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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-graduação em Antropologia Social Decompondo Registros: Conflitos de Terra em Pernambuco Mónica Fernanda Figurelli Rio de Janeiro 2007

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional

Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Decompondo Registros: Conflitos de Terra em Pernambuco

Mónica Fernanda Figurelli

Rio de Janeiro 2007

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Mónica Fernanda Figurelli

Decompondo Registros: Conflitos de Terra em Pernambuco

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira

Rio de Janeiro 2007

FIGURELLI, Mónica Fernanda

Decompondo Registros. Conflitos de Terra em Pernambuco / Mónica Fernanda Figurelli. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007.

126 p. 21 X 29,7 cm.

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, 2007.

Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira.

1. Conflitos de terra. 2. Pernambuco. 3. Acampamentos. 4. Comissão Pastoral da Terra. 5. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. I. Palmeira, Moacir Gracindo Soares. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. III. Título.

Mónica Fernanda Figurelli

Decompondo Registros: Conflitos de Terra em Pernambuco

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre. Aprovada por:

_________________________________________________ Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira (Orientador)

PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________________ Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________________ Prof. Dr. John Cunha Comerford

CPDA/UFRRJ

_________________________________________________ Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (Suplente)

PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra (Suplente)

UFF

Rio de Janeiro 2007

AGRADECIMENTOS

Localizados no início, escritos ao final do trabalho, ou durante, ou no começo, mas

sempre com alguma coisa nova para dizer no fechamento, modificando-se, deparando-nos

com a surpresa do transcorrer, eis aqui um espaço cuja possibilidade de ser escrito me enche

de satisfação. Aos meus acompanhantes nesse processo, minha gratidão:

Como orientador e professor, Moacir Palmeira ampliou o caminho de minha

curiosidade, quebrando certezas, criando novos estímulos. Não só lhe agradeço por sua

criatividade e reflexão sem limites, sua capacidade de me surpreender com seu jeito

intelectual tão alheio à inércia acadêmica, mas também por sua delicadeza e generosa

dedicação ao meu trabalho. Agradeço profundamente o assombro e a motivação despertados,

tanto intelectual como pessoalmente.

O calor da hospitalidade do casal que me albergou em Recife transformou a sua casa

em um dos lugares mais gratificantes de minha estada em Pernambuco. A eles, cujos nomes

não poderei deixar no papel, um permanente agradecimento.

Aos acampados e acampadas do engenho onde realizei meu trabalho de campo, por me

receberem, por me acolherem, por me comoverem, por me transportarem àqueles espaços

emocionais e racionais que conseguem arrepiar a pele. A quem gostaria de ter mencionado

além das palavras genéricas ou das denominações fictícias: a família que ali me hospedou, por

me abrigarem em sua casa, pelo bem-estar e aconchego que me fizeram sentir.

À FETAPE e ao MST, às pessoas do assentamento e do acampamento que chamei

respectivamente de “Santa Margarida” e de “Palmeira Grande”, pelo apoio dado ao meu

trabalho, pelos espaços abertos, pela amplitude de sua recepção. Um agradecimento especial à

CPT, pela companhia constante, pela ajuda etnográfica e pessoal. A Rua Esperanto ofereceu-

me um espaço de descanso e proporcionou-me uma amabilidade sem limites. Desejaria

também poder dizer alguns nomes nesta evocação.

Aos funcionários do INCRA, por suportarem e socorrerem este ser confuso circulando

por seus escritórios. E a quem, para além de seus locais de trabalho, acalmaram o desconcerto,

tentando, entre passeios e cuidados, fazer da cidade um lugar por mim conhecido. Obrigada

especialmente a estes últimos.

Aos que em minha primeira viagem ao Nordeste colaboraram no momento confuso de

definição do objeto. Ao Pólo Sindical da Petrolândia. À Universidade Federal de Campina

Grande, na Paraíba. Ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Paudalho. Ao IICA (Instituto

Interamericano de Cooperação para a Agricultura). Agradeço de forma marcante a Sebastião

Menezes e a Paulo e Helena; sua cortesia ultrapassou amplamente minhas expectativas.

A Elisa Guaraná de Castro e Juvenal Boller, por sua gentileza em me facilitarem

documentos. A Renata Menezes e Fernando Rabossi, por suas colaborações para esta

dissertação.

O trabalho de campo em Pernambuco não teria sido possível sem o apoio econômico

dado pelo NEAD (Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural). Mais ainda, a

estadia no Brasil para a realização do mestrado tornou-se viável através da bolsa outorgada

pelo Programa de Estudantes–Convênio de Pós-graduação (PEC-PG).

Quero destacar a amabilidade de Carla e a dos demais funcionários da biblioteca do

PPGAS e do setor de xérox, e também a cooperação dada por Marcelo e Tania, da secretaria,

nos momentos desesperadores de trâmites burocráticos durante minha chegada ao Brasil.

A meus professores, pela motivação gerada. A Universidad Nacional de Misiones e o

Museu Nacional foram os espaços que me ofereceram a possibilidade de aproveitar suas

aulas. A Universidade Pública me permitiu participar daqueles momentos.

José Sérgio Leite Lopes, John Comerford, Marcos Otávio Bezerra e Adriana Vianna

tiveram a disposição de ler e de comentar meu trabalho, a eles um agradecimento.

A Leopoldo Bartolomé, pelo imprescindível impulso, por sua generosidade, pela

excelência, por colocar aquele tijolo significativo em minha decisão de começar antropologia.

A amabilidade de Gilberto Velho foi uma feliz acolhida nestas terras cariocas; a ele o

meu reconhecimento.

A meus companheiros da UNAM. Em particular agradeço a Tony, meu co-piloto

naqueles longos anos de licenciatura.

Enorme é a minha gratidão pelos amigos e colegas que conheci no Rio de Janeiro. Eles

deram a esta cidade o que há de maravilhoso, arrancando de mim seguidas repetições de

“lindo” que logo me converteram em uma feliz vítima que sucumbia ao gume afiado de suas

piadas. Quero agradecer especialmente ao Martiniano. Também a Mundim, Marta e Ricardo.

E à minha cálida turma: Claudia, Liane, Felipe, Isabel, Pedro, Zoí, Suiá, Susana, Helena e

Lívia.

Com a Julia e a Leticia compartilhei um cotidiano indelével, nossos deslizares me

surpreenderam vivendo uma amizade das mais significativas. A elas, com quem descobri a

magia de criar raiz no desarraigamento, um profundo agradecimento.

A Sergio.

A minha tia Lucía. A Norma, minha mãe. A Pedro, meu pai. A meu irmão Pablo. Por

estarem sempre comigo e pelo apoio incondicional, embora essa expressão não complete a

intensidade de meu agradecimento. A proclamada ausência de palavras se faz aqui presente. A

eles dedico este trabalho.

E agradeço a quem quero agradecer e que talvez não o haja feito pelo malogro que a

memória pode me trazer; com ela nunca se sabe.

RESUMO

FIGURELLI, Mónica Fernanda. Decompondo Registros: Conflitos de Terra em Pernambuco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.

No presente trabalho, são analisadas as diversas leituras em torno de conflitos de terra

associados às ocupações. Para este fim, realizou-se uma etnografia multissituada que pretende

abordar as visões construídas por grupos que interatuam em um caso: uma ocupação

localizada na Mata Norte do estado de Pernambuco, em terras de uma fábrica de açúcar cujo

funcionamento encontra-se parado, lugar onde foi montado um acampamento. Ao se

trabalharem etnograficamente perspectivas variadas, procurou-se uma aproximação dos

conflitos a partir da dinâmica de sua configuração, pretendendo-se apartar-se das definições

prévias. A etnografia ofereceu ferramentas para uma discussão a respeito da delimitação,

recurso de construção conceitual que tende a reduzir “o conflito” a uma entidade demarcada,

com essência própria. A aparição de processos de luta na constituição das diversas

perspectivas foi outro dos resultados etnográficos em que houve a intenção de enfatizar.

ABSTRACT

This work contains an analysis of different perspectives on land conflicts related to land occupations. To achieve this purpose, an ethnography covering multiple locations is carried out to include the visions/optics of different groups that interact around one case: the settlement/occupation of a sugar mill whose operations are suspended in the area known as “Mata Norte” of Pernambuco state. The ethnography attempts to make an approach to the conflicts from the dynamics of its configuration, eschewing all previous definitions. It offers tools for discussing on the delimitation: a conceptual category that tends to reduce “the conflict” to a determined entity, with an essence of its own. The presence of strife processes in the construction the different perspectives was another key finding of the ethnography.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO …………………………………………………………………………... 1

� A Região ……………………………………………………………………............ 2

� Relatos de experiências etnográficas .......................................................................... 5

� Mapa I ……………………………………………………………………………... 29

� Mapa II …………………………………………………………………………….. 30

CAPÍTULO I: A profissionalização do conflito ……………………………………...... 31 CAPÍTULO II: O conflito vivido ……………………………………………………….. 54 CAPÍTULO III: O conflito em disputa. A denúncia ……… ………………………….. 96 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A problematização do conflito ……………................ 113 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ………………………………………………… 119 ANEXOS ………………………………………………………………………………… 123

� I. Organograma da Superintendência Regional de Pernambuco (SR-03) ………... 124 � II. Curso do processo de desapropriação ………………………………………... 125

Introdução

Eu vinha de um interesse pela ideologia,1 particularmente pela concepção da vida

social que promoviam os programas de relocalização compulsiva levados a cabo pela represa

de Yacyretá. A oportunidade que se abriu para desenvolver meu trabalho em um novo mundo,

em um Brasil desconhecido e distante, mudou meu espaço etnográfico. Entusiasmava-me

agora com as ocupações de terra realizadas nesse mundo para mim inédito. Entretanto, meu

foco de análise mantinha-se: continuava interessada pela visão que se criava nos espaços de

poder. Antes, os discursos gerados em uma “Entidade Binacional”; agora, era o âmbito da

justiça o locus privilegiado: a decodificação judicial dos conflitos por terras, os processos

sociais implicados naquela decodificação e a influência desta construção de significados no

desenvolvimento dos conflitos.

O lugar escolhido seria Pernambuco. Isto devido à grande concentração de ocupações

naquela região, além de alguns contatos prévios que ali tinha realizado em uma viagem

anterior2 ao início de meu trabalho de campo propriamente dito. Entretanto, não me centraria

na justiça. Âmbito de difícil acesso, o tempo disponível para a realização do trabalho não

estaria de acordo com o tempo requerido para a entrada nele. Assim, mudei a pesquisa para a

administração, para a burocracia, particularmente para uma instituição estatal estreitamente

associada à desapropriação das terras ocupadas, como é o Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA).

Deveria recortar: analisaria um conflito, uma ocupação. O interesse na instituição

levou-me a procurar um conflito que no processo de desapropriação empreendido no INCRA

havia atravessado caminhos administrativos consideráveis, labirintos e complicações,

procurando com isto um material empírico interessante para a análise. Por outro lado, a

comparação entre a decodificação do INCRA e os protagonistas do acampamento parecia-me

fundamental, o contraste esclareceria as visões. A esta questão somava-se o fato de que tudo

me era desconhecido; necessitava primeiro centrar-me em uma ocupação para me aproximar

do registro burocrático sobre ela. Um novo ator aderiu logo ao estudo: a Comissão Pastoral da

1 A questão não faz com que eu me detenha no debate teórico em torno do conceito. Limito-me a assinalar que em sua utilização estou aludindo à discussão empreendida na tradição marxista do termo. 2 Aquela viagem estendeu-se por 20 dias, nos meses de março e abril. Constituiu-se em meu primeiro contato com o “Nordeste”. Seu objetivo foi a participação no seminário “Memória Camponesa”, realizado em João Pessoa nos dias 28 e 29 de abril. Além disso, a viagem foi uma exploração inicial do lugar visando à delimitação de meu objeto de estudo para a dissertação de mestrado. Nessa experiência, tive a oportunidade de conhecer os estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Terra (CPT); seu olhar sobre o conflito “completaria” a análise. Deste modo, na presente

dissertação analiso diferentes registros elaborados em torno dos conflitos de terra associados

às ocupações. Pretendo trabalhar a partir de diversas perspectivas de grupos que interatuam

em um mesmo evento, evento este que articula linguagens e realidades dissímeis. Tenciono,

assim, visualizar as perspectivas em sua dinâmica de interação. Parto de um caso.

Nas páginas que se seguem desta Introdução faço um relato de algumas experiências

vividas durante o trabalho de campo, principalmente aquelas de inserção nos múltiplos

campos etnográficos. Cheguei a Pernambuco no dia 19 de julho de 2006 para partir em 13 de

setembro do mesmo ano. Grande parte da experiência efetivou-se em Recife, região de minha

localização central, enquanto que outra parte importante foi desenvolvida no município de

Açude3 – particularmente no acampamento Cachoeira da CPT – localizado na região da mata

pernambucana. Antes de começar o relato, considero pertinente introduzir algumas palavras a

respeito da região e localizar o tema que aqui nos ocupa.

A região

Ao fazer menção das dificuldades que se introduzem na hora de delimitar o nordeste

do Brasil e, com isto, da arbitrariedade das classificações espaciais, Andrade (1998) nos

introduz nesse espaço que abarca os estados de Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,

Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. A Zona da Mata, o Agreste, o Sertão, o

litoral setentrional, o meio-norte e a Guiana maranhense são as sub-regiões que dividem o

nordeste do país.4 (Ver mapa I).

Foi a Zona da Mata o lugar em que centrei a minha pesquisa. Como o demonstra o

mapa nº I, ela se estende ao longo da costa atlântica, do Rio Grande do Norte até o sul da

Bahia. Zona de clima quente e úmido, com o ano dividido em uma estação seca e outra

chuvosa, sua denominação corresponde à selva que cobria uma elevada percentagem de seu

solo em época anterior ao desenvolvimento que na região teve a exploração de cana-de-

açúcar, fato que se iniciou no século XVI com a chegada dos portugueses. A produção de

cana é o eixo que estrutura a economia da Zona da Mata e é caracterizada pela monocultura e

pelo latifúndio. Grandes proprietários concentram a maior parte das terras.

3 Na presente dissertação todos os nomes de pessoas e empresas foram mudados. Assim também são fictícias a maioria das denominações de lugares (como engenhos, assentamentos, acampamentos e municípios). 4 É esta a classificação feita por Andrade (1998), que realiza uma descrição das quatro regiões. Ver também Furtado (1964) e Freyre (1961).

Ao penetrar um pouco mais na referida zona, como assinalei acima, a região

pernambucana transformou-se no centro do meu interesse. A ocupação considerada nesta

dissertação localiza-se na Mata Norte do estado, lugar que apresenta usinas (fábricas de

açúcar que concentram grandes extensões de terra) menores do que as instaladas ao sul e onde

as transformações operadas na exploração da cana repercutiram de maneira mais lenta do que

na Mata Sul (Andrade, 1998). Os municípios que correspondem à Mata Norte equivalem

aproximadamente ao que na classificação do IBGE5 denomina-se Mata Seca, a qual se

diferencia da Mata Úmida que teria seu correspondente na Mata Sul (Sigaud, 1979).6 (O mapa

II mostra as usinas instaladas em Pernambuco).

A partir de meados dos anos 40, ocorreu um processo de expulsão da força de trabalho

instalada nas propriedades de cana, a qual se dirigiu para as cidades das regiões próximas,

provocando ali um forte crescimento urbano.7 Essas transformações encontram-se associadas,

segundo Andrade (1998), a um crescimento da produção de açúcar, crescimento este

vinculado às condições favoráveis de exportação advindas do fim da Segunda Guerra

Mundial.8 A necessidade de terras que detinham os usineiros9 – e os antigos senhores-de-

engenho10 que se tinham retirado do campo logo depois da implantação das usinas e viviam

do arrendamento de suas terras, dos foros – provocou a saída dos moradores11 em direção às

cidades, onde passaram a vender a sua força de trabalho. Aqueles que continuaram habitando

nos engenhos foram submetidos a uma forte pressão. O morador, que possuía parcelas para o

cultivo de subsistência familiar, viu cada vez mais diminuída a área para a produção de

autoconsumo e sua força de trabalho passou a ser cada vez mais requisitada pelo proprietário

para ser utilizada nas plantações de cana. Este fato não foi acompanhado por uma elevação de

salários que permitisse recompensar a perda da terra que o morador destinava à sua própria

subsistência e a de sua família. Da sua parte, os foreiros12 viram-se diante do intento dos

proprietários de aumentarem o foro. Foi nesta situação que os trabalhadores organizaram as

Ligas Camponesas em meados dos anos 50. Um impulso decisivo à aprovação do Estatuto do

5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 6 Para uma diferenciação entre a Mata Norte e Sul de Pernambuco, além dos trabalhos já citados, ver Sigaud (1971). 7 Em relação a este processo, baseei-me em Palmeira, 1971; Garcia Jr. e Palmeira, 2001; Sigaud, 1971, 1979; Andrade, 1998; Furtado, 1964. 8 Além das condições favoráveis no mercado mundial, Furtado (1964) assinala o incremento do consumo provocado pela industrialização do país, o que trouxe um aumento da renda per capita e da urbanização. 9 Foi a incorporação de novas terras e não as inovações tecnológicas o caminho utilizado pelos donos das usinas para elevar a produtividade (Furtado, 1964). 10 Ver capítulo II. 11 Idem nota anterior. 12 “O foreiro seria uma variante do morador, que dele se distinguiria fundamentalmente por pagar uma determinada quantia anual ao proprietário, sob a forma de foro” (Sigaud, 1979:47).

Trabalhador Rural, de 1963, e do Estatuto da Terra, de 1964, foi produzido a partir dessas

lutas.

Com o golpe militar de 1964 acentuou-se a saída dos trabalhadores dos engenhos,

momento em que a ação de expulsão encetada pelos proprietários encontrou força a partir da

repressão empreendida contra as Ligas (e outros agrupamentos políticos de trabalhadores), as

quais foram posteriormente desarticuladas. Os sindicatos que resistiram se propuseram a

manter nas propriedades os moradores que ali permaneciam, tentando aplicar as novas leis de

trabalho, embora os padrões sobre os quais se baseava o sistema de moradia já estivessem

arruinados em função desse processo de transformação (Palmeira, 1971; Sigaud, 1979). “É

extremamente interessante observar que ali onde o sindicalismo de trabalhadores rurais foi

mais combativo e impôs em maior escala o respeito às leis trabalhistas (…), a expulsão dos

antigos moradores (…) ocorreu em menor escala” (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:64-65). Com a

repressão às Ligas, aos sindicalistas comunistas e a alguns sindicalistas católicos de esquerda,

o papel dos sindicatos de trabalhadores rurais e da Igreja católica foi central na mobilização

política posterior a 1964 (Garcia Jr.; Palmeira, 2001). A Igreja católica “teve um peso

decisivo para o crescimento do movimento camponês e para a legitimação do tema da reforma

agrária durante os três últimos decênios do século XX” (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:71).

Interessa-me assinalar neste ponto a criação, em 1975, da Comissão Pastoral da Terra.

Em um contexto em que o acionar político da Igreja se mostrava fundamental, a criação da

CPT “tornou sistemático o trabalho de mobilização junto ao campesinato desenvolvido pelos

padres, bispos, agentes religiosos e catequistas” (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:70). “A CPT

atuou como fonte autônoma de mobilizações camponesas"; sua ação destacou-se nas

desapropriações de terras, no auxílio oferecido ao sindicalismo combativo em atos como

ocupações de terras e greves de trabalhadores rurais, nas intervenções realizadas contra os

despejos de trabalhadores. Proporcionou, além disso, um espaço que acompanhou a formação

de líderes sindicais, assim como líderes do atual Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST) (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:70).

Embora, por um lado, tenha ocorrido uma expulsão de enormes proporções dos

moradores do campo, os quais se transformaram em vendedores de força de trabalho, em

proletários rurais, por outro lado, um dos cursos desse processo estimulou a pequena

produção. Esta surgia às margens da expansão da agricultura de cana e proporcionaria bens de

consumo aos ex-moradores que viviam agora na rua, sem poderem produzir para o seu

sustento (Palmeira, 1971).13

A expansão experimentada pelo cultivo de cana, particularmente entre 1975 e 1985

com a crise do petróleo e a aparição do Proálcool,14 acentuou a expulsão dos pequenos

produtores das propriedades rurais. Os créditos que naquela época se abriram à atividade

açucareira experimentaram uma forte redução na segunda metade dos anos 80, acontecendo

uma nova crise de acumulação e uma queda da produtividade. O fato provocou a quebra e o

posterior fechamento de várias usinas, gerando um forte desemprego (Leite; Heredia;

Medeiros; Palmeira; Cintrão, 2004). Foi no final dessa década que o MST se instalou na zona

canavieira de Pernambuco,15 retomando e criando métodos de ação que passaram a ser

adotados pelos outros agentes na luta pela terra: “com isso, na década de 90, a luta pela terra

deixou de ser uma resistência contra a expulsão, e a organização de acampamentos e a

realização de ocupações em propriedades não-produtivas passou também a ser apoiada pelo

movimento sindical e pela Igreja na região” (Leite; Heredia; Medeiros; Palmeira; Cintrão,

2004:53).

A Reforma Agrária, proclamada na luta dos trabalhadores, e o Estatuto da Terra

ligado a ela passam a ter nas ocupações de terras uma nova reivindicação: “O Estado

brasileiro tem conferido legitimidade à pretensão dos movimentos (como se denominam e são

denominadas essas organizações) ao desapropriar as fazendas ocupadas e redistribuir as terras

entre os que se encontram nos acampamentos” (Sigaud, 2005:255).

Relatos de experiências etnográficas

Os primeiros dias de campo foram aqueles de aterrissagem. Era um mundo novo que

se abria. Embora minha viagem anterior já me tivesse equipado com um pára-quedas, agora

era o momento de entrar na selva. O Brasil pernambucano, enorme, estendia uma ponte para a

minha chegada à sua terra onde tudo era novo, desde minha vivência em seu cotidiano mais

intersticial, até meu pequeno mergulho em algumas de suas estruturas institucionais. Aquilo

13 O autor discute a interpretação do processo de expulsão de moradores dos engenhos como uma simples proletarização de trabalhadores rurais. Ver Palmeira, 1971. 14 Programa Nacional do Álcool. Criado em 1975, a partir da crise do petróleo, o programa outorga incentivos à produção de cana com fins de extração de álcool. 15 A respeito deste processo, ver Sigaud, 2000 e Chamorro Smircic, 2000.

foi central na maneira de ser realizado o trabalho de campo; tudo devia ser explicado, o óbvio

devia ser descoberto.

Além de terem sido os dias mais “românticos” do campo, os primeiros foram os mais

intensos em ansiedade. Tinha pouco tempo e devia descobrir um novo mundo. A primeira

coisa que se impunha era achar "o conflito”, aquele conflito arbitrariamente recortado no Rio

de Janeiro durante o momento de definição do objeto de pesquisa. Um recorte que me

permitisse restringir o tema a ser trabalhado, e por sua vez me abrisse as portas à

complexidade desse mundo. Restringir para fazer o estudo plausível – plausível, segundo os

parâmetros do pesquisador individual que deve cumprir os prazos institucionais da academia,

urgências pragmáticas cuja influência na investigação não pode deixar de ser mencionada.

Fui então em busca de “meu conflito”, tentando com esse “meu” dar a mim a mínima

segurança naquele caos, enganar-me com a sensação de poder que proporciona a posse do

objeto de estudo. Não só procurava “meu conflito”, a delimitação do objeto – que iria

acontecendo em função de critérios previamente fixados, como também de experiências

pessoais que aconteceriam no campo – mas também “minha hospedagem”. Em Recife, tive a

sorte de ser calorosa e gentilmente acolhida por Fátima e José Benedito,16 a quem conheci

através de meu orientador da dissertação na viagem anterior a Pernambuco. Entretanto, minha

estadia ali iria ser longa, não queria incomodar. Assim, visitei Olinda mais de uma vez,

encantada com sua paisagem, tentando achar minha nova pousada. Embora se abrissem

espaços agradáveis, depois de passado um tempo, minha relação com meus hospedeiros e com

o local em que me alojava convenceu-me a permanecer onde estava, já que o lugar me

proporcionava companhia e conversas que um quarto em uma pousada não iria me dar.

Cheguei ao INCRA de Pernambuco procurando, como já mencionado, estudar os

registros burocráticos dos conflitos por terras. Além daquele registro queria apreender as

vivências dos próprios acampados. O estudo de um processo de desapropriação (no INCRA e

no acampamento) que não estivesse ainda finalizado (que não tivesse chegado à fase de

assentamento) era o recorte dado à pesquisa. Procurava um processo que fosse de larga

duração e que estivesse imbuído de complicações burocrático-judiciais, visando a que me

oferecesse uma matéria-prima suficientemente rica para a análise.

16 A relação de meus hospedeiros com o movimento sindical merece ser mencionada. Assim, por exemplo, Fátima desempenhou o papel de assessora educacional da FETAPE e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Atualmente, atua no setor de educação do INCRA. Da sua parte, José Benedito foi presidente do Sindicato de Vicência (Pernambuco), secretário geral da FETAPE e presidente da CONTAG.

Apesar da assistência que a apresentação de Fátima me proporcionou no momento da

minha entrada no INCRA, cada vez que chegava a este lugar surgia uma sensação de não

saber exatamente para onde olhar, com quem falar. Esse mal-estar aumentava com a exigência

que sentia haver na instituição de eu estar mais estruturada, com perguntas e atividades

previamente resolvidas, o que não estava de acordo com a pesquisa etnográfica que pretendia

levar a cabo. Senti que etnografia e instituição eram dificilmente compatíveis. Era necessário

que eu me estruturasse com a forma desses espaços estruturados.

No INCRA, cada um ou alguns têm seu escritório onde realizam o próprio trabalho.

Quando chegava devia ir direto para esses escritórios, à exceção do segundo andar, onde fica

uma secretária com quem temos que nos identificar antes de passarmos às diferentes salas.

Precisava identificar-me também diante dos policiais que se encontram nas portas de entrada

(na entrada principal e nos dois edifícios de maior funcionamento). Além disso, apresentei-me

voluntariamente à superintendente, entregando-lhe a credencial de “minha instituição”, com o

objetivo de esclarecer minha presença naquele espaço. Entretanto, não achei, como pessoa de

fora da instituição, uma sala de recepção, de acolhida, de orientação e informação.

O espaço físico do INCRA é composto por três edifícios, um na frente, antigo, que

estava sendo esvaziado na época em que comecei o trabalho de campo (ali funcionava a

Ouvidoria, setor que naquele tempo se encontrava ainda em processo de mudança); outro dos

edifícios situava-se no meio (Fátima trabalha naquele local, como também algumas pessoas

com quem estabeleci uma relação mais pessoal); e o terceiro, meu espaço de pesquisa, é o

lugar onde, entre outras coisas, têm andamento os processos de desapropriação; para ali me

dirigia cada vez que entrava no INCRA.

Na porta de entrada desse terceiro edifício há sempre um policial instalado em uma

mesa. Da planta baixa desse mesmo edifício também faz parte um outro espaço, onde há uma

cozinha, setor no qual se reúne o pessoal de limpeza. Quando se atravessa o “setor policial”,

sobe-se a escada e chega-se ao primeiro andar, onde se encontram a administração e a

contabilidade (não tenho certeza dos setores e das funções exercidos nesse nível, já que ali

não foi para mim mais do que a passagem ao segundo andar). No segundo andar, a primeira

pessoa que se vê é a secretária. Além dela, neste nível do espaço vertical, encontram-se os

empregados que trabalham no Gabinete: superintendente, superintendente adjunto, e os

demais; também um advogado do INCRA (ala esquerda, subindo a escada). Para o outro lado

(ala direita) encontra-se a Ouvidoria, precedida por uma sala de espera (na qual me sentei

algumas vezes junto com assentados e acampados que se mostravam cansados de esperar, os

quais, mais de uma vez, me contaram suas histórias, problemas e indignações). São esses os

setores com os quais mantive contato naquele andar.

Com menos fôlego (não funcionava o elevador), sobe-se outro andar e chega-se à área

dos agrônomos, peça central do processo desapropriatório, como me foi revelado através de

comentários dos funcionários do INCRA. Devo dizer que a idéia dos agrônomos como peça

central do processo desapropriatório muito me chamou a atenção. Ignorante dos

procedimentos institucionais, pensei: O que têm os agrônomos que ver com a reforma

agrária? Com a desapropriação de terras? Depois fui me dando conta de que no INCRA o

processo desapropriatório resume-se a uma questão de análise técnica da produtividade, caso

não apareçam as “complicações” judiciais, que são consideradas obstáculos externos ao

processo.

Já sem a inércia da propulsão, chegamos ao quarto andar, área dos procuradores, a

elite do INCRA nas palavras de alguns de seus funcionários. Espaço além de tudo, afastado da

realidade cotidiana e institucional (não dependem administrativamente do INCRA). O mito da

Procuradoria já havia chegado aos meus ouvidos antes de eu aparecer ali. Alguns funcionários

falavam da Procuradoria como um espaço distante, meio inacessível e elitista. Aquilo também

me chamou a atenção. Por que os procuradores são vistos pelos funcionários do INCRA como

uma elite que se encontra fora da instituição?

Quando cheguei ao INCRA, no dia seguinte de minha chegada a Recife, não tive

dificuldades em saber para onde me dirigir, já que fui com Fátima, minha hospedeira naquela

cidade e “porteira” etnográfica, que trabalha no setor de educação do INCRA. Através dela,

fui apresentada de forma passageira a uma grande quantidade de pessoas da instituição. Em

cada uma dessas rápidas apresentações, Fátima perguntava sobre algum conflito para que eu o

investigasse. Aqueles que eram questionados respondiam ligeiramente, assinalando um ou

outro acampamento, ou mencionando certa pessoa que pudesse me ajudar. Eles eram

interceptados em meio ao seu caminho – esta logo se tornou a resposta à qual deveria me

acostumar no INCRA – pois iam fazer alguma coisa, estavam ocupados queriam, enfim,

deixar de lado a situação.

A recepção foi cordial, sorrisos, perguntas, algumas piadas de permeio. Entretanto, o

INCRA constituiu-se para mim em uma situação de “yira yira”.17 A etnografia me parecia

irrealizável naquele espaço. O mais plausível era a entrevista, não encontrava outro modo de

acessar esse mundo. Além de resultar muito difícil uma etnografia através de observação e

17 Adotei a expressão de um tango de 1929: “Yira… Yira…”. A letra e a música da canção são de Enrique Santos Discépolo.

vivência cotidiana, o dever de pensar previamente em uma pessoa específica a quem

entrevistar obstaculizou ainda mais o trabalho. Devia chegar com um objetivo claro e, no

início, isso me parecia impossível. Isto aconteceu somente ao final da experiência de campo,

quando comecei a distinguir as pessoas com quem mais me interessava conversar sobre

questões pontuais. Entretanto, sentia que essa predefinição de objetivos concretos empobrecia

a busca. Meu trânsito no INCRA foi limitado.

Uma sensação de desconforto aflorava cada vez que entrava naquela instituição.

Percebia-me pedindo favores constantemente, e devendo agradecer a cada passo que dava.

Meu trabalho não se enquadrava naquele mundo, minha circulação (transitar pelo INCRA,

perguntar às pessoas sobre o seu trabalho) não seguia os cânones estabelecidos pela

instituição, o que exigia uma justificação constante do meu proceder. Sentia que minhas

andanças de setor a setor incomodavam. Assim, muitas perguntas dos funcionários do INCRA

tinham o intento de atender à minha localização; precisavam colocar-me em algum setor.

Mais de uma vez me perguntaram em qual espaço da instituição estava trabalhando, se estava

com Bianca (Bianca, ouvidora=conflitos), se estava com os agrônomos (agrônomos, divisão

de obtenção=desapropriação).

Não era a investigação em si, mas o tipo de pesquisa que eu realizava que se mostrava

incompatível com a instituição. Desse modo, no final do período da minha etnografia, o

INCRA recebeu um jovem da Europa que, segundo me disseram, ficaria ali durante três

meses para fazer um estágio. Embora houvesse intenção de sermos apresentados, a

oportunidade não se deu. Esse jovem realizava seu trabalho em um setor, foi localizado na

Ouvidoria e acompanhou as atividades que ali se realizavam. Levando em conta os

comentários que fizeram comigo sobre a sua presença, parece que esta não trouxe incômodo

ou perturbação.

Por outro lado, eu me vi na necessidade imperiosa de ter cuidado em não ser associada

a nenhum dos funcionários do lugar. As tensões existentes nas relações entre os empregados

se fizeram notar desde o primeiro dia. Algumas pessoas deixaram isto transparecer em

comentários do tipo: “aqui há muita gente que não trabalha”. Sentia que a estratégia

etnográfica do “informante-chave” seria inadequada ali.

O primeiro dia no INCRA foi o Súmmun do “yira yira”. Depois que me separei de

Fátima fiquei junto de Leonor, uma funcionária que trabalha no setor relacionado ao meio

ambiente (localizado no mesmo edifício em que está Fátima, embora durante o meu trabalho

de campo ele tenha se mudado para o “setor dos agrônomos”). Esta nova figura que aparecia

continuou o percurso começado por Fátima, levando-me a vários setores do INCRA e

apresentando-me mais pessoas, que davam suas sugestões a respeito de minha busca.

Entretanto, a funcionária cobiçada no momento era Bianca, a ouvidora do INCRA, cujo

trabalho está associado aos “conflitos” existentes.

No primeiro dia encontrei assim muitas pessoas diferentes, a quem conheci de forma

superficial. Entre essas pessoas é pertinente destacar um agrônomo no qual tropecei ao final

do dia. O agrônomo sentia curiosidade por minha nacionalidade, pela pesquisa que eu estava

realizando e expressava seu desejo de me explicar sobre a reforma agrária. Que eles não

trabalham com “conflitos” era uma idéia enfatizada por esta figura naquele encontro – já

havia comentado com ele a respeito de minha busca de um “conflito”. Opinava que era

necessário que eu conversasse com eles para entender como eram as coisas e não permanecer

com a imagem – distorcida a seu ver – que poderiam me proporcionar a CPT e os outros

movimentos sociais sobre os processos de desapropriação. Os movimentos, sim, me falariam

de conflitos, opinava o agrônomo. Entretanto, segundo ele, os processos de desapropriação

não consistem em conflitos, mas sim em procedimentos legalizados, normatizados, que se

seguem ordenadamente. O agrônomo havia se instalado em um escritório do INCRA, no qual

eu me encontrava naquele momento, e repetia o discurso sem me permitir ler os documentos

que tinha em mão (havia conseguido os processos de três assentamentos da Usina Açude e me

dispunha a lê-los). A figura em questão considerava que eu perderia tempo estudando esses

apontamentos, pois eles não me serviriam, já que possuíam uma linguagem técnica e,

portanto, confundiam em lugar de esclarecer. Desperdiçaria trabalho naqueles tecnicismos (a

mesma idéia me havia sido expressa por Joaquim, um dos procuradores com quem estabeleci

um bate-papo), de modo que, segundo seu critério, o melhor para mim seria conversar com

eles.

O que procurava para investigar, naquele primeiro dia no INCRA, era um conflito por

propriedade de terra, que fosse de larga duração e com complicações burocrático-judiciais, de

modo que aquilo me oferecesse uma considerável matéria-prima para a pesquisa. Já

mencionei isto. O certo é que naquele dia, numa jornada etnográfica na instituição que

começou às 10h e se prolongou até as 18h aproximadamente, não consegui o que procurava.

Embora tenha encontrado Bianca, ela estava mudando de edifício e, nesse dia, ia viajar, razão

pela qual marcou para a próxima semana o meu ansiado encontro com ela.

Além do conflito a ser estudado, minha busca inicial (não exatamente a do primeiro

dia) consistia também no conhecimento do processo de desapropriação. Não um

conhecimento vivo, do processo atualizado em seu cotidiano, mas sim um conhecimento

exato; precisava saber as normas formais daquilo. Dessa maneira, interessava-me encontrar

algum papel, algum manual que o especificasse. Entretanto, a busca foi frustrada. Só consegui

acessar a menção da legislação geral existente sobre desapropriação e algumas Normas de

Execução. Os dados mais específicos foram obtidos unicamente através de conversas com os

funcionários, o que não preenchia minhas expectativas, já que estas procuravam exatidão.

Paradoxalmente, resultou muito difícil o acesso a textos que me facilitassem o caminho aos

dados formais que procurava (organogramas, manuais de procedimento etc.). Digo

paradoxalmente porque o processo de desapropriação é considerado no INCRA como uma

ação estruturada em função de regras formais, consagradas pela instituição.

Em um primeiro momento estava interessada no aspecto escrito, não só das normas,

mas também do processo administrativo de desapropriação do conflito que estudaria. Queria

trabalhar com o processo institucional de desapropriação em sua forma papel; meu objetivo

não era uma etnografia do INCRA em si, embora soubesse que a investigação me levaria a

“etnografar” as relações sociais constituintes das formas materiais. Assim foi; as conversas

com as pessoas ocuparam um tempo maior de trabalho de campo na instituição do que a

leitura do processo propriamente dito.

Em relação a essas conversas, cabe abrir aqui um parêntese e dizer umas palavras a

respeito de certos parâmetros sobre o “Saber” dentro da instituição. Assim, ocorria que

quando comentava no INCRA sobre o meu interesse em falar com os funcionários a respeito

de suas experiências com os processos de desapropriação, as pessoas indicadas eram as mais

antigas na profissão. Os anos de trabalho no INCRA constituíam um parâmetro de valorização

do conhecimento. O “saber muito” sobre os processos, sobre a instituição, era proporcional à

experiência, experiência esta medida quantitativamente pelo tempo de trabalho no lugar.

Acontece, por outro lado, que várias pessoas de idade avançada compõem o setor de

agrônomos dedicado à desapropriação, embora entre eles se encontrem uns poucos jovens

ingressados na instituição há poucos meses e outras pessoas de meia-idade. A Procuradoria,

ao contrário dos outros setores, é em grande parte composta e dirigida por pessoas muito

jovens. De maneira geral, pelo que pude ver, os poucos indivíduos de baixa idade que se

encontram na instituição nela ingressaram recentemente, passando a fazer parte do INCRA a

partir do concurso que teve lugar pouco tempo atrás, na primeira metade do ano.

Retornando ao meu interesse inicial pelos documentos, uma vez achado o conflito a

ser estudado, comecei então uma aproximação ao processo-papel, meu interesse principal em

função dos parâmetros de pesquisa previamente fixados. Fui à sua procura logo depois da

segunda visita ao acampamento no qual centraria minha investigação, em uma etapa germinal

do trabalho de campo. Não foi difícil consegui-lo, tampouco foi um achado direto. Cabe

mencionar aqui que cheguei em um momento particular da desapropriação de Cachoeira (o

acampamento da Usina Açude que estudaria). Em janeiro de 2001, o acampamento Cachoeira

tinha sido excluído do processo de desapropriação pelo “Comitê de Decisão Regional” do

INCRA de Pernambuco. Foi em julho de 2006, coincidindo com os dias iniciais de meu

trabalho etnográfico, que o processo começou a ser retomado por “pressão dos acampados”.

Por ocasião da imissão de posse do acampamento Goitá, os acampados inteiraram-se, em uma

visita que realizaram à instituição, da “exclusão-morte” – o primeiro termo utilizado pelos

funcionários do INCRA para se referirem ao assunto, o segundo, pelos acampados –

administrativa de Cachoeira. A partir desse momento, começaram suas visitas ao INCRA para

exigir uma resposta e o imediato reviver do processo desapropriatório do acampamento em

questão. Por que havia escolhido um processo tão complicado para estudar – e não um mais

simples? Esta foi uma pergunta que ouvi repetidamente de vários funcionários do INCRA.

Antes da minha solicitação do processo de Cachoeira um funcionário já havia

conversado com Mário – um agrônomo que ocupava uma posição de destaque na instituição -

falando-lhe a respeito de meu interesse por aquele acampamento. Segundo aquele funcionário,

o agrônomo mostrou-se aberto a me ceder o que precisasse, inclusive tinha nomeado Lúcio,

outro agrônomo, encarregado dos processos relacionados com a Usina Açude. Entretanto,

quando me dirigi ao seu escritório para me apresentar e lhe pedir o documento, Mário

mostrou nada saber sobre Cachoeira, confundindo-o com outro acampamento que estava em

fases iniciais. Ao mencionar para ele que era um acampamento da Usina Açude, assinalou que

quem sabia sobre aquilo era Lúcio, mas não se encontrava naquele dia, pedindo-me, então,

que voltasse no dia seguinte. Ao voltar, tive que lhe recordar novamente sobre o

acampamento em questão, momento em que Mário mostrou-se imbuído na mesma confusão

do dia anterior.

Foi a menção da figura de Lúcio que ocasionou um avanço na aquisição do processo, a

situação de me delegar a outro, de me fazer circular por várias mãos, de desembaraçar-se, de

certo modo, de uma responsabilidade. Fato recorrente em minha experiência etnográfica no

INCRA: meu trânsito circular por várias pessoas, figura longínqua em relação a uma linha

reta com ponto final. Também as situações de “esquecimentos” e as reiterações de meus

pedidos foram moeda corrente durante o trabalho de campo na instituição.

O INCRA escondia-se de mim, a instituição escorregava pelas minhas mãos como

sabão. Tudo fugia de mim e eu rodava de pessoa em pessoa sem conseguir encontrar o espaço

que acolhesse minha etnografia. O INCRA era um trânsito, ali eu devia transitar, rodar,

passar. O INCRA oferecia-se para mim só como “petisco”, não se entregava, não havia nesse

lugar pecho fraterno para morir abrazao.18 Tudo passava de mão em mão, todos eram

responsáveis uma vez que ninguém o era. A administração deslizava, e deslizar é uma

maneira de esconder-se. Não existe um espaço fixo e certo na burocracia; a burocracia flui por

si mesma, não se detém, passa por todos os escritórios, por todos os funcionários, e esse fluir

só consegue proporcionar imagens fora de foco.

No episódio de aquisição do processo, Lúcio foi então a estação seguinte.

Inicialmente, ele comentou comigo de maneira sintética sobre a situação da Usina e os

processos de desapropriação das terras que pertenciam a ela, negando-se a que eu gravasse

aquela conversa. Logo depois de me introduzir na situação do processo, Lúcio acompanhou-

me à Procuradoria, lugar onde se achava o documento em questão. Ali perguntou às

secretárias por Joaquim, um advogado relacionado ao caso, que estava em uma reunião.

