Ética_sem_tutoria_módulo_2

20
Módulo A ética da vida pública: cidadania e serviço público no Brasil 2 Éca e Serviço Público

Upload: magno-castro

Post on 19-Dec-2015

6 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

ÉTICIA

TRANSCRIPT

  • Mdulo A tica da vida pblica: cidadania e servio pblico no Brasil2

    tica e Servio Pblico

  • 2Fundao Escola Nacional de Administrao Pblica

    PresidentePaulo Sergio de Carvalho

    Diretor de Desenvolvimento GerencialPaulo Marques

    Coordenadora-Geral de Educao a Distncia

    Natlia Teles da Mota

    Conteudstas

    Ccero Romo (2005) e Agnaldo Cuoco Portugal (2009).

    Diagramao realizada no mbito do acordo de Cooperao Tcnica FUB/CDT/Laboratrio Latitude e Enap.

    Enap, 2014

    Enap - Escola Nacional de Administrao Pblica

    Diretoria de Comunicao e Pesquisa

    SAIS rea 2-A 70610-900 Braslia, DF

    Telefone: (61) 2020 3096 Fax: (61) 2020 3178

  • 3SUMRIO

    Objetivos do Mdulo .......................................................................................................... 5

    2.1. Porque que falar em tica da vida pblica? .................................................................. 6

    2.3. Democracia e Cidadania ............................................................................................. 10

    2.4. Cidadania no Brasil .................................................................................................... 11

    2.5. Servio Pblico e Desafios do Estado Contemporneo no Brasil ................................. 15

    2.6. Responsabilidade Pblica (Accountability) .................................................................. 17

    Referncias bibliogrficas ................................................................................................. 19

  • 5Objetivos do Mdulo

    Ao final desse mdulo, voc dever ser capaz de:

    Justificar a importncia da tica no exerccio da funo pblica, particularmente no que se refere aos valores que devem nortear a conduta dos servidores pblicos e garantir, consequentemente, o respeito coisa pblica e o foco no cidado.

    Distinguir a esfera pblica da esfera privada com ateno voltada para os valores e princpios que regem as condutas nesses dois universos.

    Definir democracia, considerando os conceitos de representao e igualdade, bem como a noo de cidadania.

    Contextualizar a cidadania no Brasil, observando os aspectos histricos do pas e os desafios para o futuro em vista da responsabilidade pblica.

    Neste mdulo, ser estudada a relao entre tica e a dimenso pblica da conduta do indivduo, tratando especialmente da ao do servidor pblico como agente do Estado, o modo como os valores prprios da cidadania se concretizaram na ao do Estado brasileiro e os desafios que se pem para a conduta do servidor pblico diante dessa histria.

    Os assuntos abordados aqui so:

    Por que falar em tica da vida pblica?. A Vida Pblica e a Esfera Privada: O Estado. Democracia e cidadania. Cidadania no Brasil. Servio Pblico e desafios do Estado contemporneo no Brasil. Responsabilidade pblica (Accountability).

    Mdulo A tica da vida pblica: cidadania e servio pblico no Brasil2

  • 2.1. Porque que falar em tica da vida pblica?

    A natureza da poltica

    Vimos que a tica diz respeito, principalmente, ao do indivduo: aos valores e normas implcitos em sua conduta, permitindo que esta seja julgada como correta ou incorreta, comotica ou antitica. Embora a tica trate tambm de aes que o indivduo realize em relao a si mesmo, normalmente ela se refere quilo que as pessoas fazem para outras pessoas.

    Um dos traos mais caractersticos dos seres humanos que eles vivem em coletividades e precisam da convivncia com outros seres humanos para se realizar como pessoas.

    A ao de uma coletividade o assunto principal da poltica. Trata-se de uma dimenso essencial de nossas vidas porque sabemos que a maioria das grandes coisas de que precisamos e podemos fazer jamais seria feita apenas por ns mesmos isoladamente ou mesmo por um pequeno grupo de indivduos. Elas dependem do amplo concerto e da slida unio de um grupo bastante numeroso.

    Esse fazer coletivo, porm, no resulta apenas em grandes coisas. Embora nem sempre o percebamos, muito de nossos prprios pequenos sucessos individuais depende tambm do sucesso de nossa coletividade. E isso obra da poltica.

    Em poltica temos tambm de deliberar e fazer escolhas, como na tica. No haveria poltica se no houvesse alternativas, se no houvesse espao para a deciso efetiva acerca de que rumo tomar, se tudo fosse submetido necessidade frrea ou ao absolutamente casual, conceitos que estudamos no Mdulo 1.

    A poltica uma atividade inteligente. Sua marca intervir no mundo segundo uma inteno premeditada, para conservar ou mudar um estado de coisas. Alm disso, as alternativas polticas no so neutras em relao aos valores morais, pois elas dificilmente escapam a uma ponderao sobre o mrito ou demrito da ao: sua justia, correo, prudncia, coragem, magnanimidade...

    Aquilo que na ao individual precedido por uma reflexo introspectiva e silenciosa, no mbito poltico se torna um processo visvel, interpessoal e, s vezes, bem barulhento, que vai de um simples intercmbio de opinies at uma discusso acalorada, uma pomposa assembleia ou um debate na televiso em rede nacional.

    Mas, se a poltica assim to importante e to til, por que muita gente diz ter averso a ela?

    A resposta a essa questo nos remete a um segundo elemento fundamental da natureza da poltica. Alm de ser a unio de indivduos empenhados em resolver problemas que s coletivamente podem ser resolvidos, a poltica tambm a atividade de conquista e manuteno do poder que permite resolver esses problemas.

    O que vemos numa eleio, num debate entre parlamentares de partidos opostos ou num golpe de Estado, por exemplo, so aes tipicamente polticas porque se referem disputa pelo poder. Esse elemento de conflito e tenso, que envolve aes nem sempre muito apreciveis do ponto de vista tico, talvez seja a principal causa para muitas pessoas terem um sentimento negativo em relao poltica.

