gramatica_das_cores

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    Ideao,Feira de Santana, n.4, p.87-94 , jan./jun. 2000.

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    SOBRE A GRAMTICA DAS CORES EMWITTGENSTEIN

    Joo Carlos Salles Pires da SilvaProfessor do Departamento de Filosofia da UFBA

    [email protected]

    1. Nosso objeto a gramtica das cores na obra de Wittgenstein.

    Logo, relaes internas entre cores e no relaes externas entrepigmentos, raios luminosos ou processos retinianos, que subor-dinariam a investigao gramatical a um tratamento hipottico,interessando precipuamente a fsicos, psiclogos ou antroplo-gos. Cabe, pois, investigar o uso normativo das palavras paracores, porquanto, assim, pretende Wittgenstein uma descriogramatical pode perfazer o que seria prprio de uma fenomenologia,na medida em que seu alvo nunca a verdade da percepo , masantes suas condies de sentido. A reflexo gramatical incide,ento, sobre coisas que, paradoxalmente, perdem sua corquando passam a ter cores, ou melhor, quando ter cores estar determinado por padres para o uso correto de expres-

    ses descritivas de nosso campo visual.

    2. H dois momentos especialmente propcios a tal inves-tigao. Primeiro, quando Wittgenstein, a partir da recusa, em1929, de uma linguagem primria, dirige sua ateno para osaspectos gramaticais da linguagem ordinria que poderiamperfazer a exposio das condies de possibilidade de enun-ciados sobre os dados dos sentidos, constituindo-se na gra-mtica das proposies da fsica. E, finalmente, em 1950,quando se ope ao prprio projeto de uma qualquer fenomenologia,radicalizando ainda mais sua crt ica ao essencialismo do

    Tractatus. Esses dois momentos foram, por isso mesmo, des

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    tacados, recortados, deixando um tanto margem outrosmilhares de pargrafos sobre cores, com os quais, todavia, atese nunca deixa de contar por isso, gramtica das corese no, simplesmente, as cores em Wittgenstein. Nesses doismomentos, traos essenciais da reflexo gramatical se determi-nam, at porque se confrontam e, contrapostos, ressaltam,tambm pela reiterao, o ponto de unidade desta tese, que certamente sobre a gramtica das cores, mas na obra de Wittgenstein.Desse modo, a tese no se limita a reproduzir a descrio, enfimgramatical do emprego de palavras para cores; ela antes acom-panha, organiza e favorece a leitura da atividade teraputica quese faz por meio dessa descrio gramatical. Isto , aventurando-se em um esplio ainda pouco discutido, procura ordenar umsem-nmero de pargrafos desgarrados, de anotaes quasedesconexas, sem anular a tenso que os constituiu. Logo, torna-se tambm descrio de uma atividade algo errante, em meio qual, apenas, a cor pode figurar como autntico exemplo: umasituao conceitualmente confusa que sempre solicita e estimu-la o filosofar.

    3. No por acaso, modelos cromticos (instrumentos dedescrio, cuja arbitrariedade testemunha sobretudo sua autonomia)tiveram destaque nesta tese, tendo sido necessrio esclarecer

    a pleno algumas ilustraes do esplio grfico de Wittgenstein.Vale, porm, lembrar: tais modelos interessam ao permitiremseparar uma instruo de representao do real de proposi-es gramaticais, que delimitam a possibilidade de represen-tao do real. Com modelos cromticos, bem como cominstrues de pintura, estamo s, pois a jogar o jogo da descri-o, no qual se pode mostrar-se o essencial leitura de nossaexperincia da viso. Por conta disso, mesmo o mais datadodos modelos cromticos pode, a par de sua finalidade prtica,visar alm da contingncia com o que o artista nos ensinariaa reconhecer algo como essencial. Em outras palavras, ummodelo interessa se e quando a harmonia que alm eja, e acaso

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    atinge, no mais uma mera questo de gosto. E modeloscromticos diversos (octaedros, duplos cones, crculos) soanalisados de forma minudente por Wittgenstein, que nelesreconhece uma representao panormica de regras gramati-cais acerca do emprego dessas expresses que descrevemnossa percepo. Desse modo, como a essncia se expressa-se na gramtica, as observaes gramaticais de Wittgensteinsobre cores exploram, em parte, o conjunto de regras que aforma dos modelos exibe e, logo, o qu e faz sentido dizer compalavras para cores, que espcie de objeto uma cor pode ser.