Depois de avisar às secretárias a meu respeito e sobre o meu interesse em falar com o

procurador naquele dia, Lúcio desceu as escadas para voltar ao seu escritório.

Permaneci então na sala de espera até ser recebida e atendida no escritório do

advogado solicitado, momento em que comentei com ele sobre meu trabalho e minha

necessidade de ter acesso ao processo. Ele explicou sobre sua situação passada, que dizia

respeito ao seu antigo cargo de chefe, e apresentou-me a uma advogada que exercia uma

função próxima à de chefe (ela casualmente havia entrado no lugar em que nós estávamos

conversando), com o objetivo de que ela me abrisse as portas ao processo. Uma vez em suas

mãos, essa advogada me pôs em contato com David, um procurador também do alto escalão,

que finalmente colocou o processo à minha disposição. À minha disposição de certa maneira,

já que, segundo as palavras dos procuradores, o processo era “secreto”, passível de ser

consultado pelas partes interessadas, unicamente estas podendo fotocopiá-lo. A

superintendente da instituição já me havia advertido sobre esta situação: somente poderia

fotocopiar algumas partes do processo, outras deveriam ser copiadas à mão.

Ao me oferecerem o processo, os procuradores estavam lutando com uma situação

nova: eu não era movimento social, nem “usineiro”, nem advogado, no entanto queria estudar

o processo. Dessa forma, não tinham uma maneira exata de responder aos meus pedidos,

devendo decidir na ocasião como proceder com as novidades que introduzia com minha

pesquisa.

Concretamente, li o processo durante cinco dias no escritório de David. A situação

incomodava tanto a ele como a mim; eu sabia que minha atitude era estranha na instituição e

18 Voltamos aqui às expressões do tango de Discépolo.

ele sentia-se mal com a atipicidade da minha presença ali naqueles dias. Tive acesso ao

processo quanto à leitura e me ofereceram a possibilidade de copiá-lo à mão. Foi o que eu fiz

naquelas idas. No entanto, depois de dois dias, e na ausência de David, a advogada

mencionada anteriormente respondeu positivamente ao meu pedido de fotocopiar algumas

partes (neste caso, as “certidões”), explicitando a sua atitude como uma exceção, um favor

informal com o qual me estava presenteando. O mesmo favor não me foi outorgado por David

quando, mais adiante, solicitei a ele fotocopiar a parte final do processo que restava ler.

No que diz respeito à minha busca inicial do conflito, logo depois da frustração que

havia experimentado no primeiro dia no INCRA em relação a este objetivo, ansiosa e

preocupada pensei novas alternativas. O conflito tinha que ser escolhido imediatamente, não

podia dedicar muito tempo a essa tarefa. Resolvi então ir à CPT e lá cheguei no dia seguinte.

A CPT foi a escolhida porque tinha referências sobre seu trabalho de documentação, o que me

levou a pensar na possibilidade de que pudessem me proporcionar algum resumo escrito dos

conflitos.

Tive ali uma recepção cordial. Além de me permitirem ver alguns de seus trabalhos de

documentação, conversei a respeito de certos acampamentos que estavam acontecendo. Nessa

conversa, as pessoas da CPT enfatizaram sobre o caso da Usina Açude, o qual se arrastava há

quase dez anos, e mostrava muitas complicações burocrático-judiciais. Aquele caso gerou

várias ocupações pertencentes ao MST e à CPT, muitas delas já convertidas em

assentamentos. Ao perguntar-lhes sobre um acampamento específico, sugeriram-me

Cachoeira, o único acampamento da CPT na Usina Açude naquele momento (outros ou eram

assentamentos, ou eram do MST). Chamou-me a atenção que terem acontecido assassinatos

no acampamento era um critério destacado pelas pessoas do Movimento nessa conversa, sem

que eu tivesse mencionado a questão.

Nesse dia, ofereceram-me ainda certas possibilidades de investigar aquele lugar, como

a entrada ao acampamento, o acesso às documentações disponíveis etc. A Comissão acolheu-

me naquele Pernambuco enorme, acolheu minha etnografia e me abriu caminhos para o

ingresso em “meu” lugar de pesquisa. Sua recepção proporcionou-me satisfação, tanto no

sentido pessoal, como no de trabalho.

Realizar meu estudo em um de seus acampamentos foi uma idéia bem recebida na

CPT. O mesmo aconteceu na Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco

(FETAPE) e no MST, os outros dois Movimentos que visitei no momento da escolha do

conflito. Senti que em ambos os lugares mostraram-se dispostos à realização de meu trabalho

em seus espaços de ocupação. E não unicamente dispostos a que ali pesquisasse, mas também

ofereceram-me facilidades como apoio ao desenvolvimento de minha etnografia.

Em relação ao MST, meu contato com aquele Movimento começou casualmente no

INCRA, naquela aventura interminável do primeiro dia de campo na instituição. José Miguel,

integrante do Movimento, estava conversando com uma das pessoas do INCRA que me havia

sido apresentada por Leonor. Ao escutar a respeito de minha problemática, sugeriu-me

estudar o caso de Usina Açude (coincidindo com as sugestões da CPT, que mencionou Açude

quando falei de meu interesse por um conflito com problemas burocráticos). O celular deste

integrante do Movimento foi meu canal de entrada no MST (pelo que pude constatar os

celulares são uma ferramenta importante dos Movimentos). Chamei para ele no dia seguinte,

logo depois de minha visita à CPT.

Naquele telefonema, José Miguel, depois de me perguntar sobre a minha visita à CPT

e sobre o que eu havia achado deste Movimento, deu-me o celular de Josias, um importante

coordenador do MST, que se encontrava em Caruaru. Por sua vez, esta última pessoa me

passou o celular de Joel que, segundo as suas palavras, encarregava-se de conflitos (meu

pedido era ter uma conversa para que me contassem sobre os conflitos de terra que estavam

acontecendo). Ao falar com Joel, ele marcou para mim um encontro dentro de pouco tempo.

Nesse encontro, também fui atendida cordialmente. Diferente da CPT e de José

Miguel, Joel enfatizou sobre o acampamento do Engenho Palmeira Grande, pertencente à

Usina Alvorada, localizada no município de Sapucaia. Um conflito que também se desdobra

há vários anos e apresenta problemas burocráticos consideráveis.

Logo depois da conversa com Joel e com as pessoas da CPT, já tinha duas

possibilidades de viagem: Sapucaia (Mata Sul) e Açude (Mata Norte) – um daqueles lugares

iria transformar-se no “meu lugar”. Só faltava dar os telefonemas para ver se as viagens

aconteceriam e tudo começaria a encaminhar-se. Fui mais tarde ao telefone público, serviço

ruim de comunicação – chamadas que são cortadas ou não são ouvidas com clareza –

entretanto, era o meio mais acessível de contato. Ao terminar os telefonemas tinha duas

viagens combinadas: na quarta-feira, iria para Sapucaia e me encontraria com as pessoas do

MST para conhecer o acampamento do Engenho Palmeira Grande; na quinta-feira, meu

trajeto me levaria para o norte, Açude seria o destino e a CPT, neste caso Gustavo (a quem

ainda não conhecia), o meu transportador. Aquele dia era uma segunda-feira; de manhã havia

conversado com Joel; na sexta-feira anterior tinha entrado em contato com a CPT. À tarde

desse mesmo dia eu tinha ido à FETAPE.

Ali fui gentilmente recebida, da mesma maneira que nos outros dois Movimentos. Foi

marcada uma conversa para o dia seguinte com Vlanio, a pessoa que me recebeu, o que de

fato aconteceu; entretanto, não visitei nenhum acampamento da FETAPE por questões de

tempo. Eu havia me dirigido previamente à CPT e ao MST, e em ambos tinha combinado uma

visita aos acampamentos sugeridos. Logo depois de conhecê-los, o conflito já tinha sido

escolhido. Sentia que continuar visitando acampamentos alimentaria minha indecisão.

Na quarta-feira dessa semana fui, então, para Sapucaia. Por telefone, havia entrado em

contato com Inácio, um integrante do MST que se encontraria nesse dia no município, por

ocasião de uma reunião do Movimento. Nessa reunião, estariam os coordenadores do

acampamento Palmeira Grande. Foi uma viagem complicada. Chovia muito. Em Recife,

tomei um ônibus até a estação de metrô Joana Bezerra, de onde me dirigi para o Terminal de

Ônibus. Ali subi no micro que ia para Sapucaia. Uma vez lá, desci na entrada da cidade para

tomar a kombi que me levaria ao centro.

Lá chegando telefonei para Inácio, como combinado. Seu celular estava desligado, de

forma que deixei uma mensagem dizendo que estava no Terminal de Ônibus da Sapucaia.

Preocupada, liguei para Joel do telefone público. Joel registrou o número daquele telefone.

Ele disse que aguardasse ali a sua chamada. Em pouco tempo, estava falando comigo Marina,

uma integrante do MST que se encontrava em Caruaru, sugerindo-me que tomasse um táxi até

o assentamento Santa Margarida (do MST), onde me encontraria com as pessoas. Entendi que

ali estava acontecendo a reunião em que estava Inácio, de maneira que cheguei ao

assentamento – só e de táxi – perguntando por aquela reunião. Entretanto, as mulheres às

quais fiz aquela pergunta responderam-me que ali não havia reunião.

Confusa, fui rapidamente até um telefone público que havia em uma rua do

assentamento e chamei Marina (tinha pedido seu número de telefone). Ela me disse que

permanecesse no lugar onde me encontrava, pois iriam me buscar; sugeriu que eu aguardasse

na casa de algum dos assentados. Telefonei novamente para Inácio e consegui falar com ele.

Inácio confirmou que escutara a mensagem em seu celular e mandara uma pessoa para me

buscar no Terminal da Sapucaia, mas não me encontraram. Enquanto isso, eu estava no

assentamento Santa Margarida, não sei muito bem por que, esperando que alguém viesse me

buscar.

Durante aquele tempo de espera acompanharam-me as mulheres do assentamento.

Uma senhora chamada Marisa sugeriu que alguém me mostrasse a horta. Pelo que pude

perceber, para os assentados este era um espaço digno de ser revelado às visitas, um espaço de

trabalho coletivo. Foi um dos homens encarregados daquela horta (eram quatro homens os

que nela trabalhavam) que assumiu a tarefa de me apresentar aquele mundo em que eram

preparadas mudas para vender (mudas de diversas espécies de plantas, as quais, segundo me

lembro, eram em sua maioria de árvores frutíferas). Ali estivemos quase uma hora. Logo

depois de me apresentar à horta, o mesmo homem mostrou-me a casa de farinha, que

pertencia a Horácio, o marido de Marisa. Quando acabou o passeio, meu guia turístico do

assentamento levou-me à casa de Lucineide, uma assentada. Permaneci conversando com ela

até que apareceu uma pessoa do Movimento (sua aparição foi alheia à minha presença ali).

Comentamos a respeito de minha situação com essa pessoa, que logo telefonou para um

participante da reunião em Sapucaia para dizer que viessem procurar-me no assentamento,

que eu estava ali esperando e que ele não podia me levar porque não tinha capacete

(Lucineide ofereceu-lhe seu celular para realizar a chamada). Felizmente, em meia hora

chegou uma pessoa de moto para me levar à reunião. A essa altura, já eram aproximadamente

2 ou 3 horas da tarde.

Quando cheguei, a reunião estava acontecendo. Ninguém saiu para receber-me, de

maneira que fiquei sentada esperando. Já quase no final da reunião, consegui falar com Inácio.

Seu plano era me levar ao acampamento no dia seguinte, o que não poderia ser realizado, já

que para aquele dia eu havia marcado com a CTP a visita à Açude. Entretanto, consegui

conhecer os coordenadores do acampamento no qual estava interessada e que se encontravam

na reunião. Enquanto falava com eles, Horácio aderiu à conversa e me propôs o assentamento

Santa Margarida como um espaço de alojamento no meu trajeto em direção a Palmeira

Grande. Horácio era o dono da casa de farinha, coordenador do assentamento Santa

Margarida e marido da Marisa, a senhora do assentamento a quem me referi anteriormente.

Dessa forma, Horácio, Vera e Josué (estes dois últimos eram os coordenadores do

assentamento) foram os co-organizadores de minha posterior visita a Sapucaia: no domingo

iria a Santa Margarida, dormiria ali e, na segunda-feira, às 6 da manhã, partiria para o

acampamento Palmeira Grande com Dico, uma pessoa do assentamento que se dedicava a

transportar as professoras de Sapucaia para os diversos assentamentos e acampamentos da

região. Em Palmeira Grande, estaria me esperando Vera. Cabe esclarecer que o assentamento

Santa Margarida já tinha recebido pesquisadores vindos de outros países, de maneira que

Horácio não desconhecia a tarefa que eu estava realizando.

Minha segunda visita a Sapucaia aconteceu como planejado, mas não foi Vera quem

me recebeu, e sim sua irmã de 15 anos, que já tinha sido avisada. Depois de passar parte do

domingo em Santa Margarida – lugar onde me senti confortável – na casa do Horácio, Marisa

e seu filho adolescente,19 e de dormir ali, dirigi-me com Dico, na segunda-feira, ao

acampamento. Conversei com algumas pessoas que ali viviam e que falaram ligeiramente de

sua situação. Entretanto, a maior parte do tempo estive na casa de Vera, com sua irmã menor.

Decidi não escolher aquele acampamento como campo etnográfico. Basicamente,

porque já tinha realizado uma visita ao acampamento de Açude. Tinha conhecido a ocupação

de Sapucaia logo depois dessa visita. O interesse que me cativou em relação ao primeiro lugar

fez com que – embora não de todo consciente – eu fosse até Sapucaia já decidida a realizar a

pesquisa em Açude. Por outro lado, o transporte em direção a Sapucaia seria mais

complicado; para chegar ao acampamento, deveria usar como espaço de intermediação o

assentamento Santa Margarida, partindo dali para Palmeira Grande com Dico, e isto abarcaria

um tempo considerável de viagem.

Decidi-me então pelo conflito da Mata Norte do estado de Pernambuco, por uma

ocupação realizada em terras da Usina Açude, localizada no município homônimo. O

funcionamento da Usina encontra-se paralisado desde a sua quebra, ocorrida em 1996. A

Usina contraiu importantes dívidas. Entre elas, figuram as que foram adquiridas com os

trabalhadores, dívidas que não foram saldadas. Propriedade do Grupo Cunha Silva S/A, são

21 os engenhos que integram esta propriedade, os quais se encontram em processo de

desapropriação ou já foram desapropriados a partir das ocupações empreendidas pelos

Movimentos. Entre os engenhos, há o de Cachoeira, que possui um território de 350 hectares

e cuja ocupação por parte de integrantes da CPT data de agosto de 1999.

A visita à Açude, minha primeira entrada no acampamento Cachoeira, foi realizada

com Gustavo, um integrante da CPT que, entre outras questões, dedicava-se a visitar os

acampamentos e os assentamentos durante a semana (em geral, terça-feira, quarta-feira e

quinta-feira), e ao fim desta escrevia um relatório a partir do material recolhido durante as

visitas ao campo. Encontrei-me com ele em Recife, na sede da CPT, às 7 horas e partimos em

seguida. Era quinta-feira.

Viajamos durante uma hora e meia, aproximadamente. Logo depois de passar pela

cidade de Açude, um curto trecho deve ser transposto até chegar a um caminho de terra que

conduz ao acampamento. A indicação que posso dar sobre a extensão desse caminho de terra

apóia-se no tempo de seu percurso: cerca de 50 minutos de caminhada. As margens do

caminho apresentam terras plantadas com cana – pertencentes ao Engenho Mata Seca, da

Usina Ubaúna – e umas pequenas áreas de mata. Aquela paisagem de cana termina quando

19 A neta de Horácio e Marisa – de sua filha maior que vivia em outro município próximo – de aproximadamente 6 anos, encontrava-se em visita naqueles dias.

começa a área dos “sem-terra”, e aparecem pastos, cultivos e as primeiras casas do antigo

Engenho.

Ao chegarmos ao acampamento, as pessoas já estavam esperando, sentadas sobre uns

troncos localizados em frente à Casa Grande do Engenho. Esses troncos, colocados sob a

sombra de umas árvores, funcionam como um espaço informal de confraternização e também

como um lugar de espera antes das reuniões. O encontro dos acampados com o integrante da

CPT ia ser, como de costume, na parte da frente da Casa Grande do Engenho. Chegamos de

automóvel. Gustavo e eu descemos; foram trocados alguns cumprimentos e, sem mais

palavras, todos nós nos dirigimos à Casa Grande.

A maioria dos presentes era composta por homens. Eles se sentaram no chão,

formando uma roda; outros – como eu e uma senhora chamada Jacinta – acomodamo-nos em

cadeiras; por último, as janelas foram o ponto de apoio das mulheres, que participaram do

lado de fora da sala basicamente só através da escuta do evento. Logo depois de acomodados,

o integrante da CPT deu início à reunião. Além de conversas a respeito da situação do

acampamento no INCRA (muito poucos dias antes os acampados tinham visitado a instituição

e descoberto que o processo administrativo de desapropriação tinha “morrido” anos atrás), a

reunião fez referência à minha presença ali. Logo depois de ser apresentada, comentei sobre o

trabalho que estava realizando, esclarecendo que aquela era uma fase de reconhecimento e

que não sabia ainda onde instalaria minha barraca. Foi positiva a resposta dada pelos

acampados à possibilidade de me instalar em Cachoeira para a pesquisa etnográfica.

Uma vez terminada a reunião, e enquanto éramos convidados a comer milho assado

por uma das mulheres do acampamento, Seu Almeida, um acampado, mostrou-nos seu roçado

e Gustavo fez logo algumas indicações para a construção de um sistema de rega. Um pouco

depois, partimos dali; o automóvel transportava agora presentes dos acampados (produtos do

roçado e das árvores frutíferas) e um novo acompanhante, Geraldo, que ia visitar sua família

em Ibiaçu. Geraldo desceu na estrada; ali pegaria a kombi que o levaria para a sua casa na

cidade, onde vivem sua esposa e filhos enquanto esperam que “saia” a terra em Cachoeira.

Já na segunda vez em que me dirigi à Açude, uma semana depois, foi com a decisão de

que aquele espaço seria o “meu” espaço etnográfico, um “meu” que depositava em Cachoeira

as expectativas de uma potencial identificação, e que convertia esse lugar em "o lugar”,

matizando-o com uma tonalidade especial que surge das próprias sensações do pesquisador,

tonalidade apoiada na relação que ele estabelecerá com aquele espaço.

Na visita posterior, cheguei não ao “acampamento Cachoeira”, mas sim ao “meu

campo”. A viagem foi realizada com o mesmo integrante da CPT e com outros dois ex-

acampados, atualmente assentados: Zezé e Bené. Este último hospedara-se na CPT de Recife

por uns dias, conforme comentou comigo, por questões de segurança, já que tinha sido

ameaçado no assentamento onde vivia, de modo que as pessoas da CPT acharam mais

conveniente sua estadia temporária em Recife. Zezé somou presença na viagem já muito perto

de Açude, porque sua casa encontra-se em um assentamento próximo dali. Zezé foi acampado

em Cachoeira durante muito tempo e, de tanto em tanto, visita a região em atitude de apoio.

Chegaria com eles ao acampamento, voltaria em outro dia com um mototaxista

recomendado por Bené (que chamou o taxista durante a viagem de ida e me passou logo o

telefone para minhas futuras idas). O mototaxista me deixaria em Chã do Martinho, ali me

encontraria com Bené para tomar o micro e empreender a viagem de volta a Recife. As

“voltas” posteriores não seriam semelhantes: de modo geral, o taxista me apanharia no

acampamento e me deixaria na cidade de Açude, de onde iria direto para Recife. Antigo

habitante do lugar, evangelista, conhecedor de alguns acampados, ex-trabalhador de Usina

Açude “indenizado” com uma casa no Engenho Laurentino – sua atual moradia – as

conversas que teria com o taxista o converteriam em uma figura de significação etnográfica.

Ao chegar a Cachoeira pela segunda vez, encontraríamos os acampados já reunidos na

Casa Grande do Engenho, em função de um integrante da FETAPE (ex-integrante da CPT)

estar realizando campanha para o cargo de deputado de outro membro desta federação. Este

último era também advogado da CPT no caso da Usina Açude (meu campo foi nos meses

anteriores às eleições políticas no Brasil). A reunião já estava em sua etapa final. Antes de

partir, o integrante da FETAPE cumprimentou cordialmente as pessoas que me

acompanhavam (mais tarde, eu o encontraria na sede da CPT por ocasião da organização de

um evento conjunto em Recife, o “Grito dos excluídos”, manifestação realizada em 7 de

setembro por várias organizações sociais; seu nome ainda seria referido a mim por pessoas da

CPT em algumas ocasiões mais informais, referências estas que davam a entender certo laço

de amizade entre ele e os integrantes da CPT).

Deu-se, então, início à reunião em Cachoeira, na qual, entre outras coisas, Gustavo

voltou a perguntar sobre a possibilidade de me hospedar ali aquele dia, obtendo novamente

uma resposta positiva. Assim, meus acompanhantes de viagem se foram e começou meu

primeiro dia de estadia no acampamento, dia atípico, de instalação, de chegada, de inserção,

de primeiros encontros, dia que ofereceu situações interessantes de serem destacadas.

A resolução dos acampados a respeito de meu lugar de alojamento foi uma dessas

situações. Foram dois os critérios que entraram em jogo naquela seleção. Por um lado, a

amplitude do espaço, sua localização, sua centralidade levou-os a considerar a Casa Grande

do Engenho como um lugar adequado para minha instalação (especificamente a “casa” do

Mário, já que ali vivem três unidades familiares diferentes). Aquela foi a primeira decisão,

rapidamente tomada. Assim, imediatamente após a saída de meus acompanhantes de viagem,

Estela e sua filha Marcelinha – duas mulheres acampadas que viviam ao lado do lugar onde

me instalaria segundo esse primeiro critério – organizaram e limparam o lugar (trocaram os

lençóis e varreram). Eu dormiria no quarto de Mário e este se mudaria para o quarto contíguo.

Entretanto, passadas umas horas e logo depois de terem reconsiderado sua primeira

decisão, alguns acampados me deram sua opinião a respeito da casa da Luísa como um local

mais indicado para minha hospedagem. Entrava em jogo um segundo critério. Em suas

palavras, ali compartilharia o espaço com uma mulher, com uma família. Luísa vivia com

Tuca, seu marido, e seus quatro filhos: Sheila, Guilherminho, Ronaldo e Susana. Esta última

estaria ausente por um longo tempo, até começos de setembro, e eu poderia ocupar sua cama

(que se encontrava no mesmo quarto em que dormia Sheila). Simplesmente segui esta

indicação e foi ali que me alojei naquele dia e nas visitas posteriores. Devo confessar que a

idéia de ficar ali foi da minha preferência naquele momento.

Foi bela a minha experiência naquela casa e a minha relação com meus hospedeiros. A

recepção cordial, as conversas, as visitas de outros acampados àquela casa, os momentos de

risadas, enfim, as situações que ali aconteciam influíram em grande parte para a sensação

agradável que me proporcionou a experiência etnográfica no acampamento. A recepção não

somente foi cálida naquela casa, mas também no acampamento em sua amplitude. Minha

estratégia de campo teve o intento de abranger conversas com o maior número de pessoas, de

maneira que devia circular pelo espaço. Nessa circulação, a acolhida que recebi tornou o

acampamento um lugar extremamente agradável, não unicamente de pesquisa, mas também

de estadia, revelando tais sensações aquele tom ambíguo da pesquisa etnográfica, tom em que

a complexidade das experiências mostra a arbitrariedade da separação entre os interesses de

estudo e a emoção pessoal, a ficção daquele ideal de pureza objetiva.

Outra experiência daquele primeiro dia no acampamento, interessante de ser

destacada, diz respeito à figura de Jacinta (“Maracatu”), de mais de 60 anos. No momento em

que comecei meu trabalho, Jacinta estava acampada no lugar há um mês, não tinha roçado e

vivia sozinha. Segundo seus comentários, foi procurada pela CPT para participar de

Cachoeira com o fim de organizar “maracatu” nos assentamentos e nos acampamentos

daquela região. Meu interesse em destacá-la baseia-se em sua atipicidade em relação aos

parâmetros que regem a vida do acampamento.

Jacinta não se separou de mim durante o primeiro dia de minha estadia em Cachoeira,

seu argumento era o de cuidar de mim, de não me deixar sozinha. Ela esteve comigo no

acampamento durante a parte da manhã e também me acompanhou, à tarde, a Goitá, outro dos

engenhos da Usina Açude, distante aproximadamente 20 minutos a pé. Diante do meu

comentário sobre o interesse em falar com o filho de Amaro, um dos assassinados no

acampamento, que vivia em Goitá, Jacinta mostrou grande entusiasmo e dispôs-se a me levar

lá (Gustavo havia me falado durante a viagem sobre a existência desse filho). Entendi logo

depois daquele dia que Jacinta encontrara um espaço confortável em Goitá. O mesmo não

acontecia em Cachoeira.

Por um lado, Jacinta estava em Cachoeira de forma extremamente transitória, com um

pé no assentamento Trindade – também da CPT – onde vivia uma pessoa com quem estava

pensando em se casar (o que foi logo consumado conforme comentaram depois comigo as

pessoas de Cachoeira; assim, em minha visita posterior ao acampamento, Jacinta já tinha ido

para Trindade). Por outro lado, ela não se enquadrava nos espaços reservados à mulher. Ela

não permanecia em Cachoeira, circulava diariamente entre engenhos, só e a pé. Tampouco

dava grande atenção aos espaços implicitamente masculinos. Dessa forma, Jacinta entrava na

sala da Casa Grande nos momentos em que aconteciam as reuniões, enquanto a maioria das

mulheres se colocava na parte externa à sala, aparecendo na reunião através das janelas.

Finalmente, ela estava em estreita relação com o “maracatu”, uma “brincadeira” e, segundo

algumas pessoas no acampamento, um espaço de “não-trabalho”, já que o trabalho com a terra

e com o gado era um dos valores explicitamente reconhecidos como centrais na organização

social do acampamento. Todos esses fatores colocavam Jacinta em uma relação de distância

com os parâmetros convencionais da mulher no acampamento. Sua figura é, por esta razão,

interessante de ser destacada.

A CPT levou-me até Cachoeira em minhas primeiras idas, e posteriormente também.

As viagens iniciais foram realizadas com o propósito básico de me introduzir no lugar. Nas

outras, eu aproveitaria a “carona”. Quase todas as semanas os integrantes da CPT tinham o

hábito de se dirigirem para algum dos acampamentos daquela área da Mata Norte. Nas

ocasiões em que isto não ocorria, tomava o ônibus por minha conta. Foram duas as pessoas

que me transportaram naquelas viagens, Gustavo e o Padre Teodoro, que iam mais

freqüentemente para os acampamentos e os assentamentos da região, e que eram as figuras da

CPT mais mencionadas pelos habitantes de Cachoeira.

Nas viagens posteriores, logo depois das duas primeiras visitas que acabo de relatar, as

pessoas da CPT me deixaram em lugares próximos a Cachoeira. Cheguei em uma dessas

últimas ocasiões à cidade de Açude, onde por acaso me encontrei com alguns habitantes do

acampamento no Sindicato do Trabalhadores Rurais (eu tinha chegado ali com a CPT). Logo

depois desse encontro, os acampados e eu nos dirigimos juntos para Cachoeira. Tomamos

uma kombi até a entrada do acampamento na estrada de onde continuamos a pé. Em outra

ocasião, participei de uma reunião realizada em Montes Claros, um assentamento da CPT em

terras da Usina Açude (fui com o Padre Teodoro e com pessoas relacionadas à FIAN).20. Dali

parti a pé, com os habitantes de Cachoeira, para o acampamento.

A viagem em que aconteceria o encontro com os acampados em Açude seria a mais

longa. Aproveitaria a ida a essa cidade e também teria a oportunidade de conhecer a região e

outros sindicatos, isto segundo um comentário de pessoas da CPT. Dessa forma, além de me

levarem ao âmbito de minha pesquisa particularizada em Cachoeira, eles me mostrariam a

região. Fomos a alguns sindicatos, com o principal fim de convidar as referidas entidades a

participarem de uma reunião. Em cada parada, os integrantes da CPT perguntavam aos

sindicatos sobre a situação vivida e anotavam as respostas. As conversas eram parte de um

texto, que logo seria utilizado pelo setor de documentação da CPT para a elaboração de

informes sobre a situação no campo. Não me lembro bem dos lugares onde fomos, acredito

que tenha sido Ibiaçu, Uaiana, Açude e mais um do qual me esqueci, já que não coloquei no

papel nenhum deles, nem detalhei sobre aquele encontro que a Comissão pretendia realizar.

Considero que isto é pertinente de ser assinalado porque diz respeito à minha atitude

etnográfica com a CPT. Por não pretender estudá-la, minha postura tendia à naturalização, eu

não apontava o que acontecia. Daquela viagem, eu me lembro de que me levaram à sede da

Usina Açude, com o fim exclusivo de que pudesse vê-la.

Os convites que me eram feitos pelas pessoas da CPT foram um episódio recorrente.

Opinavam que seria interessante para mim conhecer aqueles espaços que se abriam nos

convites e sugeriam que minha etnografia transcendesse o acampamento Cachoeira,

considerado parte de um grande conflito. Meu campo expandia-se em seus comentários. Os

convites foram vários: a viagem assinalada no parágrafo anterior, o Grito dos Excluídos, a

Romaria da Terra, uma reunião que aconteceria em Cachoeira relacionada à discussão da

Bíblia, uma conferência na Universidade da qual iria participar o Padre Teodoro. Em uma 20 Foodfirst Information and Action Network (Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar). Em um folheto da FIAN-Brasil se destaca: “A FIAN é uma rede internacional (…) É composta por membros, seções e coordenações em mais de 60 países e possui status consultivo diante da Organização das Nações Unidas. Foi criada em 1986, e tem como objetivo contribuir, em todo o mundo, na vigência e na observância dos direitos reconhecidos nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, trabalhando para proteger o direito humano à alimentação adequada de pessoas e grupos ameaçados pela fome e pela desnutrição, em particular camponeses, indígenas, quilombolas, trabalhadores agrícolas, os sem-terra e outros, cujos direitos à terra são ameaçados ou violados…”. Na questão que aqui nos ocupa, a FIAN intervém nos casos relacionados à Usina Açude.

ocasião, acompanhei-o e uma integrante da FIAN ao Ministério Público para apresentar um

apontamento. Tinha marcado uma conversa com o padre na CPT; o seu atraso deu lugar à

proposta de acompanhá-los. Embora tenha sido por acaso, o convite não se fazia necessário.

Era, deste modo, convidada a participar de cada evento que acontecia, não só por uma, mas

por diversas pessoas da CPT.

Em minhas idas à CPT tive a oportunidade de me encontrar mais de uma vez com

membros da FIAN. O primeiro encontro se deu em uma de minhas viagens a Açude. A

presença de uma integrante da FIAN-Alemanha, coordinator for UN Affairs, que se

encontrava em Pernambuco naquele momento, suscitou a realização da reunião em Montes

Claros, mencionada mais acima. Nessa reunião, estavam presentes os assentados do

mencionado lugar e alguns integrantes dos acampamentos e dos assentamentos de outros

engenhos ocupados pela CPT em Açude. Na ida para o acampamento, viajei com o Padre

Teodoro e esta integrante, que estava acompanhada de outra pessoa também vinculada ao

tema. O padre comentava o conflito de Açude em função das perguntas que eu lhe fazia,

acentuando a vergonha da fraude e as irregularidades cometidas em relação ao caso (nos

capítulos seguintes, eu farei referência a esta questão). Quanto ao fato, a integrante da FIAN

indagava se seria producente enviar uma nota denunciando o estado de imobilidade

relacionado aos processos de desapropriação do acampamento Cachoeira (acredito ter sido a

ONU o organismo mencionado como destinatário). Preocupava-lhe que aquilo pudesse passar

por cima, impor-se, e assim ofuscar a luta já estabelecida pelos trabalhadores. Uma ênfase

aqui na autonomia destes últimos em relação ao desenvolvimento da luta ocasionada pelo

acampar. O segundo encontro foi na sede da CPT-Recife e culminou com a ida ao Ministério

Público, mencionada no parágrafo anterior, para apresentar uma nota de denúncia (em relação

a outro caso). Este desenvolvimento da luta se dava através das ferramentas à disposição da

FIAN, ferramentas estas que não estavam em mãos dos trabalhadores. Era outra integrante, da

FIAN-Brasil, que ali se apresentava.

Assim como me convidavam para diferentes eventos, também me ofereceram diversos

dados: a sinalização do advogado que se ocupava do caso e com o qual poderia falar; da

promotora de Justiça de Açude que poderia me oferecer informações importantes; dos

acampados e moradores mais antigos que tinham acompanhado a história durante um longo

tempo (foram estas sugestões que mais adiante me levaram a perguntar sobre a história do

acampamento às pessoas mais antigas); a possibilidade de consultar os arquivos de que

dispunham; a indicação de documentações digitalizadas etc. Os integrantes da CPT

ofereceram-me uma grande variabilidade de informações.

Para finalizar, cabem algumas reflexões a respeito de minha estratégia etnográfica de

registro do material recolhido. Curiosamente, uma grande parte das situações e das sensações

resgatadas nesta introdução não foi incluída nas notas de campo. Estas notas, escritas em

cadernos pequenos, diziam respeito aos conteúdos, aos argumentos, e excluíam as formas e as

situações de conteúdo não-verbal. Ao finalizar a jornada etnográfica, transcrevia as notas no

computador, tarefa que preferia realizar no mesmo dia da coleta de dados para só perder a

menor quantidade possível de informação.

Como mencionei, os primeiros dias foram de busca, o momento mais intenso de

ansiedade. Naqueles dias, seguia uma ordem cronológica em meus cadernos de campo. Ali

anotava as datas, os nomes das pessoas com as quais me encontrava e o conteúdo das

conversas que tivéramos. À medida que avançava no trabalho de campo, fui perdendo a

explicitação cronológica da experiência etnográfica. A atenção foi sendo dirigida mais para o

desenho que se anunciava através da informação que recolhia, desviando-se do meu

permanecer dia a dia, de minha figura em sua atividade etnográfica. O fazer etnográfico

apagava-se nas notas e acendia a história que começava a ser desenhada através dos dados.

Era uma história que começava a tomar forma e um trabalho de campo que dia a dia ia

perdendo sua novidade. Minha atenção antropológica (não pessoal) ia se afastando da situação

de “estar em Pernambuco”.

No INCRA, como assinalei no começo deste texto, minha busca dirigiu-se

inicialmente à captação da informação “exata”, pautada, normatizada. As primeiras semanas

foram dedicadas àquilo e a sensação que me deixou tal procura foi de frustração. Não adquiri

um conhecimento exato dos processos “exatos”. Não conseguia papéis escritos do processo

técnico-jurídico de desapropriação, além da indicação das leis gerais que regulam tal processo

e algumas Normas de Execução isoladas. Procurava uma informação exata dos processos de

desapropriação tal como aconteciam na prática, mas aquilo apenas foi adquirido através da

informação verbal proporcionada pelos funcionários do INCRA com quem conversava.

Aquilo não me satisfazia, não era nem um registro escrito, nem um registro exato. Ao pensar

que poderia ser vão e perigoso seguir com aquela tarefa, já que poderia converter-se em uma

obsessão, produto de uma reflexão dogmática, decidi flexibilizar-me e seguir a corrente.

Abandonei a busca do formalismo abstratamente considerado e me encaminhei para a

aquisição do processo de desapropriação de Cachoeira (esperava com isso obter as

formalidades a partir da análise de um caso concreto, além de imbuir-me do estudo de “meu”

conflito). Sua leitura conduziu-me a outorgar continuidade à busca da exatidão formal

(precisava saber siglas, funções administrativas dos diferentes setores etc. que foram

aparecendo no processo), assim como iniciar a seguinte etapa, da qual constariam as

entrevistas com os funcionários da instituição envolvidos com os processos de

desapropriação, não para obter um conhecimento das normas, mas sim as experiências

cotidianas e as opiniões daquelas pessoas. Esta tarefa resultou mais satisfatória; não procurava

insistentemente um dado, porém os dados apareciam livremente, mostrando-me um mundo

desconhecido.

No acampamento, as primeiras visitas foram mais abertas, deixei-me impactar,

precisava ver o que era tudo aquilo que nunca havia visto. A experiência de estar naquele

lugar ao qual chegava pela primeira vez, de dormir e comer ali, colocava em um primeiro

plano minhas experiências pessoais, as sensações que tudo aquilo provocava em mim. À

medida que transcorriam os dias, a preocupação com o tempo etnográfico que fluía conduziu-

me a adotar um critério de sistematização do “vivido”. Destaquei, então, alguns temas de

interesse para, em alguma medida, padronizar as conversas com os acampados visando

estabelecer uma linha que ligasse a variabilidade de entrevistas, entrevistas estas que me

dariam mais rapidamente os dados que não viriam a partir do fato de estar no lugar (já que o

tempo de permanência não seria longo). Em uma linguagem antropológica esquemática, na

estratégia de “observação-participante” comecei outorgando prioridade à participação, para

inclinar depois a balança para a observação. Isto não fazia menos intensa a minha

participação, pelo contrário, com o correr do tempo, a confiança e a comodidade que sentia no

lugar iam sendo acrescidas. No entanto, o registro tinha como objetivo materializar outro tipo

de dados.

A CPT foi um lugar ao qual dediquei várias visitas em meu trabalho de campo; porém,

em minhas pretensões, ele foi tratado principalmente como um espaço de intermediação.

Minha atenção não se voltou ao registro de informação que me servisse para pensar o

movimento em si. Ao não considerá-la parte de meu objeto, converti a CPT em um espaço

meramente informativo e de intermediação com o acampamento; não me esforcei em

desnaturalizar aquele mundo, não tomei notas a respeito daquele espaço. Este esclarecimento

se faz necessário neste texto para tentar evitar o risco de naturalizar os dados que ali me foram

oferecidos.

Algumas palavras acerca da sensação de arbitrariedade no recorte do objeto de estudo

proporcionada pela experiência em campo. Por um lado, aquela arbitrariedade aliviava,

restringia a torrente de informações que de repente cai sobre os ombros do investigador; por

outro lado, a complexidade e a inseparabilidade dos processos empíricos conduziam

constantemente à sensação de lacunas e de vazios intermináveis a serem preenchidos na

pesquisa, instalavam dúvidas acerca de onde colocar aquela linha fictícia de separação que o

investigador insere na realidade, linha que é inventada dia a dia no trabalho de campo. Eu

tentava aliviar o mal-estar que tudo aquilo me trazia colocando em primeiro plano os critérios

pragmáticos, a minha situação na vida cotidiana e a necessidade de fechar “um tema” no

papel; de escrever sobre aquilo que eu mesma criei a partir de uma matéria-prima tomada da

realidade, instalando, assim, um espaço ambíguo de negociação entre a criação racional, o

pensamento teórico e a experiência empírica cotidiana.

Os dois espaços de “campo” propriamente ditos, os locus etnográficos, foram o

INCRA e o acampamento. Embora não deliberadamente, a CTP também acabou se tornando

parte daquele campo. Vale dedicar algumas linhas para comentar acerca da estratégia de

distribuição do tempo nas primeiras duas inserções etnográficas (e não na CTP, já que as

visitas feitas ali não foram sistemáticas). O padrão adotado foi o de alternância entre um e

outro. Embora a princípio tenha considerado mais “prático” dedicar um tempo contínuo a um

lugar, para logo a seguir trabalhar no outro, os primeiros contatos já me sugeriam que seria

melhor intercalar: uns dias da semana no INCRA, alguns dias no acampamento e outros (ou

outro) no departamento de Recife para registrar as notas de campo no computador

(basicamente as do acampamento, já que as do INCRA eu as transcrevia ao final de cada

jornada). Esse padrão obedeceu a dois critérios. Por um lado, o critério foi pessoal – alternar

parecia-me mais vantajoso como experiência, pois quando estivesse em um lugar,

“descansaria” do outro. Cada espaço trazia para mim desafios pessoais diferentes que

requeriam um importante gasto de energia. Por outro lado, já na visita que se seguiu à

chegada inicial com Gustavo, a nova situação em que me colocara a experiência em

Cachoeira me fez perceber a grande quantidade de informação que teria que registrar por

escrito, e a impossibilidade de realizá-la no âmbito do acampamento. Perderia muita

informação se o tempo de estadia ali tivesse continuidade, e o prazo curto de que dispunha no

campo não me permitia ter essa perda. A internalização dos códigos do outro, a vivência

altamente crítica do mundo alheio não seriam a estratégia de apreensão da informação; esta

deveria ser rápida, registrada basicamente de maneira racional.

Finalizo assim este relato em que pretendi fazer o registro de algumas experiências e

sensações por mim vividas durante o trabalho de campo. Explicitar o campo. Fazê-lo como

um exercício de reflexão epistemológica e sinceridade metodológica, colocar a cena e

colocar-me na cena. Ligar o conhecimento com o contexto de sua produção. As diferentes

entradas pelas quais devia passar para ter acesso à informação, os caminhos que se foram

abrindo, os acessos negados constituíam uma experiência que ia configurando determinadas

estratégias etnográficas e influenciava a delimitação do meu objeto de estudo, um objeto que,

dessa maneira, não se construía meramente por uma lógica racional guiada em função de

critérios “objetivos”. Os azares do cotidiano e os interesses pessoais tornaram-se

fundamentais em tal construção. Explicitar-me no campo como um sujeito, um sujeito

inserido em um contexto político/social/acadêmico, que vivencia emoções, não distanciado de

seu tema de estudo no sentido de suas motivações políticas, e experimentando um campo

repleto de contingências que influenciaram esse mesmo estudo parece-me um âmbito de

reflexão central no trabalho antropológico.

Explicitar o campo. Fazê-lo também como um momento de construção de dados. O

material empírico é bruto, o dado se constrói. As informações que, na hora de realizar esta

Introdução, proporcionaram a organização e a apresentação da experiência em campo foram

as construtoras de várias reflexões que irão se colocando ao longo deste trabalho.