    Assim, a natureza da poltica envolve no apenas o trabalho coletivo na busca de solucionar problemas comuns a todos (segurana, sade, transporte, educao, etc.), mas tambm a

  • 7disputa pelo poder que possibilita resolver esses problemas. Uma grande questo a ser resolvida pela atividade e pelas instituies polticas como fazer com que a disputa pelo poder no inviabilize ou mesmo coloque em segundo plano o objetivo maior de se buscar o bem comum.

    2.2. A vida pblica e a esfera privada: o estado

    A poltica, por ser uma ao coletiva, precisa de um ambiente onde se do os acordos e conflitos entre seus membros: a vida pblica. Esta se define por sua distino da vida privada.

    Embora se possa falar de poder nas relaes interpessoais (entre cnjuges, amigos ou familiares, por exemplo), o mais apropriado pensar que o que est envolvido no poder poltico um mbito de relaes que se regula por normas impessoais e vlidas para todos.

    Em outras palavras, enquanto na esfera privada fazemos legitimamente distines entre amigos e inimigos, e nos permitimos agir de modo especialmente favorvel em relao a quem nos familiar, isso no cabe na vida pblica de modo legtimo.

    Embora a disputa pelo poder poltico frequentemente oponha indivduos em grupos antagnicos distintos, a busca de objetivos comuns que caracteriza a poltica exige que tratemos a todos os envolvidos na vida pblica de maneira igual e que ajamos no conforme nossos gostos ou inclinaes pessoais, mas conforme valores e regras comuns a todos.

    O Estado

    A distino entre pblico e privado fundamental para se entender melhor a aplicao da tica ao campo de atuao do servidor pblico. Como veremos a seguir, ela permite entender e avaliar com mais clareza fenmenos como a corrupo e o clientelismo.

    No entanto, essa distino precisa levar em conta um elemento importante no entendimento do campo de atuao do servidor pblico. Alm de ser distinta da esfera das relaes interpessoais (familiares, de amizade, de grupos de amigos ou de interesse particular), a vida pblica de um servidor pblico se d dentro de um espao definido tambm. Esse espao de atuao pblica segundo regras e valores comuns a todos o definido pela jurisdio de um Estado.

    O espao pblico delimitado pela jurisdio de um Estado tambm o que define a cidadania. Cidado aquele que tem determinados direitos e deveres perante a ordem jurdica definida por um Estado. Aprofundaremos o conceito de cidadania mais adiante.

    Um Estado tanto a estrutura poltica e jurdica de uma nao quanto o conjunto das instituies que administram um pas. Classicamente, um Estado se caracteriza por ter um povo, um governo e um territrio. Assim, o mbito no qual se d o tratamento igual aos membros de uma coletividade poltica e as relaes impessoais mediadas por regras comuns, independente de inclinaes e preferncias pessoais, aquele abrangido pelo Estado ao qual o indivduo pertence.

    Outro conceito clssico no entendimento do Estado moderno que ele detm o monoplio do uso legtimo da fora. Em outros termos, s o Estado, lanando mo de um aparato policial e de foras armadas, tem legitimidade para usar a fora fsica para levar algum a agir de uma determinada maneira. Afora as aes de legtima defesa (definidas tambm em lei), os cidados no podem usar a fora uns contra os outros. Quando o fazem, o Estado tem o dever de intervir e punir esse ato.

  • 8 exatamente nessa possibilidade exclusiva de convencimento, a ser usado em caso extremo, que consiste o poder principal do Estado. Esse um instrumento poderoso para conjugar os esforos individuais num sentido comum e um recurso fundamental, objeto de cobia por quem se dispe a disputar o poder poltico.

    Por outro lado, alm do aparato policial, das foras armadas e do sistema judicirio, o Estado atualmente tambm dotado de vrias instituies que objetivam realizar servios considerados importantes para a concretizao de finalidades comuns, tais como sade, educao, transporte, etc. Obviamente, os recursos e mecanismos envolvidos na realizao dos servios pblicos so outro componente fundamental do poder do Estado e seu domnio mais uma razo da busca pela conquista do poder poltico.

    preciso lembrar, porm, que vrios servios de interesse pblico so prestados por instituies que no esto sob o controle do Estado. Por outro lado, h dentro do Estado instituies que servem de apoio a aes do prprio Estado, sem contar as aes e iniciativas nas quais o Estado se envolve no interesse de sua prpria manuteno ou crescimento. Isso significa que, o Estado no coincide com a esfera pblica, pois h agentes no-estatais que participam dela ativamente e nem sempre o interesse do Estado um interesse pblico, mas do prprio Estado como ente autnomo. Essa distino ser uma base importante para a avaliao tica de certos casos envolvendo a conduta do servidor pblico.

    Estado moderno e Estado contemporneo

    Para entendermos melhor os critrios de avaliao da conduta do servidor pblico no Brasil, importante levarmos em conta algumas informaes sobre o papel e os desafios do Estado historicamente falando.

    O chamado Estado Moderno surge na Europa a partir do sculo XIII em resposta a desafios de segurana e de necessidade de expanso econmica. A fragmentao dos feudos medievais e a pouca especializao de sua administrao no permitiam atender a demandas por maior segurana tanto interna quanto externa. A centralizao do poder poltico nas mos de um soberano, diminuindo o papel das aristocracias feudais, foi o modo de responder a essa exigncia. O monarca absoluto de um territrio unificado podia arregimentar foras armadas mais eficientes na defesa contra inimigos externos, alm de garantir melhor a ordem interna e a prestao de justia para a resoluo de conflitos entre os cidados.

