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Page 1: Mitificacao_Do _Heroi_Lusiadas

ESCOLA SECUNDÁRIA DA PORTELA

ANO LECTIVO 2009/2010 – 12º C

A MITIFICAÇÃO DO HERÓI

Do grego mythos, que significa narrativa ou lenda.

O mito, num sentido generalizado e mais comum, é uma crença imaginária

baseada na credulidade daqueles que a aceitam.

Também considerado uma fábula ou um conto, trata-se de uma narrativa didáctica

que exprime uma concepção ou ideia abstracta. Os mitos têm importantes funções sociais,

já que asseguram a coesão do grupo ao fornecerem uma justificação à ordem,

simultaneamente natural e social, no mundo, bem como fundamentam e regulam as

condutas sociais e favorecem a coesão e a solidariedade social.

O mito conta uma história sagrada, ou seja, um acontecimento primordial que teve

lugar no início do tempo. Contar uma história sagrada equivale a contar um mistério,

porque as personagens de um mito são deuses ou heróis. O mito é a história do que se

passou, a narração daquilo que os deuses ou os seres divinos fizeram no início do tempo. É

a narração da Criação, isto é, o mito explica como e porque é que qualquer coisa existiu.

Ele fundamenta e justifica a existência do mundo sacralizando-o, atribuindo-o à acção de

seres sobrenaturais. Neste sentido, o mundo só existe de facto na medida em que participa

do sagrado e do verdadeiro ser.

Mito, in Infopédia, Porto Editora, 2003-2006

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A reflexão sobre a origem e o conceito do mito permite-nos concluir que:

etimologicamente, é uma narrativa lendária;

tem uma intencionalidade didáctica;

desempenha uma relevante função social, ao assegurar a coesão do

grupo;

as suas personagens são deuses ou heróis que protagonizam acções

que remontam ao início dos tempos;

a existência do mundo é fruto da acção de entidades sobrenaturais;

o mito explica o inexplicável;

no início de tudo está o mito.

Influenciada pela ideologia humanista do Renascimento, a epopeia de Camões

coloca o homem português no centro do mundo, ao atribuir-lhe características humanas e

sobre-humanas.

Ao longo do poema, o homem português, é protagonista de vários acontecimentos,

quer da História de Portugal, quer da Viagem à Índia, que, assinalados pela sua dificuldade

de realização e grandeza, o elevam a uma dimensão superior, sobrenatural.

Paralelamente, a introdução do plano mitológico, com a intriga dos deuses, sublinha

ainda mais a superioridade do homem, contribuindo para a progressiva construção de um

conceito de herói que ultrapassa os limites do humano e ascende a uma dimensão divina.

O primeiro momento dessa progressiva construção do herói coincide com a

Proposição, em que se apresenta, de forma sintética, o conceito de herói.

Segundo a tradição do género épico, a Proposição constitui a primeira parte da

estrutura interna da Epopeia e, nela, o poeta exprime o seu propósito, a sua proposta de

trabalho.

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Proposição [I, 1-3]

Funciona como um sumário do poema e os aspectos fundamentais nele incluídos

são:

a expressão da intenção do poeta: glorificar os feitos do povo português,

através do seu canto épico “As armas e os barões assinalados”, “Daqueles

reis que foram dilatando / A Fé, o Império…”; “E aqueles que por obras

valerosas / Se vão da lei da Morte libertando”;

a indicação da dimensão colectiva do herói – “Que eu canto o peito ilustre

lusitano”;

o anúncio dos quatro planos estruturais da narração:

o o da Viagem: “As armas e os barões assinalados / Que da Ocidental

praia lusitana, (…) / Passaram ainda além da Taprobana, / (…)

edificaram / Novo Reino…”;

o o da História: “…Reis que foram dilatando / A Fé e o Império,…”;

o o do Poeta – “Cantando espalharei por toda a parte, / Se a tanto me

ajudar o engenho e a arte”;

o o da Mitologia: “Cessem do sábio grego e do Troiano / As

navegações grandes que fizeram; (…) A quem Neptuno e Marte

obedeceram. / Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro

valor mais alto se alevanta”.

Note-se que, progressivamente, Camões faz ascender os humanos e um plano de

Imortalidade, não só pela grandeza dos feitos cometidos, mas também pela suplantação dos

deuses.

Assim, desde logo, o poeta inicia o processo de mitificação do herói, elevando-o a

um estatuto superior e imortal, que suplanta o dos heróis antigos, místicos ou verdadeiros,

considerados modelos: Ulisses, Eneias, Alexandre Magno e Trajano.