Nas páginas que se seguem, analiso os registros de diferentes grupos que interatuam

em uma ocupação de terra. O propósito é decompor diversos olhares que são elaborados em

torno desse conflito, procurando entender as dinâmicas de interação que estão em jogo em

cada registro, alguns processos sociais que se revelam em sua configuração. O trabalho

estrutura-se em três capítulos. Brevemente, no primeiro capítulo, exploro o conflito em uma

instituição do Estado, como é o INCRA. Interessa-me aqui analisar a(s) decodificação(ões)

administrativa(s) do processo estudado, o tratamento dado por alguns setores da instituição

aos conflitos de terra. O segundo capítulo diz respeito ao código dos acampados de Cachoeira,

ao desenho do conflito pela propriedade da terra que vai tomando forma a partir desse código.

A definição que adota o conflito através do registro elaborado pela CPT é o tema que organiza

o terceiro capítulo. A dissertação “encerra-se” com as considerações “finais”, espaço que

pretende se constituir em ponto de partida para o encaminhamento de algumas reflexões a

partir das análises realizadas.

MAPA Nº. I REGIÕES GEOGRÁFICAS

E PRINCIPAIS CIDADES DO NORDESTE

Fonte: Andrade, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. 6. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE. 1998

MAPA Nº. II

USINAS DE PERNAMBUCO

Fonte: Mapa Polivisual do Estado de Pernambuco. Editora Trieste. São Paulo. Sem data de edição.

Capítulo I

A PROFISSIONALIZAÇÃO DO CONFLITO

Resultado de “um longo processo de lutas sociais e políticas” (Camargo; citado em

Palmeira, 1989:94) aparecia, nos primeiros anos da década de 60, uma legislação

protagonizada pelo Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e pelo Estatuto da Terra (1964).

Essa legislação abriu espaço à intervenção direta do Estado no campo, intervenção esta que já

não se daria exclusivamente através da mediação dos chefes locais. Uma transformação nas

relações entre o Estado, os camponeses e os proprietários era gerada a partir disto (Palmeira,

1989). Enquanto o Estatuto de 1963 “reconheceu a existência do trabalhador rural como

categoria profissional, vale dizer, como parte do mundo do trabalho” (Palmeira, 1989:101),21

o Estatuto da Terra reconheceu a existência de grupos em conflito,22 abrindo a possibilidade

“de uma intervenção direta do Estado sobre os grupos reconhecidos como compondo o setor

agrícola ou a agricultura” (Palmeira, 1989:101). Deste modo “o camponês – ou trabalhador

rural – tornou-se objeto de políticas, o que até então era impensável, criando-se condições

para o esvaziamento das funções de mediação entre camponeses e o Estado, até então

exercida pelos grandes proprietários ou por suas organizações” (Palmeira, 1989:101).

Foi o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964), proposto como a

lei que “regula os direitos e as obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins

de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”,23 o elemento jurídico que

criou instituições como o INDA24 e o IBRA (que em 1970 se conjugariam no INCRA). O

21 Com tal reconhecimento, estendia-se “ao assalariado do campo uma série de direitos que haviam sido concedidos ao assalariado urbano, desde o Estado Novo” (Andrade, in Azevedo, 1982:13). Salário mínimo, férias, repouso semanal remunerado e décimo terceiro salário foram os direitos garantidos pelo Estatuto. Em 1971, a lei Complementar nº 11 acrescentou o direito do trabalhador à aposentadoria por velhice e invalidez, e o direito da família de receber pensão e auxílio funeral (Andrade, 1998). 22 "O estatuto da terra reconheceu a existência de uma questão agrária, de interesses conflitantes dentro daquilo que, até então, era tratado como um todo indivisível, a agricultura ou, já convertida ao jargão corporativista, a classe rural” (Palmeira, 1989:101). 23 Estatuto da Terra. Título I. Art. 1. 24 No Estatuto da Terra. Título III. Capítulo III. Art. 74, destaca-se “É criado, para atender às atividades atribuídas por esta Lei ao Ministério da Agricultura, o Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário, entidade autárquica vinculada ao mesmo Ministério, com personalidade jurídica e autonomia financeira”. Sua finalidade centrava-se em “promover o desenvolvimento rural nos setores da colonização, da extensão rural e do cooperativismo”.

Grupo Executivo da Reforma Agrária (GERA) foi criado posteriormente, através do Decreto-

lei nº 582, de 15 de maio de 1969.25

"Diretamente subordinado à Presidência da República”, o IBRA foi estabelecido como

o “órgão competente para promover e coordenar a execução” da Reforma Agrária.26 Esta

definiu-se como:

O conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento da produtividade.27

Criado pelo Decreto-lei nº 1.110, de 9 de julho de 1970, O Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária surgia para assumir

Todos os direitos, competência, atribuições e responsabilidades do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA) e do Grupo Executivo da Reforma Agrária (GERA), que ficam extintos a partir dá posse do Presidente do novo Instituto.28

Definido oficialmente como uma “Autarquia federal, vinculada ao Ministério do

Desenvolvimento Agrário (…), com sede e foro em Brasília, Distrito Federal, e jurisdição em

todo o território nacional”, o Instituto tem como finalidade:

Promover e executar a reforma agrária visando à melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social; promover, coordenar, controlar e executar a colonização; promover as medidas necessárias à administração e à arrecadação das terras devolutas federais e à sua destinação, visando incorporá-las ao sistema produtivo; e gerenciar a estrutura fundiária do país.29

Assim como foram se criando e desaparecendo instituições, ao mesmo tempo em que

se transformavam as disposições legais, também a estrutura organizacional do INCRA e os

modos de proceder em suas funções foram mudando. Não é minha intenção deter-me nessas

mudanças, entretanto, considero necessário reafirmar a sua existência com a finalidade de não

essencializar a menção que farei nas linhas seguintes sobre a estrutura e os objetivos da

25 “Fica criado o Grupo Executivo da Reforma Agrária (GERA), órgão colegiado, vinculado ao Ministério da Agricultura, com o encargo de orientar, coordenar, supervisionar e promover a execução da Reforma Agrária”. Decreto-lei nº 582, Art. 5. 26 Estatuto da Terra. Título II. Capítulo 1. Art. 16. Parágrafo único. 27 Estatuto da Terra. Título I. Art. 1º. 1º parágrafo. 28 Decreto-lei nº 1.110 , de 09/07/1970. Art. 2º. 29 Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo I. Art. 1º. Publicado no Diário Oficial da União em 20 de outubro de 2006.

instituição em questão. O regime que atualmente organiza o Instituto é então produto de uma

modificação recente, aprovada pelo Decreto nº. 5.735, de 27 de março de 2006.30

Entre os setores que conformam a estrutura do INCRA encontram-se as

Superintendências Regionais, “órgãos descentralizados” do Instituto, aos quais:

Compete coordenar e executar, na sua área de atuação, as atividades homólogas às dos órgãos seccionais e específicos relacionadas a planejamento, programação, orçamento, tecnologia da informação, modernização administrativa e garantir a manutenção, fidedignidade, atualização e disseminação de dados do cadastro de imóveis rurais e sistemas de informações do INCRA.31

Foi para um desses espaços “descentralizados” que me dirigi para empreender a

etnografia do conflito em sua leitura administrativa, particularmente para a Superintendência

Regional de Pernambuco, com sede em Recife (SR-03).32 O anexo I reproduz o organograma

da instituição.

Um lugar significativo do trabalho efetuado dentro da Superintendência de Recife foi a

Divisão de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento. O novo

Regimento Interno do INCRA classifica as funções dessa divisão entre as atividades de

obtenção, as de implantação de assentamentos e as relacionadas ao meio ambiente e aos

recursos naturais.33 O setor de Obtenção de Terras se ocupa das primeiras destas funções. Este

setor é composto em sua maioria por engenheiros agrônomos e tem a finalidade de:

Proceder [à] vistoria e [à] avaliação de imóveis rurais, para fins de desapropriação, aquisição, arrecadação e outras formas de obtenção de terras, destinadas à implantação de projetos de assentamento de reforma agrária; participar em perícias judiciais e em audiências de conciliação, nas ações de desapropriação de terras; atualizar semestralmente a planilha de Preços Referenciais de Terras; coletar e manter atualizados os dados referentes aos negócios realizados no mercado de imóveis rurais; acompanhar a evolução do mercado regional de terras e analisar sua dinâmica; promover discussões da Câmara Técnica e dos Grupos Técnicos de Vistoria e Avaliação; e outras atividades decorrentes e compatíveis com suas competências.34

30 Com alterações realizadas através do Decreto nº. 5.928, de 13 de outubro de 2006, aprovadas pela Portaria nº. 69, de 19 de outubro de 2006, publicadas no Diário Oficial da União em 20 de outubro de 2006. 31 Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V. Art. 101. DOU 20/10/06. 32 Em Pernambuco existe, além da mencionada Superintendência, a Superintendência Regional do Médio São Francisco (SR-29), cuja sede se encontra em Petrolina. 33 Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V. Art. 107. DOU 20/10/06. 34 Idem nota 33.

Também a Procuradoria Regional e a Ouvidoria Agrária foram espaços destacados

durante minha etnografia do conflito na instituição. Junto com a Sala da Cidadania,

Planejamento e Controle e Comunicação Social, a Ouvidoria Agrária é uma função vinculada

ao Gabinete da Superintendência Regional. Ela se ocupa de

Prevenir e mediar conflitos agrários; articular com os órgãos governamentais federais, estaduais, municipais e não-governamentais para [a] garantia dos direitos humanos e sociais das pessoas envolvidas em conflitos agrários; receber, processar e oferecer encaminhamento às denúncias sobre violência no campo, irregularidades no processo de reforma agrária, desrespeito aos direitos humanos e sociais das partes envolvidas nos conflitos agrários; e outras atividades compatíveis com suas atribuições.35

Da sua parte, a Procuradoria Regional assume como função:

Promover a representação judicial e extrajudicial e realizar as atividades de consultoria e assessoramento jurídicos cometidos à Procuradoria Federal Especializada e suas Coordenações-Gerais, bem como assistir [ao] Superintendente Regional e [aos] demais dirigentes das unidades no controle interno da legalidade dos atos a serem por estes praticados ou já efetivados.36

Em minha busca para estudar conflitos de terra, havia uma maneira para a sua

aquisição institucional que se destacava (embora a associação de tal aquisição com o conflito

não estar explícita na instituição): era a desapropriação por interesse social. Ela aparece no

Estatuto da Terra como uma das medidas destinadas a promoverem o acesso à “propriedade

rural”,37 e tem como fim:

Condicionar o uso da terra à sua função social; promover a justa e adequada distribuição da propriedade; obrigar a exploração racional da terra; permitir a recuperação social e econômica de regiões; estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e assistência técnica; efetuar obra de renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais; incrementar a eletrificação e a industrialização no meio rural; facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias.38

35 Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V. Art. 103. DOU 20/10/06. 36 Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V. Art. 104. DOU 20/10/06. 37 Estatuto da Terra. Título II. Capítulo I. Art. 17. 38 Estatuto da Terra. Título II. Capítulo I. Art. 18.

É passível de desapropriação a “propriedade rural” que não cumpra sua “função

social”.39 O “aproveitamento racional e adequado”;40 a “utilização adequada dos recursos

naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente”; a “observância das disposições que

regulam as relações de trabalho”; e, por último, a “exploração que favoreça o bem-estar dos

proprietários e dos trabalhadores” são os requisitos que deve possuir uma propriedade para

cumprir com tal função.41A pequena e a média propriedades rurais ficam excluídas da

possibilidade de desapropriação para fins de Reforma Agrária, a não ser que o proprietário

possua outro imóvel rural.42 A respeito disso, destacava-se no Estatuto da Terra a “gradual

extinção do minifúndio e do latifúndio” como um objetivo a ser alcançado através da Reforma

Agrária.43

A já referida Divisão de Obtenção é o espaço pertencente às Superintendências

Regionais que adquire maior protagonismo no curso dos processos de desapropriação, além

das Procuradorias Regionais, que também têm um papel destacado a este respeito. É por isso

que a Divisão foi um lugar de relevo em minha pesquisa etnográfica do processo/conflito.

Não me dirigi para lá por conta própria, já que aquilo que eu procurava em um primeiro

momento eram os processos arquivados; foram os funcionários que me encaminharam para

esse lugar. Sua participação pode ser observada em várias etapas ao longo do processo

desapropriatório (ver anexo II). Assim, por exemplo, a etapa rotulada de “análise técnica e

jurídica” contempla a presença tanto da Procuradoria Regional como da Divisão de Obtenção,

setores que elaboram seus respectivos “pareceres” em relação ao processo, e realizam uma

análise – técnica e jurídica – da documentação dos imóveis selecionados. Nesta primeira

etapa, encontram-se, além disso, a realização da “vistoria preliminar” e a emissão do parecer

sobre a viabilidade do assentamento,44 ambas as tarefas dependentes da Divisão de Obtenção.

39 Estatuto da Terra. Título I. Art. 2º e Lei nº 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Art. 2º. Esta lei tem atualmente um papel central na regulamentação da Reforma Agrária. 40 Este ponto refere-se à produtividade da terra, critério que tem um papel central nos processos de desapropriação. O artigo 6º da Lei nº. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, estabelece: “Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente”. As percentagens estabelecidas assinalam 80% para o primeiro (GUT) e 100% para o segundo (GEE) (artigo 6º, incisos 1º e 2º). 41 Lei nº 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Art. 9º. 42 Lei nº 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Art. 4. 43 Estatuto da Terra. Título II. Capítulo I. Art. 16. 44 A vistoria é um “levantamento preliminar de dados e informações”, cujo objetivo, entre outros, está voltado para verificar a produtividade do imóvel e o cumprimento da “função social” da propriedade rural em questão, “segundo os parâmetros estabelecidos por lei e em normas internas”. A vistoria deve fundamentar o parecer sobre a viabilidade do assentamento, quer dizer, deve pronunciar-se a respeito da inclusão da propriedade no programa de reforma agrária. Além de serem observados os aspectos que dizem respeito à “função social” (art. 9, lei 8.629/93) do imóvel, tal parecer “deverá conter, obrigatoriamente, manifestação sobre os aspectos relacionados ao enquadramento da condição do imóvel segundo os valores de Grau de Utilização da Terra – GUT e Grau de Eficiência na Exploração – GEE (…), bem como sua classificação quanto à dimensão”. In:

A realização dos procedimentos para a “avaliação”45 dos imóveis rurais e o “laudo” que dali

resulta também ficam a cargo dos engenheiros agrônomos.

Outros vários setores institucionais estão imbricados no desenvolvimento dos

processos de desapropriação, entretanto, sua participação se realiza de um modo mais

indireto, adquirindo dessa forma um papel menos protagonizador nesse procedimento.

Cadastro,46 Cartografia47 e Ouvidoria, assim como a Superintendência,48 foram setores cuja

referência foi mais reiterada em relação a essa participação.

Darei agora um passo além das normas formais de funcionamento para entrar nos

dados nascidos da experiência etnográfica. Ao chegar ao INCRA pela primeira vez, não sabia

qual seria o espaço no qual me centraria. Pretendia, em primeiro lugar, acessar os processos

que materializavam administrativamente os conflitos que iria estudar. Imaginava deparar-me

com um arquivo, cujo acesso me seria permitido diante da apresentação da credencial que me

tinha outorgado a Instituição Universitária à qual pertencia. Assim, pensava escolher meu

conflito através da leitura dos processos.

Quando cheguei, encontrei outra realidade. A busca personalizava-se e não existiam

arquivos abertos. Não existia um arquivo. Em seu lugar, apareciam as mesas dos funcionários,

o fluxo do processo. Ecoavam os comentários que me ofereciam explicações sobre o mundo

técnico que me proporcionariam os papéis, o estudo de uma desapropriação, mundo que eu

queria alcançar sem ser nem advogada, nem “parte interessada”. Dessa maneira, mais que ter

acesso direto a um processo, parecia mais oportuno para alguns funcionários que eu

conversasse com eles sobre aquelas questões.

Também as documentações exatas que revelassem a estrutura formal da instituição e o

percurso dos processos de desapropriação, documentações que foram parte da minha busca

inicial naquele espaço, desabrochavam geralmente através das palavras dos funcionários. Foi

difícil encontrar na instituição documentos que materializassem os seus percursos, em várias

Manual de Obtenção de Terras e Perícia Judicial. Manual de Procedimentos Técnicos para Elaboração de Diagnósticos do Quadro Fundiário Regional, de Levantamento de dados e Informações de Imóveis Rurais sua Avaliação e Perícia Judicial (MDA – INCRA). Módulo II. 45 Necessária aos fins de indenização do desapropriado, “A avaliação de imóveis rurais consiste na determinação técnica do preço atual de mercado do imóvel como um todo…”. In: Manual de Procedimentos Técnicos para Elaboração de Diagnósticos de Quadro Fundiário Regional, de Levantamento de dados e Informações de Imóveis Rurais, sua Avaliação e Perícia Judicial (MDA – INCRA). Módulo III. 46 Pertencente à Divisão de Ordenamento e Estrutura Fundiária, o setor do Cadastro relaciona-se ao registro de imóveis rurais. Entre outras coisas, oferece um banco de dados a respeito de tais propriedades. 47 Tarefas relacionadas ao “georreferenciamento de imóveis rurais, medição e demarcação de projetos de reforma agrária e de certificação de imóveis rurais”; “produzir dados padronizados de natureza cartográfica de interesse do INCRA” – estes são exemplos de funções associadas ao setor de cartografia, que também pertence à Divisão de Ordenamento e Estrutura Fundiária. Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V. Art. 106. DOU 20/10/06. 48 Referindo-se aqui ao cargo de Superintendente Regional.

ocasiões, os funcionários preferiam explicá-los oralmente. Etnografar no lugar aproximava-

me de um saber prático, vivido, experimentado. Assim como existia uma referência às leis, às

normas e aos manuais, por exemplo, também se fazia uma referência às pessoas mais antigas

da entidade, depositários de um saber não apenas adquirido pela leitura das regulamentações.

Aparecia diante mim uma norma atualizada na experiência, uma administração local.

Experiências concretas, problemas, desordens, suspeitas e aspectos cotidianos eram emitidos

de forma mais insistente do que a ordenação abstrato-legal. Emissão que se realizava em um

tom baixo, por meio da corrente da informalidade de uma conversa sem gravadores. Deste

modo, junto às explicações legais e técnicas com que os funcionários me presenteavam, eram

recorrentes as sinalizações a respeito das realidades vividas na instituição. Com isso,

delineava-se a assunção implícita da importância das práticas cotidianas e do saber sobre

essas práticas institucionais, paralelamente aos dados exatos que a administração podia me

proporcionar (embora os comentários mumificados em lei, sem referências a questões

cotidianas, também se fizessem muitas vezes presentes).

Os funcionários mencionaram os agrônomos, a Ouvidoria e a Procuradoria Jurídica;

estes foram os espaços destacados quando assinalei que queria acessar um processo para

escolher um conflito de terra com objetivo de pesquisa, um processo ainda não fechado, já

que me interessava estudar um acampamento. As funções institucionais referidas aos

assentamentos – construídos em terra desapropriada – estavam claramente delimitadas como

um espaço diferente em relação às atividades relacionadas com os acampamentos, atividades

estas principalmente identificadas com os processos de obtenção de terras. Aquilo facilitou –

inclusive ajudou – a delimitação de meu objeto de estudo naquela instituição. Tudo o que

dizia respeito a assentamentos permanecia fora. Várias áreas de trabalho e funcionários da

Superintendência ficaram assim excluídos do meu interesse etnográfico. A linha demarcatória

estava bastante clara: o que me interessava era o processo administrativo de obtenção de

terras.

No primeiro dia no INCRA de Recife, soube que o conflito de terras, assim definido

como objeto de estudo no Rio de Janeiro, um conflito em sua fase de acampamento,

desmembrava-se em dois qualificativos naquela instituição: conflitos e processo de

desapropriação. A etnografia deu estes nomes ao meu interesse de pesquisa na administração.

O último rótulo conduziu-me prioritariamente ao setor de Obtenção de Terras, espaço dos

agrônomos, cuja função formalmente expressa foi referida mais acima. Da sua parte, a

palavra conflito me conduziu à Ouvidoria. Estes dois foram os locais por excelência com os

quais minha pesquisa era identificada. Ia de um processo de desapropriação a um conflito, e

estes termos não se encontravam unidos em uma mesma área de trabalho, fragmentavam-se.

A Ouvidoria trabalha com pessoas. Entrevistados deste e de outros setores da

Superintendência assim o assinalaram. “Ouvir denúncia dos trabalhadores sem-terra”, “atuar

como elo entre o INCRA e os Movimentos Sociais”, “encaminhar as denúncias”, “é o setor

do INCRA que se relaciona com os trabalhadores” – estas foram frases que fizeram referência

ao trabalho que ali se realizava. A idéia de uma ponte entre a administração e aqueles que

disputam a terra se fazia presente nesses comentários (a isso farei referência mais adiante). A

idéia de uma ponte, de um laço, de um elo. Por outro lado, situações como a presença

constante de pessoas na sala de espera que antecedia este setor da instituição (que não

desejavam ser atendidos apenas pela Ouvidora, mas sim, em vários casos, centravam sua

espera na direção da superintendente); a chegada de uma pessoa de um Movimento Social à

Ouvidoria em uma ocasião em que eu estava realizando uma entrevista com os funcionários

daquele lugar; o apelo por telefone que os acampados fizeram na Ouvidora para obterem

informação sobre o processo de desapropriação em um dia em que eu me encontrava em

Cachoeira, todos estes eram fatores que falavam daquele mencionado trabalho com pessoas.

A Ouvidoria trabalha também com conflitos: “ intermedeiam os conflitos, seja entre

movimentos, seja entre movimentos e proprietários”; “tratam problemas de toda ordem”; “é

como um trabalho assistencialista que tenta resolver os problemas dos trabalhadores

encaminhando-os aos diferentes setores do INCRA”, assinalavam os funcionários daquele

setor. Os conflitos chegam à instituição através da Ouvidoria. Problemas que se identificam

com questões como as diversas estratégias de ataque dos proprietários a trabalhadores: os

pedidos de despejo diante da justiça, logo depois de uma ocupação de terras, por exemplo

(que se vê agravado pela Medida Provisória decretada no governo de Fernando Henrique

Cardoso,49 e pelos posicionamentos personalizados dos juízes a favor dos proprietários – estas

foram opiniões expressas por vários funcionários), ou as ofensivas por vias não-institucionais.

Problemas como os que acontecem com os arrendatários das terras em desapropriação em

função da indenização outorgada pelo INCRA (a indenização por terras destina-se ao

proprietário; o arrendatário detém participação no correspondente às benfeitorias) 49 Ao introduzir a categoria de “invasor”, no inciso 6, art. 4 da Medida Provisória nº. 2183-56 – 24/08/2001, fica estabelecido: “O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações”. Embora as opiniões expressas, em grande maioria, pelos funcionários reconheçam e acentuem os obstáculos que esta medida gera à desapropriação, eles assinalam ao mesmo tempo o inconveniente de se colocarem contra a medida.

transformam-se em uma situação que habitualmente gera dificuldades. Problemas como as

disputas entre os Movimentos, entre as dissidências, os “rachas”. Todos estes foram

assinalados como assuntos de que se ocupa a Ouvidoria, eles eram conflitos. Questões que

surgem das desapropriações de terras, mas que se colocam em um espaço de resolução

institucional alheio ao processo formal de desapropriação, que é assunto dos agrônomos.

No INCRA, meu interesse se dividia, assim, entre os processos de desapropriação e os

conflitos. Separados institucionalmente, o meu trabalho foi difícil de ser localizado. Ao falar

de minha curiosidade pelos processos de desapropriação, a referência aos agrônomos foi um

ponto colocado. Ao falar de conflitos, ou mencionar as pessoas acampadas, vários

funcionários me perguntaram se já havia tido uma conversa com a ouvidora, pois ela tinha

mais contato com aquelas questões e poderia me informar melhor.

O setor de Obtenção era identificado como o encarregado por excelência do processo

de desapropriação formal. Os agrônomos descreveram sua atividade como uma tarefa técnica,

guiada pelo Manual de Obtenção de Terras. Seu trabalho referia-se a um processo formal de

desapropriação que não implica o contato com pessoas vivas. A vistoria e a avaliação eram

destacadas nas apresentações que os funcionários faziam de seu trabalho. As fórmulas que

estes procedimentos envolvem, como o cálculo do “valor da terra nua”,50 da produtividade – a

qual era sublinhada como um ponto central em sua ocupação, como o item por excelência da

desapropriação – foram reiteradamente mencionadas naquelas apresentações, que se

revestiam de procedimentos previamente estabelecidos. Técnico foi uma palavra que definiu o

seu trabalho. Instrumentos técnicos, procedimentos técnicos, critérios técnicos. Não entram

nem pessoas, nem conflitos no ângulo que sua atividade ilumina; eles correspondem a outro

setor.

Assim descrito pelos agrônomos, o processo de desapropriação tornava-se um assunto

técnico e legal. Os critérios sociais, as pessoas, os conflitos eram reconhecidos como parte do

processo apenas no início, como um fator motivador da desapropriação. Entretanto, uma vez

superada aquela fase de motivação, o conflito social se concebia subsumido ao processo de

desapropriação, guiado por padrões técnicos de avaliação. E contribuir para aquela avaliação

técnica é papel dos agrônomos, aí localizavam o seu trabalho. Analisar a produtividade de um

50 Refere-se a um cálculo que o Setor de Obtenção realiza no momento da “avaliação” do imóvel. Com fins de seu pagamento, o “Valor da Terra Nua” e o “valor das Benfeitorias” (em largas margens, estas últimas dizem respeito ao construído sobre a terra – sobre a “terra nua”) devem ser discriminados. Isto é devido às indenizações diferentes que uma e outra supõem; enquanto as benfeitorias são pagas em dinheiro, a terra é paga em Títulos da Dívida Agrária (TDA). Ver Estatuto da Terra. Título IV. Art. 105 e Lei nº. 8.629/93. Art. 5.

imóvel, calcular o GEE e o GUT,51 considerar a viabilidade do assentamento (solo, água,

acesso, relevo etc.), considerar os valores imobiliários, calcular o valor das “benfeitorias” e

aplicar fórmulas matemáticas para deduzir a indenização em TDA e em dinheiro que se

pagará ao proprietário da terra desapropriada, elaborar os laudos técnicos agronômicos etc. –

todas estas, entre muitas outras, foram tarefas que permitiram aos entrevistados compor o

discurso sobre seu trabalho. Tarefas estabelecidas no Manual de Obtenção, no regime interno

da instituição e em outros dispositivos formais.52

Entretanto, além daquela ênfase na qualificação técnica de seu trabalho, os

comentários sobre as inexatidões que aconteciam no cotidiano também adquiriam um lugar no

discurso dos agrônomos.

Os conflitos das leis e os números. Apareciam no relato dos entrevistados sinalizações

sobre as disputas em torno das percentagens utilizadas no cálculo da produtividade, como a

fixação das proporções a serem consideradas nesse cálculo (GUT 80% e GEE 100%). Com

isto, revelavam-se aspectos não-técnicos das normas, que afastavam a neutralidade das

percentagens e enfatizavam a dimensão de disputa social por trás dos números. Além disso,

mencionavam-se conflitos surgidos em torno das diversas interpretações dadas pelos técnicos

da entidade, que levavam a cabo o procedimento de vistoria, em relação às formalidades que

regem tal procedimento,53 interpretações variadas que têm lugar em função das ambigüidades

existentes na legislação.

A “pressão dos movimentos sociais”. Atualmente, os Movimentos detêm um papel

ativo nos processos de expropriação, tanto no fato de abrir um processo (a partir da ocupação

de terras), como nos traslados executados para a instituição com o objetivo de manter o seu

andamento.54 Tudo isto, assinalavam alguns agrônomos e outros funcionários, implica que seu

51 “O grau de utilização da terra (…) deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel”. “O Grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento)”. A obtenção deste último percentual considera, por um lado, a quantidade coletada de cada produto vegetal dividida pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos. Por outro lado, o total de "Unidades Animais" do rebanho é dividido pelo "índice de lotação" determinado. A soma destes resultados é então dividida pela área efetivamente utilizada e, depois, multiplicada por 100. O número obtido dará o grau de eficiência na exploração (Lei nº 8.629, Art. 6º). 52 Neste ponto, é interessante ter em conta o que foi assinalado por A. W. B. Almeida e J. Pacheco de Oliveira (1998) a respeito da demarcação, em uma etnografia da FUNAI. Os autores colocam em análise a representação da demarcação como um ato técnico e objetivo, o qual atua em detrimento da participação dos índios. “Vivida como neutra, semelhante intervenção governamental intenta colocar-se acima dos conflitos, sugerindo uma imagem de equilíbrio e de conciliação de interesses” (:107). 53 Uma discussão que alguns entrevistados destacaram refere-se, por exemplo, à consideração das áreas a serem levadas em conta em uma vistoria. Acontece a situação em que um mesmo proprietário dispõe de vários imóveis localizados em áreas contíguas. Considerar ou não aqueles imóveis como uma só propriedade é um assunto sujeito a discussões que são decididas de forma diferente segundo cada caso. 54 “Como mais de 90% das desapropriações feitas pelo INCRA contemplam as ditas áreas de conflito, ocupar engenhos e neles montar acampamentos (…) tornou-se um recurso incontornável” (Sigaud, 2005:268).

trabalho seja “só pressão”. Os Movimentos “pressionam” para que se realizem

desapropriações. A desapropriação por pressão significa que ela não se faz através de um

planejamento das áreas prioritárias para desapropriação,55 planejamento este realizado com

critérios técnicos, mas sim a partir de um outro tipo de critério trazido por um grupo alheio à

instituição.

Essa “pressão” pressupõe, assim, uma mistura de códigos: o dos Movimentos sociais

operando na linguagem do Processo de Desapropriação. Apesar dessa mistura, os agrônomos

estabeleciam uma classificação: o código dos processos qualificava-se operando a partir de

critérios técnicos, enquanto o código dos Movimentos era percebido operando com critérios

não-técnicos. Os critérios técnicos envolvem um saber profissional, uma legislação que deve

ser cumprida e procedimentos rotinizados em manuais, normas, notas técnicas etc.. Os

parâmetros não-técnicos dos Movimentos não ficavam claramente definidos, dizia-se que

neles não havia atenção voltada para as características do solo, à sua produtividade e a outras

questões afins, além de se mostrarem indiferentes à legislação.

Que o trabalho por “pressão”, submetido às regras do Movimento, gera dificuldades

foi um ponto assinalado pelos agrônomos (e outros funcionários). Nessas sinalizações, os

procedimentos de desapropriação tornam-se inexatos, já que os Movimentos, dizia-se,

realizam ações como ocupar terras improdutivas e inviáveis para o assentamento; entrar em

confronto com a Medida Provisória nº 2183-56 de 24 de agosto de 2001; e outra série de

ações que os agrônomos identificaram com o desdém dos Movimentos (por desconhecimento

ou pelo predomínio de “interesses políticos”) para os procedimentos “técnicos” e legais que

subjazem no decurso administrativo da expropriação. Desdém que para uma grande maioria

dos funcionários só consegue obstaculizar a agilidade do procedimento desapropriatório, que

não pode evitar os parâmetros legais e técnicos que o regem.

Se a “pressão” não existisse, a desapropriação não funcionaria, assinalavam.

Aparecem nos relatos dos entrevistados referências às inexatidões ligadas aos problemas

institucionais de falta de funcionários e de verba – ou a não-liberação da verba, ou a sua não-

utilização – questão apontada repetidas vezes pelos trabalhadores da instituição (agrônomos e

não-agrônomos). Em mais de uma entrevista com os agrônomos, a escassez de recursos foi

detectada como um fator que impede o INCRA de alcançar o objetivo de estabelecer um mapa

de áreas prioritárias de desapropriação. Com esse panorama, opinavam, não resta outra

solução além de “submeter-se” à pauta dos Movimentos, entregando um trabalho técnico à

55 A formulação de planos de Reforma Agrária que delimitem áreas prioritárias de desapropriação é um objetivo estabelecido no Estatuto da Terra. Ver Título II. Capítulo IV. Seção 1.

“pressão” que é exercida sobre o INCRA pelos Movimentos, os quais não atuam com critérios

técnicos.

Reconhece-se, assim, que o processo de desapropriação começa por “pressão”. E que

tal “pressão” é a que gera as desapropriações, que sem os Movimentos nada funcionaria.

Assume-se que a desapropriação funciona através da “pressão”, através de critérios não-

técnicos introduzidos pelos Movimentos; paralelamente, afirma-se que são esses critérios não-

técnicos os que criam obstáculos para a desapropriação, definida como um assunto técnico.

Reafirma-se com a última colocação feita a necessidade de depositar no INCRA a totalidade

da ação desapropriatória, diminuindo (ou acabando) com a participação dos Movimentos

Sociais; a necessidade de excluir os aspectos não-técnicos que obstaculizam (e fazem

funcionar) o processo desapropriatório.

Admite-se que as coisas funcionam (e não funcionam) pela “pressão externa”. Tudo

isso mostra um cotidiano institucional imbricado por fatores que superam amplamente o

esquema de trabalho técnico. Entretanto, o que foi dito antes não debilita tal modelo de

trabalho. Assim como funcionam, as coisas não funcionam pela pressão externa. A oposição

exacerba a necessidade de exatidão da tarefa. No discurso que descreve a atividade cotidiana,

opera-se uma combinação contraditória, na qual se apela para uma exatidão profissional, ao

mesmo tempo em que se reconhece um funcionamento que excede tal exatidão.

A precariedade em que realizam seu trabalho. Como foi dito mais acima, a falta de

pessoal, de verba, os problemas na liberação do dinheiro e a “burocracia” foram outros pontos

assinalados pelos entrevistados, em relação ao cotidiano do trabalho, que não conseguiam

estabelecer identificação com o rigor técnico. A ausência de motivação para fazer a reforma

agrária, a falta de compromisso de alguns funcionários (como foi colocado por um dos

trabalhadores recém-admitido na instituição), também foram questões expostas.

Os empecilhos colocados pelos proprietários. Este foi um comentário que não se

restringiu ao âmbito dos agrônomos. O proprietário que “reage” à desapropriação abrindo

janelas que obstaculizam o curso do procedimento. Um proprietário que geralmente se

“esconde” da notificação prévia à vistoria;56 que divide o imóvel para que ele não possa ser

56 A vistoria preliminar supõe a prévia notificação do proprietário. Sem ela, a equipe técnica do INCRA não se encontra autorizada legalmente a entrar na propriedade. Estipula-se que a notificação deve ser pessoal. Em caso contrário, ela se dará por “edital” (em que se publica um aviso em um jornal de “grande circulação na capital do estado de localização do imóvel”. Ver Lei 8.629/93. Art. 2º). Conforme os entrevistados, os custos e as demoras que a notificação por edital traz fazem com que a ausência do proprietário na notificação pessoal constitua importante obstáculo.

vistoriado;57 que reage diante do laudo de avaliação (o qual determina o valor da

indenização); que impugna o processo na justiça (justiça cujo tempo de deliberação com

freqüência ocasiona uma demora considerável ao processo administrativo de desapropriação),

ou que apresenta defesa administrativa; um proprietário que coloca espias na instituição. Estas

foram questões referidas pelos entrevistados. Nesta apresentação, o proprietário é visto como

uma figura poderosa no contexto dos procedimentos desapropriatórios, capaz de alongar de

forma substancial ou deter o curso do processo.

Essas dificuldades evidenciam a disputa que impregna o processo de desapropriação,

que o constitui. Entretanto, para alguns técnicos que se encarregam institucionalmente do

processo, não existem conflitos. É o Movimento quem introduz tal categoria. Estas foram as

palavras de um agrônomo. De forma menos categórica, foi destacado que os conflitos são uma

questão da qual se ocupa a Ouvidoria (indicação esta que não se restringia ao âmbito do setor

de Obtenção). No setor de Obtenção, mencionaram os entrevistados, trabalha-se com um

processo de desapropriação; na Ouvidoria, trabalha-se com conflitos. Os agrônomos

trabalham com procedimentos. Passos estipulados a serem cumpridos, análises técnicas a

serem realizadas. Junto a isto, as referências ao seu trabalho cotidiano encontram-se marcadas

pelas disputas entre proprietários e Movimentos, entre dois grupos em confronto pela

propriedade da terra, disputas estas que se apresentam nos procedimentos e que não são

reconhecidas de forma explícita como parte constituinte dos mesmos. Isso acontece, mas em

voz baixa e longe do gravador, ou é um assunto do qual se encarrega a Ouvidoria. Um

conflito pela propriedade da terra é a base que estrutura seu trabalho técnico, e assim é

reconhecido. Mas não é dito, e isto me parece pertinente de destacar: os funcionários do setor

de Obtenção não falam que a disputa pela terra subjaz ao trabalho de desapropriação.

Reconhecem sua existência, ao mesmo tempo em que negam seu papel como parte

constituinte do processo institucional. No marco do processo de desapropriação, o conflito é

negado. Neutraliza-se, profissionaliza-se. O conflito torna-se uma negação.

Há ênfase na qualificação técnica de seu trabalho, paralela a um discurso sobre uma

prática complexamente imbuída de disputas e complicações que escapam às fórmulas

matemáticas. Opera-se uma combinação contraditória no relato em que se fala de uma

atividade técnica enquanto se reconhece que as coisas não funcionam tecnicamente. Admitir e

assumir, mas não dizê-lo. A negação passa pelo tom informal que adquire a sinalização das

dificuldades, do cotidiano, da prática. Quando me falavam de seu trabalho, alguns

57 Como foi destacado mais acima, a pequena e a média propriedades rurais ficam excluídas da desapropriação (à exceção de o proprietário possuir outro imóvel).

funcionários do setor de Obtenção esperavam minhas anotações, esperavam que transportasse

para o caderno as fórmulas matemáticas ou os procedimentos pautados que eles expressavam.

Isto era explicitamente assumido e mais cômodo de ser conversado. O resto trazia

desconfortos.

Não aconteceu unicamente com os agrônomos. Os relatos dos funcionários mostravam

um discurso com duas melodias. Por um lado, era o processo exato de desapropriação – os

procedimentos formais – por outro, era a experiência vivida. E os dois precisavam ser

explicados, os dois encontravam-se codificados. Uma coisa se contava explicitamente, a

outra, como um favor com o qual os funcionários me presenteavam (informalmente).

A Procuradoria é outro dos espaços centrais nos processos de desapropriação. Como

foi assinalado acima, desempenha-se na etapa de “análise técnica e jurídica”, elabora

pareceres; já no transcurso final, deposita os valores da terra em desapropriação (TDA e

dinheiro) destinados à indenização do proprietário. A Procuradoria “é consultiva, oferece um

apoio jurídico, controla a legalidade dos atos no processo de desapropriação” (examina as

notificações, as certidões, entre outras revisões) etc. Estas foram algumas das ações

mencionadas pelos procuradores a respeito de sua atividade.

A localização do processo do acampamento estudado foi o critério principal que me

conduziu àquele setor. A existência administrativa de Cachoeira desenvolve-se no conjunto de

processos de desapropriação que configura o caso da Usina Açude. Considero pertinente fazer

aqui um parêntese para mencionar brevemente esse conjunto de processos, com o fim de

situar administrativamente o engenho etnografado na presente dissertação.

“ Usina Açude. Quadro de engenhos e processos” . Este é um documento obtido nos

arquivos da CPT. Conforme comentou comigo uma trabalhadora da Comissão, ele foi

adquirido no INCRA. Ali são enumerados os engenhos da Usina, a área ocupada por cada um,

os números de seus respectivos “processos administrativos” de desapropriação e algumas

“informações”. São seis grupos de “processos administrativos”. No “Grupo I”, encontram-se

Goitá e Cachoeira. No “Grupo II”, Cana Crioula/Floresta, Taborda e Cavalo do Cão. No

“Grupo III”, Rio Claro, Açucareiro . No “Grupo IV”, Trindade, Montes Claros. Em seguida, o

engenho Ponte é localizado sem nenhuma “informação” sobre seu respectivo processo. No

“Grupo V”, Brejo Açude, Privilegio, Laurentino, Carcará, Terra Verde, Mata Seca. E no

“Grupo VI”, Baixa do Rio e Esperança. Detendo-me em Cachoeira, eu me certifico que

naquilo que se refere ao processo administrativo “houve a exclusão do engenho Cachoeira sob

a justificativa de haver adjudicações e a formação de um condomínio”.

Em outro texto, “Demonstrativo de imóveis rurais cadastrados/ vistoriados nos

períodos de 30/11 a 04/12, 07/12 a 11/12, 21/12 a 24/12/98, 23/3 a 26/03/99 e 14/04 a

16/04/9”, datado de 26/05/99 (o agrupamento assinalado no parágrafo anterior pertence a um

documento mais recente), também proveniente do INCRA,58 são adicionados engenhos e o

seu agrupamento difere daquele que se apresenta no texto anterior. Temos, em primeiro lugar,

os que pertencem à Empresa Cunha Silva Ind. e Com. S/A, os quais se dividem em sete

grupos: I. Imóvel “Engenho Brejo Açude e Outros”, onde se incluem os engenhos Brejo

Açude, Laurentino, Carcará, Terra Verde, Privilegio e parte de Mata Seca. II “Engenho Mata

Seca e outros”, composto por parte de Mata Seca, Esperança, Baixa do Rio. III “Engenho

Taborda e outros”, do qual participam os engenhos Taborda, Goitá e Cachoeira. IV “Engenho

Cavalo do Cão e outros”, aqui aparecendo Cavalo do Cão, Floresta e Cana Crioula. V

“Engenho Trindade e Montes Claros”, integrado pelos dois engenhos do mesmo nome. VI

“Engenho Rio Claro e Açucareiro”, também formado pelos dois engenhos do mesmo nome.

VII “Engenho São João”. Em segundo lugar, aparecem os imóveis que pertencem à Empresa

Agropecuária Com. de Açude Ltda., havendo aqui o Engenho Remanso do Capibaribe e o

Engenho Ponte.

Este é o conjunto administrativo no qual se inclui Cachoeira. São esses os engenhos

ocupados pela CPT e pelo MST com fins de desapropriação. Ocorre uma variabilidade entre

uma e outra informação no que diz respeito ao agrupamento de alguns engenhos. No que

concerne à Cachoeira, visto que em um primeiro momento se agrupa com Taborda e Goitá,

logo se separa do primeiro, configurando um conjunto com Goitá.