    Por outro lado, junto com a centralizao do poder poltico em torno do soberano absoluto, oEstado Moderno foi aos poucos substituindo as associaes pessoais familiares do feudo medieval, que eram guiadas pela tradio, por instituies impessoais e especializadas, regidas por padres de racionalidade. Em outras palavras, o Estado Moderno criou uma estrutura organizativa formal destinada a administrar a vida pblica, possibilitando a consecuo de objetivos no s sociais e polticos (segurana e resoluo de conflitos), mas tambm econmicos. Em Portugal, por exemplo, foi importantssimo o papel do Estado no empreendimento que resultou na expanso martima e permitiu a colonizao de territrios em outros continentes, como foi o caso do Brasil.

    A exclusividade do uso legtimo da fora, a organizao de um exrcito estvel de base territorial definida, de um sistema policial e de um sistema judicirio, bem como o apoio a projetos econmicos de grande alcance foram papis desempenhados pelo Estado Moderno e que se mantm no Estado Contemporneo. Com o Estado Moderno, comeam a se instaurar direitos civis bsicos como de ir e vir, que no era acessvel ao servo feudal; o direito propriedade, fundamental para o novo modo de vida econmico que surgia, e o direito justia e segurana pessoal.

  • 9Embora a aristocracia ainda desempenhasse papel importante, aos poucos foi crescendo a importncia de grupos de plebeus que estavam frente de empreendimentos econmicos importantes, ligados ao comrcio e manufatura, e buscavam maior influncia nas decises do Estado. Devido ao fato de que esses grupos habitavam os burgos, as cidades que comeavam a reaparecer por toda a Europa, eles passaram a ser conhecidos como burgueses.

    Ao mesmo tempo em que ia crescendo a importncia dos burgueses, o poder absoluto do soberano ia tambm sofrendo limitaes. Alm de morar na cidade e no no campo, o burgus no era, como o servo feudal, preso terra na qual trabalhava em troca de seus meios de subsistncia. Aos poucos, vai ganhando fora um tipo de relao de trabalho mais livre, na qual o trabalhador remunerado por seu servio em moeda, o salrio.

    Todas essas alteraes vo significar mudanas importantes no papel do Estado e no alcance do poder a ser desempenhado pelo soberano. Os interlocutores do Estado vo deixando de ser as famlias aristocrticas de senhores feudais e passam a ser os indivduos.

    Em outros termos, vai surgindo um conjunto de valores articulados em torno da noo de liberdade individual, coerente com a importncia crescente da iniciativa econmica dos burgueses em seus negcios privados.

    A limitao do poder absoluto do soberano se torna necessria para permitir a ampliao dos direitos civis e a posterior criao dos direitos polticos. A Revoluo Gloriosa na Inglaterra, ao final do sculo XVII, e a Francesa, ao final do sculo XVIII, vo indicar o fim do poder absoluto dos reis e a transferncia do poder poltico do Estado para instituies, que gradativamente foram passando para as mos do povo.

    No campo civil, o cidado passou a ter direito liberdade religiosa e de expresso de suas ideias. Os direitos polticos de organizao em partidos e eleio direta de governantes ou representantes vo aparecer na Europa no sculo XIX.

    Associado ao crescimento da importncia do indivduo e da liberdade, o poder do Estado vai deixando de ser ligado ao da pessoa do soberano. Aos poucos, o poder poltico vai se institucionalizando, ao invs do imprio das pessoas, vai se firmando a noo de imprio da lei, qual mesmo o governante deve se submeter. O aparato administrativo do Estado deixa de depender exclusivamente do monarca e passa a ter cada vez mais independncia em relao s vontades pessoais do governante, podendo se dedicar a atender os direitos que aos poucos vo sendo conquistados pelo cidado.

    No entanto, a autonomia do aparelho administrativo tambm vai implicar em problemas, quevo ser objeto de crticas e discusses at hoje. De um lado, o Estado contemporneo vai ser criticado por se tornar um fim em si mesmo, no mais se importando com o desempenho das finalidades pblicas para as quais foi criado e mantido. Por outro lado, o Estado atualmente vai ser criticado porque se ocupa muito mais dos interesses dos grandes grupos econmicos capitalistas e no com os problemas e demandas da maioria dos cidados.

    O Estado Contemporneo surge, ento, como resultado de um lento processo no qual a noo de direitos do cidado vai se ampliando e o poder poltico vai deixando de estar ligado pessoa do soberano e passando para o imprio da lei. Tem-se a instaurao do estado de direito e a crescente igualdade de participao do cidado nas decises do Estado. Surge o que se chama de democracia moderna.

  • 10

    2.3. Democracia e Cidadania

    No Estado Contemporneo, surgido das revolues burguesas dos sculos XVII e XVIII, a participao poltica foi elemento fundamental para a consolidao do imprio da lei e o atendimento s demandas de um nmero cada vez maior de cidados.

    A primeira experincia democrtica foi na Grcia Antiga, em Atenas. Todos os cidados atenienses podiam votar nas assembleias, onde se decidiam os rumos do Estado, e podiam ser escolhidos, por sorteio, para o desempenho de cargos pblicos. Esse tipo de democracia foi bastante criticado por vrios pensadores ao longo da histria porque no dava importncia para o conhecimento necessrio ao bom governo do Estado, que ficava sujeito aos interesses dos mais fortes, disfarados pela demagogia.

    Alm disso, eram considerados cidados apenas os adultos do sexo masculino, nascidos em Atenas e que fossem livres. Isso exclua a maior parte da populao, ou seja, as mulheres, os escravos e os estrangeiros, alm das crianas. Por outro lado, mesmo entre os adultos do sexo masculino a participao era baixa, pois a maioria no tinha tempo para se dedicar a atividades polticas. No fim das contas, havia pouca diferena entre a democracia grega e um tipo de oligarquia, onde os mais ricos que realmente decidiam os rumos do Estado.

