhe o lirismo objetivo,
antiilusionista, desacralizador da poesia, valores localizados na poesia pau-
Brasil. Ao invs do poema longo (to comum em Mrio), a sntese (o poema-
minuto oswaldiano).
1 cf: A escrava que no Isaura.
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Oswald de Andrade, na viso concretista, se reclama de Mallarm, em-
bora o mestre francs seja uma referncia rarssima nos textos do poeta pau-
Brasil. Apesar disto, conclamava Haroldo, Oswald parece ter compreendido em
toda a sua importncia via futurismo e cubismo o alcance da revoluo mal-
larmaica(1978, p.27). O oposto ocorre com Mrio, que opta por Cocteau, tacha
Mallarm de poeta do no-vai-nem-vem, de intelectualizao exagerada e pre-
tensiosa2.
Os nicos poemas que Haroldo salva so os do Losango cqui, a colet-
nea mais experimental e enxuta de Mrio, na qual ensaiaria uma conciso para-
lela quela praticada exemplar e sistematicamente por Oswald em Pau-Brasil
(1978, p. 15). Quando procuramos esses poemas isolados (XIV e XXVI), por-
que no geral subsiste a marca renitente do sentimentalismo, constatamos que a
escolha ocorre pela semelhana com a poesia concretista. Vejamos:
XIV
Tudo esquecido na cerrao.
... um-dois, um-dois, um-dois, um-dois, um-dois, um- dois.
RVORE
um-dois, um-dois, um-dois, um-dois, um-dois, um- dois.
RVORE
(...).
Tais experimentos poderiam figurar como uma verdadeira tomada pr-
concreta, como:
Amrica do sul
Amrica do sol
Amrica do sal
Poderiam... Se o poeta no tivesse evitado Gngora e Mallarm.
Em uma crtica virulenta contra o Concretismo, Affonso Romano de
SantAnna apontava que h, em particular em Haroldo, uma relao problemti-
ca com Mrio de Andrade, ou seja, a impossibilidade de l-lo a no ser atra-
vs de Oswald de Andrade. Soma-se o trauma diante da audcia de evitar Mal-
larm. A situao limite, para Affonso Romano, foi a absurda influncia de
Serafim Ponte Grande (1933) sobre Macunama (1928), defendida por Campos
em Miramar na mira. Para o oponente: Haroldo no conseguia aceitar o fato
2 cf: A escrava que no Isaura.
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elementar de que Macunama mais importante do que os dois livros de Oswald
(2003, p. 22).
Em O tupi e o alade, Gilda de Mello e Souza esposa de Antonio Candi-
do e prima de Mrio de Andrade , analisando as proposies de Haroldo de
Campos em Morfologia de Macunama, acusava-o de ter feito uma leitura redu-
cionista da rapsdia marioandradiana, isto , em suas palavras:
O que constitui a meu ver a fragilidade maior de seu enfoque foi ter projetado num livro, cujas componentes eram todas am-bguas e ambivalentes, uma leitura unvoca, que rejeitava os desvios da norma, para fazer a obra de arte caber fora no modelo de que, fatalmente, teria de extravassar. (SOUZA, 2003, p. 46).
O modelo adotado pelo concretista baseava-se nos estudos das narrativas
folclricas russas, Morfologia do conto maravilhoso, do folclorista Vladimir
Propp, no qual demonstrava que as partes componentes de um conto poderiam ser
transportadas para outro. A bruxa ou o demnio sempre o praticante da m-ao.
Ao adaptar esta tese na anlise de Macunama, Haroldo conclu que Mrio con-
seguiu divisar o que havia de invariante na estrutura do conto folclrico, para
recriar artisticamente o que havia de varivel sobre o elemento base (2004, p.175).
Para Gilda de Mello e Souza, independente das analogias que estava des-
cobrindo, faltou ao concretista relacionar a obra com complexo sistema formal
do escritor; por isso, acabou banalizando um fato admirvel de parole banali-
dade da langue(2003, p. 45). Assim, segundo a interlocutora, o crtico ignorava
a importncia que o prprio Mrio atribua ao episdio de Vei e suas filhas; con-
tradizia-se em relao a funo do muiraquit; no levava em conta Cartas pras
Icamiabas como centro do livro.
A reao de Haroldo foi expressa nas notas do ensaio Mario de Andrade:
a imaginao estrutural, no qual retomava a tese apresentada em Morfologia de
Macunama. Em sua defesa, argumentava que o fato de ter proclamado a rap-
sdia como uma grande fbula de busca de um objeto de virtudes mgicas, o
aspecto imutvel da fbula na leitura de Propp (os romances de cavalaria, etc),
j desmontava, na origem, a originalidade da conjectura gildiana, que aponta
Macunama como um dos grandes arqutipos da literatura popular universal.
Tendo como advogada (a amiga) Leyla Perrone-Moiss, decretava que a autora
de O tupi e o alade no demonstra grande familiaridade com a bibliografia sobre
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narratologia, por isso no atina exatamente com o que seja estrutura sintagm-
tica, aspecto verbal e aspecto funcional da anlise (2004, p. 177).