O processo administrativo de desapropriação de Cachoeira estava na Procuradoria,

devendo ser imediatamente trabalhado por causa da “pressão” que há poucos dias tinham feito

os trabalhadores no instituto, palavras estas do procurador responsável pelo processo naquele

momento. O Engenho Cachoeira havia sido “excluído”, por um Comitê de Decisão Regional

do INCRA, em janeiro de 2001, do processo administrativo de desapropriação do qual fazia

parte, ficando no processo só um dos dois engenhos (Goitá) que compunham o imóvel em

desapropriação.59 Alguns dos acampados descreveram este fato mencionando que o processo

58 Adquiri este documento através dos arquivos da CPT; também me foi facilitado por um agrônomo do INCRA. 59 Ao quebrar em 1996, a Usina Açude tratou as dívidas trabalhistas que contraiu com os trabalhadores (operários e moradores) através de “Cartas de Adjudicação”. Tais cartas outorgavam terras que, em sua grande maioria, não respeitavam a “Fração Mínima de parcelamento” legalmente estabelecida. Esta fração é a "área mínima que a lei permite desmembrar um imóvel rural, para constituição ou anexação de outro" (dado obtido de uma Declaração emitida pelo INCRA); no caso do Município de Açude, a FMP corresponde a dois hectares. Foi um acordo estabelecido entre a Usina e a direção daquela época do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude, registrado na Junta de Conciliação e Julgamento de Nossa Senhora da Mata. Além do tamanho das terras, que impossibilitava seu registro como propriedade, a adjudicação não respeitou a organização espacial existente

estava “morto” na mesa dos procuradores, ou que tinha “sumido”. Eles comentaram que

tinham tomado conhecimento do fato recentemente, em 2006, no momento da imissão de

posse60 do engenho que não tinha sido “excluído”/que não estava “morto-sumido”. A situação

coincidiu com a data de meu trabalho de campo, de maneira que poucos dias antes de meu

acesso ao processo havia acontecido no INCRA uma manifestação dos acampados e

assentados daquelas áreas.

Que a “pressão” dos trabalhadores colocou o processo novamente em circulação foi

fato assinalado por mais de um funcionário do INCRA que conversou comigo sobre o caso,

entre estes, os procuradores. O processo precisava ser submetido a uma leitura jurídica, uma

leitura cuja realização se encontrava sujeita ao momento disponível do funcionário que iria

analisá-lo (ele comentou ter a seu cargo grande quantidade de outros processos, e um tempo

curto para todo o trabalho que deveria realizar), e se encontrava sujeita também aos seus

critérios profissionais, que o fariam escolher uma entre as opções possíveis que a situação

apresentava. Realizar-se-ia ou não uma nova vistoria depois de passado tanto tempo? Isso,

que fora uma das discussões abordadas comigo pelos entrevistados, ficava submetido às

decisões dos funcionários: o que aconteceria e como se trabalharia o processo seria um

assunto a ser discutido entre funcionários de diversos setores da instituição, como a

Procuradoria, a Superintendência, a chefia da Divisão de Obtenção (não poderia completar a

lista por desconhecimento).

Ao perguntar se poderia participar da reunião (consulta feita a mais de um

funcionário),61 uma das respostas assinalou que não seria nada novo o que ali encontraria: um

no momento. Acontecia então que os moradores de um engenho recebiam as terras – cujo tamanho as tornavam incapazes de sustentação – não no lugar onde viviam, mas sim em outros engenhos. E essas terras que assim recebiam não estavam delimitadas. Dessa maneira, na prática, as pessoas – em geral analfabetas e confiando no Sindicato – assinaram as “Cartas de Adjudicação”, mas nunca receberam a parcela. A confusão e a mudança de vida advindas de receber aquelas terras fizeram com que elas fossem “vendidas” – em troca de elementos, como artigos elétricos – para pessoas que se ofereciam para “comprar”; eram os “laranjas” (testas-de-ferro) da Usina, segundo os informantes que me narraram a história. As “Cartas de Adjudicação” compradas eram logo “irregularmente” registradas no cartório de Açude, e desmembradas do Engenho Cachoeira em nome de particulares. Aconteceu, além disso, a superfaturação das terras adjudicadas nas Cartas; o valor que lhes era outorgado para fins de indenização dos trabalhadores era maior que seu preço de mercado. As “irregularidades” cometidas nesses contratos de trabalho foram excluídas do processo administrativo de desapropriação. O exame dirigiu-se para a “complicação” que tais irregularidades traziam, complicação esta (“o grande número de co-proprietários do imóvel Cachoeira” ) que se constituiu no argumento para excluir o Engenho Cachoeira do processo. Apesar de determinar o curso da desapropriação, era o Ministério Público do Trabalho, conforme indicado por alguns entrevistados, e não o INCRA, a entidade encarregada dos acordos de trabalho e das anomalias que estes traziam com eles. 60 Quando o INCRA adquiriu o imóvel desapropriado. 61 Nunca participei de tal reunião, que iria realizar-se em uma data ainda não determinada, mas tampouco me disseram de maneira direta que não poderia fazê-lo. Pelo contrário, todas as pessoas às quais pedi autorização para “etnografar” aquela ocasião indicavam-me outra pessoa para que lhe perguntasse sobre o assunto. Assim, rodei de pessoa em pessoa, quase ciclicamente, sem obter resposta clara de alguém que se fizesse responsável.

grupo querendo guiar-se por parâmetros legais, tentando seguir o curso “correto” do processo,

e outro seguindo critérios “sociais”, que só conseguiam estorvar o procedimento. Essa

resposta foi dada por um procurador. O que os funcionários acreditam, o que os funcionários

opinam e o encontro dessas opiniões diversas tornam-se parte fundamental das decisões a

serem tomadas nos processos de desapropriação.

Na Procuradoria “se trabalha com papéis" e com critérios legais que controlam o curso

dos processos; os critérios “sociais” atrapalham o decorrer do procedimento – estes foram

comentários dos procuradores com quem conversei. Isso era assinalado junto ao dado que

foram os trabalhadores que começaram a fazer “pressão” para retomar o processo, a par com

as discussões conduzidas pelas diversas opiniões institucionais que resolveriam a situação,

paralelamente às reuniões com outras pessoas, das quais os procuradores deviam participar,

junto à declaração da opinião pessoal a respeito de um assunto legalmente ambíguo.

Novamente um apelo a um procedimento formal-legal realizado em função de um saber

profissional, a par com o reconhecimento de um funcionamento institucional que excedia à

formalidade; novamente a admissão de um funcionamento que não é dito (porém é dito em

um tom informal, em um tom informal que supõe uma exceção, um favor oferecido);

novamente um discurso que funciona a partir de uma combinação contraditória.

Os procuradores e outros funcionários assinalaram o tom secreto que adquiriam os

processos. Segredo que aparecia de maneira ambígua: as conversas indicavam às vezes que

sua consulta era acessível para advogados, partes interessadas (como Movimentos e

proprietários), ou funcionários da instituição; outras vezes se dizia que eles podiam ser

consultados publicamente e eram as cópias que estavam proibidas. A norma a respeito não era

expressa claramente. Entretanto, a excepcionalidade de minha consulta fez com que eu

sentisse que o acesso ao processo era um favor. A idéia de favor ficou mais explícita com a

realização de cópias. Também a proibição era ambígua: indicaram-me que não era possível

fotocopiar algumas partes, partes estas que só poderiam ser reproduzidas à mão; também me

disseram que não era possível fotocopiar nada (isso variou segundo os funcionários que

Meu pedido se fez “público” e ninguém se responsabilizou pela questão; como ficou a cargo de todos, caiu na “burocracia”. Durante minha etnografia no INCRA fui ouvinte de várias manifestações de desacordo em relação à “burocracia” que imperava na instituição. Entretanto, pareceu-me que a circulação burocrática não é uma conseqüência não desejada, mas sim uma peça central na construção daquele mundo institucional, como o sugere o exemplo anterior. Através da “burocracia”, a resposta a meu pedido alcançou duas metas: socializou-se, fez-se de todos, ao mesmo tempo em que não se fez de ninguém. O fluir esconde, a circulação resguarda os funcionários da instituição, elimina as responsabilidades pessoais, cria anônimos. Deste modo, a “burocracia”, entendida neste sentido de uma circulação sem fim, colabora no “público” da instituição. E o público da instituição é sua impessoalidade, seu ser de todos, enquanto não é de ninguém. No deixar correr, a instituição se esconde, os funcionários se protegem.

comentavam sobre o fato comigo). Apesar da ambigüidade, as cópias que consegui fazer do

processo foram explicitamente cedidas como um favor.

Os funcionários de Obtenção, Procuradoria e outros setores me falavam de questões

secretas, codificadas. Tanto no vivido como no trabalho institucional. Os processos eram

“secretos”, os procedimentos eram “técnicos” (acessíveis à compreensão a partir da detenção

de certo saber a respeito); o saber sobre a instituição se aprendia na prática, aprendizagem

prática que não se encontrava formalizada (como o exemplificam as situações nas quais se

destacavam os mais velhos para conversar, ou a grande quantidade de funcionários que

desejava explicar-me o funcionamento da instituição) e que nem sempre podia ser gravada. A

vivência e o funcionamento cotidiano não se mostravam de forma explícita, sua aclaração

funcionava como um oferecimento com o qual os funcionários me presenteavam. Se a

desapropriação é “técnica” (e legal), e o saber sobre ela diz respeito aos “técnicos” (e aos

advogados), a desapropriação pertence também a certo funcionamento institucional, e o saber

sobre tal funcionamento corresponde aos funcionários da instituição. Há o monopólio do

saber e a exclusão de quem não detém aquele saber. Um limite se abre. O conhecimento dos

“códigos” legais, técnicos e administrativos torna-se altamente valorizado.

Ao perguntar sobre formalidades e exatidões dos processos, embora existissem

referências a leis, a arquivos de Internet, entre outras documentações, apresentava-se, como já

assinalado, uma tendência a quererem me explicar aquelas formalidades. Vários funcionários

consideravam que eu perderia tempo lendo as normas ou consultando os processos, repletos

de linguagens técnicas, codificados, secretos. “Está entendendo o processo?”; “Está cheio de

questões técnicas, não acredito que te sirva muito”; “Por que escolheu um processo tão

complicado?”. Estas eram frases repetidas que opinavam sobre a minha atitude de tentar

entender sobre leis e processos de desapropriação, ou de ler o processo sem ser nem “parte

interessada”, nem advogada. Era necessário aprender uma linguagem para compreendê-los e

existia uma disposição dos funcionários em me explicarem isso. A atitude que preponderava

era a de explicação. Nela, valorizava-se uma linguagem informal para falar de um trabalho

técnico, formal. A imposição da informalidade negava o acesso à formalidade, e a

formalidade era a linguagem decisiva, uma linguagem monopolizada do saber profissional,

uma linguagem codificada, uma linguagem que servia para excluir quem não o detivesse.

A linguagem que se deveria aprender não correspondia unicamente à

profissionalização dos processos, à ênfase em seu caráter técnico, acessível apenas a quem o

entende, mas também ao saber alcançado pelo trabalho na instituição, ao saber institucional

(não só profissional). Como foi assinalado acima, a norma atualizava-se na experiência, os

funcionários da instituição valorizavam um saber que excedia às leituras das regras

institucionais. Surgia uma instituição vívida, uma administração local. Foi difícil para mim

acessar as normas exatas e escritas porque, mais que me indicar a sua localização (que

geralmente se ignorava), os funcionários se ofereciam para explicá-las para mim. Eles

achavam mais conveniente me expor o funcionamento da instituição quanto à sua vivência

cotidiana, aos seus problemas diários, aos anos de trabalho transcorridos do que em relação às

normas acessíveis pela Internet. Eles detinham um saber que ia mais além, assim como

detinham a decisão de expressá-lo. O fato de que vários funcionários distinguissem os mais

antigos para que me contarem a respeito de sua experiência diz bastante sobre esta questão.

Se, por um lado, a ênfase na qualificação técnica dos processos de desapropriação

nega o conflito, por outro, permite reafirmar o monopólio do conhecimento. Opera uma

estratégia de poder dentro da instituição que possibilita estabelecer um limite entre quem sabe

o código do setor e quem não e, mais além da instituição, entre quem sabe o código da

instituição e quem não.

O saber codificado permite introduzir um limite entre a instituição e o exterior. Abre-

se uma linha demarcatória e esta linha supõe linguagens, códigos, mundos diferentes. A esse

respeito, a instituição alimenta-se de rituais. Assim, por exemplo, a presença policial nas

portas de entrada para a Superintendência do INCRA (assim como em outras entidades

oficiais), tanto no acesso principal como na entrada dos diversos edifícios, e a necessidade de

identificação que tal presença gera nas pessoas que ali ingressam é um ritual que fala sobre os

limites colocados pela instituição, um limite que demarca claramente o dentro e o fora. A

entrada para aquele espaço requer uma apresentação que respeite o código institucional (a

identificação deve ter certas características, precisa de certas formalidades que se ajustem às

normas da instituição). Outro exemplo pode ser observado quanto à minha entrada

etnográfica, embora meu caso tenha sido excepcional, já que meu ingresso foi realizado junto

a uma funcionária da instituição, não evitou, entretanto, a necessidade de que esta pessoa me

apresentasse aos policiais, indicando minhas futuras visitas ao lugar, além de ter precisado eu

mesma identificar-me posteriormente nos primeiros dias de campo. Também me foi sugerida

uma apresentação formal à Superintendente da instituição, ocasião em que aproveitei para

deixar ali minha credencial de pós-graduanda em situação de pesquisa de campo, credencial

de outra instituição à qual eu estava ligada. A Superintendência era um espaço por onde eu

deveria passar, onde deveria me apresentar formalmente, era um centro. Era também indicado

como um lugar onde se estabelecia uma relação com o “mundo externo”.

O limite não opera unicamente em relação ao que é externo à instituição, mas também

demarca hierarquias entre setores. O monopólio do saber institucional, e/ou profissional,

permite a delimitação de um exterior, assim como uma demarcação intra-institucional. O

trabalho de desapropriação é baseado em papéis (Procuradoria) ou em procedimentos técnicos

(setor de Obtenção), em experiências obtidas nos anos de trabalho etc. O saber profissional e

o ofício adquirido geram disputas e uma defesa constante dos funcionários dos diversos

setores a respeito de sua atividade.

A comunicação defeituosa entre as seções da instituição, a indicação de que, para ser

realizada, a tarefa de um setor não leva em conta a tarefa dos outros foi um ponto repetido nas

conversas com os funcionários. “Já foi pior”, “aborrece” – foram palavras usadas para

descrever a relação entre os diversos espaços. Um procurador comentou que outros

funcionários não os consultam, o que apenas conseguia obstaculizar os procedimentos: cedo

ou tarde se precisaria da assessoria legal, o seu saber era imprescindível. A necessidade

institucional de seu saber colocava-os em uma posição de poder; talvez por isso outros

funcionários, ao se referirem aos procuradores, assinalassem criticamente seu papel

institucional de “elite”. Alguns não-procuradores indicaram a demora da Procuradoria em dar

resposta à sua consulta, e a necessidade de obterem informação por outros meios ou

procurarem caminhos alternativos de solução. A exigência do saber profissional dos

procuradores incomodava. A ausência de respostas foi uma crítica estendida também ao setor

de Obtenção, ao seu conhecimento fundamental que se escondia.

Destacaram também aqueles funcionários que sublinhavam sua posição mencionando

a amplitude de suas tarefas, as quais, diziam, abrangiam as dos vários setores

compartimentados. Eles se mostravam depositários de um saber que lhes permitia realizar a

tarefa de qualquer funcionário, sem precisarem de uma formação profissional específica. Sem

precisarem, por exemplo, do conhecimento legal dos advogados, já que a experiência no

cargo os tinha dotado das ferramentas necessárias para cumprirem o seu trabalho.

No caso da Ouvidoria, este era o lugar por excelência que me era indicado quando eu

perguntava sobre acampados, conflitos, pessoas, situações no “espaço exterior”, como já foi

demarcado. São as pessoas da Ouvidoria aquelas que se encarregam de “conflitos”, as que

conhecem os acampados, as que entram em relação com “o social”. Entretanto, em referência

aos processos desapropriatórios, ela não é vista como uma peça importante pelos agrônomos e

pelos procuradores, os quais manifestaram o seu desconhecimento a respeito das funções

realizadas neste setor. Um desconhecimento que marcava uma hierarquia. A Ouvidoria foi

considerada um espaço “à parte”, não importava o que ali se realizava.

Uma Procuradoria trabalhando com “papéis” e um setor de Obtenção trabalhando com

“procedimentos técnicos”, além disso, funcionários possuindo um saber administrativo

altamente valorizado. Trabalhos codificados, saberes profissionais. E a Ouvidoria propondo

uma idéia de ponte, de elo entre a instituição e os trabalhadores. O conflito de terras é negado

no processo de desapropriação e assumido na Ouvidoria. Esta assunção supõe o encontro da

instituição com o conflito, um conflito que se encontra externo à entidade, espaço onde se

trabalha com um processo de desapropriação sujeito a saberes profissionais e administrativos.

A assunção do conflito, que implica a presença da Ouvidoria, gera um encontro entre lógicas

diferentes de pensá-lo, de demarcá-lo, de tratá-lo – encontro que se torna parte do mesmo

conflito de terras.

Com a chegada dos Movimentos, chegam os conflitos, que devem ser resolvidos a

partir do saber institucional. Nos ideais organizacionais, setores como a Ouvidoria (e outros,

como a Sala do Cidadão,62 por exemplo) são os espaços encarregados da aproximação com as

pessoas que não trabalham na instituição.

Entretanto, na etnografia, revelaram-se contatos de funcionários associados à Divisão

de Obtenção ou de procuradores – cujo trabalho formal não contempla tais aproximações –

com os acampados e os assentados (e os integrantes dos Movimentos) que iam à instituição. O

fato, em certas ocasiões, ficava associado à queixa dos funcionários a esse respeito,

assinalando que “não há tempo” para tais situações, já que não é isto o que seu trabalho

contempla. Isto mostra uma indiferença de “os de fora” para com as regras da instituição;

regras que têm sentido unicamente naquele espaço, instituição que se encarrega de uma

questão central para a vida não-institucional dos “externos” (refiro-me aqui aos acampados).

Os Movimentos dirigiam-se ao INCRA para falar com quem sabia, com quem podia lhes dar

uma resposta em relação ao processo de desapropriação, tentavam a exposição, a socialização

do processo administrativo que a instituição pública pretendia restringir a linguagens próprias.

Os acampados e outros integrantes do Movimento dirigiam-se aos setores responsáveis pelo

processo pelo qual estavam interessados, aos setores nos quais encontrariam alguma resposta;

desafiavam a apropriação institucional-profissional do processo, tentavam expandi-lo, colocá-

lo como a expressão administrativa de um conflito de terra que excedia os marcos

institucionais.

62 “Gerenciar as atividades de atendimento ao cidadão” encontra-se entre as funções dos que se ocupam deste setor. Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V. Art. 103. DOU 20/10/06.

O conflito é disputado. Uns o desvalorizam, outros o reafirmam. Acontece uma

dinâmica de encontro de linguagens, visões e modos de ação diversos. Combate-se o acesso

ao processo de desapropriação. Em torno dele a instituição gera um discurso que nega o

conflito e realça um saber profissional e institucional. O processo apresenta-se como técnico e

acessível para quem sabe seus segredos. A instituição coloca um muro, outorga-se poder. A

entrada que os Movimentos podem ter em relação ao processo limita-se à ação de informar-se

sobre seu andamento, de fazer pressão. Isto gera conflitos; os limites não são respeitados

pelos Movimentos, que criticam o monopólio do conhecimento. Visualiza-se uma indiferença

de “os de fora” para com as normas da instituição. Acontece também um desconhecimento da

instituição em relação a eles.

Neste último sentido, observou-se ao longo deste capítulo que os funcionários falam

de um processo institucional, de um saber e de um ofício que excluem aqueles que não o

possuem. A esse respeito, o acampado, os conflitos por terra, a oposição em relação aos

proprietários perdem importância. Acontece uma neutralização institucional da

desapropriação de terras. O acampado é colocado como um terceiro incapaz de decidir sobre o

curso do procedimento técnico-legal. Inventa-se um sujeito passivo, ignorante de um saber-

fazer institucionalizado. Embora se reconheça que esta figura é quem, na maioria dos casos,

inicia os processos, sua capacidade de modificação e decisão limitam-se àquele movimento de

partida e à ação de “pressão”, alheia ao processo administrativo decisório. A pressão é

visualizada não no movimento constante que eles realizam no acampamento, mas sim na sua

ida à instituição. É a ação de exposição na instituição. “Mover-se”, não ser passivo, aos olhos

institucionais é deslocar-se até a entidade, é o movimento que exige uma resposta de acordo

com os parâmetros administrativos, que exige o andamento do processo técnico-legal de

desapropriação, este último a cargo dos funcionários. Deste modo, para fazer-se ver (ou “fazer

pressão”), os acampados devem transportar-se espacialmente a esse mundo relacionado à

tomada de decisões administrativas, que se encontra em um espaço da capital do estado (ou

manifestar-se na forma de cortes de estrada, “caminhadas”, etc.). O acampamento, a

mobilidade diária em um espaço que não é o institucional, apresenta uma ausência de registro

por parte dos funcionários encarregados da desapropriação (agrônomos e procuradores). A

mobilidade que os funcionários reconhecem como pressão é a que se formaliza segundo os

seus parâmetros, a que se translada para a sua sede, a que se faz na instituição, a que pede

explicações e reclama a circulação do processo. Em poucas palavras, a que reafirma a

importância da instituição.

O percurso por alguns espaços da Superintendência de Recife mostrou-me um conflito

de terras que se profissionaliza e se institucionaliza. A institucionalização o nega e o torna

dependente da administração, do saber profissional/administrativo. Reafirma-se um saber-

fazer que é o da instituição, diminuindo a importância do que fica “fora”. A partir da

potenciação do conhecimento e da sinalização de seu monopólio, opera-se uma estratégia de

apropriação do conflito, uma estratégia de poder. Na instituição, o que se trata é de levar

adiante processos de desapropriação não acessíveis ao público, “só para entendidos”, um

processo monopolizado através do saber administrativo/profissional, dependente mais de tal

saber do que dos conflitos sociais que excedem a ele. A linguagem por excelência é a da

instituição. É a partir daqui que se desenvolvem as comunicações com os externos (como

Movimentos sociais, acampados, assentados). Isto gera uma disputa. O conflito não se

encontra definido da mesma maneira para uns e para outros (questão que irá sendo vista ao

longo da dissertação). A necessidade de acomodar as linguagens às finalidades de obtenção

das propriedades abre uma disputa pela definição do conflito de terras que se torna parte deste

último. O conflito de terras incorpora, assim, a luta pela imposição de linguagens, visões e

práticas.

Capítulo II

O CONFLITO VIVIDO

O acampamento Cachoeira é um dos 21 engenhos63 pertencentes ao conjunto de

imóveis da Usina Açude, os quais têm existência jurídico-administrativa nos processos de

desapropriação de terras. Não me referirei a essa existência burocrática nesta parte do

trabalho. Pretendo aqui realizar um acesso ao acampamento a partir das pessoas que ali vivem

ou viveram.

São moradores64 e sem-terra que convivem em Cachoeira. Nas relações cotidianas,

esta classificação não tem grande importância; não existe um padrão de organização social

que estabeleça uma diferenciação entre uns e outros. Entretanto, tal categorização encontra-se

presente nos discursos. Assim, são os moradores os personagens antigos do lugar, os mais

autorizados para me narrarem sua história, os depositários de um saber vivido em relação

àquele espaço que os outros habitantes do acampamento não detêm. Não apenas para mim

foram contadas as suas histórias sobre Cachoeira, mas também para os sem-terra, os

habitantes recentes da região. Por outro lado, a classificação em questão adquire na burocracia

uma importância pragmática: os moradores têm preferência na hora de receber as terras do

63 O impulso inicial das Usinas em Pernambuco aconteceu nas duas últimas décadas do século XIX (Andrade, 1998). “O açúcar bruto, de inferior qualidade, produzido pelos engenhos bangüês, não podia competir no mercado internacional e muitos proprietários já vinham procurando, desde 1870, aperfeiçoar as suas instalações industriais a fim de produzir um açúcar de melhor qualidade. Daí surgiu a usina, que consistia na instalação da moderna fábrica de açúcar em terras do antigo bangüê e às custas do seu proprietário; quase sempre de proprietário mais rico, às vezes possuidor de vários engenhos […]” (Andrade, 1998:101). Começavam assim a ser instaladas as Usinas e a desaparecer os engenhos bangüês, nos quais a cana era plantada e moída. Uma descrição desse processo de transformação pode ser vista em José Lins do Rego, em Bangüê. As relações familiares que se constroem nas novelas deste autor e as mudanças que elas sinalizam em associação às transformações experimentadas na produção da cana são analisadas por J.S.L. Lopes (1977). A respeito da categoria de engenho, Palmeira assinala a continuidade que teve o termo, na Zona da Mata pernambucana “para designar as propriedades plantadoras de cana” , mesmo após o desaparecimento dos bangüês. No presente, este termo diz respeito então às propriedades dos fornecedores e das usinas (Palmeira, 1971:21). 64 Os moradores constituíam a principal força de trabalho utilizada na produção de cana nos Engenhos da Zona da Mata de Pernambuco – onde recebiam casa e uma porção de terra para cultivar produtos de subsistência, além de criarem animais – no período que se estende da Abolição da escravidão até meados de 1950, momento em que começa a sua expulsão dos engenhos (Sigaud, 1979). "Morar significa ligar-se a um engenho e ligar-se de uma maneira muito particular" (Palmeira, 1976:104). O autor analisa com detalhe as formas que adquiria tal ligação já desaparecida. Apesar do que foi dito antes, a categoria de morador continua vigente entre os trabalhadores rurais e outros “personagens de seu mundo social” (Palmeira, 1976). As condições de produção que implicava o sistema de morada “significam uma forma de dominação especifica, sofrida e interiorizada pelos trabalhadores, em nome da qual – mas não necessariamente pela qual – denunciam a ilegitimidade das formas novas – mas não necessariamente mais suaves – de submissão aos patrões que, em muitos casos, são os de sempre” (:13). A vigência da categoria expressa mais que um mero “resíduo” de relações passadas (Palmeira, 1976).

“assentamento”,65 tal ordem de preferência é conhecida pelos acampados e me foi assinalada

mais de uma vez.

A classificação entre moradores e sem-terra não é permanente, existe em certas

situações, delimita ambiguamente. Ela surge quando se recorda o passado; a história a

configura. Surge também em relação ao âmbito jurídico, que categoriza as pessoas em uma

ordem de preferência para que as terras (geralmente escassas em proporção à quantidade de

pessoas interessadas) sejam distribuídas. A vida cotidiana, as relações do dia-a-dia

prescindem dela. Não existe atualmente um padrão de organização no acampamento que

estabeleça uma linha divisória entre moradores e sem-terra. Entretanto, tal linha foi delineada

na fase inicial do acampamento. Dessa forma, considero pertinente mergulhar aqui em uma

retrospectiva para “diacronizar” o relato.

O acampamento começou com a chegada dos sem-terra.66 Em geral, sem clareza a

respeito das datas estabelecidas no calendário (à exceção do relato de um dos ex-acampados

que me narrou a história da “ocupação”) – o que contrasta com a exatidão que se apresenta

nas documentações67 – algumas pessoas que viveram a história (moradores e acampados)

contaram-me sobre esse episódio-chave para a história do lugar. Tinha chovido, era uma

madrugada de barro e caminhada. Um novo começo. A terra, o futuro lar, devia ser

conquistada.

Chegamos lá, fomos acampar, aí logo na chegada o caminhão não queria subir, o caminhão que levava as coisas da gente; tinha uma parte que não dava mais para o ônibus ir, aí tinha que ir, deixar o ônibus e pegar o caminhão e seguir em frente; tinha chovido e tinha um lugar (com ladeira),68 o caminho ficou deslizando, não dava para subir a ladeira, a gente empurrou o caminhão para lá, para o lugar de fazer o acampamento, e lá a gente fez o acampamento (Zezé).69

65 Assim estabelece o Estatuto da Terra (Título II. Capítulo II. Art. 25) e a Lei 8.629/93 (Art. 19). Embora sua situação se encontre contemplada, morador não é uma categoria oficial, de maneira que esta palavra não é a que figura nos mencionados escritos. 66 Sobre acampamentos de sem-terra em Pernambuco minha investigação abrangeu os trabalhos de Sigaud, 2000, 2005; Chamorro Smircic, 2000 e Sigaud e L’Estoile (orgs.) 2006. 67 Em um comunicado à imprensa, por exemplo, a CPT expressa: “Hoje, 31.08.99, 65 famílias de sem-terra e sem emprego ocuparam os engenhos Cachoeira (350ha) e o Engenho Goitá (500ha.)”. Em geral, nos relatos dos acampados e dos moradores, os dados cronológicos não ocupam um importante lugar, nem tampouco se encontram claramente definidos. 68 As palavras que, nas entrevistas, aparecem entre parênteses são aquelas que não ficaram suficientemente claras na audição e na transcrição da entrevista. As que figuram entre colchetes são elucidações próprias. 69 Zezé é um ex-acampado de Cachoeira que participou da ocupação e permaneceu no acampamento por alguns anos. Conforme me contou, teve que ir embora do acampamento na época posterior ao despejo, por causa das ameaças feitas a ele. Atualmente está vivendo em um assentamento próximo à cidade de Açude.

Foi através do contato com a Comissão Pastoral da Terra que aquelas pessoas

realizaram a ocupação. Conforme o narrado por Zezé, uma freira da Paróquia de Itaperuna foi

o elo entre o Movimento e as pessoas que iriam acampar. Estas últimas trabalhavam nas terras

da Usina São Joaquim. O pequeno tamanho daquelas terras impediria sua desapropriação: a

proposta da CPT foi então o engenho da Usina Açude. Zezé compartilhou da idéia, não queria

mais “ser mandado”. Deste modo, ao lhe perguntar sobre sua decisão de acampar, ele

comentou:

A gente plantava numa área lá em Itaperuna que era da Usina São Joaquim, aí foi o pessoal da Usina São Joaquim e botou herbicida no roçado da gente, o veneno que mata as plantas. Daí a gente começou querer brigar por aquele terreno; foi quando a gente conheceu a CPT. A CPT foi olhar a área, viu que era pequena (...) e disseram: olha, tem outra área, se vocês quiserem ir... Eu trabalhava de vigilante lá em Itaperuna (…) morava na cidade mesmo, (...) daí eu comecei pensar melhor: se eu for me acampar, vou trabalhar para mim, não vou ser mandado, nem vou mandar em ninguém. (...) Eu vou embora, (...) vou me acampar, vou ser sem-terra, que eu já sou sem-terra, eu não tenho nada, (...) eu quero ir para um lugar meu. (...). MFF*: E como conheceu a CPT? Zezé: Foi através da Irmã Margarete, era freira de lá, tomava conta da paróquia de Itaperuna. (…) Aí chamou a CPT para uma palestra com a gente. (...) Eu estava decidido a trabalhar na terra, porque meus avós todinhos foram do campo, a minha avó morava em Goitá, ali perto de Cachoeira.

Aproximadamente 60 pessoas chegaram ao lugar, uma parte vinda de Itaperuna –

ponto de partida da ocupação – e outra, de Ibiaçu. Além de alguns trabalhadores da CPT, o

resto das 60 pessoas provinha de outras regiões de acampamentos, como os engenhos

Esperança, Baixa do Rio, Paisagem, Montes Claros; elas seriam o “apoio” para os futuros

acampados na ocupação e durante os primeiros dias de sua realização. Desde o seu começo o

acampamento manteve relações recíprocas com outros acampamentos.

Quando a gente saiu da Igreja, foi para o ônibus para ir embora, aí de lá a gente foi para Ibiaçu para pegar outro pessoal, (...) aí viemos pegar as pessoas que davam apoio, porque a gente nunca tinha participado de acampamento, né? (...) Porque toda ocupação que a gente vai a gente leva uma pessoa que sabe, que já participou de acampamentos. (...) Aí a gente passa dez dias lá ensinando aquelas pessoas; (...) depois de dez dias a gente começa a sair devagarzinho: (...) saem dois, vão embora, (...) depois vão mais dois. (...) Aí pegamos apoio, (...) o pessoal que já era acampado vizinho foi lá nos dar apoio, (...) porque a gente trabalha assim, (...) um com outro, né? Porque se for isolado, ninguém tem nada (Zezé).

* A sigla refere-se às iniciais de meu nome.

O “apoio” foi indo embora e também a maioria das pessoas que acamparia de maneira

mais permanente. Zezé me contou que ficaram unicamente três acampados naqueles tempos

iniciais, os outros tinham “desistido”. Logo se somaram pessoas da Paraíba que chegaram

através de um integrante da CPT que já havia conversado com elas.

Zezé: Com todos dava umas 60 pessoas lá, por causa do apoio (...). Aí lá a gente começou a se organizar e foi embora uma parte dos nossos que foi com a gente para ficar lá acampado. (...) Alguns dias depois, (...) ficaram só três pessoas. MFF: E por que os outros foram embora? Zezé: Desistiram da terra, (...) aí começamos convidar os moradores (...) e os moradores começaram nos ajudar também. Chegou o Jurandir e começou conversar com o pessoal da Paraíba, (...) aí chegou uma equipe de gente de lá para acampar também.

Uma força na luta estabelecida pelos moradores, um apoio nas situações adversas que

estavam atravessando: esta foi a opinião geral entre as pessoas com as quais falei a respeito da

chegada dos sem-terra ao engenho, embora houvesse também comentários referentes ao

“medo” e à desconfiança que alguns moradores experimentaram diante dessa chegada. Os

indícios indicam uma cifra aproximada de 20 moradores vivendo no engenho naquela época.

Alguns episódios, como a derrubada da cerca e as cestas básicas entregues pelo INCRA,70

além da realização de reuniões, contribuíram para uma aproximação entre os dois grupos.

Aí quando a Usina faliu, os sem-terra vieram para aqui; os moradores todos se ajuntaram com sem-terra. Isso aqui estava tudo cercado, aí a gente se reuniu e botou abaixo (Osvaldo).71

Porque ele [um fazendeiro vizinho que cercava as terras onde viviam os moradores] queria expulsar a gente assim, né? Eu comprei tanto aqui! (...) E os trabalhadores sofrendo, sofrendo, era uma crise, triste (...) foi muita pressão. (...) Teve uma força da CPT, foi uma força desse povo que vem de fora. (...) Ele dá uma força pra gente; a gente fica mais animado, porque todo mundo faz muita força, mas a gente tem que ter outra força (Dionísio).72 Quando eles chegaram já tava [refere-se à cerca colocada pelo fazendeiro]. Aí se juntou com os moradores e (...) "torou" todinho o arame, derrubou cerca, estaca, tudo, foi. Porque, quando eles chegaram, já estava tudo

70 O INCRA enviava mensalmente Cestas Básicas aos acampamentos; elas eram compostas de mantimentos. 71 Osvaldo, de 21 anos, neto de Dorival e Amaro, é/foi um morador de Cachoeira. Nasceu em um Engenho vizinho e mudou-se para o lugar em questão nos primeiros anos de sua vida. 72 Dionísio é um ex-morador de Cachoeira. Foram 35 anos de moradia no Engenho, ao qual chegou em 1963. Atualmente é “assentado” em Goitá.

cercado; o morador não podia fazer nada e o que fosse fazer, botava a polícia e matava (Dorival).73 Muitos ficaram com medo da gente, mas a gente sempre fazia reunião, (...) dizia o nosso objetivo e dizia como é que a gente ia lutar, porque a gente chega numa terra e já tem morador. Aí pronto, (...) quando for dividir quem primeiro vai ganhar as parcelas são os moradores. (...) A gente dizia isso sempre para eles, para poderem confiar na gente, né? (...) A gente que estava lá não era para tomar nada deles, era para ajudar; (...) eu ia nas portas conversar com eles, pegava os nomes deles para fazer o cadastramento no INCRA, até para ganhar a cesta básica. (...) Chegou a cesta básica e (saímos) dividindo, dividindo nas portas: aqui é a sua, aqui é a sua (Zezé).

Situações adversas: a falência da Usina, a derrubada do engenho, sua divisão em

Cartas de Adjudicação.74 As cercas e o fazendeiro vizinho que as colocava eram uma

materialização daqueles processos, uma das situações mais destacadas nos discursos dos

protagonistas da história, sobretudo dos moradores. “Eu comprei estas terras” era o argumento

do fazendeiro, que assim justificava a sua ação de alambrar, ameaçando com a perda de seus

espaços as pessoas que ali viveram longos anos de sua vida. O enfrentamento em relação ao

arame e às estacas que começaram a invadir suas casas, seus roçados e cacimbas foi, para os

antigos habitantes, central na constituição da história de Cachoeira. Uma guerra que requereu

várias batalhas. A vitória foi conjunta, sem-terra (não apenas de Cachoeira) e moradores

conseguiram que “o vento levasse as cercas” – foi necessário mais de um sopro.

Dionísio: Esse terreno passava aqui, ele comprou esse; esse daqui ele não comprou. (...) Ali na frente tinha outro, aquele da frente vendia (...) e assim ele queria tomar tudo, né? Aqui as crianças não iam mais para a escola, tava tudo cercado. (...) Zé Manuel:75 Ele fechou o caminho. (...) Dionísio: Se passasse por debaixo da cerca, se ele pegasse, ele levava; (...) a lavagem de roupa ninguém podia nem lavar. (...) Fui para a delegacia, (...) dei parte dele, a CPT de lado foi nessa confusão. Foi quando ele falou que eu ia comer esse metro de arame. (…) Aí que o vento carregou a cerca dele. (...) MFF: E como foi que a cerca se acabou? Dionísio: O vento levou [risadas]. (...) A gente precisava trabalhar a terra, e outros de fora (...) queriam ficar com o terreno. (...) Se o vento não levava, a gente não tinha (roçado) para trabalhar. (...) A cerca (...) acabou, as estacas

73 Dorival é/foi um morador de Cachoeira; faz 18 anos que vive ali. Tem 59 anos. 74 As Cartas de Adjudicação significavam uma outorga de terras destinada ao pagamento das dívidas trabalhistas que a Usina Açude tinha com seus trabalhadores. Os acordos foram realizados na Junta de Conciliação e Julgamento de Nossa Senhora da Mata entre os dirigentes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude daquela época e a Usina. Os moradores e os trabalhadores não participaram do acordo. 75 Zé Manuel foi morador de Cachoeira e atualmente é assentado em Goitá. Sua saída de Cachoeira aconteceu quando mataram Amaro, seu pai.

foram queimadas, cozinhávamos feijão com estacas, (...) a gente (ficou) com o terreno, que era da gente. (...). Zé Manuel: Ele desistiu, ele não agüentou a pressão da gente, não.

Sem indenização, sem trabalho, no meio de uma “confusão” de terras a serem

recebidas em outros engenhos, com oferta de “compras” das terras adjudicadas e com um

arame atravessando suas casas, estas eram as circunstâncias. As Cartas de Adjudicação

falavam de terras de certo modo inexistentes, já que, em geral, estavam distantes de Cachoeira

– em um engenho da Usina Açude que não era o habitado – e não se encontravam delimitadas

(esta situação não era privativa de Cachoeira, ocorreu também nos outros engenhos da Usina).

Eram, além disso, de um tamanho menor do que o espaço que tinham em seu local de

“moradia”, dimensão insuficiente para o sustento das famílias. Mínimas e longínquas porções

de terra unicamente materializadas no papel. Ninguém sabia muito bem do que se tratava essa

adjudicação. Foi assim que alguns moradores venderam as Cartas recebidas a pessoas que

chegavam desejando “comprar” (conforme me contaram Zezé e alguns trabalhadores da CPT,

as “compras” eram permutas das terras por elementos como liquidificadores, tábuas de passar

roupa, camas etc.). Essas “compras” (como também as adjudicações) agiam em detrimento

dos antigos sítios dos moradores (já que aqueles sítios haviam sido fragmentados em virtude

das novas “adjudicações” de terra, de modo que, ao vender uma Carta, vendiam-se as porções

do sítio – ou dos sítios – que correspondiam a essa Carta, dividindo-o(s); ocorria, além disso,

que o possuidor do sítio e o possuidor da Carta que correspondia às frações desse sítio não

eram a mesma pessoa, já que as terras adjudicadas pertenciam a uma propriedade diferente da

propriedade onde se “morava”). Esta era a situação vivida. Os acordos na Junta de

Conciliação e Julgamento de Nossa Senhora da Mata geravam aquele caos entre os antigos

moradores do engenho. Sua vida desmoronava.

O engenho que a gente morava era Cachoeira. Ele [referindo-se ao fazendeiro que colocava as cercas] partiu Cachoeira (...), aí cabra de Cachoeira tinha terra em São João, cabra de Cachoeira tinha terra em Esperança, cabra de Cachoeira tinha sítio, tinha terra em Cavalo do Cão. Aí ninguém sabia onde era sua terra (...), não tinha terra para a gente. (...) A gente foi muitas vezes para a Usina (...), quis ajeitar a terra para ficar todo num canto só. (...) [A Usina devia] a indenização, salário, férias, feriado. Aí, pronto, (ela dava somente) duas quadras,76 três, quatro, a maior era cinco, seis, pronto (Dionísio).

76 “Hoje, os trabalhos são feitos por empreitada, e pagos nas limpas à base da ‘quadra’ ou da ‘tarefa’, que variam um pouco de uma área para outra. Na Paraíba e no norte de Pernambuco, uma quadra oscila entre um quadro, com cerca de dez até treze metros de cada lado, conforme o mato esteja maior ou menor” (Andrade, 1998:122).