    A democracia moderna buscou preservar a ideia de governo do povo, mas evitando os problemas da democracia grega. No questionamento do absolutismo monrquico do Estado Moderno, vrios pensadores defenderam a ideia de que a fonte primeira de legitimao do poder poltico a vontade popular.

    Assim, um primeiro sentido da democracia moderna foi o de ser uma forma de governo oposta a toda forma de despotismo e autocracia. Em outras palavras, numa democracia, decises devem ser tomadas no por um pretenso iluminado que dita o que deve ser feito, mas por instituies colegiadas, sujeitas ao controle e eleio popular.

    A democracia moderna se baseia fortemente no conceito de representao. Ao invs de supor que todo cidado vai participar diretamente das decises do Estado, os regimes democrticos modernos vo dar aos cidados o direito de eleger representantes e controlar o modo como estes exercem o poder em seu nome. Desse modo, em tese, poderiam ser escolhidas pessoas mais preparadas e interessadas em se dedicar aos assuntos pblicos.

    So necessrios, ento, mecanismos de eleio que espelhem a vontade popular, de informao do modo como a representao exercida e de acompanhamento das atividades e posicionamentos do representante.

    Outro conceito fundamental da democracia moderna o de igualdade de todos os cidados que tenham atingido a maioridade. Por conta da circunscrio territorial da noo de Estado, h em geral limites participao de estrangeiros. No entanto, pouco a pouco, foram sendo eliminadas restries de sexo, renda e escolaridade para a participao no processo eleitoral. Mesmo uma flexibilizao do conceito de maioridade foi sendo feita ao longo do tempo, com uma gradual diminuio da idade mnima para se votar e ser votado.

    Por outro lado, a democracia representativa moderna criticada por se restringir igualdade formal de todo cidado como eleitor. Para esses crticos, no adianta nada dar a todos o direito de votar quando o acesso educao e a bens de necessidade bsica desigual a ponto de inviabilizar uma participao consciente e bem informada na escolha dos representantes e

  • 11

    no controle das atividades do Estado. Em suma, a democracia deveria incluir no apenas a igualdade eleitoral, mas tambm condies para o exerccio da cidadania.

    No sculo XX, surge a noo de direitos sociais, a serem atendidos pelo Estado tambm. A participao poltica exigia informao e capacidade de discernir sobre os rumos que o Estado deveria tomar. Com isso, surge o direito educao gratuita, para todos os cidados. Alm da educao, aos poucos vo se instaurando outros direitos sociais, como previdncia e aposentadoria, sade, moradia, alimentao e renda mnima.

    A noo de cidadania, ento, vai se ampliando desde o incio da Idade Moderna. Aos poucos, cidado deixa de ser aquele que tem direitos civis apenas ( justia, ao direito ir e vir, expresso livre de suas ideias, propriedade, liberdade de crena religiosa), baseados na ideia de igualdade perante a lei, que garantem a vida em sociedade. Por conta de presses de grupos organizados, reformas polticas e revolues, o cidado foi adquirindo tambm direitos polticos, de determinar pelo voto quem vai exercer o poder no Estado e controlar o modo como seus representantes eleitos o exercem. Por fim, a cidadania incorporou direitos sociais, que garantem a participao na riqueza coletiva, de modo a diminuir a desigualdade econmica e social entre os indivduos e permitir a participao real de todos.

    2.4. Cidadania no Brasil

    Segundo Jos Murilo de Carvalho em seu livro Cidadania no Brasil: o Longo Caminho (2001), a conquista de direitos de cidadania em nosso pas seguiu curso diferente do que aconteceu em outros pases de economia desenvolvida. Mais do que isso, os elementos bsicos da cidadania, a igualdade de todos perante a lei e o acesso de todos justia, ainda no so uma realidade para os brasileiros.

    Temos ainda uma situao na qual h o que Carvalho chama de cidados de primeira, segunda e terceira classe. Os de primeira classe, que esto entre os cinco por cento mais ricos do pas, esto acima da lei, no sentido de que raramente so condenados por alguma infrao e, quando o so, conseguem escapar de punio graas contratao de bons advogados. Para estes, a lei s vale quando os beneficia e possibilita que consigam favores do Estado, por meio dos contatos que tm nas diferentes esferas do poder pblico.

    Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domiclios do IBGE, em 2003, os cidados com renda entre um e dez salrios mnimos seriam a maioria da populao. Na classificao de Carvalho, eles so os cidados de segunda classe, que esto sujeitos tanto aos rigores quanto aos benefcios da lei, mas de maneira incerta e incompleta. Devido demora e aos custos de uma ao na justia, falta de informao e ao medo de aes arbitrrias das autoridades policiais e judicirias, os cidados de segunda classe raramente exigem seus direitos.

    Cidados de terceira classe seriam os que ganham at um salrio mnimo mensal, algo em torno de vinte e cinco por cento da populao brasileira. Eles formam a maioria da populao que habita a periferia das grandes cidades brasileiras. Na sua maior parte, so pardos ou negros, com grau de instruo baixo ou mesmo analfabetos. No se sentem protegidos pela lei ou pelo Estado. Seu contato com as autoridades policiais ou judicirias no o de demanda por seus direitos individuais, mas como vtimas de violncia arbitrria e represso.

    Em outras palavras, a cidadania no Brasil ainda enfrenta o desafio de universalizar os direitos civis e fazer valer o Estado de Direito, com a igualdade de todos perante a lei.

  • 12

    Quanto aos direitos polticos, houve avano notvel, especialmente depois da Constituio Federal de 1988, com a livre organizao partidria e as eleies diretas para prefeitos, governadores e presidente, alm dos cargos legislativos. No campo dos direitos sociais, houve avano tambm, com a universalizao da previdncia e aposentadoria, com a quase universalizao da educao bsica, com o aumento do acesso das classes mais pobres a moradia prpria e com programas de renda mnima como o Bolsa Famlia.