    4. A primeira explorao inicia-se aps a renncia a umalinguagem primria. Tratava-se, ento, de contornar o impassedecorrente do fracasso da anlise de proposies sobre cores,qual seja sua incompatibilidade seria irredutvel a uma ex-presso no espao lgico, cuja forma no daria conta dedimenses qualitativas do objeto. Como sabemos, com ofracasso da anlise, o Tractatus entraria em colapso. Contrao aforismo 5.3, teramos proposies complexas que noresultam de operaes de verdade sobre elementares, ou(contra 4.211) proposies simples e, no obstante, incom-patveis, ou ainda (contra 2.061) estados de coisas dependen-tes entre si quando a comp arao com a realidade deveria

    ser a fonte exclusiva da verdade de uma proposio elemen-tar, em conformidade com 2.223 e 2.224. A anlise fracassae a incompatibilidade ampla no se resolve em uma contradio,uma vez que, dada a idempotncia dos elementos subordinadosa uma determinao numrica, a gradao no encontraria umaadequada representao funcional. Isto , uma proposio queatribua um grau (um matiz, por exemplo) a uma mancha nopoder ser analisada de modo veri-funcional, pois assim ou osgraus se anulariam porque idempotentes ou, caso distintos,continuariam a excluir-se. E uma proposio vazia, no espaodas cores, pareceria, contudo, significativa no espao lgico.Para evit-lo, Wittgenstein recorre noo de excluso eesboa o projeto de uma linguagem primria, plstica, com

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    a conseqente tentao fenomenolgica de apanhar necessidades regionais no campo do emprico.

    5. Alguns meses depois, ainda em 1929, Wittgensteinrenuncia a esse projeto, dizendo-o mesmo absurdo, pois cedopercebe que importaria em algo como a produo, maneirade Mach, de uma imagem nebulosa do campo visual. No sepode, contudo, fazer uma imagem visvel da imagem visual. Ocampo visual no se duplica, sob pena de perder sua autonomia,de passar a ter um dono. A indistino dos limites do campovisual e a indistino de um seu esboo jamais se equiparariam,simplesmente porque indistino significa diversamente nes-ses contextos. Tentar tal reproduo seria oferecer uma ntidaimagem do indistinto, uma imagem exata do confuso, e prlimites (borrados que sejam) a isso que no tem limites nem sedeixa referir sem indistino. A nebulosidade do desenho eli-mina a nebulosidade do campo que, entretanto, deseja represen-tar; e a ausncia de limites, essencial ao campo, anula-se comele. No entanto, se o inexato escapa at ao inexato, a linguagemordinria bem serve ao propsito de representar determinadamenteo que envolve vagueza, sendo sua luz oblqua uma luz possvele suficiente, contanto que, resistindo linguagem com seusmeios, no nos concentremos na verdade da percepo, mas na

    sua possibilidade gramatical. Com isso, a explorao gramaticaldo espao das cores pode iniciar-se, recusando-se Wittge nsteina descartar o que se lhe impunha com fora de necessidade diferena, por exemplo, do modo quase cientfico de umSchlick. Explorar o espao das cores equivale ento a escla-recer o sentimento profundo por que reconhecemos em propo-sies desse tipo a fora de necessidade. No est ainda claroquo interior a relao entre tal necessidade e os fatos maisgerais da vida. Tampouco colhida a necessidade em jogos delinguagem, mas j temos um caminho claro para a unidade entreo amplo e o restrito, a saber, o tratamento uniforme de ambasas incompatibilidades no passa mais pela simples reduo da

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    restrita ampla, mas pelo reconhecimento de sua comum na-tureza gramatical. Uma proposio como Em um ponto do campovisual, em um dado tempo, s h lugar para uma cor seria umaproposio gramatical disfarada, de modo que neg-la no uma contradio, conquanto contradiga sim uma regra de nossagramtica. Fenomenologia , portanto, pura gramtica, e asproposies cifradas no octaedro esto imunes a resultadosinesperados de alguma mistura. Ou seja, um modelo cromticono empregado hipoteticamente nesses casos, no serve aalgum experimento: ele empregado para efeito de clculo.