Sabendo que o cara tinha ganhado as terras, ele [o fazendeiro] começou comprando muito. O morador não tinha serviço para trabalhar, passava fome, aí ele comprava as quadras a 500 reais (...) e muitos moradores vendiam; meu irmão ganhou sete quadras naquele (canto) ali, mas não vendeu (Dorival). Teve morador lá [em Cachoeira] que teve que abrir a janela para a medição passar por dentro da casa dele; a casa ficava no meio da medição para outra pessoa (Zezé). E ele morando lá em Cachoeira e deram terra aqui; (...) até dificuldades para ele (vir olhar) as terras ele tinha (...). Não recebeu nada; (...) fizeram um papel do sindicato e disseram que ele tinha recebido, mas nada de receber. Ele nem sabe onde é o pedaço de terra dele (Antoniete). 77

Os entrevistados comentaram comigo sobre o valor acrescentado que foi outorgado às

terras entregues através dos acordos. As terras não correspondiam ao que a Usina devia, não

valiam o que os Termos de Conciliação diziam valer, os tamanhos eram ínfimos.

O sogro de Zezé (...) era feitor. (...) Com esse negócio da Usina pagar as dívidas com terra, ele ganhou três quadras e meia – ele sendo empregado; não dá nem meio hectare. Ele mesmo disse: eu sendo empregado, tudo o que eu fiz pela Usina e a Usina agora vem me pagar com três quadras e meia os meus direitos! (...) Cada um ganhou seu pedaço, sabe? Um ganhava um pedaço, outro ganhava outro, outro ganhava outro e assim foi sendo dividido para cada um. (...) Mas deixa lá que não dava para pagar nem a metade, nem um quarto do que a Usina devia ao cara. (...) Quanto dá em dinheiro, se for somando direitinho, dá muito dinheiro (Dorival).

Por outro lado, não houve participação dos moradores nos acordos. Certamente,

deveriam assinar.

Aí pronto, a Usina se juntou com o Sindicato e fez (...) tudinho sem o morador saber. Eles lá se juntaram e fizeram isso. Quando ia para a justiça, dizia não; aqui a Usina não dá nada a ninguém não; a Usina já pagou todos os direitos, tudo foi feito pelo Sindicato mais a Usina (Dorival). E chegaram com o documento que era para o morador assinar e quase todos os moradores eram analfabetos, assinavam assim no dedo, e outros que assinavam, (...) mas ler não liam nada. Aí pronto, não pedia para ninguém ler, e tinha a confiança do trabalhador com o Sindicato, porque (...) o Sindicato trabalhava para ajudar o trabalhador. Mas só que o Sindicato trabalhava para desmantelar o trabalhador (Zezé).

77 Antoniete é a esposa de Zezé. Nasceu e viveu grande parte de sua vida em Cachoeira. Atualmente vive em um assentamento próximo à cidade de Açude, junto com Zezé. Seu pai foi o feitor do “senhor de engenho” de Cachoeira e, conforme o relatado pela entrevistada, morou no lugar durante 60 anos. É a ele que Antoniete se refere na entrevista.

Assim, palavras como “falso” e “fraude” foram utilizadas para descrever os acordos

realizados em Nossa Senhora da Mata. É possível que aqueles rótulos para adjetivar o

sucedido tenham sido introduzidos a partir da denúncia da CPT no Ministério Público.78 Os

moradores não receberam indenização; em lugar disso, viram-se no enfrentamento contínuo

com os agentes “compradores” (“laranjas”79 da Usina, segundo muitos dos entrevistados), que

se diziam donos das terras em que os primeiros habitavam. Os entrevistados assim falaram a

respeito dos acordos:

Era falso. Aqui, quando a Usina foi em falência, ela pagava ao morador com terras: eram quatro contas80 para um, três contas para outro, duas para outro, o que queria pagar em terras. Mas o que a justiça diz é que não se paga dívida com terras não; (...) se paga dívida com dinheiro, direito do morador era para pagar com dinheiro (Dorival). Porque para quem era credor da Usina, (...) dava uma carta de adjudicação que vinha da Junta de Nossa Senhora da Mata. (...) Era uma fraude, junto com o Ministério do Trabalho, o Sindicato e a Usina. Aí pronto, aí a Usina fazia isso, depois a terra voltava todinha para ela novamente, porque vinha um laranja (e apanhava) a terra em troca de um liquidificador. (...) Aí pronto, trocava por um ferro elétrico (...) e depois a Usina estava com a terra todinha novamente (Zezé).

O relato dos habitantes de Cachoeira, acampados ou moradores, em relação à história

do lugar, não menciona como único episódio conflitivo o que diz respeito ao cerco das terras

78 Alguns documentos encontrados nos arquivos da CPT narram o desenvolvimento que a denúncia da CPT, da FETAPE e do MST (ver capítulo seguinte) foi adquirindo nesse Ministério. A denúncia, enviada ao “Exmo. Sr. Dr. Procurador-Chefe do Ministério Público do Trabalho”, data de 12 de junho de 2000. Um termo de denúncia emitido pelo Ministério Público do Trabalho, 6ª Região-Recife/PE nos relata a chegada do documento: "Ás 16h46min do dia 12 de junho de 2000, compareceram à presença dos Exmo. Sr. Procurador-Chefe (…) e Exmo. Sr. Procurador-Chefe Substituto (…) uma comissão de trabalhadores da Usina Açude, acompanhados dos advogados da Pastoral da Terra (…) e ainda, da advogada da FETAPE (…). Disse o Procurador-Chefe que recebia a denúncia e que determinava de imediato o seu envio ao setor competente, ou seja, a Coordenadoria da Defesa dos Interesses Difusos e coletivos – CODIN […]" . Posteriormente ao recebimento da denúncia, aconteceram as “Audiências” realizadas no Ministério Público do Trabalho, na sala da CODIN. Audiências realizadas por motivo da denúncia. Esses eventos são relatados através de “Termos de Audiência”, atas elaboradas por funcionários do mencionado Ministério (particularmente pelo Secretário da Audiência). Os componentes dessas Audiências variam. Por exemplo, em uma delas, realizada em 20 de junho de 2000, estiveram presentes dois Procuradores do Trabalho (o Coordenador e um membro da CODIN), o diretor da Usina Açude e seu advogado, um representante da FETAPE, o Presidente da CPT e o advogado destas duas últimas entidades (a mesma pessoa), um representante do MST, um representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude e seu advogado. Outra das Audiências (26 de julho de 2000) contou com os membros acima assinalados – à exceção do Sindicato – aos quais se somaram o Procurador da República, o Promotor de Justiça de Pernambuco, a Promotora de Justiça de Açude e um representante da SACI-Salvador Agricultura Comércio e Indústria S/A (sobre esta última ver nota 92). 79 Testas-de-ferro. 80 A conta fala de uma forma de remuneração que corresponde a uma área de aproximadamente 10 metros quadrados. “Tanto a 'tarefa' quanto a 'conta' são modalidades de pagamento por produção. (…) A 'conta', generalizada a partir da implementação do Estatuto do Trabalhador Rural, consiste numa área de aproximadamente 10 braças por 10 que, teoricamente, equivale ao salário mínimo diário de um trabalhador” (Palmeira, 1971:21-22).

por parte do fazendeiro vizinho, embora aquele tenha sido um episódio destacado, sobretudo

pelos moradores do engenho. Ao contrário, a narração está atravessada de cenas conflitivas.

Assim, foram mencionados outros acontecimentos posteriores de confrontação com aquele

fazendeiro: situações, por exemplo, que diziam respeito ao gado deste personagem invadindo

os espaços dos moradores e dos acampados e danificando seus roçados; que falavam sobre

seu reiterado intento de adquirir as terras, fosse através da força, da ameaça, da implantação

do medo, fosse através da “sedução”, pretendendo “comprá-los” a partir de favores. Desse

modo, um anedotário de confrontações repetidas transformou o fazendeiro em uma figura

central no imaginário dos habitantes de Cachoeira, convertendo-o na encarnação cotidiana e

visível do inimigo, do “latifúndio”, do “usineiro”.

Os “tiroteios” que tiveram lugar depois da chegada dos sem-terra constituem outra das

situações destacadas no discurso dos entrevistados. Um novo incidente difícil, conflitivo; um

outro desafio que matizou a história do acampamento com a tonalidade de uma guerra de

múltiplas batalhas. Dois foram os “tiroteios” que aconteceram, um deles imediatamente

depois da chegada do primeiro grupo de sem-terra. Entretanto, antes do primeiro deles, os

habitantes de Cachoeira já se encontravam em contato com o mundo policial. Idas à

delegacia81 e chegadas dos policiais são partes integrantes da história. Esses primeiros

encontros, que não seriam os únicos, estiveram relacionados ao episódio da cerca e a um

enfrentamento com a Usina Ubaúna: a presença desta última prejudicou os roçados dos

acampados. Estes retiveram, então, uma maquinaria da Usina. Chegou a polícia. E lá se foram

prendendo os sem-terra em suas cadeias. Zezé nos conta sobre a chegada da polícia em

relação ao episódio do cercado:

O gado dele [do fazendeiro vizinho] todo solto no mundo, e a cerca cortada. (...) Aí a polícia foi para lá (...), muita polícia por lá querendo pegar alguém. (...) Ele paga os policiais para vir atrás. (...) Quando a gente terminou de cortar a cerca, a gente foi almoçar, né? (...) Aí, quando a gente estava almoçando, chegou a polícia.

O mesmo entrevistado comentou também sobre o encontro com a Usina Ubaúna:82

81 Entre as idas à polícia, por exemplo, encontra-se a realizada por Dionísio, que apresentou uma denúncia na Delegacia de Polícia Civil de Açude. O documento da denúncia estava nos arquivos da CPT. Aparecia ali uma queixa que preenchia espaços, linhas vazias que se localizavam logo depois de rótulos ou frases já existentes em tinta. Um relato escrito que se adaptava ao modelo policial. 82 O enfrentamento com a Usina Ubaúna é um evento que também aparece nos arquivos da CPT, relatado a partir do seu lado oposto. A Usina Ubaúna apresenta aqui uma linguagem. Através de um “croqui” que localiza a “área do Feijão” no Engenho Cachoeira (assinado na parte inferior por um topógrafo e um engenheiro agrônomo), de um “registro fotográfico do Engenho Cachoeira no local onde ocorreu o incidente”, de uma queixa apresentada na Delegacia de Polícia e de uma nota enviada ao Superintendente Regional do INCRA/PE, configura-se um

Uma máquina da Usina Ubaúna a gente prendeu lá, porque eles tinham botado fogo em nosso roçado (...) para (fazer medo) para a gente sair de lá. Aí a gente foi reivindicar nossos direitos, (...) prendeu a máquina como um meio de pressionar, né? Levamos lá para acampamento a máquina; aí a polícia militar foi buscar a máquina. (...) A gente foi telefonar para CPT e na frente encontramos dois seguranças da Ubaúna. Aí ele botou a moto por cima de mim, mas derrubamos ele da moto. Ele chamou a polícia militar; a polícia não queria nem saber, prendeu a gente e levou.

Voltando aos “tiroteios” (que não foram tiroteios no sentido estrito da palavra já que

se deram em uma só direção), não foram os moradores os protagonistas desses

acontecimentos. Os “tiroteios” se dirigiam aos acampados, que se encontravam em “lonas”, a

certa distância dos moradores que estavam nas casas do Engenho. Dois “tiroteios”, um após o

outro, separados por um curto tempo. As datas são simbólicas: uma festa religiosa e o dia do

trabalhador. Duas fugas, dois retornos ao mesmo lugar. Era necessário fugir das balas que

procuravam seus corpos. Naquelas fugas, os acampados se refugiavam por um tempo no

mato. A volta foi imediata. Muitos “desistiram” no caminho.

Foi de noite, estava comemorando a noite de aleluia (...), fizemos a fogueira (...). Aí eles começaram a dar o tiroteio, atirando baixinho, até um companheiro foi baleado lá; (...) não chegou a morrer não, (...) ele foi baleado nas costas. (...) A gente tinha corrido; quando acalmou tudo, a gente voltou para lá. Aí começamos refazer novamente o acampamento. Aí pronto, já desistiu um bocado de gente por causa disso. (...) Reconstruímos novamente, com lona, e ficamos no mesmo lugar. (...) No dia do trabalhador voltaram lá novamente, fizeram a mesma coisa; (...) a gente correu novamente e voltamos para lá, a gente voltou para lá alguns meses (Zezé).

Então, veio o “despejo”. Era inverno, mês de julho. Um despejo no inverno. As

entidades que participaram desse episódio variavam de acordo com cada relato. Entre as

reconstruções dos entrevistados foram mencionados: a Usina, uma ambulância, o Sindicato, a

Polícia Militar, uma promotora, trabalhadores do fazendeiro vizinho.83 Um caminhão levou os

relato de acusação aos “elementos que se encontram assentados no Engenho Cachoeira”, os quais “tomaram de nosso funcionário uma carregadeira de cana, marca Implanor Bell, de propriedade desta Empresa” (nota enviada pelo Diretor-presidente da Usina Ubaúna ao Superintendente Regional do INCRA de Pernambuco, em 7/2/00), episódio denunciado na polícia pela Usina em 7 de fevereiro de 2000. Embora seja mencionada a queima dos produtos cultivados pelos acampados, isto se faz em tom de rumor, permanece ambíguo e impessoal, desenvolve-se nas verbalizações do tipo teria acontecido, e sua importância aparece minimizada: “segundo chegou oficiosamente ao nosso conhecimento, tal atitude fundou-se no fato de que, tendo havido queima de cana em canavial vizinho à área onde os mesmos estão assentados, o fogo teria queimado parcos pés de feijão por eles cultivados […]” (nota ao Superintendente do INCRA, em 7/2/00). 83 Ao consultar os arquivos da CPT, encontrei uma série de documentações: “Notas de culpa” da Polícia Civil de Pernambuco – Delegacia de Açude – datadas de 11 de julho de 2000; uma nota enviada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude ao Juiz de Direito da Comarca de Açude-PE, em 25/10/99; certidões emitidas em

pertences dos acampados. Não ficou nada naquele lugar de lonas. Também não ficou

ninguém; a maior parte dos sem-terra foi levada para um “matadouro velho”, um antigo

matadouro de gado. Outros foram parar nas cadeias policiais de Açude, saindo mediante o

pagamento, feito pela CPT, de uma fiança. Entretanto, a volta foi um fato. Menos pessoas

voltaram para Cachoeira em caminhão – um caminhão alugado pelos acampados. Agora, seu

espaço de acampamento mudaria, iriam para a sede do Engenho, onde se encontrava a Casa

Grande, mais perto dos moradores.

Fazia um bocado de tempo, uns cinco, seis meses que os sem-terra estavam aí. Chegou um dia de quinta-feira, chegou um ônibus na época do inverno, um caminhão veio logo da Usina, uma ambulância e o carro do sindicato. (...) E ainda levou esse Zezé e um tal de (Beto), (...) ele era coordenador. Levaram eles presos. (...) Essa promotora desceu do carro, aí mandou botar a (cadeia) neles (...) e o caminhão da Usina foi e levou os (troços) dos sem-terra lá para a (UEPA)84 de Açude. (...) Levou tudinho, (...) quebrava tudo, (...) furava, e levava tudo para a (UEPA). Passaram um dia e uma noite lá (...). Aí ligaram para o Padre mais Gustavo e eles foram bater lá, em Açude. (...) Aí não foram mais para lá, vieram para aqui (Dorival).

A gente reconstruiu lá [referindo-se à etapa depois do segundo tiroteio]. Aí veio a polícia militar (...) alguns meses depois; veio dar o despejo na gente, (...) me prenderam (...) e me trouxeram para Açude. (...) O Padre Teodoro pagou a fiança e a gente se soltou de noite. (...) Aí pronto, eu e Beto fomos daqui de Açude a pé para lá, para Cachoeira. A gente não conhecia quase nada por aqui, fomos de pista, é longe pela pista. Aí pronto, quando chegamos lá, a gente foi (olhar) as lavouras, que é para ninguém levar, porque o pessoal estava todo acampado aqui perto da (UEPA). (...) No despejo, a polícia trouxe o pessoal para aqui, porque quando é um despejo tem que sair todo mundo da área; (...) enquanto não completar 24 horas não pode reocupar. Aí pronto, o pessoal tava lá, perto da (UEPA), num matadouro velho. (...) Lá a gente (ficou vendo) os roçados. Aí com três dias

2/9/99 pelo Serviço Notarial e Registral - Cartório Único de Açude, no qual consta a “adjudicação” de uma área de 26,423 ha. do Engenho Cachoeira a favor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude; certidões emitidas pela Delegacia de Polícia de Açude, em 20/10/99, entre outras documentações. As mesmas provinham de uma reclamação realizada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude. Sinteticamente, relata-se ali o confronto ocorrido em 2 de setembro de 1999 entre uma pessoa que tinha adquirido a propriedade de uma área em Cachoeira através das Cartas de Adjudicação (pessoa representada pelo mencionado Sindicato na disputa judicial em torno do episódio) e integrantes da CPT (habitantes e não-habitantes do lugar), confronto este que se converteu no objeto de uma reclamação judicial gerada pelo Sindicato. A sentença dada pelo juiz de direito da Comarca de Açude foi a favor deste último. Isto foi o que deu lugar ao despejo, ação referida aqui como um “cumprimento a Mandado de Imissão de Posse”, a qual colocava “uma área de terras com 26,423 hectares, encravada no engenho Cachoeira […] em favor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude” (ofício enviado pela Juíza de Direito da Comarca de Açude-Pernambuco ao Ilmo Sr. Comandante do 2º BPM (Batalhão da Polícia Militar) de Nossa Senhora da Mata, em 15 de maio de 2000). Aconteceu também a prisão de dois sem-terra, ocorrida em função do episódio, relatada neste caso a partir dos documentos elaborados na Polícia Civil de Pernambuco, 6º Departamento Regional da Polícia – Delegacia de Polícia de Açude/PE. Encontra-se ali um exemplo dos episódios que os habitantes de Cachoeira mencionaram a respeito dos problemas advindos das Cartas de Adjudicação: o despejo, que é relatado aqui a partir de uma narrativa administrativo-judicial, uma narrativa gerada pela reclamação apresentada pelo Sindicato, uma narrativa proposta pela figura rival. 84 Conforme me contaram os entrevistados, a sigla UEPA – sigla da qual não estou segura – refere-se a um colégio localizado em Açude.

a gente alugou um caminhão, levamos o pessoal para lá novamente (...) e, dessa vez, a gente foi direto para a sede do engenho, onde o pessoal está hoje (Zezé).

Começou naquele tempo uma série de ameaças ininterruptas, de roubos e de

assassinatos que derivaram na desertificação de Cachoeira. As pessoas foram embora do lugar

à medida que aconteciam os eventos relatados. Entretanto, a morte de Amaro foi um marco

crucial. Ninguém ficou ali, nem moradores, nem acampados. Gente armada que chegava

procurando determinadas pessoas, rumores que falavam de pistoleiros procurando os

coordenadores do acampamento: estas foram ameaças reiteradas depois do despejo. As

denúncias desses acontecimentos à polícia eram concluídas por ela com uma indicação de

ausência de provas.

Era roubo. Chegava batendo na porta, mandava sair para fora pra matar, roubavam algum animal que o morador tinha; roubaram ali em cima um morador, roubaram uma, três vezes, levaram (...) da feira que ele tinha acabado de fazer. De noite vieram buscar. Sempre foi assim: roubo, ameaça, aterrorizando os moradores (tinham medo e iam embora). (...) Ameaças, roubo, morte, matava mesmo (Osvaldo). Depois do despejo, o pessoal voltou para lá. Aí pronto, começou a perseguição. O pessoal chegava lá procurando, (...) chegava gente de moto sem a gente conhecer, procurando a gente, armado (Zezé). Todas essas ameaças a gente chamava a polícia e ela dizia que não tinha prova contra. (...) Era tudo comprado por Zeca Alberton,85 daí a gente começou a se desviar, eu e (Beto), porque a gente era quem mais era perseguido (Zezé).

Entretanto, as ameaças deixaram de acontecer e a morte passou a ocupar o seu lugar.

Houve o primeiro assassinato em fins de 2002. Três tiros em Ivo. Não foi em Cachoeira, mas

sim em um caminho que ia dar no engenho. Pouco tempo depois, Osvaldo, neto de Amaro,

recebeu um disparo na perna. Também no caminho; ia visitar uma tia em Ponta das Pedras.

Após três dias, assassinaram Amaro, antigo morador do engenho.

E pagava bandido para vir aqui para bagunçar. (...) Depois que assassinaram o Ivo, um mês depois, me balearam ainda, me balearam, dois tiros. (...) Ia eu e meu primo de manhã para a praia, que minha tia mora lá, em Ponta de Pedra, e aí quando a gente chegou numa certa distância, ele avistou um (homem); aí a gente seguiu em frente. Quando a gente passou pelo (homem), o cara mandou eu e meu primo parar. Eu (não) parei, aí ele (meteu bala em

85 O nome mencionado é o do fazendeiro vizinho.

mim) procurando um acampado que tinha aqui. (...) Três dias depois, vieram e assassinaram o meu avô (Osvaldo).

Aquele foi um fato crítico para todos os que se encontravam vivendo em Cachoeira. O

assassinato foi em sua casa. Amaro era o tesoureiro da Associação que foi organizada no

acampamento. Roubaram seu dinheiro e o mataram. Não conseguiram reconhecer quem assim

o fez, já que estavam mascarados. Os processos judiciais tampouco contribuíram com

informações a respeito de qualquer um dos dois assassinatos.

Faz quatro anos que aconteceu esse negócio com o meu irmão, e até aqui a polícia não resolveu nada ainda não, (...) nem vem nem nada aqui; (...) a polícia é assim (Dorival).

Apesar da nebulosidade burocrática, as pessoas que viveram aquele episódio o

recordam com detalhes; sua presença se faz essencial nos relatos. Foi uma noite em que um

grupo de pessoas chegou a Cachoeira. Quando se foram, levaram pertences de Dorival,

dinheiro de Amaro e o dinheiro da Associação, o qual Amaro guardava. Foram-se, levaram,

também deixaram: o corpo de Amaro ficou com balas; Dorival, sem irmão; Osvaldo, sem avô;

Zé Manuel, sem pai; Dionísio, com menos um “companheiro de luta”.

Foi aí que (chegarem até essa) caixinha de dinheiro e mataram o companheiro de luta, morador de lá, e levaram dinheiro. Nove e meia da noite eu me acordei, (...) numa distância mais ou menos de 100 metros. (...) Aí apaguei a luz de dentro de casa; quando acendi a de fora, foi que olhei pela janela: (...) tinha três cabras ainda correndo (...). Aí fomos para lá, (...) entrei pela porta, a porta quebrada, ele assim caído, mais a mulher dele, (...) uma menina na cama, outro menino menor debaixo da cama, outro tinha corrido e escapou. (...) Aí eu falei para ele (para Zé Manuel): (...) teu pai está derramando muito sangue; (...) (pegaram a ambulância), (...) mas ele já tinha morrido (Dionísio).

Eu perdi meu irmão que era com quem eu contava. Quando caía no fracasso, aí ele me ajudava. E ele morreu, pronto. (...) Imaginei sair, mas eu digo agora: tem que ficar aqui mesmo, porque o que tinha que perder já perdi; era ele, era mais velho que eu, era pai, mãe e muito, né? Era meu socorro, era ele (Dorival).

Depois da morte de Amaro, Cachoeira ficou deserta. O “medo” que tudo aquilo causou

para os que ali viviam foi a explicação dada para o abandono do lugar. Cada uma das pessoas

se foi. Passou-se um tempo antes de o espaço ser novamente habitado (é possível que tenham

sido três meses). Aquela nova habitação foi contemplada com uma participação muito escassa

de moradores, a maioria de seus participantes seria sem-terra.

Foi muito sufoco, aí os outros ficaram todos com medo, os outros morador que ainda tinha. (...) Eu ainda passei três semanas, a minha família correndo para ir para a rua (...) e eu (...) disse: eu não vou não, eu vou ficar aqui. Tinha uma família arranjando as coisas, quando cheguei lá, a família já estava chorando. Por que vocês estão chorando? Você saia dali que você vai morrer também! Eu disse não, eu não vou sair agora não, porque já mataram um companheiro e se a gente sair, vai ser pior. (...) Muito nervosa a família pediu, a mulher aqui pediu que eu saísse. Saí, né? (Dionísio). Aí, quando mataram o meu avô, foi-se embora tudo de uma vez mesmo. Depois com o tempo, aí retornou de novo, mas morador mais não, só acampado, só sem-terra mesmo, porque os moradores foi tudo embora (Osvaldo).

Entretanto, aquele tempo se encontrava impregnado de novos conflitos acontecidos no

lugar e de batalhas a serem vencidas. Assim, destaca-se nas narrativas o episódio com “uma

tal de Maristela”, agente imobiliário que dizia estar comprando as terras, uma “laranja”

segundo alguns entrevistados. Várias pessoas chegaram a Cachoeira em seu nome. Em seu

nome também se tentou baixar a bandeira da CPT que se encontrava no acampamento. A luta

contra este agente foi protagonizada pelos moradores que visitavam a região freqüentemente,

como Dorival e Dionísio. Eles mencionam, além disso, a presença de alguns trabalhadores da

CPT.

Isso aqui criou mato, o povo arrancava as portas daqui, (...) mas todo dia eu e seu Dionísio vínhamos aqui, vínhamos olhar. O Padre Teodoro mandava (...) que ninguém arriasse a bandeira. (...) Maristela (...) disse que tinha comprado as terras aqui também da Usina; aí teve um dia que (...) ela foi e tirou o bambu com a bandeira (...) e pegou o pano e botou ali debaixo de um bocado de tijolos. (...) Aí o menino de Seu Dionísio viu. (...) Eu cheguei mais seu Dionísio; (...) eu fui e tirei outro bambu, botei de novo. No outro dia, ela chegou de novo e disse: Que povo desaforado, eu já tirei esse bambu aqui, cortei todinho e estão botando de novo! Tirou de novo. Quando foi na quinta-feira eu cheguei mais seu Dionísio e fiquei sentado naquela cocheira (...). Aí daqui a pouco veio um cara na moto: (...) Ehhhh!!! Está fazendo o que aí?!! (...) Maristela mandou ele aqui. (...) O cara disse: Vim comprar cavalos. (...) Aí seu Dionísio vai e manda o filho dele avisar ao Padre e ao Gustavo que tinha gente aqui correndo no engenho para comprar terra. (...) O Padre juntou a turma de Goitá, a turma de Montes Claros e veio para aqui. (...). A Maristela também não veio mais (Dorival).

Foi logo depois disso que chegou uma nova “turma”86 de acampados. A CPT

considerou conveniente retomar o lugar.

86 É a palavra utilizada pelos informantes para aludir aos grupos de sem-terra que foram chegando.

A CPT começou a trabalhar para colocar gente lá novamente, que é pra não arriar bandeira, porque ia ser desapropriado; aí se não tem ninguém, vai ficar ruim, né? Começamos a andar atrás de gente para colocar lá novamente; eu não podia voltar para lá, porque já estou assentado (Zezé). Três meses eu passei na rua. (...) Vim embora porque eles foram buscar eu lá, (...) que eu era o mais velho para indicar os novatos que fossem chegando (Dorival).

Chegou assim uma segunda turma de acampados. Hoje em dia, poucas pessoas

restaram daquele grupo. Foi feita uma reunião em Goitá com aquele que seria o coordenador e

Cachoeira foi novamente habitada. Segundo Dorival, o grupo instalou-se na sede do engenho,

nas antigas casas de material. Eles foram embora progressivamente, logo que Nestor, o

coordenador, se retirou. É por isso que muitos entrevistados consideraram que a atual é a

terceira turma de acampados, constituída em grande parte por pessoas que se encontram em

Cachoeira há pouco tempo.

Mas com essa turma agora, já tem três turmas com essa; duas foi-se embora e com essa já faz três. (...) Da primeira turma só tem Zezé (...) que sempre aparece por aqui, ainda vem dar uma força aqui pra gente tudinho; só tem ele. Eram todos de Ibiaçu, Itaperuna, era todo mundo de lá (Dorival). Depois da morte do Amaro, veio seu Nestor com os filhos dele e outras pessoas. Depois, Seu Nestor desistiu com o pessoal e aí veio agora esse pessoal novato. A gente está tendo o maior cuidado com o pessoal lá, para ver se não vai ninguém mais embora, se continuam na terra (Zezé).

Houve acontecimentos que marcaram mais abruptamente os movimentos de entrada e

saída dos acampados, conforme me contaram os entrevistados. Desse modo, à medida que

aconteciam os fatos relatados, as pessoas foram se retirando. Eram menos após o primeiro

tiroteio, menos ainda depois do segundo, e ainda menos em seguida ao despejo, e assim até

que ocorreu a morte de Amaro, momento em que o acampamento ficou deserto. Aquele foi o

fim da “primeira turma”. Depois foi retomada a ocupação do espaço com outro grupo de

pessoas, que formariam a “segunda turma”. Entretanto, além dessas saídas mais numerosas,

Cachoeira experimentou também uma renovação progressiva de seus habitantes: pouco a

pouco, as “famílias” chegavam e iam embora por diferentes motivos.

Foram embora, não voltaram mais, aí já veio outra turma. (...) Vinha aquele povo aqui, chegava... (...) oito dias ia em casa e, quando vinha, já vinha com dois, três, e assim... (...) Todo esse povo que está aqui já vinha com os outros atrás, né? (Dorival).

Assim passou muita gente, vai embora um companheiro, depois vem outro. (...) Teve alguns que desistiram e alguns ficaram. Aqueles desistiam e já (vinha) outro trabalhador (Mário).87

O relato dos moradores com os quais conversei aborda os tempos do arrendatário e da

Usina, antes da chegada dos sem-terra. Dessa maneira, a narração dos moradores é contínua.

A chegada dos sem-terra é um evento dentro da história de Cachoeira, um evento importante

que deu base à sua permanência no lugar. Uma história de luta ininterrupta.

Assim, os moradores me contaram a respeito de seu trabalho para o arrendatário do

Engenho antes que ele morresse. Isso nos tempos que antecederam à quebra da Usina Açude,

em 1996. Ele era um “fornecedor”, disseram-me, abastecia a Usina com cana-de-açúcar, a

qual era moída ali. Os moradores trabalhavam com a cana e cuidavam o gado do “rendeiro”

(do arrendatário),88 mantinham além disso seus “sítios” (os dos próprios trabalhadores).89

Antoniete, cujo pai foi administrador desse arrendatário, também chamado de “senhor-de-

engenho”,90 denominou de “foro do terreiro” o trabalho que realizavam para este último os

moradores, com a finalidade de pagar o espaço que habitavam. Por sua vez, Dorival falou de

trabalho “fichado”.91

Meu pai saía de madrugada para tirar leite das vacas dele, só chegava em casa noitinha, chegava ao meio-dia para almoçar às carreiras. (...) Às vezes ele pagava a um pessoal lá, mas tinha sete irmãos homem, aí dava para cobrir o roçado (Antoniete).

87 Mário é atual acampado de Cachoeira. 88 “A contrapartida da casa, ou do direito de plantar ou trabalhar, é o dever que tem o morador de trabalhar para o estabelecimento” (Palmeira, 1976:107). 89 “A casa com área para a cultura em torno é chamada geralmente ‘sítio’” (Andrade, 1998:115). O sítio não é o mesmo que o terreiro, o qual consiste em um espaço no fundo da casa onde o morador planta o essencial para o consumo familiar semanal (Palmeira, 1976). O sítio não é um elemento inerente ao contrato de moradia, como o são a casa e o terreiro, pelo contrário “representa o mais importante dos ‘prêmios’ que o senhor de engenho atribui ao morador […]”. Ele atua como “um mecanismo central de diferenciação interna dos moradores” (Palmeira, 1976:106). 90 Os fornecedores e os usineiros são figuras que obtiveram primazia em relação à produção de cana com o processo de substituição dos engenhos bangüês pelas usinas. “Enquanto os primeiros [os fornecedores] se ocupam apenas com a produção agrícola propriamente dita, os segundos [os usineiros] também controlam o processo de transformação de cana em açúcar, sendo proprietários de unidades fabris” (Sigaud, 1979:29). Sigaud estabelece uma distinção dentro da categoria de fornecedor: “Entre os fornecedores se poderia estabelecer uma distinção entre os proprietários de terra e os que a exploram por arrendamento (conhecidos como rendeiros). Enquanto os fornecedores são geralmente ex-senhores de engenho ou descendentes seus, os rendeiros muitas vezes têm origem distinta, procedendo do comércio, de profissões liberais ou da burocracia […], embora haja tantos rendeiros que já foram senhores-de-engenho ou que acumulam a exploração de terras próprias e arrendadas, quanto proprietários sem qualquer vinculo com o passado bangüê. Os trabalhadores vão distinguir o senhor-de-engenho, termo que reservam aos fornecedores proprietários, do rendeiro e do usineiro” (Sigaud, 1979:29). É interessante observar aqui a conjugação das categorias de senhor-de-engenho e rendeiro em relação ao assinalado pela autora. 91 Para uma análise da categoria de fichado, ver Sigaud, 1979.

MFF: Seu Dorival, quando você chegou aqui há 18 anos, o senhor-de-engenho ainda estava? Dorival: Tava, tava vivo ainda, eu trabalhei fichado com ele. (...) Tinha 70 moradores, todos fichados; ele pagava todos os direitos. (...) Eu fui trabalhar (...) como (cultivador) de cana (...), botava os bois na frente e o (cultivador) atrás para gradear aquelas (carreiras) de cana: o boi puxando, a pessoa atrás, e o boi puxando... (...). Ele moía pra lá, (...) a cana dele era moída aí na Usina.

Segundo as idades que tinham alguns entrevistados quando o senhor-de-engenho

morreu, este fato aconteceu aproximadamente em 1991, 1992. Conta um morador que quando

isso aconteceu, a esposa do arrendatário se foi do Engenho e colocou um advogado contra a

Usina para que esta pagasse as dívidas que tinha contraído com eles; a viúva dizia que seu

marido tinha morrido de tensão nervosa por essa razão. Ela saiu do lugar e a cada vez que

voltava via seu marido caminhar pela Casa Grande, seu marido já morto. O senhor-de-

engenho tinha vendido as “benfeitorias” ao dono da Usina antes de morrer, mas não o gado.

Entretanto, a Usina não havia pagado.

Esse rendeiro, (...) vamos supor assim, o cara arrenda um engenho desses por 10 anos. Aí, quando chega naqueles dez anos, se ele não quiser mais fazer outro contrato, (...) a Usina compra aquelas benfeitorias que ele fez e ele entrega o terreno. (...) Ele já tinha vendido esse aqui à Usina (...) mas [a Usina] não pagou. Quando ele morreu, a viúva pegou tudinho: (...) esse negócio de burro, cavalo, (...) e aí negociou para outro canto, porque ela [a Usina] só comprou as benfeitorias do engenho. (...) A viúva foi embora para Ponta das Pedras e (sem) a Usina pagar. (...) Aí botou o advogado para a Usina pagar. (...) Disse que a morte dele foi por (causa disso) (...), porque ele sofria de nervos, sofria de coração. (...) Aí a Usina disse que não tinha dinheiro para pagar não, que ela voltasse para o engenho. Ela disse que não voltava porque já tinha chegado os sem-terra, (...) e mesmo assim ela vinha até aqui porque tinha uns conhecidos, uns moradores. Mas foi o tempo em que os moradores foram embora, aí ela não apareceu mais. (...) Mas ela deixou de vir também porque ela disse que toda vez que chegava aqui, que ela olhava, só via ele aí no terraço, estava andando para cá e para lá (Dorival).

Os relatos dos moradores assinalam as dificuldades daquele tempo, quando o

arrendatário morreu e a Usina “tomou conta” do Engenho. Não havia responsáveis pelos

trabalhadores. Nem o senhor-de-engenho, nem a Usina. “Pronto”. Tudo havia acabado. Seria

o começo da partida dos moradores:

Com o tempo, alguns morreram, outros, quando a Usina faliu, foram embora; aí ficou pouco morador mesmo aqui, porque (isso aqui em cima) era tudo cheio de casas. (...) Quando os sem-terra chegaram, aí o pouco que tinha se reuniu com eles (Osvaldo).

As dívidas trabalhistas não haviam sido pagas. Tampouco havia trabalho suficiente

para conseguir sustentar-se materialmente. Segundo um entrevistado, o acordo entre o senhor-

de-engenho e a Usina outorgava responsabilidade pelos trabalhadores a esta última. Não

tinham roçados naquela época, precisavam de emprego. O trabalho para um senhor-de-

engenho vizinho foi uma saída encontrada pelos moradores para esta situação.

Quando ele fez negócio com a Usina, (...) a Usina ficava responsável pelo morador; o negócio já foi feito assim, mas a Usina não pagou nada a ninguém, e acabou-se, pronto. O morador foi embora e ela ficou devendo férias... tudo. (...) Depois que a Usina tomou conta, aí acabou-se... morreu de fome. Teve um tempo em que ela passou a pagar 5 reais por semana; o cabra trabalhava 6 dias, ela pagava 5 reais. Quem segurou o povo daqui, esse morador todinho, foi o senhor-de-engenho, um tal doutor Zuza do engenho Sapé; (...) até o domingo o doutor [Zuza] pagava; era a (sorte) dos moradores daqui. (...) Os daqui iam pra lá, mas porque aqui não tinha mais (nada), né? Só ganhava os 5 reais mesmo, não tinha mais serviço. E foi dando, foi dando, foi dando até (cortar) de uma vez. Aí não tinha mais nada, pronto, foi o tempo em que os sem-terra chegaram (Dorival).

Ficou quase sem trabalho, né? E os dias que trabalhava, trabalhava três dias e passava mais de meses sem pagar, e às vezes nem adiantava trabalhar, porque você já ia trabalhar a fim do dinheiro, né? Trabalhava e não vinha dinheiro para nada. (...) No pouco tempo em que entrou a Usina e ela deu voz de falência, (ninguém sabia) se ela tinha falido mesmo ou se estava só mentindo. Aí meu pai desesperou: ia morrer de fome com os filhos, não tinha emprego, não tinha nada. O caso é que ele era acostumado a trabalhar com cartão, trabalhava direto, noite e dia (Antoniete).

Outra figura aparece no relato daquele tempo de falência acentuada da Usina, um

“doutor”, um “Usineiro da Paraíba”, que arrendou as terras “enchendo” o lugar de cana

durante três anos. Depois se foi. Conta um morador que a Usina não queria vender o que ele

desejava comprar: “a usineira, ela disse que vendia os engenhos, mas a (...) Usina não vendia,

e ele só queria trabalhar se ele comprasse a Usina, com tudo”. Três engenhos foram dados

para esta pessoa como pagamento das raízes de cana que havia deixado no lugar (Cachoeira

não foi um desses engenhos): “aí a Usina não teve dinheiro para pagar e deu três engenhos

pela soca da cana ao doutor Lineimar; deu três engenhos, ele tem três engenhos dela, devido a

essas canas que ele encheu”. Não havia roçados naquela época, tudo era cana: “com três anos,

ele deixou aqui tudo isso de cana”.92 Esse foi “o tempo em que os sem-terra chegaram”.93

92 A empresa SACI-Salvador Agricultura Comércio e Indústria S/A foi uma arrendatária da Usina Açude depois da falência desta última. Nas atas de audiência, emitidas pelo Ministério Público do Trabalho, o representante da SACI assinala “que a SACI só veio assumir a usina e o campo depois da safra de 1996 e 1997, em face do Contrato de Cessão de direitos de Arrendamento”. O diretor da Usina Açude indica na mesma Audiência que tal

Queria trabalhar para a gente mesmo, e aí foi o tempo em que os sem-terra chegaram, se juntaram, pronto, aí deu certo. (...) Aí ninguém foi plantar mais cana, e acabou-se, o mato aumentou e isso era limpado para botar o roçado (Dorival).

Antes que chegassem os sem-terra à Cachoeira, os moradores do Engenho e os

trabalhadores da Usina realizaram uma manifestação em sua sede. Uma manifestação apoiada

pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude. 42 dias acampando naquele lugar. Nesse

permanecer de resistência “o sindicato trazia café bem cedo, pão com mortadela, dois

tambores de café; ao meio-dia, feijão com carne de charque; de noite, macaxeira”. O

acampamento94 acabou com a chegada da polícia: três caminhões e 12 soldados dentro de

cada caminhão. Depois daquilo, o Sindicato já não era dos trabalhadores “Aí, pronto, o

sindicato ficou do lado da Usina”. Era uma direção diferente daquela de hoje em dia; os

entrevistados esclareceram tal mudança. “O sindicato (...) (aguou) todinho o morador em cima

da Usina, mas não é esse que tem agora, era outro”.95

Não apenas foram difíceis os tempos da quebra da Usina Açude. Contavam os

moradores que nas épocas de trabalho a cana impunha um ritmo de espinhosa transição. Além

do desgaste que exigia a cana, os direitos dos trabalhadores eram negados. Houve pessoas que

desapareceram. Elas nunca foram achadas. Foram encontrados na Usina alguns processos

judiciais relacionados aos desaparecimentos (tais processos foram achados em uma

manifestação contra a empresa).96 Zezé, por exemplo, contava a respeito de seus avós:

cessão de contrato de arrendamento foi realizada pela empresa Santa Elvira Agroindústria Ltda., logo depois de rescindir, em 1996, o contrato de arrendamento por 15 anos realizado a partir de 1994. O papel da SACI como testa-de-ferro do grupo Cunha Silva (proprietário da Usina Açude) me foi apontado pelas pessoas da CPT. Em relação ao tempo de arrendamento mencionado nas citações do parágrafo relativo à presente nota, talvez a Empresa Santa Elvira Agroindústria Ltda. seja o arrendatário a quem se alude. 93 As citações são expressões de Dorival. 94 Esses acampamentos realizavam-se “diante da sede das usinas ou de prédios da administração pública, para reclamar do descumprimento de acordos coletivos ou protestar contra o governo” (Sigaud, Fajolles, Gautié, Gómez, Chamorro, 2006:32). Os autores assinalam que os Sindicatos de trabalhadores rurais da região de cana desdobraram esta forma de ação na década de 80 e em inícios dos anos 90, ação que difere do acampamento analisado no presente capítulo. As ocupações instaladas em propriedades privadas para reivindicar desapropriações constituem um episódio recente, que começa a se expandir a partir dos anos 90. A respeito das características particulares desta nova forma de ocupação em relação às anteriores, ver Sigaud, 2000. 95 Idem nota 93. 96 A Marcha dos sem-terra e moradores, no ano de 2001 – a caminhada que começou em Açude, logo depois da ocupação da Casa Grande da Usina, passando por Nazaré da Mata, Tracunhaém, Carpina, Paudalho, São Lourenço da Mata, Camaragibe, até chegar a Recife para passar ali o Dia Internacional da Luta Camponesa (17/04) – é um evento relatado nos arquivos da CPT através de recortes da imprensa. Desta manifestação há dados relacionados aos desaparecimentos de trabalhadores da Usina: “MST encontrou fotografias de trabalhadores mortos” – registra o Jornal do Commércio de 10/04/01. No recorte, há o destaque sobre um trabalhador desaparecido em maio de 1964, reconhecido na foto por sua irmã.