    No se pode negar que houve avanos, mas ainda h muito que fazer.

    Histria da Cidadania no Brasil

    Segundo Jos Murilo de Carvalho em Cidadania no Brasil: o Longo Caminho (2001), a histria da cidadania no Brasil pode ser dividida em quatro perodos:

    (I) Da Independncia Revoluo de 1930.(II) De 1930 ao Golpe Militar de 1964.(III) De 1964 Redemocratizao em 1985.(IV) De 1985 em diante.

    Em cada um desses perodos, foram dados passos importantes no sentido de se estabelecerem no Brasil os direitos civis, polticos e sociais que caracterizam a cidadania no mundo contemporneo.

    (I) Da Independncia Revoluo de 1930.

    O Brasil independente herdara de Portugal um imenso territrio, com uma populao unificada em termos lingusticos e religiosos. Herdara tambm um analfabetismo quase universal, com pouca instituies dedicadas educao, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiria, e um Estado centralizador e sem participao democrtica.

    A escravido foi o elemento mais negativo para a cidadania, pois o escravo no era sujeito dedireitos, mas um ser humano reduzido condio de objeto de propriedade. Ela marcou profundamente a sociedade brasileira nas primeiras dcadas de sua existncia como pas independente. A abolio da escravatura em 1888 pouco representou de avano, pois a populao afrodescendente continuou excluda de bens sociais, com consequncias at hoje.

    A justia era exercida como instrumento do poder pessoal dos grandes senhores de terras, no havendo qualquer noo de igualdade perante a lei. No havia, na verdade, um poder pblico, mas apenas o uso da precria mquina do Estado para os interesses particulares dos grandes proprietrios. A lei era usada no para proteger o cidado, mas para perseguir os adversrios, numa completa privatizao do Estado, ficando famosa a expresso para os amigos tudo; para os inimigos, a lei.

    Os direitos polticos foram amplos inicialmente, com a permisso de voto aos analfabetos at a Repblica (em 1881). A proibio deste limitou muito o acesso ao direito de voto. Mas esse direito no significava participao do povo no governo do Estado, pois as prticas de compra de voto, fraude eleitoral e violncia eram comuns. At 1930, eleies eram apenas um meio de reforar o poder pessoal de grandes proprietrios e oligarquias regionais.

  • 13

    A rigor, no havia direitos sociais, pois a assistncia social no era prestada por instituies do Estado, mas por associaes particulares. Nem mesmo a educao primria era obrigao do poder pblico.

    (II) De 1930 ao Golpe Militar de 1964.

    O perodo marcado por significativos avanos nos direitos sociais, por uma situao ambguaquanto aos direitos polticos e lento progresso nos direitos civis.

    Alm de ter sido iniciado por um movimento com algum apoio popular e certo entusiasmo cvico, a chamada Revoluo de 30, o perodo contou com alguns avanos significativos no campo dos direitos polticos. Foi introduzido o voto secreto e criada uma justia eleitoral, como formas de combater as fraudes. Pela primeira vez, as mulheres tiveram direito de votar. Mas isso logo foi interrompido pela ditadura do Estado Novo. No perodo aps o fim do Estado Novo e at 1964, o pas viveu sua primeira experincia de democracia poltica mais digna desse nome, com eleies mais livres e limpas, alm de liberdade de imprensa e de organizao poltica. Cresceram em participao e em nmero os movimentos de organizao social, como a Unio Nacional dos Estudantes e as Ligas Camponesas, mas isso no foi suficiente para impedir novo golpe de Estado antidemocrtico em 1964.

    Os direitos sociais tiveram inegvel avano no perodo. O principal elemento desse fato foi a legislao social e trabalhista, que assegurava vrios direitos como o salrio mnimo, a jornada de trabalho de oito horas, as frias obrigatrias, as aposentadorias de vrias categorias de trabalhadores de forma diferenciada, a proteo do Estado ao trabalhador sindicalizado, com a criao de uma justia do trabalho. Isso, porm, se deu como um benefcio concedido pelo governo, que exigia em troca lealdade para com o governante, e no como um direito do cidado.

    Quanto aos direitos civis, estes foram seriamente comprometidos durante a ditadura do Estado Novo, restabelecidos aps o fim desta, mas no se enraizaram nem se ampliaram no perodo.

  • 14

    (III) De 1964 Redemocratizao em 1985.

    O perodo foi marcado por mais um avano nos direitos sociais, com um retrocesso nos direitos civis e polticos.

    A liberdade de expresso foi fortemente diminuda, com censura imprensa e proibio de reunies pblicas. Prises arbitrrias, violao de correspondncia, invaso autoritria de lares, tortura e assassinatos por rgos de represso do Estado completavam o quadro sombrio de atentado aos direitos civis no perodo.

    Eleies diretas para presidente da repblica foram excludas dos direitos polticos. No entanto,continuaram acontecendo eleies legislativas, embora o Congresso fosse sempre subserviente ao governo em sua maioria. Houve aumento na participao eleitoral e chegou-se a eleger maiorias oposicionistas, mas o governo as anulava com medidas arbitrrias. Ao final do perodo militar, porm, movimentos sociais foram se reforando, com o surgimento de um sindicalismo independente, de associaes profissionais, e de movimentos de sem-terra e sem-teto. O auge da mobilizao popular se deu na campanha das Diretas J, em 1984, que acabou levando ao fim da ditadura militar, embora no tenha conseguido fazer isso pelo voto direto.

    Quanto aos direitos sociais, foi unificado o sistema previdencirio e estendido aos trabalhadoresrurais, empregadas domsticas e trabalhadores autnomos, tornando-se finalmente universal.Instituiu-se o FGTS, como espcie de seguro-desemprego e o Banco Nacional de Habitao, para facilitar a compra de moradia pelos trabalhadores de baixa renda.