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Invocação [I, 4-5]

Consciente da grandiosidade do seu projecto, Camões tem necessidade de invocar

divindades que o ajudem na sua tarefa de cantar estes heróis. Trata-se de mais um reforço

do processo de engrandecimento e divinização do herói, uma vez que o poeta precisa de um

estilo diferente daquele que usava na poesia lírica, pois a grandiosidade da tarefa assim o

exige.

Para tal:

a escolha do poeta recai sobre as Ninfas do Tejo – Tágides – divindades por ele

criadas, o que reforça o carácter nacionalista do poema;

o poeta adopta um novo tipo de canto, o épico – “um novo engenho ardente”, “um

som alto e sublimado”, “Um estilo grandíloco e corrente”, “hũa fúria grande e

sonora (…) / uma tuba canora e belicosa” – consentâneo com a grandiosidade do

Povo que canta – “Dai-me igual canto aos feitos da famosa / Gente vossa,…”

o poeta perspectiva uma dimensão universal para o seu poema (“Que se espalhe e

se cante no Universo”), já anunciada na Proposição (“Cantando espalharei por

toda a parte”).

Dedicatória [I, 6-18 e X, 146-156]

Facultativa na estrutura da epopeia clássica, Camões opta por introduzir uma

dedicatória no seu poema, dirigida ao rei D. Sebastião, por vários motivos:

um de ordem material, uma vez que o elogio ao rei “Senhor só de vassalos

excelentes” [C. X, 146]poderia trazer benefícios económicos, o que viria a

acontecer com a atribuição de uma tença;

outro, de natureza mais elevada, uma vez que, ao cantar a imortalidade dos heróis,

o poeta torna-se também ele imortal – “Que não é prémio vil ser conhecido / Por

um pregão do ninho meu paterno” [C. I, 10].

A Dedicatória é mais um momento de glorificação/mitificação dos heróis que se

projecta no próprio poeta.

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Ao longo de Os Lusíadas existem, porém, outros momentos que elevam o homem,

“bicho da terra tão pequeno”, à grandeza própria do herói sobre-humano e, por

conseguinte, mítico. Senão, vejamos:

No plano da História de Portugal, são vários os episódios e vários os

protagonistas que ilustram o processo de mitificação do herói:

Viriato

Figura histórica e simultaneamente mítica que Camões evoca no Canto III, est. 22,

Viriato é o “Pastor” e “homem forte” que “os feitos teve, / Cuja fama ninguém virá que

dome”, ganhando o estatuto de primeiro responsável pela criação do “Reino ilustre”,

Portugal.

Batalha de Ourique

No Canto III, ests. 42-54, o poeta narra este episódio bélico da nossa história,

assinalando a supremacia do exército mouro sobre o português – “Que tão pouco erra o

povo bautizado, / Que, pera um só, cem Mouros haveria”. No entanto, o rei português, D.

Afonso Henriques, animado pelo milagre da presença de Cristo, vence o inimigo serraceno

de forma valente e heróica – “Já fica vencedor o Lusitano, / Recolhendo os troféus e presa

rica; / Desbaratado e roto o Mauro Hispano”.

Batalha de Aljubarrota

Já no Canto IV, nas estâncias 28 a 45, surge um novo episódio bélico notável da

História de Portugal, desta vez opondo-se os exércitos português e castelhano. Antes da

descrição da batalha propriamente dita, o poeta evoca a figura de Nun’Álvares Pereira, o

verdadeiro herói que “Com palavras mais duras que elegantes, / A mão na espada, irado e

não fecundo, / Ameaçando a terra, o mar e o mundo” [C. IV, 14] desafia os seus

compatriotas a tomarem armas contra os invasores castelhanos. A sua postura e o discurso

por ele proferido evidenciam os atributos próprios de um herói:

Audácia;

Liderança;

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Determinação;

Energia;

Sabedoria;

Defesa de um ideal, o da liberdade.

A Batalha de Aljubarrota assinala, uma vez mais, a valentia dos portugueses que, apesar

de consideravelmente em menor número e menos bem apetrechados, conseguem a vitória

sobre os castelhanos, garantindo assim a defesa da liberdade da pátria do jugo castelhano.

No plano da Viagem, destacam-se outros episódios e figuras que realçam esta mesma

visão mítica do herói.

“As Cousas do Mar”

Após a passagem do Equador, e apesar de a rota ser conhecida, os navegadores

portugueses deparam-se com vários fenómenos característicos das águas quentes dos

trópicos: o Fogo de Santelmo e a Tromba Marítima, narrados no Canto V, ests. 16-23.