Era morador, trabalhou na Usina, meu avô morreu e a Usina nem enterro deu; foi enterrado ali no Recife como indigente, o meu avô. A minha tia, quando veio de São Paulo, (...) arrancou exumação do corpo e enterrou ele aqui. (...) A Usina não deu direito nenhum a ela [à avó], botou lá para fora do sítio e derrubou a casa. (...) Essa foi uma das causas de eu mais me interessar em brigar pelas terras lá, porque meu avô morreu, minha avó morreu e ninguém deu nada, nem enterro eles pagaram, que era direito deles de ter o enterro, né?

Chegaram então os sem-terra e começou o acampamento. É a terceira turma a que

habita atualmente Cachoeira, além de dois moradores e outras pessoas que foram também

parte constituinte das turmas anteriores. O tempo dos acampados no lugar varia, vai de três

anos até um mês atrás. Assim, uns poucos me disseram que estão ali desde que se retomou o

acampamento, logo depois da morte de Amaro. Foi a partir daí que ocorreu a chegada de

outros. Além dos habitantes mais antigos, o tempo mencionado pelas pessoas em relação à

sua chegada a Cachoeira se estende desde os dois anos anteriores ao mês passado (tendo como

referência aproximada agosto de 2006). A maioria se encontra na faixa aproximada de um

ano.

Embora provenham de diversos lugares – Feira dos Moradores, Ibiaçu, Guararema

(Centro Regional), Guararema (acampamento São Francisco, do MST), Recife, Jaboatão dos

Guararapes, entre outros (todas essas regiões pertencentes ao estado de Pernambuco) – há

alguns que aparecem com maior freqüência. Dessa maneira, Ibiaçu e Guararema

(acampamento São Francisco) são os mais nomeados na passagem de pessoas para Cachoeira

como pontos prévios de estadia. À exceção dos acampados que anteriormente se encontravam

no acampamento de Guararema, o resto provém da rua. A rua é uma palavra utilizada para

referir-se à cidade, isto é, à região que não é campo, onde a vida não se estrutura em função

da “terra”.

O papel exercido pelo boca a boca para a chegada dos acampados a Cachoeira foi

reiteradamente assinalado. “Avisou-me um vizinho que estava em Cachoeira” – esta é uma

frase que resume a maneira mais generalizada de entrada no acampamento dos que ali

habitam. Muitas pessoas que se encontram atualmente no lugar já se conheciam antes; alguns

eram próximos, outros não.

Em relação a esta questão, cabe mencionar que no caso das mulheres seus discursos se

estruturam de uma maneira diferente daquela dos homens. Embora a menção à pessoa que

introduziu a família no acampamento se encontre presente em alguns relatos, a figura do

marido, entretanto, é o ponto de referência principal a este respeito. Seu parceiro é um ator

inevitável na narrativa referente à chegada. Não acontece dessa forma no caso dos homens.

Por um lado, a entrada das mulheres é posterior a de seus maridos – eles sempre são os

pioneiros da experiência. Por outro lado, em muitos relatos femininos, o homem foi colocado

como o sujeito ativo na decisão de acampar. O mesmo se deu no caso dos homens, em função

da ausência de referência à sua esposa ao falarem sobre a questão.

A chegada ao acampamento passa por um ritual de aceitação. Ter sido avisado é um

requisito essencial; a pessoa que chega deve fazê-lo sempre a partir de um intermediário.

Entretanto, não basta simplesmente o ato de ter sido avisado para fazer parte do

acampamento: é preciso que se realize a reunião de aceitação. Ali as pessoas avaliam se o

sujeito que deseja entrar cumpre ou não as condições requeridas para ser parte do

acampamento. O adjetivo “trabalhador” é uma qualidade prioritária na conformação dos

parâmetros morais consagrados nessa avaliação.

Vários foram os argumentos que as pessoas me expuseram para se referirem à sua

presença em Cachoeira, sobre a sua decisão de se transformarem em um sem-terra. Em

primeiro lugar, a totalidade das histórias pessoais fala de uma origem no campo. Nascer, criar-

se ali foram experiências fundamentais. No campo, aprenderam a trabalhar, junto a seus pais e

irmãos, numa aprendizagem de vários anos obtida através da experiência cotidiana. Esse é um

passado constituinte, um ponto central a ser evocado ao se referirem às suas presenças no

acampamento. Assim, muitos acampados me falaram enfaticamente sobre sua ligação com a

terra, seu gosto por aquele mundo: “sou doido pela terra”; “é tão bonito”; “venho de coração”.

Escutei reiteradas vezes expressões nesse tom ao perguntar como chegaram ali. O trabalho

com a terra representa uma experiência e um saber constituintes da pessoa. O “sonho de ter

minha terra” justifica a “luta”, a “agonia” que, muitas vezes, a permanência no acampamento

significa.

Ser dono de sua terra, “não ser mandado por ninguém”; o desejo de não ter “patrão”,

nem ser patrão – um desejo de longos anos: este é outro ponto mencionado pelos

entrevistados ao se referirem ao seu movimento em direção ao acampamento. Diferentes

aspirações se fazem presentes em tal traslado, tentando através dele chegar a uma condição

que permita realizar certos projetos de vida, como a educação universitária para os filhos, por

exemplo: "quero que meu filho seja arquiteto", dizia Luísa. Deste modo, que a sua presença

no lugar implica a busca de algo “melhor” foi um comentário reiterado.

Tal movimento evoca também questões trabalhistas. Foi assim que muitas pessoas

falaram da situação que estavam atravessando na rua, antes de se tornarem parte dos sem-

terra: uma situação de escassez de trabalho, de difícil sustento material. Na cidade “não tem

futuro”, o trabalho é instável, os sem-terra “são uma bênção” para quem se encontra sem

emprego na cidade. A esse respeito, as pessoas vivenciam uma estreita margem de decisão,

uma situação coercitiva que os coloca diante da possibilidade de acampar.

Aproximadamente 30 “famílias” habitam o acampamento. Embora ser “pai de família”

seja uma condição que mereça grande consideração para ser acampado, em Cachoeira existem

pessoas que não formaram uma família de procriação, outros são viúvos e seus filhos vivem

por conta própria, como também há uma grande percentagem de homens cuja família nuclear

não se mudou para o acampamento, de maneira que vivem sozinhos ali (com exceção de

Jacinta, não existem mulheres vivendo sozinhas). Esta última situação é considerada uma

circunstância transitória. As famílias vivem na “cidade” de forma temporária, até que “saiam”

as terras, até terminarem os estudos, até o término do ano para que possa ser feita a

transferência dos filhos na escola, ou outros motivos. Acontece que essas famílias mantêm a

casa na “rua”, mantêm um espaço de segurança enquanto o homem permanece no

acampamento, que é considerado um lugar de difícil estadia. Outro caso é aquele em que a

família nuclear se encontra incompleta, ou aquele em que o tempo de permanência das

mulheres é dividido entre o acampamento (onde está o marido) e a “rua” (onde estão os

filhos).

Em algumas ocasiões, as visitas entre os acampados e suas famílias são mais

freqüentes; em outras, transcorrem vários meses entre cada encontro, pela impossibilidade de

se pagar a passagem. Acontece, por outro lado, um duplo movimento nas visitas; embora seja

mais freqüente a saída do acampado, no entanto, o caminho inverso não fica ausente. A

distância da família é um difícil desafio para os acampados. Em minhas visitas a Cachoeira,

experimentava com freqüência a ausência temporária de algumas pessoas que saíam para

visitar suas famílias (em geral, nos fins de semana), ausências nas quais a colaboração dos

acampados vizinhos com tal situação – ao cuidarem, por exemplo, dos animais de quem

viajava – se fazia presente.

Nos casos em que a família habita no acampamento e mantém a casa na cidade, a

vigilância desta última é realizada por outro membro da família, por um parente, ou um

vizinho. De modo geral, os acampados mantêm laços com suas famílias de orientação, em

especial as mulheres. Pais e irmãos são figuras reiteradas em seus discursos, e acontecem

comumente visitas mútuas. Várias situações deste tipo ocorreram durante o tempo em que

realizei meu trabalho de campo. Para citar um exemplo, apontarei Ana Maria, mãe de dois

acampados que encontrei com freqüência no acampamento. Entretanto, ela vivia em Feira dos

Moradores. Ali tinha sua casa, seu roçado e seus animais. Contou-me que a cada 15 dias,

aproximadamente, dirigia-se a Cachoeira para visitar seus filhos e ajudá-los: lavando suas

roupas, provendo-lhes coisas etc. Durante o tempo em que Ana Maria permanecia no

acampamento, um tio cuidava de sua casa em Feira dos Moradores.

Deste modo, tanto no caso das pessoas que acampam com suas famílias, como no das

que não o fazem, é central no acampamento o círculo de relações mais amplo que se expande,

não apenas para membros mais próximos da família, mas também para outros parentes ou

vizinhos. Eles são um importante elemento de apoio para a permanência no acampamento,

que não se restringe a quem o habita. O parentesco e a amizade estendem o âmbito de sua

influência, formando uma rede de familiares e amigos que excedem o espaço físico de

Cachoeira e se envolvem no conflito, criando um espaço de segurança e apoio que se torna

fundamental.

Os acampados vivem nas casas do antigo engenho, velhas casas de material que no

passado pertenceram aos moradores. Novas relações sociais ocupam o velho espaço, que flui

assim com a corrente do tempo. Cada “família” em Cachoeira possui uma parcela de terra, na

qual cultivam os mantimentos necessários para o próprio consumo. Alguns dos produtos são

também vendidos nas feiras. A divisão em parcelas foi realizada, conforme me contaram os

acampados, aproximadamente há uns dois ou três anos atrás. Foram eles mesmos, junto com

integrantes dos outros assentamentos e acampamentos de Açude, pertencentes à CPT, que o

fizeram. As pessoas se reuniram e com uma corda delimitaram seus espaços de trabalho: “Não

tinha nada dividido, nada tinha ainda (...) aí pronto, se ajuntou aqui um rapaz que tinha mais

entendimento, outro tinha metro (...) e medindo com corda, lá vai, e aí botaram número (...)

pronto, aí ficou, cada um que trabalha sabe para onde vai”.97 Contou-me um acampado que a

outorga das parcelas divididas foi mediante sorteio.

Esse parcelamento não está oficializado, espera sua confirmação: “mas agora quando

receber a imissão de posse, quem vem bater os piquetes é o exército, só falta o exército vir,

bater os piquetes, pronto, acabou”.98 Vários acampados assinalaram a característica provisória

dessa divisão. Apesar desse fato, ao definir seus locais de trabalho, o parcelamento adquiriu

grande importância na organização do acampamento. Significou um passo para a apropriação

de um espaço, para a permanência, para a fuga de uma situação de transitoriedade. Antes da

divisão, as zonas de cultivo encontravam-se indefinidas. As pessoas enfatizaram este fator.

Cada família possui então uma parcela delimitada. Macaxeira, mandioca, batata,

batata-doce, jerimum, milho, melancia, feijão-verde, quiabo, maxixe, fava, inhame,

bananeiras, cajueiros, graviola, acerola etc. contam-se entre os produtos cultivados pelos

97 Dorival. 98 Dorival.

acampados, todos eles utilizados na alimentação cotidiana (alguns deles, como as árvores

frutíferas, já se encontravam antes no local).

O roçado emprega a força de trabalho familiar. No caso das pessoas que vivem

sozinhas, o trabalho é individual, embora existam também intercâmbios entre os vizinhos (por

exemplo, alguns acampados me contaram que trabalham às vezes nas parcelas de outros e

estes outros em suas parcelas). A atividade agrícola é o centro da organização cotidiana, o

ritmo diário estrutura-se em função do trabalho no roçado, que é o principal meio de

subsistência e ocupa uma ampla faixa horária do dia.

Os roçados são espaços de grande importância para os acampados. Ocupam um lugar

central, tanto em seu cotidiano empírico, como em seu discurso. Grande parte de sua conversa

é destinada a eles. As pessoas assinalam constantemente o fato positivo de terem um roçado,

apesar de não serem ainda donos das terras. Poder plantar e a independência que isso lhes

proporciona (trabalhar para eles mesmos) adjetiva a apreciação da vida no acampamento,

onde o roçado se constitui como elemento positivo fundamental. Em meus encontros com os

acampados, o roçado assumiu um significativo papel na constituição de sua apresentação, na

manifestação de sua vida, assim como na recepção que me proporcionaram. Assim, o desejo

de me mostrarem as suas parcelas, de me oferecerem presentes e de me fazerem experimentar

os produtos de seu trabalho foram formas generalizadas de acolhida entre as pessoas do

acampamento.

Entretanto, os acampados enfatizaram a precariedade com que vêm desenvolvendo

esse trabalho. Entre outras coisas, a água é escassa (em várias parcelas, não em todas), as

pragas assolam, não possuem nenhum tipo de maquinaria, a mão-de-obra é insuficiente e o

dinheiro se encontra ausente. A insuficiência material leva os acampados a inventarem

alternativas para o melhor cultivo. A reciclagem e a criatividade são elementos de destaque

nos roçados, assim como o cultivo orgânico. Por outro lado, as plantações são diversificadas e

contam com uma assessoria técnica da CPT.

As pessoas plantam a mínima parte de sua parcela. Não é unicamente o que foi

destacado no parágrafo anterior que conduz a essa situação, mas também, e de modo muito

importante, o “medo” de perder seu trabalho se as terras não chegarem a “sair”. O medo de

que um “despejo” leve embora a sua obra.

A distância percorrida para chegar ao roçado varia de família para família, mas em

geral requer um tempo extenso de caminhada. Embora existam casos em que a parcela se

encontra próxima à “casa”, uma grande parte dos acampados se vê na situação de percorrer

cotidianamente um longo trecho. Este é um dos fatores enfatizados pelas pessoas ao

assinalarem as dificuldades de se viver em Cachoeira.99 Atravessar a distância entre a casa e o

roçado implica uma grande perda de tempo e energia. A situação significa para muitos uma

das contrariedades que devem ser enfrentadas em face da transitoriedade que envolve o

acampamento: as “casas” onde se encontram vivendo atualmente são um espaço de acolhida

temporária. Acontece que as pessoas estão habitando a sede do antigo engenho, isto é, o

conjunto de moradias próximas à Casa Grande (incluída esta última). Isto teve como razão

uma questão de segurança: pouco tempo antes de eu ter chegado a Cachoeira havia ocorrido

ali uma série de roubos, de maneira que se considerou conveniente agrupar as moradias em

uma distância mais próxima da sede do engenho.100 Assim, aqueles que se encontrassem

vivendo longe da sede deveriam trasladar-se para esse local. Algumas das casas antigas foram

divididas para agrupar mais de uma família. Isso significou para muitos um afastamento do

roçado. O desejo de construir a casa perto dele, já que isso facilitaria seu ritmo de trabalho

cotidiano, foi mencionado por uma quantidade expressiva de acampados.

De modo geral, a maioria dos homens se dirige ao seu roçado de manhã cedo e eles

voltam para acampamento quando o calor do sol aumenta (no final da manhã). É nesse

momento que almoçam, dando a si mesmos, então, um tempo pequeno de descanso até que o

sol desista da sua intensidade. Voltam depois para roçado e permanecem ali até a tarde

começar a cair. Nem todos os dias são iguais e existe variabilidade entre os acampados quanto

a isto. A distância anteriormente mencionada entre as casas e o roçado influi na organização

cotidiana do trabalho e nessa variabilidade. Assim, o trecho que devem percorrer faz muitas

vezes com que desistam de voltar para o roçado; em outros casos, as pessoas não retornam ao

acampamento para almoçar, levando com elas uma marmita, trabalhando de modo contínuo

para poderem voltar um pouco mais cedo. Para as pessoas que dispõem do roçado perto de

casa, o tempo percorrido no trajeto não constitui uma preocupação.

O ano se estabelece em duas estações – verão e inverno – as quais impõem uma

reorganização do trabalho. O inverno estende-se aproximadamente dos meses de abril e maio

até setembro e se caracteriza principalmente por ser uma temporada de chuvas. O verão

99 É interessante neste sentido levar em conta o mencionado por Heredia (1979) a respeito de uma população de camponeses localizada em um município da Mata Norte, próximo de Açude: “A casa e o roçado correspondente constituem geralmente uma única unidade espacial, não existindo normalmente nenhuma separação evidente entre eles” (:37). 100 Não foram unicamente roubos os eventos associados às medidas de segurança tomadas no acampamento. Observou-se mais acima que o despejo também motivou uma estratégia de agrupamento, pois logo depois desse incidente os acampados se instalaram perto dos moradores, na sede do Engenho.

abrange os meses restantes. Minha estadia no acampamento foi justamente em uma época de

mudança (julho a setembro); estava chegando o verão.101

Além do trabalho no roçado, muitos acampados dedicam-se à criação de animais.

Existem espaços comuns onde alguns animais são guardados; outros são colocados perto das

casas de seus donos. Vacas, bois, cabras, burros, galinhas e cavalos estão entre os animais

criados. Alguns deles, como as galinhas e as cabras, oferecem produtos para a alimentação.

Outros, como os burros e os cavalos, são meios de transporte. As vacas e os bois são, em

geral, criados e depois vendidos (quando alcançam um tamanho considerável). O cuidado dos

animais também é de grande importância para os acampados. Faz parte do que significa o

trabalho na terra, constitui seu saber-fazer.

A pesca é outra tarefa que se encontra presente entre as atividades de subsistência de

algumas pessoas. Uma tarde, por exemplo, conversando com Estela, vimos seu marido passar

com outro acampado. Iam pescar. Ao retornarem, já era noite. Eu estava na casa de Luísa

(onde me hospedava); os dois homens passaram por ali e a ocasião foi propícia para me

mostrarem alguns espécimes que tinham pescado. Entretanto, a pesca não se apresenta de

forma tão importante como o cultivo e a roça. Tampouco é um elemento organizador do ritmo

diário.

Como assinalei anteriormente, os acampados participam de algumas feiras com a

finalidade de vender os produtos de seus roçados. Esse é um meio comum de obterem

dinheiro para comprar as mercadorias de que precisam para o seu consumo. Entretanto, tal

obtenção é extremamente difícil, e a ausência de dinheiro é uma problemática central. Foram

duas as feiras mencionadas pelas pessoas: a de Açude e a de Uaiana.102

A primeira é “muito ruim”, segundo os acampados. Realiza-se aos sábados pela manhã

na cidade homônima. Não significa uma alternativa considerável já que a venda, quando

acontece, corresponde a um preço extremamente baixo. Eles me diziam que isso ocorria pela

grande quantidade de produção que ali é vendida, o que é acentuado pela divisão entre a feira

“normal” e a feira “dos sem-terra”, divisão esta estabelecida pelo prefeito de Açude que “não

gosta dos sem-terra, não”. Dessa forma, quem vende no evento são os que se instalam na feira

normal, aqueles que dispõem de mais mercadorias. Para obter alguma vantagem com aquela

101 Heredia (1979) realiza uma análise minuciosa dos processos de trabalho atravessados por cada cultivo e a disposição do calendário agrícola. Em referência às duas estações que organizam o ano, a autora assinala o plantio como uma atividade normalmente associada ao inverno, temporada de chuvas, e a colheita como um momento predominante do verão, estação seca. 102 O crescimento experimentado pelas feiras da Zona da Mata pernambucana a partir do “processo de expulsão dos moradores dos engenhos […] desencadeado a partir de meados da década de 40 e acelerado nos últimos anos […]” (:1) é assinalado por Palmeira (1971).

venda, os sem-terra – que têm uma produção “muito fraca”, conforme comentaram comigo –

precisam colocar os produtos a preço mais baixo, chegando a tal ponto que não conseguem ter

nenhum lucro, já que o dinheiro obtido é gasto com os custos que implica o fato de participar

da feira: trasladar-se, pagar à prefeitura pelo “banco” onde colocam os produtos destinados à

venda etc. Em relação ao transporte, embora se encontre à disposição deles um caminhão da

prefeitura de Açude que se dirige ao acampamento às sextas-feiras para procurar as

mercadorias a serem vendidas, ele é, entretanto, tão pouco utilizado que passou a não ir mais

até lá. Além disso, o retorno fica por conta dos acampados. A volta ao acampamento implica

tomar um transporte em Açude até a estrada e atravessar um caminho que demora mais de

meia hora a pé. Os acampados acabam desperdiçando a produção que não conseguiram

vender.

Desse modo, não existe uma grande participação nesse mercado. Dizia-me um

acampado que a configuração de uma imagem é uma das razões por que participam:

vendendo na feira de Açude, mostram sua produção, a constituição de um roçado, seu

trabalho, e tentam rebater assim as idéias negativas que são formadas pela opinião pública

sobre os sem-terra.

Do outro lado encontra-se a feira de Uaiana (município próximo de Açude). De novo,

o transporte é uma das complicações enfrentadas na realização desta atividade.103 Entretanto,

no presente caso, a dificuldade é maior, já que a locomoção é mais cara. A venda nesta feira é

mais proveitosa do que na de Açude, razão pela qual os acampados apresentam uma

freqüência maior no mercado de Uaiana, apesar do problema principal do transporte.

As feiras trazem com elas uma importante socialização entre os acampados. Participei

algumas vezes de reuniões na casa de Luísa, naquelas em que vários homens (além da

proprietária da casa e sua filha) uniam-se para “debulhar fava” (que seria destinada à venda na

feira). As risadas e as conversas acompanhavam aquele trabalho, que acontecia habitualmente

às quintas-feiras. Começava de noite, logo do jantar, e se estendia até altas horas. Em geral, eu

me retirava antes e dormia com o som de suas conversas (essa atividade foi posteriormente

suspensa, porque acharam mais conveniente “debulhar a fava” na feira, a fim de que ela não

endurecesse). Depois dessas noites, Tuca, o marido de Luísa, e outros homens104 despertavam

103 A dificuldade que os trabalhadores mencionam sobre os custos do transporte em relação ao traslado para as feiras é um dado indicado também em Palmeira (1971). 104 No acampamento, são os homens que participam da feira. É pertinente relacionar este dado ao que é especificado por Palmeira quando analisa duas feiras da Zona da Mata pernambucana (localizada uma no norte e a outra no sul): “Tanto feirar (vender na feira) como fazer feira (comprar na feira) são definidos socialmente como atividades masculinas” (1971:8). O autor assinala os matizes que tal afirmação adquire em relação aos

em torno das 4h da manhã e se dirigiam até a estrada. Os produtos a serem vendidos eram

transportados no burro que pertencia a Tuca, que logo voltava para o acampamento, enquanto

os outros se dirigiam à feira em um transporte que tinha de ser pago. Algumas vezes vão

alguns deles, outras vezes vão outros e, nessas idas, habituam-se a transportar os produtos –

quando não há uma grande quantidade – dos que naquele momento não estão indo. Este foi

um comentário expresso pelas pessoas a respeito das idas às feiras, enfatizando assim os

intercâmbios que são realizados entre os “companheiros” por ocasião de sua participação

nesses mercados.

Outros meios auxiliam a subsistência material. Entre eles estão as “cestas básicas”

distribuídas pelo INCRA. Quando chegavam, elas significavam uma ajuda na manutenção

(que em outros tempos foi combinada com estratégias coletivas de obtenção de dinheiro).

Contava Dorival a respeito das cestas e dos “mutirões” – trabalhos comunitários destinados a

fins coletivos – que se realizavam no passado:

Porque quando dava feira [aludindo com esta palavra às cestas básicas] no INCRA – cadê agora, que passaram uns três meses sem vir feira – a gente tinha dinheiro junto, ninguém sofria não. Aí pegava 200, 150, 300 contos e (...) fazia uma feira. Quando chegava aqui, botava ali, repartia um tanto para cada um. Antes daquele dinheiro se acabar, chegava a [cesta] do INCRA, pronto, aí já era uma ajuda. Agora não. A gente trabalhava, pegava dinheiro dentro dessa Casa Grande para guardar, quando dava febre, [tinha dineiro]. (...) O resto o povo carregava tudinho. Aí pronto, agora ninguém mais quer fazer um mutirão, não tem mais mutirão.

Entretanto, já fazia uns meses que a entrega das cestas não acontecia, "pela greve”

(que teve lugar no INCRA em um período anterior à minha chegada a Pernambuco),

declararam algumas pessoas. Supunha-se que essa fosse uma situação temporária, mas havia a

promessa de seu retorno. Além das cestas outras receitas se fazem presentes, como a “bolsa

família” que recebem alguns acampados (Luísa, por exemplo, recebe do governo uma

pequena quantia mensal por dois filhos em idade escolar) e outros poucos que contam com

recursos da aposentadoria. Finalmente, quanto à sua situação material, os acampados

desenvolvem o trabalho em condições de grande precariedade; o dinheiro encontra-se

virtualmente ausente, somando-se a isso a insegurança de sua estadia na terra.

Preparar as comidas (café da manhã, almoço e jantar), limpar a casa, procurar água e

lavar a roupa são trabalhos geralmente destinados às mulheres. Em várias ocasiões me

encontrei com as mulheres do acampamento levando um balde à cabeça com água de cacimba diversos setores da feira (os quais se destinam à venda de diferentes produtos). A masculinização se torna efetiva basicamente nos setores centrais, como o de farinha (:17).

(cuja distância demanda certa energia na caminhada), ou dirigindo-se ao rio para lavar a

roupa. Eram elas que preparavam as comidas e se encarregavam da limpeza. Entretanto, por

existir uma considerável quantidade de homens vivendo sozinhos, eles costumam realizar

essas tarefas por sua conta, quebrando as habituais divisões sexuais do trabalho. Assim,

muitos homens lavam sua roupa, cozinham, cuidam da casa, entre outras atividades. Por outro

lado, existem desempenhos compartilhados; dessa forma, muitas mulheres trabalham nos

roçados, buscam lenha, ordenham e cuidam de alguns animais (embora animais cujo cuidado

demanda um emprego maior de força, como vacas e bois, estejam reservados exclusivamente

aos homens). O exercício do roçado envolve geralmente a participação de ambos os sexos.

Todos os acampados começam o dia muito cedo. Os horários diferem um pouco mas,

em geral, às 5 horas da manhã iniciam a sua atividade. Uma das primeiras tarefas dos

acampados – dos homens em geral – é levar seus animais para pastar nos lugares que lhes são

correspondentes. Tive a oportunidade de observar também, de manhã cedo, a ordenha de uma

vaca e das cabras. Joaquim, que vivia em frente à casa da Luísa, dedicava-se cotidianamente a

tal atividade (quando os animais se encontravam em condições de oferecer o alimento). Os

filhos da Luísa o ajudavam e o leite era compartilhado. Também observei Benedita

ordenhando uma cabra.

Quando chega o final da tarde e o sol dá indícios de sua partida, os acampados

começam a guardar seus animais. Esta é uma tarefa realizada principalmente por homens –

pais e filhos a desempenham.

O café da manhã é uma refeição importante, já que sustenta grande parte do trabalho

da manhã. Uma combinação de alimentos tais como cuscuz, batata-doce, macaxeira, batata,

ovos, carne de charque e salsichas, sempre acompanhados por café, consistem da composição

do café da manhã (também esses produtos são usados no almoço e no jantar, sendo os

diferentes tipos de feijão elementos importantes nestas duas últimas refeições, e que não são

servidos no café da manhã). Na casa de Luísa e Tuca, na qual me hospedei, era Luísa quem se

dedicava ao preparo das comidas, o que tomava grande parte de seu tempo. Seu despertar era

seguido do trabalho doméstico. Os filhos a ajudavam, tanto como ao pai, nas tarefas por eles

realizadas. Quem vive sozinho faz os trabalhos individualmente, entretanto, mantém intensas

relações com os seus vizinhos, ajudando-se em algumas tarefas e compartilhando produtos

necessários para a subsistência cotidiana. Essa interação se dá também em grande parte de

seus momentos livres.

Os banhos acontecem, geralmente, logo ao final da jornada de trabalho. Algumas

pessoas lavam-se nos rios (existe um espaço feminino e outro masculino para a realização

desta atividade); outras o fazem no banheiro, se a casa onde acampam possui esse tipo de

infra-estrutura (alguns preferem banhar-se no rio, inclusive neste caso). Os rios oferecem água

para o cuidado pessoal, para a lavagem das roupas, entre outros usos, sendo as cacimbas

aquelas que provêem água para o consumo. Dois rios atravessam Cachoeira: um que fica atrás

do acampamento, e um riacho que cruza a frente das casas. No caso das cacimbas, as pessoas

mencionaram que existem três, todas localizadas a uma distância considerável da sede do

engenho, de maneira que elas requerem um investimento em caminhada.

É depois do banho, quando a noite começa dar os seus primeiros passos, que tem lugar

o jantar, em geral, a atividade final do dia. É a hora do descanso, que na casa da Luísa

costumava vir acompanhada dos programas de televisão (existe luz elétrica no acampamento),

os quais alguns acampados assistiam juntos em algumas ocasiões. A casa de Luísa, como já

dissemos, era um espaço de reunião. Desconheço se minha presença ali teve influência

considerável em relação a este tema.105

Retornando à questão de gênero, as circulações pelo espaço denotam trajetos

masculinos e femininos diferenciados. O trânsito das mulheres pelas áreas “públicas” do

acampamento responde a uma locomoção de trabalho. Fora dessa circunstância, sua

circulação em Cachoeira não tem razão de ser. É melhor ficar em casa, evitar os falatórios. A

circulação dos homens não provoca tais falações; eles podem deslocar-se pelo local sem

necessidade de um objetivo de trabalho. Espaços comuns, como os bancos de troncos diante

da Casa Grande, costumam agrupá-los para compartilhar alguns momentos livres. A casa de

Luísa e Tuca, por exemplo, constituía um centro de reuniões de alguns acampados, que

freqüentemente passavam por ali para conversar (conversas das quais Luísa participava de

forma ativa, já que se davam em um espaço que lhe pertencia). Nos casos que pude observar,

eram os homens que iam às feiras para vender os produtos e eram eles que iam ao INCRA na

hora de saber sobre o processo de desapropriação. Também eram eles que se dirigiam para as

reuniões com a CPT que não aconteciam em Cachoeira e a quem encontrei em uma ocasião

no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude (tinham ido ao lugar para se informarem

sobre um projeto de criação de gado). Da mesma forma, são eles que participam ativamente

das assembléias e tomam ali decisões (embora algumas mulheres se façam presentes, elas

105 No que diz respeito à organização cotidiana (organização horária, atividades, alimentação, entre outros fatores), observam-se importantes similitudes com o mencionado por Heredia (1979) que, como já mencionei, estuda uma população rural situada na Mata Norte de Pernambuco, próxima ao lugar onde localizei minha etnografia. Este me parece um dado importante de ser destacado, já que diz respeito a certas generalidades apresentadas pelos camponeses da região e ilumina alguns aspectos do acampamento quanto ao caráter camponês de quem acampa.

ficam em geral nas janelas, limitando-se a escutar). O “mutirão”, ao qual me referirei mais

adiante, é outra atividade exercida pelos homens.

O deslocamento das mulheres para além do acampamento é mais freqüente do que

dentro dele, embora, por causa da falta de dinheiro, isso não ocorra seguidamente. Assim,

visitam sua família de orientação (em geral, de forma mais constante que os homens), e

também se dirigem às urbanizações próximas (como Tupirama ou Açude) para fazer compras,

freqüentar a Igreja etc. Com essas viagens, os espaços “públicos”, que na Zona da Mata Norte

de Pernambuco estão associados normalmente aos homens (ver Heredia, 1979), convertem-se

também em local de circulação feminina. Ali, o espaço próximo torna-se mais perigoso que o

longínquo; o “fora”, o “público” nem sempre estão identificados com os lugares distantes, os

quais são, em muitos casos, mais íntimos que o espaço habitado. Esta situação é interessante

para repensar as fronteiras traçadas em função de critérios espaciais, para repensar os limites

do acampamento e, em conseqüência, o conflito. Se levarmos em conta a rede familiar que

atua no acampamento sem estar ali localizada e a circulação das mulheres por lugares

distantes, os limites espaciais se tornam confusos. O acampamento não é uma comunidade

estabelecida e delimitada, atravessada por relações de parentesco que se caracterizam por uma

“reciprocidade generalizada”, a qual se transmuda em “equilibrada”, à medida que nos

afastamos do setor residencial, até se tornar “negativa”.106 O acampamento nos obriga a

repensar “fronteiras”.107

Existe um obstáculo à circulação livre no acampamento e nas áreas próximas que

oprime tanto homens como mulheres. Ele tem a ver com a vigilância constante implicada na

vida no acampamento. Por questões de segurança, as pessoas procuram andar acompanhadas

e não sair à noite. Não são unicamente medidas que restringem a circulação as que são

adotadas visando à cautela. Todas as noites, quatro acampados homens permanecem em

vigília para cuidar do lugar. As vigilâncias são rotativas, uma vez por semana cada homem

tem seu turno. Isso não impede que no outro dia se dirijam ao roçado para trabalhar.

Como foi dito anteriormente, a concentração na sede do engenho também obedece a

questões de segurança. Por causa de roubos que aconteceram na casa de alguns acampados

que se encontravam vivendo a uma distância considerável da sede do engenho, foi feito um

agrupamento pouco tempo antes de eu começar meu trabalho de campo. Quando eu estava

106 Ver Sahlins (1969); o modelo que elabora o autor não é aqui aplicável. 107 Ao analisar diversas questões, autores como Sayad (1991) – que chama a atenção sobre a aldeia rural de origem ao pensar a situação do migrante na cidade – Williams (2001), Tepicht (1975), entre outros, apontam para os limites variáveis entre o campo e a cidade e oferecem ferramentas interessantes para se pensarem as fronteiras, o próximo e o distante, os espaços de dentro e os espaços de fora.

finalizando a etnografia, aconteceu uma nova concentração, fazendo-se ainda mais estreita a

distância entre as instalações dos acampados. Isso foi devido a um novo episódio de “tiroteio”

em Cachoeira. Em poucas palavras, deu-se o seguinte: uma noite chegou um grupo de homens

com armas (querendo roubar gado, segundo alguns comentários). Dirigiram-se para as casas

mais distantes e dispararam contra um jovem acampado que saiu de casa para ver o que estava

acontecendo. A bala roçou sua cabeça. Oito pontos. Logo, os tiros foram dados na direção da

sede do Engenho. Ninguém conseguiu ver quem era; chegaram quando já estavam escapando.

Uma semana depois, entraram na casa do jovem em questão e queimaram várias roupas

(inclusive aquelas em que se encontravam os seus documentos), mas tampouco viram quem

fez isso. As denúncias à polícia não geraram um movimento recíproco. Levantaram-se

algumas hipóteses a respeito da identidade do responsável. O acontecido deixou muito

nervosos os habitantes de Cachoeira, que intensificaram as medidas de segurança (entre elas,

as mudanças das pessoas que se encontravam mais distantes). A idéia de partir foi colocada

diversas vezes naqueles dias por alguns acampados.

Outras medidas preventivas são adotadas no acampamento. Não as descreverei aqui

para preservar os informantes. O importante é assinalar que no cotidiano de Cachoeira o

estado de alerta é uma questão permanente; estar “de tocaia” estrutura a vida no

acampamento, e não apenas diante da possível chegada de “bandidos”, mas também em face

da possível chegada da polícia. A vigilância, a sensação de ameaça fazem parte do dia-a-dia.

Ajudar108 seus pais e ir à escola são as atividades principais dos “filhos”, os jovens de

pouca idade que vivem no acampamento. Tupirama é uma pequena concentração urbana

próxima a Cachoeira, o lugar mais concorrido para ir à escola. Aquele é o ponto mais

próximo. Entretanto, alguns jovens se dirigem para Açude, já que em Tupirama a escola vai

apenas até a 8ª série e certas pessoas desejam continuar os estudos. A escola é um dos

motivos mencionados de forma mais constante para explicar a ausência das famílias de

Cachoeira; a distância e o caminho a pé para dirigir-se cotidianamente até a instituição são

dificuldades assinaladas pelos entrevistados. Torna-se mais difícil ainda para quem se dirige

para Açude. Assim, os filhos de Luísa, por exemplo, que freqüentavam a escola à tarde, iam

caminhando todas as manhãs para Tupirama e dali tomavam um transporte que chegava até a

estrada, lugar onde deviam pegar outro veículo com destino a Açude. Retornavam somente ao

final da tarde. Por segurança, os acampados cuidam para que os trajetos não sejam feitos

individualmente.

108 Uma análise das categorias de “ajuda” e “trabalho” se encontra em Heredia (1979).

Também o que está relacionado aos cuidados médicos constitui uma dificuldade

primordial que, em alguns casos, justifica a ausência das famílias do acampamento. O ponto

mais próximo de atendimento médico é Tupirama, entretanto, conforme o comentado, ele é

muito deficiente. Existe escassez de pessoal médico. As pessoas podem dirigir-se a um posto

de saúde, por exemplo, para tomar a pressão, mas a entrevista com o médico se torna

complexa. Isto se acentuou no período da minha pesquisa etnográfica já que, em função do

que me disseram alguns informantes, o médico era um candidato às eleições políticas que

iriam se realizar em setembro, o que ocupava o tempo destinado ao atendimento médico. Por

outro lado, é problemática a compra de medicamentos, devido à dificuldade de se obter

dinheiro no acampamento.

As pessoas não têm nenhum tipo de amparo se acontecer alguma emergência. As

distâncias entre os postos de atendimento médico e o acampamento são indiferentes às

dificuldades do corpo, e devem ser transpostas a cavalo ou a pé, a fim de se pedir uma

ambulância. Assim, quem fica doente em Cachoeira “morre” – este foi um comentário

repetido várias vezes por Luísa durante nossas conversas.

As compras devem ser realizadas em Tupirama ou em Açude. Tupirama é mais perto,

Açude é mais barato. Entretanto, o primeiro lugar demanda um tempo considerável de

caminho, enquanto o último inclui o preço do transporte. Existem algumas sociabilidades que

facilitam a ação de comprar. Dessa forma, por exemplo, um acampado realiza freqüentemente

compras em Tupirama para os vizinhos que assim o desejem. Isso é um prazer para ele, dizia-

me esse acampado, sendo gratificante a confiança que as pessoas depositam nele.

O transporte, as distâncias constituem complicações enfatizadas pelos acampados. O

acampamento localiza-se longe da estrada, configurando um trecho que, na maioria dos casos,

é atravessado a pé (a moto é outro meio de transporte, mas quase não é utilizada por causa de

seu custo). As longas distâncias implicam um tempo importante de caminhadas. Por outro

lado, há os custos dos transportes, que constitui outro dos obstáculos ao movimento espacial

das pessoas. O tempo de traslado, como já dissemos, traz dificuldades às dinâmicas

cotidianas: dirigir-se aos roçados, à escola, ao médico, à igreja, realizar as compras, entre

outras atividades, ficam agravadas pelas distâncias a percorrer. O adiamento das visitas às

famílias é uma das questões mais sentidas pelos acampados em relação aos transportes.

Todas as terças-feiras pela manhã os homens realizam um mutirão (como o reparo de

um caminho, de uma cacimba etc.). Essa tarefa é decidida nas “assembléias” que têm lugar no

mesmo dia, logo depois de terminado o mutirão. Alguns acampados adjetivaram esses dias

como “sagrados”, enfatizando que simbolizam um compromisso comum. Aproximadamente

às 7 horas da manhã, os homens se reúnem na sede do engenho de onde se dirigem ao local da

realização do mutirão. É de cerca de duas horas o tempo destinado a essa atividade, logo

depois da qual tem lugar a assembléia. Esta é uma reunião entre os próprios acampados que

acontece em um espaço público, reservado para fins coletivos: a sala da frente da Casa

Grande do Engenho,109 sala esta em que na maior parede está o chapéu de Amaro,

acompanhado logo abaixo da inscrição: “Amaro vive”.

Tive a oportunidade de participar de uma dessas reuniões. Estavam presentes os

homens e também algumas mulheres que participavam da janela, escutando o que se

conversava dentro da sala. As temáticas que ali se discutiam giravam em torno da organização

cotidiana do acampamento, da viagem que seria realizada a Recife (especificamente ao

INCRA) nos próximos dias em razão do processo de desapropriação de Cachoeira, assim

como foram esclarecidos alguns desentendimentos acontecidos entre os acampados em função

de questões coletivas. Na assembléia existia um moderador, que anotava os nomes das

pessoas que pediam a palavra e cedia o tempo para tal pedido na ordem correspondente ao

que havia sido realizado (as opiniões dessa pessoa tinham grande acolhida pelos ali

presentes). Cada um respeitava o tempo de exposição dos outros, dando as suas opiniões ou

respostas no momento indicado pelo moderador. Embora as discordâncias façam parte da

sociabilidade, elas não ocasionam, entretanto, a ruptura dos laços sociais criados no

acampamento, à exceção de alguns casos extremos em que tem lugar a expulsão de certa

pessoa ou ela se retira do acampamento por vontade própria. O primeiro caso não é freqüente;

em geral, existem certas regras implícitas e explícitas de convivência às quais os acampados

procuram se adequar. Embora não desapareçam as tensões, estas são aplacadas. A intervenção

da CPT é central no modo com que é organizado o acampamento; a Pastoral dispõe as pautas

básicas a serem seguidas na estruturação de Cachoeira.

Antes de serem realizadas as assembléias, os participantes são avisados através de uma

sineta, cujo toque gera um som utilizado não apenas para os avisos das reuniões, mas também

em face de qualquer dificuldade acontecida no acampamento, convertendo-se, assim, em um

instrumento de alarme que colabora no esforço de se ficar constantemente “de tocaia”.