    (IV) De 1985 em diante

    A transio democrtica e a Constituio Federal de 1988 permitiram ao cidado brasileiro a maior conquista de direitos polticos de sua histria. No entanto, a enorme desigualdade social, o acesso difcil justia e a violncia urbana mostram um quadro de grande desafio para os direitos sociais e civis.

    Com a extenso do voto aos analfabetos e a diminuio da maioridade poltica para 16 anos, passouse a ter uma participao eleitoral equiparvel dos pases mais democrticos. A imagem dos polticos que predomina na populao, porm, a de corrupo e busca de vantagens prprias apenas. O impedimento sem golpe militar do primeiro presidente eleito diretamente, em 1992, foi um sinal de fortalecimento das instituies democrticas.

  • 15

    Quanto aos direitos sociais, houve pequeno avano nos indicadores de qualidade de vida, com a manuteno de uma enorme desigualdade de renda. Houve aumento da escolarizao fundamental, mas a qualidade desta ainda deficiente, com pouca valorizao da profisso de professor. Houve avanos na rea da sade, com a criao do Sistema nico de Sade, com significativos avanos na ateno sade materno-infantil. Importante programa de renda mnima foi criado para permitir condies bsicas de acesso aos bens para a populao mais pobre.

    Direitos civis como a liberdade de imprensa, de expresso e de organizao foram avanos importantes. Do mesmo modo, foi importante a criao de um Cdigo de Defesa do Consumidor, a criminalizao do racismo e a criao de um Juizado de Pequenas Causas. Vrias inovaes importantes foram feitas pela Constituio Federal de 1988, com o estabelecimento formal de direitos civis fundamentais. No entanto, a dificuldade do acesso justia, o desconhecimento dos direitos, a violncia policial, a sensao de impunidade e de privilgio dos mais ricos ainda so impedimentos graves cidadania plena.

    2.5. Servio Pblico e Desafios do Estado Contemporneo no Brasil

    O estudo da histria da cidadania no Brasil mostra que, na maior parte do tempo, o poder doEstado no foi usado para fins pblicos como a ateno aos direitos civis de todos os cidados e a ampliao dos direitos sociais, com vistas diminuio das desigualdades. O Estado brasileiro tem sido, na maior parte de sua histria, privatizado em benefcio dos mais poderosos.

    A esse fenmeno, os socilogos do o nome de patrimonialismo clientelista. Vejamos a seguir o que quer dizer essa expresso e como o entendimento dela permite entender o grave problema da corrupo.

    Patrimonialismo

    Segundo o socilogo alemo Max Weber, patrimonialismo uma forma de organizao da sociedade inspirada na economia domstica e baseada numa autoridade fortalecida pela tradio. O termo original do latim, patrimonium, e significa o conjunto de bens paternos, a herana familiar. Em outras palavras, no patrimonialismo, o poder do Estado est na mo de determinadas famlias, que se servem dos recursos pblicos como se fossem propriedade privada sua e exercem o poder no com base na lei, mas no prprio interesse dessas famlias dominantes, que se estabeleceram no passado e foram se mantendo poderosas ao longo dos anos.

    No Brasil, o patrimonialismo foi o modo como se organizou a sociedade antes do fortalecimento do Estado, da sua maior presena no cotidiano. Aos poucos, os interesses pessoais de famlias poderosas e seu arbtrio foram sendo substitudos por mecanismos mais impessoais de acesso aos bens, e decises tomadas com base na lei. Porm, valores tipicamente patrimoniais como a lealdade, o compadrio e o trfico de influncia, em suma, a cultura do voc sabe com quem est falando, parecem ainda muito presentes no Estado brasileiro.

    Clientelismo

    Um fenmeno estreitamente vinculado ao patrimonialismo o clientelismo. Enquanto o patrimonialismo o modo como se organiza a sociedade (em torno de famlias que detm um grande patrimnio e so consagradas pela tradio), o clientelismo a faceta poltica do patrimonialismo e se define por um modo de relacionamento entre o poderoso e os que dele

  • 16

    dependem, os seus clientes. Na Roma antiga, a clientela era uma relao de dependncia econmica e poltica entre um patrono, que oferecia seu poder de proteo e influncia, e o cliente, que lhe prestava lealdade, servio militar e, em circunstncias especiais, pagava-lhe tributo. Tratava-se, portanto, de uma relao de dependncia pessoal, de natureza vertical, ou seja, h no clientelismo um superior e um subordinado.

    Ainda hoje subsistem relaes de clientelismo no Estado brasileiro. Embora a sociedade moderna no se organize mais em torno de famlias poderosas, mas de um Estado burocrtico, relaes polticas clientelistas se mantm na troca de favores entre o poltico profissional e os que o apiam, por exemplo. Aquele oferece a estes todo tipo de ajuda pblica (verbas, lotes, licenas, contratos, empregos, funes no Estado etc.) em troca de votos e suporte em perodos eleitorais. Trata-se de um fenmeno de personalizao do poder, ou seja, o Estado tomado como parte do patrimnio pessoal do poltico e no como coisa pblica, um caso de confuso entre a esfera pblica e a esfera privada. Um caso tpico desse tipo de dificuldade a corrupo.

    Corrupo

    Corrupo significa, em termos gerais, deteriorao, adulterao das caractersticas originais de algo. Em termos da administrao pblica, corrupo o fenmeno pelo qual o funcionrio pblico age de modo diferente da lei, favorecendo interesses particulares em troca de recompensa. O peculato (desvio ou apropriao de recursos pblicos para uso privado) e o nepotismo (favoritismo em relao a parentes) so exemplos de corrupo pblica. Trata-se de um comportamento que se define principalmente pela confuso entre a esfera pblica e a esfera privada, entendidos dentro dos limites da lei no Estado.