    6. A segunda explorao suscitada por um confrontodireto com Goethe. Cabe ento destacar, por um lado, acrtica unilateralidade da anlise fenomenolgico-morfolgicade Goethe, que no poderia, segundo Wittgenstein, querservir-se das lies da pintura quer instruir os pintores; poroutro lado, cabe salientar a transformao alegrica da ex-perincia da pintura. Ensinando-nos o essencial da viso decores, o olhar do artista, agora traduzido em comportamen-tos, em regras de representao, passa a servir ao exemplo dascores, afastando confuses conceituais pregnantes, como ade que sobre cores aprenderamos por olhar. A matemtica dacor do emprego que Goethe transformara em fenmeno pri-

    mordial no se quebra, por conta disso, nem se lhe esvai anecessidade: o problema sua generalizao, que fundamen-taria uma anlise fenomenolgica como a de Goethe. Logo,como o afirma Wittgenstein, no clebre pargrafo 53 domanuscrito 176, no h fenomenologia, supondo-se que umaqualquer se fundamentaria em uma identidade nos conceitosde cor, resultante das relaes internas postas por um nicoemprego. Enquanto, ao contrrio, pargrafo 56, a diversida-de clara.

    7. Criticada tal unilateralidade, que denunciaria o fracas-so de uma qualquer fenomenologia diante de problemas

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    fenomenolgicos legtimos, os vrios captulos gramaticaisda cor podem encontrar-se doravante em um livro que no mais gramtica alguma. Uma cor conceitualmente escura,como o cinza, ou seja, uma assim determinada por nossosjogos e apenas a partir deles, nunca ser vista como brilhante;o branco nunca ser visto como transparente, embora possaser visto, em certos casos, como no sendo a cor mais clara.Ora, este tipo diverso de impossibilidade, que comporta umldimo problema fenomenolgico, ns podemos bem descre-ver, mas no contexto da gramtica dos usos, no contexto dagramtica do ver. Pelo contrrio, seriam ineludveis as difi-culdades da Doutrina das Coresde Goethe, ou melhor, de suafenomenologia ou de qualquer fenomenologia que dependade uma uniformizao das ferramentas conceituais da lingua-gem, dada a indeterminao, em nossos jogos, do conceito deidentidade de cor. Isso, porm, que significaria o fim dafenomenologia (neste particularssimo sentido) no deve cons-tituir uma dificuldade sria para uma gramtica dos usos eantes a solicita e justifica. Como no h um puro conceitode cor, resultado de um uso nico e uniforme; como somuitas as diferenas, sem que um conceito abstrato sejasatisfeito por qualquer instanciao cromtica ou sejam ostermos para cores intercambiveis; como nossos conceitos se

    ligam a usos particulares e temos por isso conceitos de corpara substncias, outros que se referem a superfcies, outrosainda a brilhos, sem esquecer os que se aplicam a corpostransparentes: as relaes internas no precisam restringir-seao limitado e exato jogo das tapearias!