Face a fenómenos naturais, completamente estranhos aos marinheiros, o poeta

valoriza o conhecimento e o saber experimentais, fazendo uma crítica implícita àqueles

que conhecem o mundo apenas pelos livros: “Vejam agora os sábios na escritura / Que

segredos são estes de Natura!” [C. V, 22].

Mais uma vez, os nautas elevam-se ao patamar daqueles que desvendam os segredos

da natureza: “É tudo, sem mentir, puras verdades.” [C. V, 23].

A superação do medo destes fenómenos desconhecidos torna os navegadores

portugueses em verdadeiros argonautas.

O episódio do Adamastor

Este episódio constitui um dos marcos mais importantes na mitificação do herói,

uma vez que o esconderijo do gigante, que até então nunca fora descoberto, vai ser

desvendado pelos portugueses. Este episódio simboliza a luta desproporcionada entre os

homens e os deuses e é narrado no Canto V, ests. 37-60.

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Apesar da clara desproporção, Vasco da Gama não se intimida nem perante o

aspecto terrífico do gigante, nem perante as suas profecias ameaçadoras, assumindo um

estatuto igual ao do Adamastor: “Lhe disse eu: „Quem és tu? Que esse estupendo / Corpo,

certo, me tem maravilhado!” [C. V, 49]. E é o homem que acaba por ultrapassar os

obstáculos e por derrotar o gigante: “… e, cum medonho choro, / Súbito de ante os olhos se

apartou.” [C. V, 60], facto que simboliza a vitória dos homens sobre os deuses.

É ainda de referir que este episódio se liga ao da Ilha dos Amores. Na verdade,

quando Vasco da Gama interroga o gigante sobre a sua identidade, este conta-lhe que foi

uma trágica história de amor que o prendeu àquele promontório. Tendo-se apaixonado por

Tétis, Júpiter castigou-o, transformando-o num rochedo, constantemente rodeado pelo mar,

lar da sua amada ninfa. Ora, quando os portugueses são recebidos como deuses na ínsula

divina, Tétis será a companheira de Vasco da Gama. Tal significa que os portugueses

vencem os deuses na coragem, na determinação e também no amor.

Os limites da condição humana, o escorbuto

Quase no final da narração da viagem ao rei de Melinde, o Gama conta, de forma

emotiva e pungente, o sofrimento dos marinheiros que morreram devido ao escorbuto –

“doença crua e feia”, descrita no Canto V, est. 81-83. O episódio encerra com uma

reflexão do poeta sobre a igualdade dos homens perante a morte. “Quão fácil é ao corpo a

sepultura! / Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros / Estranhos, assi mesmo como os

nossos, / Receberão de todo o ilustre os ossos.” [C. V, 83].

A dor dos que morreram pela pátria é mais um degrau na mitificação do herói.

Ilha dos Amores

A chegada dos nautas portugueses à “ínsula divina” constitui o ponto máximo do

processo de mitificação dos Heróis, construído progressivamente ao longo do poema. Neste

episódio, que abrange os Cantos IX e X, est. 18-92 e 1-142, respectivamente, o Amor

aparece como Prémio e forma de alcançar a Imortalidade. Com efeito, são as próprias

deusas que escolhem os homens – os navegadores – para com eles se relacionarem,

legitimando, assim, o seu estatuto de heróis e imortalizando-os.

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Dentro do próprio episódio, tal como acontecera na Proposição, assiste-se a um

progressivo construir de um ambiente que potencializa a divinização dos heróis.

Vejamos as sucessivas etapas que os heróis percorrem:

o aparecimento da Ilha, mágico e súbito – “Que Vénus pelas ondas lha levava / (…)

Pera onde a forte armada se enxergava”;

a descrição idílica e sensorial da ilha, corresponde ao locus amoenus clássico: “Três

fermosos outeiros”, “gramíneo esmalte”, “Claras fontes e límpidas”, “verdura

viçosa”, “pedras alvas”, “sonorosa linfa”;

os jogos de sedução das “belas Deusas”, aconselhadas pela “mestra experta”, após

o desembarque dos marinheiros portugueses, “segundos Argonautas”;

a coroação e sagração dos heróis através do amor sensual com as ninfas;

a constatação que o esforço e o sacrifício conduzem à “fama grande”;

os deleites que a Ilha lhes oferece: “deleitosas Honras”; “preminencias gloriosas”,

“os triunfos”, “a fronte coroada / De palma e louro”, “a glória e maravilha”.