    Por outro lado, embora se possa esperar menos corrupo num Estado com menos recursos (pois a esfera pblica menor), o que realmente parece determinar a possibilidade de corrupo, do ponto de vista jurdico, a falta de mecanismos institucionais claros e operacionais de controle e responsabilizao pblica do uso dos recursos pblicos. Por outro lado, a corrupo tem tambm a ver com a falta de disseminao da cultura que distingue o domnio pblico do domnio privado e que valoriza o Estado como instituio que deve estar a servio de todos, de forma impessoal e no de interesses individuais.

    Assim, do ponto de vista tico, a corrupo antes de tudo um problema derivado da falta de separao entre a esfera pblica e a privada, ou seja, o fato de o servidor pblico tomar os recursos do Estado como se fossem seus ou do grupo ao qual est ligado.

    O Estado impessoal, que est a servio de todos, baseia-se em relaes polticas horizontais, ou seja, no entre superiores e subordinados, mas entre cidados e servidores pblicos, com direitos e deveres estabelecidos em lei e da vontade consagrada pelo voto, e no dependentes da vontade arbitrria de indivduos ou famlias poderosas.

    No livro A Gramtica Poltica do Brasil Clientelismo e Insulamento Burocrtico (1997), Edson Nunes chama a esse modo de proceder do Estado, com base em normas democrticas e vlidas para todos, de universalismo de procedimentos. Embora sua concretizao plena ainda seja um desafio a ser vencido, o estabelecimento do concurso pblico como critrio nico para ingresso nas carreiras de servidor do Estado, previsto na Constituio Federal de 1988, so um grande impulso nesse sentido. Desse modo, o servidor concursado no depende mais de um benfeitor que lhe concedeu o emprego e lhe exige lealdade. Seu compromisso passa a ser com o cidado que paga os impostos e no com um poderoso de planto ou com o grupo poltico que o ps no cargo.

  • 17

    Alm do clientelismo, que seria o modo mais comum de relao entre Estado e sociedade no Brasil, tal como vimos acima, Nunes indica outro padro de procedimento, que se tornou mais comum no Brasil a partir de 1930: o insulamento burocrtico. Trata-se de um modo de proceder do servio pblico que imune s ingerncias do clientelismo e que pretende se guiar exclusivamente por critrios tcnicos nas decises e iniciativas. Foi particularmente importante durante a ditadura do Estado Novo, quando foram criados vrios rgos pblicos destinados a aumentar a eficincia do servio pblico, e no perodo da ditadura militar instaurada em 1964. Apesar de no ser clientelista, o insulamento burocrtico criticvel porque se trata de um Estado e um servio pblico voltados para si mesmos e no para atender os direitos do cidado , criando-se uma burocracia isolada das demandas sociais.

    2.6. Responsabilidade Pblica (Accountability)

    Para finalizar essa reflexo sobre tica e a conduta do servidor pblico, importante pensarmos um pouco sobre a noo de responsabilidade pblica, uma traduo possvel do termo ingls Accountability. Em seu artigo Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o portugus?, Anna Maria Campos coloca em questo exatamente a possibilidade de traduzir a palavra inglesa para o portugus, devido diferena nas culturas de servio pblico existentes no Brasil e nos Estados Unidos.

    Segundo ela, a comparao revela alguns problemas graves de nossa administrao pblica. Por um lado, observa-se a desconsiderao pelo cidado a ser atendido e pelos recursos pblicos a serem usados, o formalismo e a falta de transparncia. Por outro, a passividade diante da corrupo e do desrespeito, e a desinformao acerca dos prprios direitos, por parte do prprio cidado no Brasil so tambm impressionantes para quem compara os dois pases quanto relao entre Estado e sociedade.

    Embora o controle interno, conduzido pelos superiores hierrquicos, possa ajudar no aperfeioamento do carter pblico do servio prestado pelo Estado, ele no suficiente para garantir a qualidade e a relevncia no atendimento das demandas dos cidados. Faz-se necessrio um tipo de controle mais direto do servio pblico, por meio da mdia, por exemplo, e outros modos de exerccio ativo da cidadania. Nesse sentido, a prestao de um servio pblico mais adequado precisa de uma sociedade civil mais bem organizada e do fortalecimento da democracia.

    Em suma, fica o desafio de aproximar o desempenho do servio pblico brasileiro das necessidades do cidado, colocando as demandas pblicas acima dos interesses privados de quem est ocupando um cargo pblico e acima da politicagem de grupos que usam a mquina do Estado para fins exclusivos de sua perpetuao no poder. Em outras palavras, o desafio tornar o servio pblico realmente voltado para o interesse pblico e o respeito aos direitos do cidado. O desafio aumentar o grau de responsabilidade pblica do Estado.

    Por fim, h tambm o grande desafio de enraizar na cultura brasileira as noes de 1) igualdade fundamental de todo cidado perante a lei e as instituies, e 2) respeito s normas como condio para a democracia e a proteo dos direitos de todos. Assim, um grande desafio que se coloca para a tica na vida pblica entre ns o de trocar o proverbial voc sabe com quem est falando?, que expresso da desigualdade antidemocrtica arraigada em nossa cultura, pelo quem voc pensa que ?, que exprime a noo oposta, de igualdade democrtica*. Esta ltima mostra uma reao cidad contra uma conduta de quem se pretende acima dos outros, pois exige o respeito dos direitos e protesta contra quem se pretende fora do alcance da lei. Mas esse j no um desafio apenas para o servio pblico, e sim para todos os cidados brasileiros.

  • 18

    A expresso Voc sabe com quem est falando? e a cultura brasileira

    Apesar de ambas as expresses parecerem arrogantes, Voc sabe com quem est falando?exprime uma atitude oposta a Quem voc pensa que ? no tocante cidadania e vida pblica.