Affonso Romano pegou carona nesta briga de departamento de Letras da
USP, para afirmar que Haroldo assumia uma posio recalcada diante de Mrio,
pois contraditoriamente ama o texto/pai de Mrio, mas tem remorso porque ele
renega o pai anterior de Haroldo, que Mallarm. A curiosa elaborao psicolo-
gizante termina na emblemtica frase: Macunama derrotou Haroldo (2003, p.
26). Toda polmica residia na supremacia de um modelo interpretativo. Em
certo momento, Gilda de Mello e Souza e Haroldo de Campos no esto discutin-
do Macunama, mas sim quem melhor compreendeu Bakhtin, Propp e o Estrutura-
lismo, aplicando-os rapsdia. O repertrio bibliogrfico oculta a desavena prin-
cipal: a desnacionalizao da escrita de Mrio de Andrade. No primeiro captulo
do Tupi e o Alade, a autora defende que o princpio estrutural do romance consis-
tia no livre trnsito entre o popular e o erudito, assim o folclore amaznico torna-
va-se pea chave na configurao da escrita carnavalizada do modernista. Haroldo
de Campos desloca o folclore do domnio nacional para o domnio internacional,
retirando a escrita de Mrio do fabulrio amaznico, no qual se discutiu os ele-
mentos de identidade local, para inseri-la na tradio ocidental dos contos de
fantasia, tomando como referente, via Propp, o folclore russo.
O concretista, logo, toparia com a questo: Macunama seria um romance
antropofgico? Nos prefcios para Poesias reunidas e Memrias sentimentais de
Joo Miramar, ao subordinar a escrita de Mrio de Oswald, o crtico alude a
esta possibilidade, porm s a aceita em termos de dbito. Aceit-la significaria,
explicitamente, endossar os argumentos de Antonio Candido, que via Macunama
como a realizao concreta do que Oswald sugeriu no Manifesto antropfago
(1965, p. 113). Deste modo, ao intensificar a dualidade Mrio-Oswald, Haroldo de
Campos apontava para uma outra recepo do Modernismo que no culminava na
pontificado de Mrio de Andrade, como via ocorrendo desde sua morte.
Uma pergunta, no entanto, fica perdida: por que um crtico, que vinha es-
crevendo textos fundamentais sobre a potica oswaldiana, escolhia Macunama
como tema monogrfico para admisso nos quadros docentes da USP? Explicita-
mente, Haroldo de Campos sabia que Mrio de Andrade, antes de um desafio, j
era assunto acadmico de maior peso. Se o Concretismo contribui de forma deci-
siva para a criao do mito Oswald de Andrade, a crtica acadmica criava o
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mito Mrio de Andrade. Campos, percebendo ou no esse movimento, prestou
sua contribuio bibliografia Andradina.
6.4. Simbioses
A simbiose descrita como associao entre dois seres vivos, com benef-
cios mtuos. O resgate de Oswald de Andrade, sua concretizao, ps em mo-
vimento suas idias, em um novo crculo de recepo muito mais simptico em
relao s suas obras. A proposta de uma literatura de exportao casava com o
paideuma concretista, com uma histria da literatura regida pelo critrio inter-
nacional. Da a importncia atribuda ao Barroco e a desimportncia dedicada ao
Romantismo.
Na contestao tese de Candido, na qual o Barroco aparecia como uma
manifestao literria, sem contribuio para a formao da tradio literria,
Haroldo de Campos argumentava da seguinte forma:
[...] nossa literatura no teve infncia (infans, o que no fala). No teve origem simples. Nunca foi in-forme. J nasceu adulta, formada, no plano dos valores estticos, falando o cdi-go mais elaborado da poca. (CAMPOS, 1989, p. 64).
O Barroco era um estilo internacional, defend-lo como nossa gnese lite-
rria desestruturava o nacionalismo literrio, base para a historiografia brasileira
desde Silvio Romero. Oswald de Andrade emprestava os instrumentos poticos
teoria o concreta para se inserir e/ou criar uma histria alternativa da literatura
brasileira, regida pelo internacionalismo. Nos termos de Haroldo:
S concebo o nacionalismo de um ponto de vista modal, no ontolgico: a maneira brasileira de dialogar com o universal, articulando diferencialmente sua combinatria, especificando escolhas e tambm inovando. (apud. Supl. Mais!, 14 de setem-bro de 2003).
Em um dos ensaios que compe Balano da bossa, Augusto de Campos
entregava o jogo: a produo artstica brasileira j adquiriu maturidade, a partir
de 1922, e universalidade, desde 1956 (1993, p. 157). Uma data refere-se Se-
mana de Arte Moderna; a outra, Exposio Nacional de Arte Concreta, em que
foi lanado oficialmente o movimento da poesia concreta. O dilogo concretista
com a Semana de 22 ocorre exclusivamente via Oswald de Andrade, tanto que nos
textos de Augusto no aparece nenhum outro participante da Semana. Ele o pon-
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to de articulao entre o passado e o presente de uma linha experimental e inter-
nacionalista na cultura brasileira.
Por fim, a permanncia dos prefcios de Haroldo de Campos, nas edies
recentes de Oswald de Andrade, completa o processo simbitico, pois o leitor (ao
menos que os ignore, coisa que o leitor interessado no faz) l o modernista sob o
filtro concretista. A relao simbitica ficar mais clara com a introduo do Tro-
picalismo nas letras nacionais.