Atualmente, não existem coordenadores no acampamento, embora apareçam figuras

que se destacam por sua participação mais ativa em assuntos coletivos (o que costuma ser um

fator gerador de tensão já que, ao colocar em jogo as disputas pelo poder, ameaça derrubar o

109 A frente da Casa Grande é um espaço de encontro coletivo; ali as reuniões têm lugar. Este foi também o primeiro sítio sugerido tendo como finalidade a minha hospedagem. Além disso, as pessoas me receberam e me ofereceram gentilmente uma despedida na Casa Grande. Todos esses eventos falam sobre a importância deste espaço.

objetivo de que “ninguém mande em ninguém”). O mecanismo organizativo baseia-se em

propostas discutidas em assembléias e decididas por meio de votação; o voto majoritário

finaliza o processo. Para ser tomada uma decisão, a assembléia em que isso ocorre deve

contar com a participação mínima da metade das famílias existentes no acampamento

(representadas por um de seus membros que, em geral, é um homem adulto). A organização

atual não é a mesma do passado, na qual a formação de associações e a figura dos

coordenadores fizeram parte das experiências organizacionais vivenciadas em Cachoeira.

Além das assembléias realizadas pelos acampados anteriormente descritas, há as

assembléias constituídas pela CPT, cujo procedimento é coordenado por um ou mais

trabalhadores da Comissão. Embora apresentem um ritmo contínuo, elas não têm uma

freqüência temporal precisa e acontecem tanto em Cachoeira como em outros engenhos de

Açude ligados à CPT. Em certas ocasiões, as reuniões acontecem com as pessoas de um

engenho em particular; em outros casos, absorvem os vários engenhos (Trindade-Santos,

Goitá, Montes Claros) ocupados pelo mesmo Movimento, gerando-se assim um contato entre

eles. Não há esse contato entre Cachoeira e os engenhos da Usina Açude ligados ao MST.

Essas assembléias adotam diversas formas, que vão desde reuniões relacionadas a questões

concretas do acampamento, até derivações mais abstratas, como “leituras bíblicas”. Participei,

por exemplo, de uma reunião no assentamento Montes Claros, realizada com o objetivo do

encontro entre os acampados e os assentados da CPT – nos engenhos da Usina Açude – com

um membro da FIAN que naquele tempo se encontrava no Brasil (por questões que não

diziam respeito ao assunto). Além de acampados e assentados dos vários engenhos e pessoas

relacionadas à mencionada organização internacional, ali estava o Padre Teodoro.

As outras reuniões coordenadas pela CPT às quais assisti foram as duas que deram

início à minha entrada no acampamento. Embora aquelas ocasiões tenham sido marcadas pela

minha apresentação, esta forma de agrupamento costuma ser realizada periodicamente em

Cachoeira. Nessas reuniões, conversa-se sobre a situação do acampamento, atualizam-se as

novidades, emitem-se algumas opiniões, fala-se de possíveis atitudes a serem tomadas, entre

outras questões. Foi a mesma pessoa da CPT que esteve presente nos dois eventos. A

disposição espacial era semelhante àquela das assembléias das terças-feiras: os homens dentro

da sala, sentados em círculo, as mulheres geralmente apoiadas nas janelas. Antes de ter lugar

uma reunião, os acampados são previamente avisados pela pessoa da CPT encarregada do

evento e as atividades cotidianas são abandonadas em função da assistência ao mesmo.

Os acampados também participam de eventos organizados pela CPT que não

apresentam relação imediata com sua situação específica e têm lugar em áreas distantes.

Certas manifestações como a “Romaria da terra” e o “Grito dos excluídos”, que tiveram lugar

em começos do mês de setembro, contaram com a presença de alguns acampados de

Cachoeira.

Para finalizar, considero importante agrupar as diferentes ramificações que foram se

abrindo através do anterior percurso pelo acampamento, expondo algumas reflexões em

relação ao tema que me ocupa no presente trabalho e que diz respeito aos diferentes registros

dos conflitos de terra. Vários pontos despertaram a minha atenção quanto ao modo com que o

conflito se delineia a partir da perspectivas das pessoas que vivem ou viveram em Cachoeira.

Certos elementos discursivos tornam-se centrais para a reflexão em questão. Em

primeiro lugar, cabe assinalar a personalização dos relatos. O conflito estrutura a vida das

pessoas que se encontram no acampamento; não é surpresa, portanto, que ele seja muitas

vezes inseparável da narração de suas experiências pessoais. Apresentações feitas em primeira

pessoa refletem o conflito, humanizando-o. Ele se imbrica, assim, entre os interstícios sutis do

cotidiano, tornando-se ele mesmo um aspecto do cotidiano. O conflito retorna vivido,

enriquece-se de emoções, funde-se com manifestações de sensações e histórias pessoais, de

sonhos e desejos, de pesares. Os limites arbitrariamente criados entre “o social” e “o

individual” apagam-se nessa personalização do conflito. O relato “social” estrutura-se tendo

como base a primazia da pessoa.

O conflito por terra reconcilia-se com a história pessoal, adquirindo desse modo uma

profundidade no tempo. Ele se torna contínuo, atravessa uma história de vida na qual a

pobreza material e a experiência de trabalho agrícola costumam ocupar um importante lugar.

O conflito contempla em geral um passado camponês que teve que ser abandonado, um luto

em muitas ocasiões difícil de ser superado. O campo constitui os habitantes de Cachoeira, é

parte de sua história. Tal constituição faz da busca da terra um retorno, uma aproximação com

o passado sempre presente. Acampar não é então uma questão conjuntural. Ao tornar-se parte

de uma vida, o conflito não apenas se personaliza, mas também adquire uma história,

atravessando uma linha de metamorfose que hoje tem a forma de acampamento.

A idéia de luta é central na estruturação do relato, no registro do conflito. Os

acampados estão “na luta”, cuja faceta positiva está impressa na busca: o desejo de viver da

terra, a concretização do enraizamento, o gosto pela vida no campo, a realização de certos

projetos. Viver em Cachoeira representa um ponto de satisfação a este respeito. A imagem

negativa da luta é mais extensa, mais pronunciada. As palavras que descrevem situações de

difícil trânsito tornam-se centrais na composição dos discursos sobre o cotidiano no

acampamento, tanto passado como presente. O conflito se faz vivido e a vivência é de

“sufoco”, de “agonia”, de “sofrimento”, de “medo”. É uma vivência de incerteza e esperas, de

“saudades” da família, de um passado que deixou mortos, de choques, de enfrentamentos com

outros. Existe um “usineiro” por trás de tudo isto, um “latifúndio” que mata. A lembrança de

tal figura se torna freqüente no acampamento. Certos detalhes espaciais a materializam de

forma explícita: uma cruz diante da casa de um ex-morador, que simboliza os mortos na luta,

um chapéu de Amaro na sala de reuniões da Casa Grande, que tem o seu lugar na parede junto

à inscrição “Amaro vive”.

É importante esclarecer que, embora de maneira recorrente, nem sempre o inimigo tem

a forma do “usineiro” para as pessoas que vivem em Cachoeira. Algumas vezes essa figura

não foi identificada pelos acampados com as pessoas que invadiram o espaço, ou com quem

havia algum desentendimento. Os inimigos são vividos como múltiplos, nem sempre

conseguem fundir-se com o “usineiro”. Esta fusão realiza-se nos discursos mais explícitos da

CPT, nos quais a variabilidade de pessoas que entram em confronto com os acampados

encontra uma figura que os unifica de maneira imutável: aqui o “latifúndio” é o inimigo

unificado, o “aleph”110 que conjuga a variabilidade.

Assim como o apelo em relação ao “usineiro”, a sinalização dos “companheiros” é

outra figura retórica utilizada em alguns discursos. Como destacamos mais acima, na narração

dos acampados e dos moradores o conflito se personaliza, adquire a profundidade histórica de

uma história vivida, derrubando limites entre o social e o individual. A “luta” narrada pelos

habitantes de Cachoeira tampouco respeita tais limites; em seus discursos, a luta diz respeito

tanto a um esforço comunitário como pessoal. A “luta pela terra” mistura-se com a “luta da

vida” e, neste sentido, acontece a “hibridização” (Comerford, 1999).111

Separar-se de suas pessoas mais queridas, adotando a “saudade” como dado de vida;

viver com medo: medo do “despejo”, medo dos “bandidos”, medo da perda do que foi

construído, medo do envenenamento das cacimbas, medo da consumação da ameaça do

triunfo do inimigo, utilizando o estado de alerta e a vigilância constante como uma atitude de

vida; sentir-se em terra “emprestada”, em “casas” que não o são, à espera da burocracia, à

espera da possibilidade de melhorar sua precária situação material, de poder desenvolver seu

trabalho sem os obstáculos da transição, transição esta que se torna um modo de vida – todas

110 A expressão é tirada de um conto de Jorge Luis Borges: “El Aleph” (El lugar donde están, sin confundirse, todos los lugares del orbe, vistos desde todos los ángulos (Borges, 2006:188)). 111 No capítulo I do livro, Comerford estabelece analiticamente uma distinção entre três usos da palavra luta em relação a diversos contextos e discursos. Um dos critérios de diferenciação entre os dois usos mencionados aqui se refere ao pessoal/comunitário da luta. Enquanto “o discurso da 'luta pela terra' enfatiza o caráter 'comunitário' do enfrentamento das dificuldades e a importância da união, […] nas narrativas da luta cotidiana, os pobres enfatizam sobretudo seu próprio esforço pessoal […]” (Comerford, 1999:32).

estas são situações que compõem o cotidiano do acampamento; situações evocadas nos

discursos dos habitantes de Cachoeira e que descrevem o conflito a partir do ângulo que seu

registro permite iluminar, ou seja, a partir do ângulo da experiência pessoal.

O acampamento implica, assim, um estado de resistência constante. Uma resistência

que se torna intersticial, uma luta que se impregna dos detalhes cotidianos. Significa

“agüentar”. As pessoas constroem vida, laços, roçados e, por um ou por outro motivo, elas os

abandonam. Não é fácil permanecer acampado, as entradas e as saídas são freqüentes, a vida

errante se abre neste transitar. O conflito transcende o espaço.

O acampamento é um espaço móvel. Um espaço de resistência. Demanda para as

pessoas uma luta que traz com ela o selo da transição, uma luta que imprime no espaço a

conotação de processo. Os acampados plantam apenas uma mínima parte da parcela que ainda

não é sua, habitam casas temporárias, intercambiáveis, atravessam um processo de

desapropriação, muitos se separam “momentaneamente” de suas famílias. A vida no

acampamento se constrói a partir da transição, edifica-se em meio à correnteza, sua força

impede a estabilidade. A fluidez é uma marca da vida em Cachoeira, como também o futuro,

razão de ser do presente. O acampamento se sustenta por um projeto, e esse projeto, esse

sonho, adquire uma forte presença no imaginário que ali circula. O espaço do acampamento é

transcendido e o tempo ali vivido é explicitamente sentido como uma transição.

É importante assinalar uma diferença entre os acampados e os moradores no que diz

respeito à vivência da transição. Além de ter sido estabelecida uma clara delimitação entre

moradores e sem-terra nos começos do acampamento – embora atualmente não haja uma

diferenciação social entre uns e outros – existe de fato um traço marcante nos moradores que

não se encontra em todos os sem-terra (embora alguns destes últimos apresentem esse traço)

que considero importante destacar. Ele diz a respeito à permanência no lugar. São dois os

moradores, antigos habitantes do lugar, que se encontram vivendo em Cachoeira. Além dessas

duas figuras, conheci outros ex-moradores que já não habitam mais ali. Seus discursos

enfatizavam um elemento comum a todos eles, inexistente em grande parte dos sem-terra: o

vínculo com Cachoeira, vínculo este que fala de uma história de vida, que expressa a idéia de

enraizamento. Embora isto não retire o estado de transição que implica a situação de viver em

um espaço “em processo de”, tampouco elimina a diversidade de situações: para os moradores

de Cachoeira que atualmente vivem ali (como também para uma parte dos acampados), a casa

em que habitam é a “sua” casa. Cachoeira é a sua casa.

Os habitantes do lugar experimentam múltiplas existências. O conflito não termina nos

limites do acampamento, transcende a ele. Transcende para a sua casa “na rua”, para aqueles

que têm família longe, para os que lidam com a situação de estar em um espaço e viver no

outro. Transcende para outros acampamentos e assentamentos, para os Movimentos Sociais e

também para o mundo da administração, do poder burocrático. O papel definidor do processo

de desapropriação na hora de determinar a estadia, a terra onde plantar e onde transcorrer o

cotidiano, faz das instituições encarregadas do processo, particularmente do INCRA, um

agente presente. A burocracia impõe a dependência. É um agente longínquo que decide, um

mundo com lógica própria e poder de definir as situações. A burocracia significa espera.

Significa também lentidão. É a lentidão decisória da situação. A burocracia ofusca o

movimento, a luta dos acampados, impõe um mundo de papéis cuja lógica se torna

dificilmente explicável. O registro institucional do conflito expande-se, seus conceitos

pulverizam-se, as linguagens técnica, judicial e administrativa circulam no acampamento

deixando entrever palavras como “vistoria”, “benfeitorias”, “desapropriação”, “processo” nos

relatos de seus habitantes. Entretanto, nessa difusão não funciona apenas uma imposição, pelo

contrário, a desapropriação de Cachoeira iniciou-se a partir de sua ocupação, a expansão da

narrativa burocrática é o resultado de uma luta.

Ao falarem sobre o processo administrativo, os acampados enfatizaram diversas

questões. O mal-estar a respeito do ocorrido com a desapropriação de Cachoeira era uma

delas. O processo tinha “sumido”, estava “morto”, “enterrado no fundo do poço” há anos e

eles não sabiam a respeito (tampouco tinham clareza sobre quando o processo de Cachoeira

parara). Fazia pouco tempo, aproximadamente um mês – ao sair a “imissão de posse” de

Goitá – que as pessoas se inteiraram daquela situação, apesar de suas idas constantes ao

INCRA durante todo esse tempo. Alguns acampados adjetivaram aquele evento de “uma

enrolação”, “uma fraude”. Fez-se menção a proprietários de terras que “compram”

funcionários, apesar de entre estes haver também muitas pessoas boas, embora o resto “não

conte”, falaram. Os subornos impedem os excluídos de terem acesso à justiça, opinou um

acampado. O processo os deixava assim “à deriva”: “Ninguém sabia de nada (...) e o

trabalhador rural ficava (igual) navio, ficava à deriva”.112

A espera era outra questão. “Esperar que saiam as terras” era uma frase generalizada.

Às vezes se falava de esperar a terra sem nomear a instituição (o que freqüentemente

acontecia com as mulheres). A lentidão que implicava a espera foi também uma opinião

visitada de maneira recorrente. Ter paciência e aguardar as terras: este, diziam, era um

objetivo a ser alcançado, apesar do medo que lhes provocava depender de algo do qual pouco

112 A última citação corresponde às palavras de Seu Almeida, atual acampado de Cachoeira.

sabiam, algo que se encontrava fora de seu controle. Esperar que no INCRA se resolvam as

coisas, que ali se tenha a “vontade” de fazê-lo. Esperar serem tocados pela “sorte”. Esperar e

agüentar; só se conseguem as coisas lutando, dizia-se. Nesses casos, não era a relação

estabelecida com o INCRA o aspecto que se destacava ao falarem da luta; tal relação se

perdia em meio à resistência cotidiana no acampamento (e não apenas no acampamento).

A incerteza que esta situação de espera gerava costumava ser acompanhada de

conjecturas a respeito do futuro. Conjecturas, nada certo, nada claro. Dessa maneira, as

decisões de permanecer ou não no acampamento não contavam com o dado administrativo

sobre o estado das terras. Por exemplo, Túlio, um acampado, expressou seu desejo de ir

embora; fazia mais de dois anos que estava no acampamento e nada acontecia quanto à

situação legal das terras. Isto tornava as circunstâncias muito difíceis devido ao fato de as

plantações serem escassas e a venda dos produtos do roçado ser inexistente, salvavam-no os

bois. Aqui, o tempo e a experiência em Cachoeira são os indicadores a serem levados em

conta na hora de decidir sobre a permanência. Os acampados não contam com um

conhecimento claro sobre a situação do processo administrativo; o que acontece na burocracia

se revela apenas em retalhos, de forma que a possibilidade de decidir com base nisso torna-se

vã.

Estas questões falam sobre o modo com que a existência administrativa do processo

de desapropriação é vivida por parte dos habitantes de Cachoeira, protagonistas da história.

Um mundo poderoso, fechado à sua intervenção, abre-se. Uma intervenção que não possui

maior espaço de ação do que o de informar-se de forma rudimentar (já que nunca se sabe o

que se passa na realidade). Este é um mundo que tem um pouco de invisível, um pouco de

fictício. Não é muito o que se sabe dele.

Entretanto, se por um lado essa vivência enfatizava a sensação de estarem “avulsos”,

“sem direitos, nem segurança”, de estarem “à deriva”, na espera, por outro, a desapropriação

era vivida pelos acampados como um objetivo a ser obtido por meio de sua própria ação.

Tinha sido a ocupação que havia conseguido que Cachoeira entrasse em um processo, e era

necessário seguir lutando para ganhar a terra, lutando além do acampamento, no INCRA.

“Vamos seguir indo”: os comentários das pessoas enfatizavam assim a necessidade de ir ao

INCRA para escapar da calma e da lentidão burocrática, para que o processo não

permanecesse “esquecido” (apesar de lhes ser difícil o transporte). Fazia-se necessário ir, para

que a sua situação administrativa não ficasse parada, diziam. E isto não se percebia apenas em

comentários, pelo contrário, as idas à instituição foram um fato durante o tempo em que estive

em Pernambuco. Idas que traziam novidades administrativas, as quais falavam, em geral, do

encaminhamento do processo para a efetiva desapropriação. Mas ao constatarem a demora do

encaminhamento em relação ao que fora informado, quando os acampados, logo depois de

transcorrido o dia marcado, inteiravam-se de que o processo não tinha fluído da mesma forma

que o tempo, as datas pronunciadas não haviam se cumprido e as informações ficavam presas

ao “ainda não”, o desconcerto se fazia de novo presente. Assim ocorreu, por exemplo, com o

envio do processo a Brasília, que sempre era adiado. Entre outras sensações e apesar do

transtorno, a situação produzia firmeza na atitude dos acampados; as idas ao INCRA deviam

continuar. As palavras ditas por Seu Almeida são exemplificativas:

Seu Almeida: Agora nós vamos ter conhecimento, porque nós agora vamos ter que debater e ficar acima do INCRA. (...) E nós vamos lutar por essa causa; de 15 em 15 dias, de mês em mês, vamos estar lá, perto, (...), por nossa conta, porque se não fizer assim, o processo não anda. Quem se cala consente, né? Se não está andando e o povo está calado, então está satisfeito, deixa lá. MFF: Você foi na quarta passada? Seu Almeida: Fui, lá no Incra. MFF: E agora vão de novo? Seu Almeida: Vamos de novo, na quinta-feira está indo mais uma equipe para lá, para ver como está a situação. Vamos deixar primeiro ir para Brasília, vamos dar três dias para o INCRA, depois que for para Brasília, e aí nós vamos lá saber se o processo seguiu ou não, ou se está parado aqui. Se estiver parado, a gente vai novamente, um grupo de pessoas daqui, um ônibus, dois ônibus, vamos lá. (...) Vamos de Cachoeira, de Goitá, de Trindade, de Montes Claros, (...) então junta todos e a gente faz um movimento bem reforçado e ocupa o INCRA, para reivindicar nossos direitos, nossas causas, porque se a gente ficar parado, os fatos não acontecem, o final da história é essa. (...) A gente quer ter uma resposta concreta se o documento entrou em processo na brigada em Brasília; nós vamos na próxima quinta-feira; depois a gente vai dar mais 15 dias. Depois de 15 dias, nós vamos lá de novo, para ver se o processo continua andando ou se parou lá, se chegou lá e estacionou. Se estacionou, a gente vai ter que arengar (...) para o andamento do processo.

Desse modo, os acampados visualizam sua luta como um fator central no processo de

desapropriação. É esta luta que move o processo, que o faz existir e o acorda de sua

catalepsia. A burocracia é vivenciada como um mundo poderoso, incontrolável e secreto, do

qual se depende, mas também como um mundo cujo hermetismo é capaz de ser alterado se

aquilo de que se trata é lutar. Os acampados se percebem potencialmente transformadores; sua

ação se torna central na hora da desapropriação. E esta ação é experimentada como a pequena

parte de uma luta mais ampla.

Umas últimas palavras quanto ao duplo registro que os acampados apresentam em

relação ao Movimento, à CPT, no caso que nos ocupa. Ela é tanto um grupo de referência,

como um dado externo. Desse modo, as pessoas experimentam uma relação ambígua a

respeito: em certas ocasiões, são parte do Movimento, mas não em outras. Existe um discurso

explícito que apela para a definição de ser um acampado da CPT. Entretanto, existe também

um discurso vivido, espontâneo, que tende à separação entre os acampados e as pessoas do

Movimento. Neste último discurso, a CPT é constituída por seus trabalhadores, pelas pessoas

que chegam a Cachoeira vindas de Recife, pessoas diferentes, que vivem em um mundo

diferente, que levam uma vida diferente e que, junto aos acampados, participam de maneira

importante no que diz respeito às questões do acampamento.

Capítulo III

O CONFLITO EM DISPUTA: A DENÚNCIA

A ambigüidade existente no que diz respeito ao pertencimento à CPT por parte das

pessoas que vivem em Cachoeira – ambigüidade que os une, ao mesmo tempo em que os

separa da organização – torna pertinente a consideração do registro que a CPT elabora sobre o

conflito. Partirei das documentações escritas que a Comissão possui em relação aos casos da

Usina Açude. O discurso oral que os trabalhadores113 deste agrupamento elaboravam em torno

do conflito identificava-se em seus traços mais gerais com o explicitado nos papéis. Ao

explorar pontos de cruzamento e diferenças entre esses documentos e o relato dos acampados,

pretendo trazer alguma luz ao registro dos agricultores habitantes de Cachoeira que analisei

no capítulo anterior, tentando clarear certos trechos surgidos da vivência cotidiana e alguns

pontos de reflexão provenientes de um olhar mais externo, um olhar estruturado no

Movimento. Farei desta forma algumas menções à documentação que recolhi em Recife, na

sede da CPT Nordeste.

A documentação consultada, que não esgota os arquivos da CPT, está organizada em

um conjunto de três pastas dedicadas à “Usina Açude” e separadas em ordem cronológica.

Minhas considerações não abrangem a totalidade dos papéis, já que não consegui fotocopiar

tal quantidade114 e se limitam, quanto ao tempo, aos finais do ano de 2001. Fevereiro de 1998

é o ponto de partida, o início da história.

Nas mencionadas pastas percebe-se um movimento de fusão. O caso é o da Usina

Açude. As várias ocupações realizadas dentro de sua propriedade fazem parte do conjunto. As

informações que ali se encontram referem-se tanto aos engenhos particulares, como a dados

generalizados que sublinham a idéia de unicidade, idéia esta que se define com o nome da

Usina.

Na Introdução referi-me aos convites feitos pelas pessoas da CPT para que conhecesse

aquele mundo pernambucano. Havia, por um lado, os seus convites para que eu me

113 Utilizo esse termo na ausência de outras categorias. O que tento através dele é diferenciar os sem-terra que se encontram acampados das pessoas que trabalham na CPT e não são acampados nem assentados (desconheço se a totalidade desses trabalhadores recebe remuneração). 114 No momento da pesquisa de campo não considerei tais documentações, nem tampouco a CPT como um objeto de análise. Minha consulta ao material tinha fins meramente informativos sobre o acontecido em Açude, razão pela qual não me preocupou a realização de cópias exaustivas. Tampouco fui sistemática a respeito da seleção do fotocopiado. Apropriava-me do que me parecia de utilidade para esclarecer a história.

familiarizasse com a região: com eles eu visitei alguns sindicatos da Mata Norte, participei de

reuniões realizadas em outros engenhos da Usina Açude, fui à sede da Usina e ao Ministério

Público, além de ter sido convidada para participar do Grito dos Excluídos, da Romaria da

Terra e de uma conferência que o Padre Teodoro daria na Universidade. Por outro lado, a

CPT sugeria um grande leque de pessoas com quem conversar e fontes às quais consultar: os

advogados que trabalhavam com o caso que estava pesquisando, a Promotora de Justiça de

Açude, os arquivos disponíveis na sede da CPT. Um enorme leque abria-se através de suas

sugestões, expandindo meu campo etnográfico. Assim como o conjunto de documentos sob o

nome de “Usina Açude”, esses convites e essas indicações falavam de um registro do conflito:

um conflito que se expandia, e se expandia de um modo diferente de como acontecia nos

relatos dos habitantes de Cachoeira em que se fundia com as histórias pessoais,

transcendendo, com os sem-terra e os moradores, as datas de início do acampamento e os

espaços concretos (o último principalmente com os sem-terra). O conflito é agora o da Usina,

e Cachoeira é uma parte dele. Mais estritamente, também a Usina é um fragmento, o conflito

é o latifúndio.

Dessa maneira, o conflito que estudava não podia restringir-se na CPT ao espaço de

Cachoeira nem ao espaço do INCRA. Cachoeira era apenas uma fração daquele mundo mais

amplo de conflitos. Esse mundo encontrava-se agora repleto de referências, de âmbitos

diversos que faziam parte do campo de luta em que a CPT se desdobrava e em relação aos

quais essa entidade contornava a sua apresentação do conflito. Este ponto será explorado ao

longo do capítulo.

É no meio de outras experiências, então, que a história de Cachoeira se reconstrói nas

pastas consultadas. Ali figuram alguns episódios contados pelos acampados. A reconstrução

adquire formas diversas, colore-se com notícias da imprensa, de documentos burocráticos, de

folhetos de denúncia, de notas, cartas e comunicados, entre outros tons. Além de adquirir

formas diversas, os papéis provêm de variados espaços: INCRA, usinas, jornais, advogados,

polícia, CPT etc. E conservam uma precisão na cronologia do calendário. Entre estes escritos

provenientes de outras entidades e que se incorporam aos arquivos da CPT, encontram-se, por

exemplo, documentos produzidos pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude (junto

aos quais estão documentos da Polícia Civil, uma nota enviada por esse mesmo Sindicato ao

Juiz de Direito da Comarca de Açude, certidões do cartório de Açude, entre outros papéis);

documentos da Delegacia de Polícia Civil de Açude nos quais figuram denúncias feitas pelos

acampados; documentos elaborados pela Usina Ubaúna denunciando os sem-terra (“croqui da

área de feijão localizado no engenho Cachoeira” assinado por um topógrafo e um agrônomo,

queixas na Delegacia de Polícia de Açude e uma nota enviada ao Superintendente Regional

do INCRA); documentos provenientes do Ministério Público do Trabalho que dão conta do

desenvolvimento da denúncia da CPT em tal Ministério (atas elaboradas pelos funcionários

desse Ministério: termos de denúncia, termos de audiência); documentos originados no

INCRA, os quais dão informações sobre os processos de desapropriação;115 e fragmentos de

jornais, que enfatizam episódios relacionados às manifestações dos sem-terra. Neste capítulo

serão analisados os documentos produzidos pela Comissão, objetivando iluminar a visão que

a CPT tem do conflito, como assinalei anteriormente.

Não é qualquer episódio que ali figura. Não é a fluidez cotidiana o que é contado. Pelo

contrário, são os eventos mais ruidosos aqueles que ganham lugar. Dessa maneira, e no que

diz respeito especificamente à Cachoeira, deparei-me em minhas leituras das documentações

com os “tiroteios”, o “despejo”, a derrubada da cerca, as ameaças do “fazendeiro vizinho”

(esses acontecimentos não eram contados da mesma forma que os habitantes de Cachoeira o

faziam, como se verá mais adiante). Tropecei em vários nomes próprios mencionados nos

relatos dos acampados. E tropecei em mim mesma, “traduzindo”, em função desses papéis, as

histórias ouvidas em Cachoeira – tentando entender a partir do meu registro, tentando colocar-

lhe uma ordem cronológica que permitisse me situar, tentando localizar as pessoas

mencionadas dentro de meu esquema: quem são os sujeitos mencionados pelos sem-terra?

Usineiros? Vizinhos? Comerciantes? Imobiliárias? Deputados? À medida que conseguia

realizar esse movimento, eu era invadida de certa satisfação. Parecia que entendia mais, que

me aproximava de uma exatidão em relação à história. Decodificava assim as histórias vividas

que os acampados contavam para mim, e o fazia a partir de uma linguagem que não era a dos

acampados.

Queria reconstruir a história do acampamento. E acreditava que aquela história poderia

se fazer de uma única maneira: misturando as informações legais, formais, das

documentações oferecidas pela CPT com as narrativas dos acampados. Acreditava que

poderia chegar a uma história absoluta do acampamento quando, de forma paradoxal, era o

registro diverso de um conflito o objetivo de minha tese, registro que trazia com ele a

exposição de vários mundos. Uma contradição interna com minha busca que me perseguiu

durante todo o campo.

Nos papéis da CPT encontrei de certo modo uma explicação que se enquadrava nos

meus códigos. Nas conversas com os trabalhadores da Comissão eu me deparava com a

115 É de se destacar a aquisição de documentos do INCRA nos arquivos da CPT e não no primeiro espaço.

mesma coisa. Queria entender a história a partir de um registro mais consagrado, isto é, um

registro exato, explícito em datas, em localização de pessoas, de instituições, de responsáveis,

explícito em informações legais. E me dei conta disso: eu consagrava uma maneira de narrar a

história, precisava de sua “tradução formal” para entendê-la. Sem me dar conta, queria chegar

a uma “verdade” estabelecida em papéis. Essa foi uma inquietação implícita em minha

experiência etnográfica, uma limitação que me parece importante assinalar, entre outras

coisas, porque registra a força que ganham certas narrativas na hora de se contar uma história.

As narrativas hierarquizam-se. Certas maneiras de contar impõem-se, ganham mais

credibilidade do que outras. O mundo que descrevem se faz aceitar junto a elas. E sem me dar

conta, minha preocupação com uma história “formal”, que proporcionasse “exatidão” à

narrativa dos acampados, fez-me cair na adoção daquela hierarquia.

Foi essa preocupação que me levou a indagar nas documentações da CPT. Seus

arquivos me ofereceram um pouco dessa história pretensamente exata. Deparei-me ali com

dados precisos em datas, com informações administrativas oriundas de diversas entidades,

como as mencionadas anteriormente. Ofereceram-me, além disso, um discurso explícito de

denúncia. Nos dados e nas notas “provenientes de e dirigidas a”, visualizavam-se também

alguns interlocutores em relação aos quais se construía um mundo, um outro mundo do

conflito. Assim, foi-me revelado através dos documentos um novo registro, uma nova

história. Sem pretender ser exaustiva nem manter uma ordem quanto à localização dos papéis

nas pastas, tentarei descrever alguns dos elementos que compõem esta nova visão.

As denúncias explicitamente formuladas pela CPT (a qual se faz acompanhar, em

algumas ocasiões, de outros co-autores, como o MST e a FETAPE) têm uma presença

reiterada entre os papéis. Embora a redação de cada uma delas varie (algumas são redigidas

tendo como objetivo a denúncia formal no Ministério Público do Trabalho, outras são

comunicados à imprensa, entre outras formas), os argumentos se mantêm. As “graves lesões a

direitos individuais e trabalhistas” que “estão ocorrendo relativamente a centenas de

trabalhadores rurais demitidos pela Usina Açude nos últimos anos, nos municípios de Açude,

Nossa Senhora da Mata, Ubaúna e Ibaté”,116 desenvolvem-se em vários pontos. As dívidas da

Usina com os trabalhadores despedidos (e outros organismos) estão entre elas:

Com as atividades industriais paralisadas desde 1996, a Usina Açude demitiu, sem indenizar, mais de mil trabalhadores. Possui um dos maiores

116 Denúncia apresentada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (FETAPE) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Ministério Público do Trabalho. Recife, 12 de junho de 2000.

endividamentos do Estado, totalizando, a valores de janeiro de 1998, R$ 250 milhões de dívidas trabalhistas e públicas. Possui um patrimônio com apenas 7 mil hectares de terras improdutivas e instalações deterioradas, os seus bens não chegam a valer R$ 10 milhões. 117

Outro dos pontos enfatiza a “fraude” cometida pela Usina e outras entidades:

Para evitar a desapropriação e para lesar os seus credores, a Usina Açude tem cometido diversas fraudes e violências, no que tem contado com a omissão ou com a colaboração de autoridades públicas. Na Justiça do Trabalho homologou acordos trabalhistas ilegais, com terras supervalorizadas e direitos dos trabalhadores subdimensionados, gerando minifúndios e aprofundando a miséria. Ou seja, recebendo lotes inferiores, muitas vezes a 0,5 hectare, os trabalhadores ficam sem perspectivas de uso até para a subsistência. Além do mais, esses acordos consideraram, sempre, cada hectare de terra em valor pelo menos três vezes superior ao seu valor de mercado, ou seja, tomando-se cada hectare por uma média de R$ 2.000,00 e no tamanho inferior ao permitido para escrituração em cartório.118

As agressões praticadas pela Usina com os moradores e os acampados e com as

famílias que se encontram na zona em conflito é outro aspecto da violação aos direitos

humanos denunciada pelos Movimentos.

As famílias vivem sofrendo ameaças por parte de homens armados a mando da usina, despejos são efetuados, inclusive dos moradores, com posterior destruição dos roçados e envenenamento das terras e da água. 119

Deste modo, conta-se nos documentos que prosseguiu “a operação fraudulenta levada

a cabo pela Usina Açude",120 apesar das denúncias:

Tendo em vista a etapa subseqüente da fraude: gerar minifúndio, miséria e depois reunir os imóveis forçando a venda por parte dos trabalhadores famintos e sem perspectivas […]. Passando fome e desesperados, são compelidos por “laranjas” da Usina Açude a “vender” os lotes adjudicados, trocando-os por eletrodomésticos em lojas comerciais da Região e por outros bens de valor inferior.121

A menção às dívidas da Usina, à “fraude” cometida na Justiça do Trabalho e às

agressões que estão sofrendo os trabalhadores constituem argumentos centrais da denúncia

realizada pela CPT e pelos Movimentos em relação ao conflito da Usina Açude. Entretanto, as 117 Resumo informal da denúncia anterior, assinado pela CPT e pelo MST. Intitula-se “MST e CPT denunciam ao Ministério Público Fraudes da Usina Açude”. Recife 12 de junho de 2000. 118 Idem nota anterior. 119 Nota à imprensa. 10 de maio de 1999. 120 Idem nota 116. 121 Idem nota 116.

denúncias são várias e redigidas em datas diversas. Nessas tantas denúncias visualizam-se

outros pontos. Podemos mencionar, assim, a crítica às “autoridades policiais” que “não atuam

com agilidade e firmeza”122 diante da denúncia das agressões sofridas pelos trabalhadores; à

Justiça do Trabalho pelo fato de “ter admitido ser instrumentalizada nessa operação e […] ter

renunciado totalmente aos deveres constitucionais, que lhe são inerentes, como instância

protetora dos trabalhadores e dos seus direitos”;123 ao Cartório de Açude por sua “lentidão”

para entregar ao INCRA os documentos necessários ao processo de desapropriação.124

As “lesões a direitos individuais e trabalhistas” encontram-se estreitamente associadas

neste discurso à ocupação das terras da Usina:

Cansados de esperar pelo pagamento dos seus direitos, os moradores juntaram-se a outros sem-terra da região e ocuparam os engenhos da Usina (Remanso do Capibaribe, Carcará, Rio Claro, Montes Claros, Trindade, Goitá, Ponte, Esperança, Baixa do Rio, Terra Verde, Cavalo do Cão, Açucareiro , Laurentino, São João e Privilegio), e iniciaram o plantio de lavouras […]. As famílias sem-terra de Açude convocam a população a apoiar a luta por terra das famílias que dedicaram 50, 40, 30, 20 anos de suas vidas trabalhando no plantio e no corte da cana, pegando sempre no pesado para o patrão e, no final das contas, tiveram seus direitos desmerecidos.125

O trecho anterior e outros papéis que encontrei nas pastas, além de mostrarem um dos

pontos centrais do discurso explícito elaborado pela CPT em relação ao caso da Usina Açude,

oferecem um traço desse discurso que também se fez presente em minhas conversas com os

trabalhadores da Comissão. Este traço destaca a autonomia dos sem-terra e dos moradores na

ocupação e na organização do acampamento e mostra algumas ambigüidades a respeito da

relação entre a CPT e este último espaço. Aqui, a CPT apresenta-se como uma entidade

externa que apóia os trabalhadores, seu protagonismo desaparece. Não obstante, em outras

ocasiões, como nos episódios narrados pelos moradores e pelos sem-terra no capítulo anterior,

ao lado do papel protagonista dos acampados, a CTP também foi apresentada, de maneira

geral, como um ator central na organização do acampamento. A esse respeito, observa-se uma

ambivalência quanto à referência que fazem os acampados sobre a Pastoral, ocorrendo que ela

é vista às vezes como uma entidade externa que apóia a sua ação, ao passo que em outros

momentos os acampados se consideram parte da CTP, a qual se torna então indissociável da

luta que levam a cabo. Realizarei um pequeno parêntese para me referir a esta questão.

122 Idem nota 117. 123 Idem nota 116. 124 Idem nota 119. 125 Idem nota 119.

Nas comunicações de ocupação enviadas à imprensa, por exemplo, são as “famílias de

trabalhadores sem-terra” – que se “juntaram aos moradores”, como se destaca às vezes –

aquelas que ocupam a área. Nesse processo, a CPT aparece como um ente externo que se

limita ao “pedido de solicitação de vistoria”.

No caso da ocupação narrada por um sem-terra, exposta no capítulo anterior, a CTP

foi vista como um espaço fundamental de sua organização, tanto na proposta de acampar em

terras da Usina Açude – e junto a isto a proposta de assumir a identidade de sem-terra – como

na maneira de ser estabelecida a ocupação. A presença de alguns trabalhadores da CPT, a

presença de um “apoio” proveniente de outros acampamentos e assentamentos da mesma CTP

e do MST que ficaria de forma temporária para “ensinar” às pessoas novas neste tipo de

experiência, são traços indicativos a respeito.

E não apenas na ocupação os acampados avaliaram um desempenho central da CPT

que ia além de sua constituição como um espaço de apoio. Alberto, um sem-terra que se

encontra desde o tempo da segunda “turma” em Cachoeira, contou-me sobre a sua

proximidade com a bebida alcoólica, a respeito da qual os trabalhadores da CPT chamaram a

sua atenção. No comentário de Alberto, a Comissão se fazia indissociável do estabelecimento

de certos padrões morais necessários de serem adotados para a permanência no acampamento.

No capítulo anterior, Dorival contava que logo depois da morte de Amaro seu retorno

ao acampamento foi o resultado de um pedido da CPT ao “mais velho, para indicar os novatos

que fossem chegando”. A discussão mencionada por este entrevistado sobre a instalação da

segunda “turma” de acampados é indicativa desta visão de inseparabilidade da Pastoral e da

luta levada a cabo. Discutia-se ali se a implantação do acampamento se realizaria com a

utilização das casas do engenho, ou se seriam montadas barracas. Era a CPT que discutia o

assunto.

Dorival: É porque quem queria botar na lona é Sílvia [uma funcionária da CPT], [...] porque ela disse que esse aqui não estava parecendo com acampamento, porque esse aqui está se parecendo com uma moradia de engenho, porque sem-terra só prestava na lona. Ela mandou fazer uma vila aqui, de casa, tudo barraco de lona. Aí ela disse: de dia ficava tudo aqui dentro da lona, embora de noite se passasse para dentro do barraco, para dormir dentro do barraco de telha. Mas de dia estivesse aqui, porque se passasse qualquer um, via tudo na lona, aí é sem-terra. Mas aqui, disse ela, que não estava se mostrando como sem-terra, e sem-terra não pode antes de ser assentado, antes de fazer a casa dele, não pode morar em casa de telha. MFF: Por quê? Dorival: Não sei, sei que ela falou, né? Só podia morar em lona, que sem-terra é assim. [...] Ela disse que aqui é a mesma coisa que morador, que está

morando em casa de telha sem estar acampado, sem nada, mas o Movimento disse não.

Não pretendo ser exaustiva com os exemplos; procuro citar alguns para dar uma idéia

a respeito de certas ambigüidades que surgem em relação à participação da CPT na

organização do acampamento, as quais podem relacionar-se, por sua vez, com as

ambigüidades visualizadas no discurso dos acampados a respeito de seu pertencimento à

Comissão – a CPT como uma entidade externa ou como um grupo de pertença. Nesse

discurso, por um lado os acampados são a CPT, entretanto, em outras ocasiões, a CPT é

aquele grupo de Recife que apóia o protagonismo dos sem-terra no desenvolvimento do

acampamento, mas que além disso tem em geral uma grande participação na organização

desse espaço.

Voltando ao argumento central, o discurso explícito da CPT em relação ao conflito da

Usina Açude constitui-se em tom de denúncia, em um tom de hacer saber públicamente la

situación irregular de una cosa (Dicionário Kapelusz, 1980: 167).

Como exposto anteriormente, encontrei nos documentos denúncias escritas que

reproduziam o discurso falado dos trabalhadores da CPT quando me contavam sobre o

conflito da Usina Açude. A não-indenização dos trabalhadores da Usina, a fraude cometida na

Justiça do Trabalho e as agressões, os assassinatos e os roubos acontecidos em Cachoeira (em

Cachoeira, porque em geral minhas perguntas se referiam a este engenho) eram pontos

centrais ao se falar do caso. Somava-se às conversas a crítica à lentidão do INCRA e

comentava-se sobre a sua postura injustificada a respeito da exclusão-desaparecimento, nos

processos de desapropriação, do acampamento em questão.

As “violências” acontecidas em Cachoeira como em outros engenhos (nos quais não

me deterei) constituíram-se parte fundamental do relato de denúncia. Como mencionado, o

fato de terem existido assassinatos, por exemplo, foi uma das primeiras coisas que se

destacaram quando me sugeriram Cachoeira para essa pesquisa. As violências sofridas em

particular pelos habitantes do engenho estudado figuram em alguns dos textos de denúncia

geral sobre o caso da Usina Açude:

Após diversas violências e ameaças ocorridas no ano de 1999, recentemente, no mês de maio de 2000, vários pistoleiros, com armas de grosso calibre, invadiram o Engenho Cachoeira, durante a noite, disparando tiros contra os trabalhadores sem-terra e suas famílias, tendo sido atingido um dos trabalhadores com um tiro de espingarda 12.126

126 Idem nota 117.

Dessa maneira, nas documentações da CPT, Cachoeira apresenta-se englobada aos

outros engenhos, e ali adquire uma presença particularizada. Cachoeira é um dos engenhos da

Usina Açude, é um dos engenhos ocupados pela CPT, é um dos engenhos onde acontecem as

agressões cometidas pela Usina. Este último ponto provoca uma narrativa mais especializada

em relação a Cachoeira (como também existem outras a respeito de outros engenhos), a qual

está centrada nas violências ali cometidas. Como assinalei anteriormente, tropecei nas

documentações da CPT em episódios já narrados por pessoas que habitam ou habitaram

Cachoeira, e eles são os episódios violentos, os mais ruidosos, os “eventos”, os “conflitos” (é

necessário recordar que minha observação dos arquivos chega até o ano 2001, em razão do

que certos acontecimentos conflitivos assinalados no capítulo anterior não aparecem aqui).

A “ocupação”. Ela é parte dos eventos que compõem o discurso da CPT sobre o

conflito de Cachoeira. Uma ocupação que aqui se configura em relação à imprensa. O

importante é comunicá-la, difundi-la, justificá-la. Em 31 de agosto de 1999, na madrugada,

“65 famílias de sem-terra e sem emprego ocuparam os engenhos de Cachoeira (350ha.) e o

engenho Goitá (500ha.)”. Relata-se nesta comunicação a localização dos engenhos na Mata

Norte do estado de Pernambuco e que os mesmos “pertencem à Usina Açude que está fechada

há mais de dois anos e já foram vistoriados pelo INCRA e considerados improdutivos”.

Também se oferece uma justificativa da ocupação: “As famílias ocuparam porque estão sem

emprego, passam fome e necessitam preparar a terra para o plantio de alimentos”. E são

colocadas outras informações a respeito da questão:

O clima é tenso, por se tratar de imóveis da Usina Açude, palco de conflitos entre seguranças e sem-terra ligados ao MST e à CPT; do ano passado para cá já forma ocupados 11 engenhos. O grupo Cunha Silva, proprietário da Usina Açude, é apontado como o maior devedor do setor sucroalcooleiro, tendo inclusive um pedido de falência contra si. A Usina deve cerca de R$ 251,5 milhões e seu patrimônio não chega a R$ 15 milhões. As famílias reivindicam do INCRA a agilidade do processo de desapropriação.127

Os “conflitos”. Um “Registro de conflitos”, no qual há o resumo dos dois tiroteios e do

episódio que os acampados haviam denominado de “despejo” (expostos no capítulo anterior),

incorpora-se também ao relato que nos apresentam as documentações da CPT sobre

Cachoeira. Não é apenas Cachoeira o engenho que ali aparece: Baixa do Rio, Goitá, Montes

Claros, Cavalo do Cão e Esperança são engenhos que acompanham o primeiro. O “registro”

127 “Comunicado à imprensa” enviado pela CPT em 31 de agosto de 1999.

constitui-se de uma “ficha” preenchida pelas pessoas que protagonizaram os conflitos: “Esta

ficha é um instrumento para registro dos conflitos no campo. Ela faz parte do trabalho de

documentação da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Visa ampliar e dar maior consistência à

coleta de dados”.128 A experiência vivida é a que outorga consistência à documentação, a que

fundamenta a elaboração da história do conflito, conflito este cujo significado se encontra já

determinado. A narração da história vivida mistura-se assim a uma definição prévia de

conflito, acomoda-se a seus moldes. Um saber local, legislativo (embora a legislação também

diga respeito a um saber local) e teórico relaciona-se àquela definição de conflito.

O conceito classifica-se em vários âmbitos: os “conflitos de terra, aqueles que

envolvem a luta pelos meios de trabalho ou produção”; os “conflitos trabalhistas, aqueles que

dizem respeito à relação de trabalho patrão x empregado: desrespeito trabalhista,

superexploração e trabalho escravo”; os conflitos que aludem às “Secas”, que se caracterizam

“pelos saques, ou tentativas de saques e pelas reivindicações nas frentes de emergência”; à

“política agrícola”, que se referem às “lutas por melhores preços para os produtos agrícolas,

condições de financiamento dos agricultores familiares”; e, por último, os conflitos

relacionados ao “Sindicalismo”, os quais ocorrem “nas intervenções em sindicatos […].

Perseguições, ameaças e outras ocorrências ligadas aos sindicatos ou aos seus dirigentes e

filiados”. Este não é um texto de denúncia, é um instrumento que será utilizado pela CPT para

a produção de suas documentações.

Nos moldes daquela ficha, aparecem os episódios relatados pelos trabalhadores. Aqui

as datas são exatas e predizem os relatos:

22/04/2000: Tiroteio no acampamento de Cachoeira; no dia seguinte, às 11h40, tivemos que correr na chuva para não morrer, até que um companheiro foi ferido nas costas e as seis bicicletas foram queimadas e Celso da Bolacha atirando […] dizia vou pegar de unha. 01/05/2000: Segundo tiroteio. 12/07/2000: O tenente Clarêncio me ameaçou dizendo que eu estava na mira do revólver dele e só faltava ele puxar o gatilho. 12/07/2000: O Sindicato dos Trabalhadores chegou no acampamento com a Polícia Militar e a promotora derrubando o acampamento.

A ameaça do arame. Aquele que Dionísio iria "comer”, segundo a intimidação do

fazendeiro vizinho. O conflito é narrado nas documentações através de uma nota enviada pelo

Coordenador de Direitos Humanos da Comissão Pastoral da Terra e o advogado dessa

entidade ao Delegado Especial para Apuração das Violências sofridas pelos trabalhadores no

Engenho Cachoeira. Conta-se ali que:

128 Comissão Pastoral da Terra. Ficha para Registro de Conflitos.

Trabalhadores denunciaram perante a Delegacia Municipal de Açude, diante da qual prestaram queixa no último dia 29/05/00, ameaças recebidas por parte do senhor José Alberton. Essa pessoa está levantando cercas de arame farpado na aludida propriedade e disse aos trabalhadores Denunciantes que faria com que eles “engolissem um metro de arame farpado”, caso as cercas fossem removidas. [Junto com o relato pede-se que o caso seja investigado] para fins de apuração de autoria quanto aos tiros e às violências ocorridos recentemente na citada propriedade.

Como assinalei anteriormente, as narrativas particularizadas de Cachoeira conjugam-

se a uma narrativa que fala sobre a Usina. Às vezes explicitados em forma de exemplo, às

vezes não, os episódios de conflito que no acampamento se configuram tornam-se parte, no

discurso da CPT, das “violências cometidas pela Usina Açude”. Isto não evita que em

algumas ocasiões também atuem como um caso particularizado. Tanto de uma como de outra

forma, o registro dos “conflitos” – acontecidos em Cachoeira e em outros engenhos – não se

limita a cumprir uma função informativa. Como pôde ser observado anteriormente, os

conflitos enunciam-se, explicitam-se, e os enunciados adquirem formas diversas, adaptando-

se a quem os expressa, à forma dos interlocutores a quem se dirigem, aos espaços com os

quais se relacionam. Essa moldagem revela assim um âmbito relacional, no qual se conjugam

diversas narrativas e personagens em função dos quais se delimita o conflito.

É uma “denúncia” o que conforma o discurso mais explícito da CPT em relação à

Usina Açude. Como tal, precisa ter eficácia. O interlocutor ou a referência do discurso torna-

se então central na sua configuração, já que a narração do conflito adota a forma de uma

estratégia. São vários os interlocutores ou as referências que nas documentações da CPT

aparecem e que ajudam na delimitação desse conflito. Estes interlocutores/referências revelam

espaços (instituições, entidades, atores etc.) que são parte constituinte da disputa pela terra,

espaços que trazem com eles uma linguagem com a qual é preciso dialogar.

Ao finalizarem uma das denúncias escritas, por exemplo, a CPT, o MST e a FETAPE

solicitam “o acompanhamento deste caso e as cobranças a todas essas autoridades para que

cumpram com os seus deveres”, junto ao qual são enumerados os “órgãos envolvidos”. Estes

são: INCRA Brasília; INCRA Pernambuco; Secretário da Defesa Social de Pernambuco,

Secretário da Polícia Civil; Delegado Especial; Secretaria Estadual de Produção Rural e

Reforma Agrária; Ministério Público do Trabalho; Ministério Público Federal; Ministério

Público do Estado de Pernambuco; Tribunal Regional do Trabalho. Estes órgãos constituem

algumas das referências a se levar em conta na apresentação do conflito, já que detêm um

poder de intervenção no seu desenvolvimento (assim, por exemplo, o INCRA associa-se ao

processo de desapropriação das terras; o Ministério Público do Trabalho ao tratamento da

violação às leis trabalhistas cometida pela Usina; a Polícia e a Defesa Social intervêm no que

diz respeito às agressões e às ameaças sofridas pelos acampados etc.).

Os discursos explícitos de denúncia elaborados pela CPT que se encontram nas

documentações, os conflitos descritos naquelas denúncias adotam assim formas diversas,

fundem-se com documentos legais, com comunicados, com notas formais que os remetem a

um amplo leque de interlocutores e atores.

Nesse leque temos o Ministério Público do Trabalho. Existe uma denúncia

explicitamente formulada pela CPT, pelo MST e pela FETAPE com a finalidade de seu

desenvolvimento em tal Ministério. A denúncia tenta demonstrar o “conflito” em relação às

“lesões” causadas aos “direitos individuais e trabalhistas” dos trabalhadores rurais despedidos

pela Usina Açude. Os pontos centrais dessa denúncia já foram expostos antes. O importante é

assinalar aqui que a apresentação que tal denúncia passa a ter faz com que se torne plausível

de tratamento naquele órgão. Nesta apresentação, certo tipo de redação é acompanhado de

documentos que se supõe serem significativos em relação às normas conduzidas pelo

interlocutor em jogo. Certidões emitidas por Juntas de Conciliação e Julgamento, Certidões

emitidas pelo Cartório, comunicações do INCRA ao Desembargador Corregedor do Tribunal

de Justiça e aos Cartórios de Registro Geral de Imóveis indicando as “ilegalidades” dos

Acordos de Trabalho realizados pela Usina Açude e, finalmente, acusações enviadas à Polícia

Civil e à opinião pública aparecem como documentos “anexos” à denúncia, tentado confirmá-

la.

Também há deputados entre os atores a quem se relata(m) o(s) conflito(s). Vários

deputados federais e estaduais estão entre os destinatários do envio de um conjunto de

documentos, tais como “cartas-denúncias” em vários registros: elaboradas exclusivamente

pela CPT ou realizadas pela CPT e o MST; enviadas e não enviadas. Somam-se a estes outros

papéis: a denúncia apresentada no Ministério Público do Trabalho pela CPT, pela FETAPE e

pelo MST; um Termo de Denúncia de 12/06/2000 que relata a chegada da denúncia ao

Ministério; a notificação do Ministério Público para a realização da audiência, entre outros.

As “cartas-denúncias” já enviadas (antes de serem mandadas aos deputados) abrem

novos interlocutores/referências. A denúncia centra-se aqui nas “violências” acontecidas em

Cachoeira, episódio relatado à maneira de uma informação (na qual se pede a tomada de

medidas, como a prisão preventiva dos agressores e o cuidado com a “integridade dos

cidadãos e a ordem pública”), que foi enviada em 10 de maio de 2000 à Polícia Civil do

Estado de Pernambuco (encarnada na pessoa de seu diretor) e à Secretaria Estadual de

Produção Rural e Reforma Agrária (ao secretário e ao secretário-adjunto). Relata-se à polícia

uma “nova e inadmissível violência cometida por pistoleiros, a serviço da Usina Açude,

contra trabalhadores do Engenho Cachoeira”. Por sua vez, o envio da denúncia à Secretaria

mencionada gera um novo encaminhamento. Dali dirige-se a outra Secretaria, ao Secretário

de Defesa Social, movimento este que logo é informado à CPT por parte de quem o realizou.

O INCRA é uma referência central que surge repetidas vezes. A denúncia elaborada

em relação à Usina Açude dirige-se aqui à desapropriação das terras e tenta garantir “o

assentamento de todas as famílias de moradores e de sem-terra que hoje estão acampadas nas

terras da Usina Açude”.129 O conflito delineia-se em relação a este interlocutor com os traços

centrais de um “conflito de terra”. As notas enviadas ao INCRA pela CPT, as documentações

expedidas por este órgão mostram o desenvolvimento do conflito em relação a tal espaço.

Discutem-se nesses papéis assuntos que se referem à “vistoria” a ser realizada nos engenhos

da Usina (solicitações de “Vistoria para fins de Reforma Agrária”, a notificação desta ao

proprietário, a indicação dos trabalhadores que acompanhariam os trabalhos etc.), pede-se

informação em relação ao andamento do processo, entre outras questões. Além das

comunicações explícitas, vários documentos do INCRA se fazem presentes nos arquivos da

CPT.

Os comunicados à imprensa conformam outra apresentação do conflito, outro

desenvolvimento, e trazem uma nova interação. Em 10 de maio de 1999, a CPT comunicou à

imprensa um “ato de protesto” na cidade de Açude por parte dos “trabalhadores e

trabalhadoras rurais”. Isto foi acompanhado de uma denúncia da CPT sobre o caso da Usina

Açude (mencionando sua falência, suas dívidas, o “acordo espúrio”, as ameaças às “famílias”

que ocuparam as terras etc.). Os outros comunicados com os quais me deparei informam

sobre as ocupações. A CPT diz ali que são as famílias de sem-terra “que se juntaram aos

moradores” que ocuparam determinado engenho com a finalidade de sua desapropriação.

Entre outros dados, a improdutividade da área ocupada e a falência da Usina são informações

que acompanham esses comunicados. Eventos precisos, um protesto e uma ocupação

conjugam-se ali com justificativas mais amplas. A imprensa revela assim outro espaço de

desenvolvimento do conflito, constituindo uma nova referência na hora de narrar a história.

São determinados episódios os que se contam em relação à imprensa. Manifestação, difusão,

opinião pública abrem outra frente de luta, outra frente de destino da denúncia.

129 Nota enviada pela CPT ao Superintendente do INCRA de Pernambuco. 12/01/1999.

Entre outros interlocutores presentes podem ser citados o MST e a FETAPE. Estes

movimentos, além de aparecerem como co-autores na configuração do conflito na forma de

um discurso de denúncia, apresentam-se como “companheiros” no desenvolvimento da luta a

ser desenvolvida para levar adiante essa denúncia. Isso se dá nas documentações. Embora nas

conversas que mantive com os militantes da CPT eles costumassem ser cuidadosos a respeito

dos outros Movimentos, e reiterassem que estes assumem a faceta de “companheiros” – ou de

setores a serem “apoiados” pela CPT – os desencontros não ficaram ofuscados. Fizeram-se

presentes dados, como os acampamentos e os assentamentos em Açude vinculados à CPT não

interatuam freqüentemente com os acampamentos e os assentamentos em Açude vinculados

ao MST; comentários que enfatizaram a diferença na forma de trabalhar; a união dos

movimentos basicamente em relação a um terceiro (ao estilo dos processos de fusão e divisão,

do “princípio segmentário” que Evans-Pritchard observava nas tribos Nuer).

A FIAN (referida na Introdução deste trabalho) é outro espaço de relação que se abre,

outro ator no conflito. Com esta “Rede Internacional” o conflito expande-se

internacionalmente, e o faz também em um tom de denúncia. O lugar da FIAN ao lado da

CPT, seja como um apoio ou como uma aliada na luta de Açude, é o argumento que justifica a

inclusão no presente capítulo dos documentos produzidos por tal Organização Internacional.

Desse modo, encontrei nos arquivos da CPT notas da FIAN enviadas ao Governador do

Estado de Pernambuco, ao Procurador-Chefe do Ministério Público do Trabalho, ao

Presidente do INCRA, ao Superintendente do INCRA de Pernambuco e à Promotoria de

Justiça da Comarca de Açude. As notas datam de 10/07/2000 e de 17/07/2000, e foram

remetidas de Heildelberg. Os pontos denunciados coincidem com os da CPT: a demissão sem

indenização dos trabalhadores da Usina Açude, os acordos de trabalho ilegais, as “ameaças e

as violências aos trabalhadores rurais sem-terra que reivindicam a Reforma Agrária” na

região. Denuncia-se também o que aconteceu com os processos de desapropriação: “Estamos

informados que o INCRA, após constatar através de vistorias a improdutividade das terras da

Usina, praticamente paralisou o andamento do processo desapropriatório, em virtude das

pressões políticas dos proprietários da Usina”. Pede-se aos interlocutores que tomem medidas

objetivando a agilização do processo de desapropriação e a proteção dos trabalhadores em

relação às “ameaças e [às] violências praticadas por pistoleiros prepostos da Usina Açude”.

Os direitos amparam tais pedidos: o “direito ao trabalho e à alimentação”, o “Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, pacto este do qual o Brasil faz

parte, sendo portanto o Estado “obrigado a garantir esses direitos à sua população”.

Tudo o que se vê acima não esgota os envios, os documentos, os interlocutores e as

referências em questão, mas oferece um panorama das frentes de desenvolvimento do(s)

conflito(s). Este é narrado pela CPT na forma de uma denúncia que se desdobra em vários

âmbitos. Considerações sociais e políticas conjugam-se com documentos legais, dados

administrativos, notícias de imprensa, relatos escritos dos acampados etc. Uma mistura de

relatos se faz presente ao se observarem os arquivos da CPT. É central a articulação, a

transformação de algumas histórias vividas por acampados e moradores em uma denúncia

que, para fundamentar-se, incorpora leis, dados “objetivos”, documentos administrativos,

entre outras linguagens, os quais passam desta forma a atuar como ferramentas de luta.

As documentações materializam assim um processo de luta, um processo de

desdobramento da denúncia em determinados espaços (INCRA, Ministério Público, Polícia,

imprensa, opinião pública etc.). Interessa alcançar o desenvolvimento bem-sucedido da

denúncia naqueles âmbitos, razão pela qual a narrativa do conflito que se observa nas

documentações produzidas pela CPT (a narrativa da denúncia) configura-se em relação a

esses lugares de referência onde tenta ganhar presença. Desse modo, os interlocutores, as

referências, os atores relevantes na canalização da denúncia tornam-se centrais na

configuração do conflito, conformam-se como espaços de luta, espaços que propõem uma

linguagem a partir da qual a CPT elaborará um modo de disputa. A documentação analisada

permite ver uma predominância, embora não uma exclusividade,130 de funcionários

provenientes de diversas instituições estatais entre esses interlocutores/referências, os quais

detêm um poder de intervenção sobre o conflito. Conjugam-se nas pastas da CPT instituições

como o INCRA, o Ministério Público do Trabalho, os cartórios, a polícia, a Secretaria de

Defesa Social, entre outros já mencionados anteriormente. O conflito envolve todos aqueles

âmbitos separados em nível estatal que desempenham, dessa forma, um papel central na

definição dos códigos a serem empregados no desenvolvimento da disputa.

Por sua vez, a introdução do discurso da CPT – da denúncia que a Comissão elabora –

nas diversas instâncias estatais mostra-nos que, embora marcadas pelo predomínio de certas

linguagens, de certas maneiras de narrar a realidade, de certos procedimentos consagrados, as

instituições estatais são constituídas por processos de luta e articulam narrativas diversas que

não são fechadas e essenciais, mas se refazem constantemente no desenvolvimento dos

130 A opinião pública e os Movimentos Sociais também são atores relevantes no desenvolvimento do conflito e, por isso, referências que participam da elaboração da denúncia.

processos que as vão conformando.131 Ocorre desta forma, por exemplo, com as ocupações de

terra realizadas pela CPT (e pelos Movimentos Sociais). Através da luta dos Movimentos as

ocupações passam a ser reconhecidas pelo Estado e convertem-se em um fator gerador – um

fator fundamental – dos “processos de desapropriação”. A linguagem dos Movimentos

incorpora-se, reconhece-se e legitima-se no âmbito estatal (não sem oposição, como na

medida provisória nº 2183-56 de 2001 – ver capítulo I – que penaliza as ocupações), passando

a operar nos processos que se realizam em instituições do governo, neste caso, nos processos

de desapropriação de terras (processos estes que também são o resultado de uma luta política

que conseguiu conquistar um espaço em instituições do Estado). Desse modo, os Movimentos

utilizam as instituições administrativas e judiciais para dar curso às ocupações, para dar curso

à sua luta contra o latifúndio. A estatização do conflito é o resultado de uma luta. É a luta que

torna estatal a Reforma Agrária.

A imposição da linguagem administrativa, da linguagem legal que se consagra nas

instituições que intervêm no conflito, abre lugar para a sua apropriação e, com isto, para a sua

possível transformação, o que nos mostra que por trás dessa linguagem existe uma luta e, a

partir dessa luta, uma articulação de narrativas diversas que desfazem a idéia de uma

linguagem estatal homogênea. Dessa maneira, a CPT se vale dos instrumentos do Estado para

desenvolver sua denúncia, utiliza e apropria-se da linguagem consagrada nas instituições

convertendo-a em uma ferramenta para o desdobramento de sua luta. A CPT utiliza uma

narrativa administrativa e judicial para aplicar a sua própria narrativa; através dos códigos

consagrados pelo Estado abre um espaço para situar seu registro, sua denúncia, a história

vivida dos sem-terra, o conflito do latifúndio. É nesse processo de luta que a linguagem

proposta pela CPT se incorpora às diversas instâncias estatais, às suas narrativas.

A maior parte da luta observada nas documentações utiliza códigos administrativo-

legais que o Estado consagra. Como assinalei anteriormente, as instituições do governo são

âmbitos centrais no desenvolvimento da denúncia elaborada pela CPT, na tomada de decisões

sobre o conflito. Dessa maneira, as ferramentas que se empregam na disputa devem saber

operar com a linguagem que impera nesse mundo; sua apreensão torna-se necessária no

processo de luta pela terra.

131 É necessário aqui apontar as reflexões teóricas de Antonio Gramsci, o fértil espaço de pensamento que o autor nos abre com o conceito de hegemonia e com a distinção entre Sociedade Política e Sociedade Civil, como dois planos superestruturais (ou sobreestruturais). A hegemonia distingue-se do domínio direto que se expressa na Sociedade Política, esta tenta um consentimento que deve conformar-se a partir de um processo de luta constante, de um processo que acontece na sociedade civil.

Uma linguagem que é alheia ao mundo dos moradores e dos acampados. Na CPT o

conflito é elaborado em função dos diversos espaços de interlocução, a articulação das

narrativas torna-se fundamental. A vivência dos moradores e dos acampados se produz em

modo de denúncia e se expressa em uma narrativa consagrada, em uma narrativa

administrativo-legal. Narrativa esta que, assim, passa a penetrar o mundo dos acampados. Ao

ler uma parte das documentações da CPT reconheci trechos já relatados pelas pessoas de

Cachoeira. O fato me levou a pensar que no registro feito por elas se opera uma negociação

entre a sua história, a história vivida do conflito e a história contada pela CPT (não apenas

pela CPT, mas também pelo INCRA), a história que se informa – esta uma história que sabe

operar com dados consagrados, com dados que podem se traduzir em papéis e se incorporar

ao mundo estatal. Uma mistura de códigos, de informações de mundos diversos.

Os registros sobre o conflito de terra analisados na presente dissertação são diversos,

desencontram-se uns dos outros. Tal conflito é entrevisto de maneira heterogênea, segundo as

diferentes narrativas. Entretanto, a questão não se detém aqui. Embora a análise tenha tentado

decompor e separar registros, na prática, um registro faz parte do outro, eles interatuam,

misturam-se. Como vimos antes, o Estado incorpora elementos provenientes da narrativa da

CPT e junto com esta as dos acampados; a CPT elabora uma denúncia que combina narrativas

estatais e narrativas dos acampados; e estes últimos introduzem à sua vivência o relato

elaborado pela CPT e, a partir dele, elementos da linguagem estatal. Essa mistura não

representa um desenvolvimento harmônico, pelo contrário, ela é o resultado de uma luta. Uma

luta que parte de narrativas hierarquizadas, em que os códigos por excelência da discussão são

códigos consagrados pelo Estado. É necessário apreendê-los para conseguir resultados, para

influir nas tomadas de decisões que se realizam em instituições estatais. E aqui a CPT adquire

um papel central, tentando articular, expressar a vivência da ocupação nos termos da narrativa

que se impõe e levá-la – não só ela, mas também a própria narrativa da CPT – à vivência da

ocupação, aos acampados. Elabora assim estratégias, ferramentas de luta dentro dos

parâmetros impostos, tentando, através da mistura de narrativas, transportar sua visão do

conflito aos diversos espaços, não só aos estatais, mas também aos do acampamento e da

opinião pública. A utilização da narrativa estatal não mostra apenas uma imposição, mas

também uma estratégia de luta.

Considerações finais

A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONFLITO

Joaquim é de Feira dos Moradores. Sua família encontra-se ali, na cidade, e Joaquim

viaja às vezes para visitá-los. Viaja porque vive (a esta altura é melhor dizer vivia) no

acampamento Cachoeira há já alguns anos. Chegou ao acampamento através de uma reunião

de acampados em Recife. Achavam-se ali o MST, a CTP... e Nestor (o coordenador da

“segunda turma”), e outras pessoas de Cachoeira com quem conversou. O diálogo, o encontro,

o fluir: Joaquim decidiu desde aquele momento acampar em Cachoeira.

Antes, já tinha transitado por uma ocupação do MST. Era onde vivia quando chegou à

reunião e, por isso, Joaquim estava presente naquele evento. Não era este seu primeiro

acampamento. Sua experiência germinal ocorreu em algum lugar perto de Limoeiro (cujo

nome não consegui achar no mapa, talvez porque tenha entendido mal a pronúncia), em um

acampamento também do MST, embora – ao dizer que ele não entende muito desse assunto –

Joaquim não tenha dado importância à minha pergunta sobre o Movimento que se relacionava

com a ocupação, abrindo com isto meus olhos para o lugar diverso que determinadas questões

ocupam em nossos esquemas de pensamento, em nossos interesses. Foi por dois anos que

esteve neste último lugar onde, conforme me disse, todos estão hoje assentados. Mas ele teve

que ir embora antes, sua mãe vivia na cidade de Feira dos Moradores e adoecera. Pediu a

Joaquim que voltasse. As terras do acampamento “saíram” imediatamente depois da partida

de Joaquim para Feira dos Moradores. Ele não pôde atender ao recado que seus companheiros

do acampamento lhe deixaram contando-lhe sobre o assunto, não podia voltar por causa da

enfermidade de sua mãe.

No segundo acampamento Joaquim permaneceu por nove meses. Desconheço o lugar

onde esta ocupação se desenvolvia (meu registro costuma perder-se nos espaços geográficos

com nomes em português, ou nos espaços geográficos em geral). Foi quando estava aqui que

Joaquim se dirigiu a essa reunião de acampados e decidiu mudar sua localização. Gostou do que

as pessoas de Cachoeira lhe contaram sobre o lugar.

Antes, Joaquim vivia na “rua”, em Feira dos Moradores, há uns dez anos. Aos

acampamentos chegou antes de seu trânsito por ali. Pergunto-lhe o porquê de acampar. Ele me

diz, com muita motivação, que gosta muito da terra, de suas cabras, da luta, e expõe mais coisas

sobre a sua vida no campo e com as quais se entusiasma. Acrescenta que ainda na rua nunca

deixaram de criar. O pátio de sua casa era cheio de cabras, comenta. Foi quando vivia na rua

que um vizinho o avisou de uma reunião de sem-terra, assunto do qual Joaquim nunca tinha

ouvido falar. Ele foi, foi com seu pai. "Que beleza", disse Joaquim, essa foi sua impressão da

reunião. Então, seu pai ficou na casa e Joaquim partiu para o acampamento. Entrou para os sem-

terra porque sempre gostou do sítio e nunca havia podido comprar um sítio para ele, disse-me.

Mas tudo é uma “agonia”, assinala.

Antes, Joaquim vivia no campo. Joaquim nasceu e se criou no campo, em um sítio em

Feira dos Moradores, desde os sete meses de gestação, já que seu nascimento ocorreu antes do

tempo. Seu pai não quis deixá-lo muito na incubadora, razão pela qual atribui sua “doença” –

doença que deu seus primeiros sinais quando tinha 8 anos de idade. No campo criavam animais,

primeiro em um sítio que era do avô e no qual vivia com ele, com o pai e os irmãos do pai.

Quando o avô morreu, a terra foi dividida em função da herança adquirida por seus filhos: o pai

e os tios de Joaquim. A terra ficou reduzida ao ser dividida em tantas partes, os irmãos eram

muitos. O pai de Joaquim continuou na terra, e Joaquim com ele. Vários anos viveram ali,

depois que seu avô morreu. Joaquim era pequeno quando isso aconteceu. Foi crescendo na

propriedade do pai, trabalhavam a terra e criavam animais. Também trabalhavam fora, na cana.

Enquanto isso, algumas porções de terra recebidas pelos irmãos de seu pai foram vendidas. Um

“fazendeiro” comprou-as e a cerca colocada por ele foi rodeando-os, deixando assim Joaquim e

sua família no meio das propriedades do fazendeiro, sem saída. Sem saída e ameaçados por

pistoleiros enviados pelo fazendeiro, que desejava adquirir as terras onde viviam. Seu pai

negava-se a vender. Finalmente foram para a rua, onde continuaram com a criação de animais.

Agora Joaquim vive em Cachoeira. Quando chegou, poucas pessoas ali viviam. Seu

Dorival, Zé Manuel e Osvaldo não se encontravam totalmente instalados no lugar, iam e

vinham. Joaquim chegou ali alguns meses depois da morte de Amaro. Sua chegada foi à noite –

dizia-me – com chuva; os caminhos se encontravam repletos de lama e “foi a pior agonia”. Foi

muito difícil permanecer durante a construção do roçado, mas uma vez tudo montado, as coisas

melhoraram. O acampamento viu chegar Joaquim, sua esposa e filhos, um menino de 4 anos e

uma neném de 6 meses. Há poucos anos Joaquim e sua mulher se casaram. Estiveram juntos em

Cachoeira até que nasceu o menor, que agora tem 11 meses. Depois do nascimento, a esposa e

os filhos de Joaquim foram embora para a rua, para a casa que tinham na cidade de Feira dos

Moradores. A volta foi por precaução, tinham medo que acontecesse alguma coisa com a saúde

do bebê em um lugar longínquo e sem assistência médica. Sua família se foi e Joaquim ficou.

Há cerca de dois anos vive longe deles, que só uma vez retornaram ao acampamento, logo

depois de sua partida.

Entretanto, ele vai visitá-los. Isto não ocorre freqüentemente. Às vezes consegue fazê-lo

a cada 15 dias, outras vezes passa meses sem vê-los por falta de dinheiro. Além disso, não pode

abandonar seu trabalho, seus animais e seu roçado por muitos dias. Para chegar à Feira dos

Moradores, Joaquim começa o caminho a pé, até a "pista" (a estrada); dali toma um transporte

para Açude, de onde se dirige a Chã do Martinho (ou Nossa Senhora da Mata) em outro

transporte. Quando chega ali, empreende caminho para Limoeiro e de Limoeiro para Feira dos

Moradores. A viagem dura aproximadamente duas ou três horas, comentava Joaquim. Nas

ocasiões em que consegue visitar sua família, quem cuida de seus animais são seus vizinhos do

acampamento, principalmente a família de Luísa.

Joaquim tem animais, cabras e muitas galinhas. Todas as manhãs ordenha suas cabras.

Conta para mim que gosta de Cachoeira e das pessoas que ali vivem. Comenta a respeito de sua

tranqüilidade ao deixar sua casa quando se dirige ao roçado. Até se esquece às vezes de fechar a

porta. Joaquim fala de seu agradecimento pelas pessoas do Movimento que, lá fora, também

correm risco de vida enfrentando o pessoal com dinheiro que quer tomar as terras.

E é muito difícil continuar. O acampamento é muito “sufoco”. É muito sufoco estar

longe de sua família e cada coisa implica uma “agonia” para ser conseguida. Joaquim se sente

muito doente e contou que há um tempo, em Feira dos Moradores, pensavam que ele havia

morrido entre os sem-terra. Está “ficando doente”. Foi ao médico, que o mandou para Recife,

mas Joaquim não tem como ser atendido lá. E no acampamento tudo piora, cuidar de sua saúde

é ainda mais difícil nesse lugar, longe do médico, longe da família. Em Feira dos Moradores as

distâncias se reduziriam. E em Feira dos Moradores estaria com sua família, ponto ao qual

retorna constantemente no relato. Não teria agüentado a lonjura sem a ajuda da família de Seu

Tuca e de Luísa, que são como pais, como irmãos para ele, dizia-me Joaquim.

Foram anos de luta em que suportaram tudo. Anos de luta que deixa para trás, mas há

muitos adiante para viver. Em Feira dos Moradores vai tentar outras alternativas – dizia – talvez

leve seus animais para criá-los lá, embora o espaço seja menor. Outra opção que pensou foi a

venda de alguns pertences. Antes de partir Joaquim venderia o roçado para um de seus vizinhos

de Cachoeira. Ir embora lhe causa muita pena. Gosta das pessoas de Cachoeira, e gosta que o

Movimento não seja violento. Mas vai embora. E confia que tudo ficará bem. Apesar de ser

difícil, algum dia vai conseguir o que deseja, algum dia vai conseguir sua terra, dizia.

Agora vai partir. Partiu de Cachoeira. E nas suas palavras desejava o melhor a seus

companheiros.

Como é possível recortar “o conflito” nesta narrativa? Como reduzir o conflito a uma

essência previamente definida?

No relato de Joaquim o conflito se funde com a história de vida, sua apresentação como

uma entidade se desfaz na dinâmica do transcorrer. Não existe "um conflito". Seu relato não

consegue se reduzir a essa essência. Através das narrativas ouvidas no acampamento o fato do

conflito se desconstrói, não é um fato, é um acontecer em vivências e em histórias pessoais que

se cruzam circunstancialmente em um mesmo espaço. O conflito não se separa aqui do

cotidiano, não se separa das histórias de vida, não tem começo, não tem fim, não tem espaço

definido. Transcende os limites do acampamento. Não é o enfrentamento entre a Usina e os

acampados expresso na ocupação de Cachoeira, aquilo é parte do vivido e se dissemina entre

outras experiências que o decompõem em sua apresentação como um fato separado, como

entidade própria.

As narrativas com que eu me deparei no acampamento desarmaram a minha idéia

prévia, aquela idéia que me levou a privilegiar a história de Cachoeira, em lugar das histórias

em Cachoeira. Aquela idéia que me levou a construir uma narrativa de onde parti de um espaço

previamente demarcado em lugar da dinâmica vivida e das várias histórias que transcendiam o

espaço, de onde parti de um fato construído em função de um recorte, um conflito reduzido a

uma entidade, em lugar das relações que edificam esta idéia. As narrativas que ouvi no

acampamento me mostraram uma multiplicidade de histórias pessoais, mostraram-me um

cotidiano vivido, que vai além do acontecido em Cachoeira a respeito da ocupação. As histórias

superam o espaço e superam o momento de início do acampamento, e o vivido supera o

enfrentamento com o usineiro. E supera o processo de desapropriação.

As narrativas do acampamento trouxeram dinâmica às minhas idéias prévias, e as

desarmaram. Fiquei sem meu conflito-essência. Ele se foi por entre meus dedos, já não havia

mais nada que pudesse controlar. Deparei-me ali com um conflito fundido em histórias pessoais

e não com um conceito previamente definido existindo. As histórias vividas, a dinâmica,

ocuparam o lugar dos conceitos e me ajudaram a dar um passo no intento de escapar da

"neurose escolástica". Além disso, partir dos vários registros de um conflito, que se revelavam

tão diferentes ao transitar de um para outro espaço etnografado, ajudou-me a privilegiar as

relações que se colocam por trás de uma definição, mais que privilegiar uma definição prévia. A

intenção seria evitar cair em artifícios acadêmicos que essencializam a realidade, tirando-lhe a

dinâmica.

Ao ir de um a outro espaço etnografado o conflito se desfigurava, mostrava-se de

maneira diversa segundo as diferentes narrativas. E a diversidade de registros revelava que o

conflito por terras também se nutria desta diversidade: as diferentes perspectivas eram as de

grupos que interatuavam em torno de uma questão, os registros se desencontravam. Eles se

desencontravam, mas também se misturavam, e esta mistura – a articulação de linguagens

dissímeis – mostrava o desenvolvimento de uma luta, abria-se uma disputa por trás desta

articulação.

Ao procurar o conflito de terras na Superintendência do INCRA, em Recife, eu

encontrei um processo de desapropriação, separado institucionalmente dos conflitos

propriamente ditos que eram função da Ouvidoria. Percebia-se em alguns setores da instituição

um discurso que tendia à profissionalização-institucionalização do conflito, neste caso, a

profissionalização-institucionalização do processo de desapropriação. Com isto se consagravam

linguagens, valorizavam-se códigos: os administrativos, os técnicos e os jurídicos. O(s)

conflito(s) eram negados como parte desse processo, explicitavam-se implicitamente. Abria-se

assim uma disputa pelo saber. A ênfase nas características técnicas, jurídicas e administrativas

dos processos de desapropriação afirmava o monopólio do conhecimento, o segredo.

Reafirmava um saber profissional e institucional, consagrava o lugar dos diferentes

funcionários. A entrada dos acampados e dos Movimentos em uma função definida como

técnica, jurídica e administrativa ameaçava, portanto, a predominância das linguagens que se

pretendia consagrar, a apropriação do saber que marcava um limite tanto entre a instituição e o

exterior (fazendo dos não-funcionários um Joseph K.),132 como entre os diferentes setores

institucionais, limite este último que desarmava a instituição como um bloco compacto.

Apesar do que foi exposto acima, nos mesmos discursos dos funcionários o processo de

desapropriação revelou-se operando não só com os parâmetros técnicos, jurídicos e

administrativos, mas também com os parâmetros incorporados pelos Movimentos Sociais e

pelos acampados, mistura esta chamada nativamente de pressão. A luta dos acampados e dos

Movimentos constituía este processo técnico, era parte do mesmo. Deste modo, o processo de

desapropriação não se separava da luta social que o configurava, apesar dos esforços

discursivos para deixá-la de lado, apesar da negação da mistura.

Esta é uma luta que se desenvolve cotidianamente no acampamento, na ocupação que os

trabalhadores realizam na propriedade de uma Usina, nas manifestações realizadas por

acampados, assentados e Movimentos fora daqui. Uma luta em cuja narrativa se deixa entrever

132 Franz Kafka. O processo.

a denúncia da CTP e o processo "administrativo" de desapropriação, do qual em geral pouco se

sabe, pouco é informado pelas instituições encarregadas de seu encaminhamento. O INCRA

torna-se assim um dado no cotidiano dos acampados. Novamente as narrativas se misturam, e o

fazem a partir da luta, é ela que mantém presente o processo de desapropriação no cotidiano

vivido. E mais além do acampamento e do cotidiano, entre os habitantes e os ex-habitantes de

Cachoeira, a luta não se fragmenta, a luta transcende o momento e o lugar e se funde com uma

história pessoal que se matiza com a presença do Grande Proprietário: uma história de vida de

quem foi trabalhador na cana, do morador que se negou a sair de sua morada, de quem foi

expulso da parcela que tinha no campo, de quem na cidade se converteu em vendedor de força

de trabalho sem trabalho na maior parte do tempo. Uma história de vida que, embora matizada,

não se reduz a essa presença. A história é a de vida, a história é a pessoal, a que desarticula os

conceitos de indivíduo e sociedade como essências fragmentadas, a que desarticula a idéia de

conflito como um ente abstrato.

A luta passa também pela denúncia da CTP. Entre outros objetivos, este discurso de

denúncia tenta a desapropriação das terras ocupadas e se constrói em função do mesmo (e não

só em função dele, mas também dos outros objetivos, como o cumprimento dos direitos

trabalhistas, por exemplo). E é nessa dinâmica que vai sendo constituída a apresentação do

conflito: uma denúncia que articula narrativas. Uma denúncia que mistura alguns aspectos da

história vivida dos acampados com outras narrativas e, a partir daí, elabora um relato sobre o

conflito. Uma denúncia que para tornar-se efetiva nas instituições do Estado, como o INCRA,

incorpora códigos legais e administrativos, códigos consagrados nessas instituições. Com tal

denúncia esses códigos tornam-se uma ferramenta de luta e não apenas um instrumento de

imposição estatal. A denúncia da CTP (e dos Movimentos) torna-se parte da linguagem com a

qual se trabalha no INCRA e passa a constituir os processos de desapropriação.

Os registros são diversos e, por sua vez, misturam-se. E são processos de luta os que

se revelam por trás dessas misturas.

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BRASIL. Lei Nº. 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. BRASIL. Decreto Nº. 5.735, de 27 de março de 2006. BRASIL. Decreto-lei Nº. 1110, de 9 de julho de 1970.

BRASIL. Portaria Nº. 69, de 19 de outubro de 2006. Diário Oficial da União. 20 de outubro de 2006. Seção 1. Pág. 164. Nº. 202. Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA (anexo). BRASIL. Instrução Normativa/INCRA/Nº. 33, de 23 de Maio de 2006. D.O. 109, de 08/06/2006. Seção 1. Pág. 53. BRASIL. Decreto-lei Nº. 582, de 15 de Maio de 1.969.

BRASIL. Medida Provisória Nº. 2183-56 – 24/08/2001.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Manual de Obtenção de Terras e Perícia Judicial. Manual de Procedimentos Técnicos para Elaboração de Diagnósticos de Quadro Fundiário Regional, de Levantamento de Dados e Informações de Imóveis Rurais sua Avaliação e Perícia Judicial. Brasília 2002.

Anexos

ANEXO I: ORGANOGRAMA DA SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL DE PERNAMB UCO

(SR-03)

Fonte: Superintendência Regional de Pernambuco SR-03. 2006.

ANEXO II CURSO DO PROCESSO DE DESAPROPRIAÇÃO

Fonte: Instrução Normativa/INCRA/Nº. 33, de 23 de Maio de 2006.

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