    Voc sabe com quem est falando? uma afirmao de quem quer ser tratado de modo especial, acima das normas gerais, porque se entende uma pessoa mais importante que as outras. Trata-se de uma iniciativa que visa romper a impessoalidade das regras isonmicas ao incluir um elemento de diferenciao pessoal.

    J o Quem voc pensa que ? uma reao contra uma atitude que desrespeita a universalidade do tratamento igual a todos segundo regras previamente estabelecidas. Ao contrrio da expresso anterior, ela visa restaurar a impessoalidade da vida pblica e o tratamento isonmico.

    Um tratamento muito importante da diferena entre as duas expresses foi dada no livro Carnavais, Malandros e Heris Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro (1979), escrito pelo antroplogo brasileiro, radicado nos Estados Unidos, Roberto DaMatta. Segundo DaMatta, a cultura brasileira vive um dilema de ficar no meio caminho entre a hierarquizao do sistema de castas indiano e a igualdade do sistema legal isonmico norte-americano. Predomina entre ns uma situao de ambiguidade, que nem totalmente hierrquica nem totalmente igualitria, que, ao mesmo tempo, inclui e exclui. Como dizia Tom Jobim, o Brasil no para principiantes...

    Diferentemente da ndia, onde o tratamento todo baseado em hierarquias definidas pela pertena a uma casta, sem a possibilidade de mudana de posio social, h no Brasil a possibilidade do tratamento amistoso sincero entre pessoas de diferentes classes sociais e no h barreiras intransponveis para a mobilidade social.

    Por outro lado, a cultura brasileira no tem um sistema de tratamento inteiramente impessoal, que tem o indivduo isolado como centro das relaes sociais, como o caso dos Estados Unidos. muito forte entre ns a importncia da famlia e das relaes pessoais e consideramos ruim estarmos longe das pessoas queridas (da o sentimento de saudade, como falta do aconchego daqueles que nos tratam como pessoas especiais e no como indivduos iguais a todos os outros).

  • 19

    A possibilidade de termos tanto um mbito de tratamento impessoal e baseado em regras quanto o de relaes pessoais e amistosas pode ser considerada uma virtude da cultura brasileira. No h problema em se valorizar o calor humano das relaes pessoais no convvio da famlia ou dos amigos. O problema do Voc sabe com quem est falando? que ele representa uma transposio indevida de hierarquizaes pessoais para a vida pblica, onde devem prevalecer regras vlidas para todos, inclusive com concesses queles que se considerem merecedores de tratamento especial (como idosos e deficientes fsicos, por exemplo), mas sem privilgios baseados em posies econmicas ou sociais.

    Alm disso, no caso de um servidor pblico, o Voc sabe com quem est falando? tambm supe uma confuso entre a funo desempenhada e a pessoa que o desempenha. isso que se tem no tristemente famoso fenmeno da carteirada, tambm analisado por DaMatta. No servio pblico, essa uma grave confuso e um desvio de conduta, pois o cargo no pertence pessoa que dele est incumbida. As prerrogativas que o cargo oferece no so propriedade do servidor que o ocupa, mas meios para o desempenho das suas atribuies.O desafio para o Estado e o servidor pblico brasileiro seria, ento, o de tratar a todos os cidados segundo as mesmas regras, mas, ao mesmo tempo realizar seu trabalho como um autntico servio ao pblico, de um jeito bem brasileiro que misture respeito s leis e interesse autntico pelo bem do outro. Como naturalmente no nos faltam afeto e empatia, nossos desafios parecem mesmo ser o do tratamento isonmico a todos e o respeito s leis.

    Referncias bibliogrficas

    1) Sobre o conceito de repblica e o pensamento republicano, ver a coletnea de artigos Pensar a Repblica organizada por N. Bignotto (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002).Ver tambm os artigos publicados em Lua Nova- Revista de Cultura e Poltica n.51, 2000(So Paulo: Cedec).

    2) Sobre patrimonialismo, ver de Max Weber Economia e Sociedade (Braslia, UnB).

    3) Sobre clientelismo e corrupo, ver Dicionrio de Poltica (Braslia, UnB), organizado por Norberto Bobbio).

    4) Sobre o conceito de democracia, ver de R. Dahl, Sobre a Democracia (Braslia: UnB,2001).

    5) Sobre a origem da idia de Estado, ver de Q. Skinner, El Nacmiento del Estado (Buenos Aires: Editorial Gorla, 2003).Sobre o desenvolvimento histrico do Estado moderno, ver C. Tily, Coero, Capital e Estados Europeus (So Paulo: Edusp,1996).

    6) Sobre o imprio da lei (rule of law), ver o verbete correspondente em The Blackwell Encyclopaedia of Political Thought , organizado por D. Miller et all (Oxford: Blackwell. 1987).

    7) Sobre a noo de cidadania, ver os ensaios de T. H. Marshall em Cidadania, Classes Sociais e Status (Rio de Janeiro: Zahar, 1967), o livro de R. Bendix, Construo Nacional e Cidadania (So Paulo: Edusp, 1996) e Cidadania no Brasil: o Longo Caminho (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001) de Jos Murilo de Carvalho.

    8) Sobre os conceitos de cargo e cargo pblico, ver de M. Walzer, Esferas da Justia (So Paulo: Martins Fontes, 2003), captulo 5.

  • 20

    9) Acerca dos modos principais da relao entre Estado e sociedade no Brasil, ver o livro de Edson Nunes Gramtica Poltica do Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrtico (Rio deJaneiro: Zahar, 1999).

    10) Sobre a prestao pblica de contas (Accountability ), ver o artigo de G. O'Donnell,Accountability Horizontal e as Novas Poliarquias em Lua Nova- Revista de Cultura ePoltica 44:27- 54, 1998; e tambm o de Anna Maria Campos, Accountability: QuandoPoderemos Traduzi-la para o Portugus, em Revista de Administrao Pblica 24 (2): 30-50, 1990.