    8. Ao acompanharmos essas duas exploraes do espaodas cores, que ora registramos de modo sucinto e impreciso,talvez tenhamos produzido pouco alm de um comentrio exaustivoa uma frase banal, de aparncia inocente, que editores juntarams suas anotaes pessoais, como se fora de relevncia biogr-fica e pouco terica: As cores estimulam o filosofar. Elas

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    parecem propor um enigma, que estimularia sem afligir. Talvezat isto explique a paixo de Goethe pela Doutrina das Cores,comenta Wittgenstein . Ora, se estimulam especial e reiteradamenteo filosofar ( diferena, digamos, do jogo de xadrez), precisoconceder autonomia ao tema e determinar seu estatuto deexemplo, sem que nos obriguemos tentadora, mas especiosaidia de uma latncia prospectiva, a uniformizar o recorrente ehomogeneizar quanto se reitera. Mediante uma mudana deaspecto e nfase em uma latncia retrospectiva, que a muitospode parecer uma deformao, pudemos ler o Tractatus luz doaforismo 6.3751, bem como, em decorrncia, lemos os textossubseqentes luz difusa da alternncia entre a incompatibi-lidade ampla e a restrita e das tentativas sucessivas de umtratamento uniforme de proposies gramaticais, como a queafirma geomtrico o abismo entre o verde e o vermelho. Damesma forma, pudemos confrontar defesas discordantes daautonomia do campo visual, que, segundo reza forte imagem,sempre se expressaria em saturao recproca com as cores.Acompanhamos ainda a peripcia prodigiosa de mltiplas etambm diversas negaes de uma certa fenomenologia, enfimcifrada no enunciado do paradoxo de Goethe que, por sinal, peem questo at mesmo o beneplcito outrora dirigido ao octaedroe tambm destaca um importante aspecto: os manuscrit os 17 2,

    173, 176 e 169 do esplio de Wittgenstein, redi gidos em 1950e editados em parte como Anotaes sobre as Cores, tambmpodem ser iluminados por uma importante relao entre ospargrafos 73 e 53 do manuscrito 176, qual seja, a relaoentre no ter Goethe escrito para pintores e no haver umafenomenologia (apesar dos muitos e legt imos problemasfenomenolgicos). Tendo, pois, sempre em conta seu estatutode exemplo, de ocasio natural do filosofar, de amlgama detrivialidades e paradoxos, a autonomia e a centralidade do temadas cores reinventam o andamento (por vezes, lento) da obra.Como a conjurar fantasmas renitentes, a obra subordina-se, depreferncia, ao signo da terapia. No caso, terapia da suposio

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    corriqueira de um fundamento extralingstico para a determi-nao conceitual das cores e, sobretudo, de suas relaes inter-nas, mostrando-se a necessidade, aps a investigao da lgicados conceitos de cor, inerente a formas to-somente lingstica s,e todo aspecto gramatical relevante (como a simplicidade mes-ma da cor, que sempre se julgou tocar por ostenso) revela-seinterior linguagem, ou melhor, uma funo de nossos usosde expresses para cores. O exemplo coincide agora com amelhor alegoria.

    10. Vale, enfim, anotar que esta tese, tendo enfrentadodificuldades adicionais pelo estado da edio do esplio, trouxeum saldo ntido. Reconstitumos uma parte importante do corpuswittgensteiniano, ou seja, restabelecemos o texto com todassuas variantes, restauramos a ordem correta de seus pargrafose tambm corrigimos a datao de anotaes sobre cores de1950. E o resultado desse trabalho, a saber, o texto restabele-cido de parte dos manuscritos 169, 172, 173 e 176 do esplio,apresentado, no segundo volume da tese, um saldo conside-rvel e talvez o nico inequvoco de todo nosso esforo.

    * Este texto um breve resumo da Tese de Doutorado em

    Filosofia: SILVA, Joo Carlos Salles Pires da, A Gramtica dasCores em Wittgenstein, Campinas, UNICAMP, 1999, vol. 1 (367pginas) e vol. 2 (261 pginas). A tese foi orientada pelo Prof.Dr. Arley Ramos Moreno e foi submetida, em 18 de maro de1999, ao julgamento da banca, composta pelo orientador e pelosProfs. Drs. Bento Prado de Almeida Ferraz Jnior, Carlos AlbertoRibeiro de Moura, Oswaldo Giacoia Jnior e Paulo RobertoMargutti Pinto. A tese est disponvel tambm na Biblioteca daFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFBA.