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  • 8/16/2019 _Peregrinacao___excertos_

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     Peregrinação

    de Fernão Mendes Pinto 

    (excertos organizados a partir da versão para português actual e glossário de Maria Alberta Menéres, com

    uma nota introdutória de duardo Prado !oel"o, #isboa, $elógio d%&gua, ')*

    Cap. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia

    Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim

     passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor

    tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matria de

    grande nome e de grande gl!ria" porque ve#o que, não contente de me p$r na minha %&tria logo no começo

    da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misrias e em pobreza, e não sem alguns

    sobressaltos e perigos da vida, me quis tambm levar às partes da 'ndia, onde em lugar do remdio que eu

    ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos( )as por outro lado, quando

    ve#o que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis *eus tirar sempre a salvo e p$r-me em

    segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe

    dar graças por este s! bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e

    tosca escritura que por herança deixo a meus filhos +porque s! para eles minha intenção escrev-la para

    que eles ve#am nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos, em

    que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da 'ndia, .ti!pia, /r&bia 0eliz, 1hina, 2art&ria,

     )ac&çar, 3amatra e outras muitas províncias daquele oriental arquiplago dos confins da 4sia, a que os

    escritores chins, siameses, guus, lquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao

    adiante espero tratar muito particular e muito amplamente( *aqui por um lado tomem os homens motivo

    de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não h&

    nenhuns, por grandes que se#am, com que não possa a natureza humana, a#udada do favor divino, e por

    outro me a#udem a dar graças ao 3enhor omnipotente por usar comigo da sua infinita miseric!rdia,

    apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que

     por mim passaram, e dela as forças e o 5nimo para os poder passar e escapar deles com vida+ . tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei neste 6eino, digo que depois de

    ter vivido at à idade de dez ou doze anos na misria e estreiteza da pobre casa de meu pai na vila de

     )ontemor-o-7elho, um tio meu, parece que dese#oso de me encaminhar para melhor fortuna, me trouxe

     para a cidade de 8isboa e me p$s ao serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz 

    ilustres, parecendo-lhe que pela valia tanto dela como deles poderia haver efeito o que ele pretendia para

    mim( 9sto era no tempo em que na mesma cidade de 8isboa se quebraram os escudos pela morte de el-rei 

     *( )anuel, de gloriosa mem!ria, que foi em dia de 3anta 8uzia, aos treze dias do ms de *ezembro do ano

    de :;

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    casa, fugindo com a maior pressa que pude( . indo eu assim tão desatinado com o grande medo que

    levava, que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a

    tinha comigo, fui ter ao cais da pedra onde achei uma caravela de /lfama que ia com cavalos e fato de um

     fidalgo para 3etúbal, onde naquele tempo estava el-rei *( =oão 999, que santa gl!ria ha#a com toda a corte,

     por causa da peste que então havia em muitos lugares do 6eino> nesta caravela me embarquei eu, e ela

     partiu logo( /o outro dia pela manhã, estando n!s em frente de 3esimbra, nos atacou um cors&rio francs,

    o qual abalroando connosco, nos lançou dentro quinze ou vinte homens, os quais sem resistncia ou

    reacção dos nossos, se assenhorearam do navio, e depois de o terem despo#ado de tudo quanto acharam

    nele, que valia mais de seis mil cruzados, o meteram no fundo" e a dezassete que escap&mos com vida,

    atados de ps e mãos, nos meteram no seu navio com a intenção de nos venderem em 8arache, para onde

    se dizia que iam carregados de armas que para negociar levavam aos mouros(

     ., trazendo-nos com esta determinação mais treze dias, banqueteados cada hora de muitos

    açoites, quis a sua boa fortuna que ao cabo deles, ao p$r-do-sol, vissem um barco e seguindo-o aquela

    noite, guiados pela sua esteira, como velhos oficiais pr&ticos naquela arte, a alcançaram antes de ser

    rendido o quarto da modorra, e dando-lhe trs descargas de artilharia a abalroaram muitoesforçadamente> e ainda que na defesa tivesse havido da parte dos nossos alguma resistncia, isso não

    bastou para que os inimigos deixassem de entrar nela, com morte de seis portugueses e dez ou doze

    escravos+

     .ra este navio uma formosa nau de um mercador de 7ila do 1onde, que se chamava 3ilvestre

    ?odinho, que outros mercadores de 8isboa traziam fretada de 3( 2om, com grande carregamento de

    açúcares e escravaria, a qual os pobres roubados, que lamentavam sua desventura, calculavam que

    valesse quarenta mil cruzados( 8ogo que estes cors&rios se viram com presa tão rica, mudando o prop!sito

    que antes traziam, se fizeram a caminho de 0rança e levaram consigo alguns dos nossos para serviço da

    mareação da nau que tinham tomado( . aos outros mandaram uma noite lançar na praia de )elides, nus

    e descalços e alguns com muitas chagas dos açoites que tinham levado, os quais desta maneira foram aooutro dia ter a 3antiago de 1acm, no qual lugar todos foram muito bem providos do necess&rio pela

    gente da terra, e principalmente por uma senhora que aí estava, de nome *( @rites, filha do conde de

    7ilanova, mulher de /lonso %erez %anto#a, comendador e alcaide-mor da mesma vila(

     *epois que os feridos e os doentes foram convalescidos, cada um se foi para onde lhe pareceu que

    teria o remdio mais certo da vida, e o pobre de mim com outros seis ou sete tão desamparados como eu,

     fomos ter a 3etúbal, onde me caiu em sorte mão de mim um fidalgo do )estre de 3antiago, de nome

     0rancisco de 0aria, o qual servi quatro anos, em satisfação dos quais me deu ao mesmo )estre de

     3antiago, como seu moço de c5mara, a quem servi um ano e meio( )as porque o que então era costume

    dar-se nas casas dos príncipes me não bastasse para minha sustentação, determinei embarcar-me para a

     'ndia, ainda que com poucas ilusAes, #& disposto a toda a ventura, ou m& ou boa, que me sucedesse+

    Cap. 26 – Da armada que o Achem mandou contra e!rei de Aar"# e do que he sucedeu

    chegando ao rio de Paneticão

     %assado este tempo da minha infirmidade, %ero de 0aria me mandou logo chamar à fortaleza, e

    me perguntou pelo que passara com el-rei de /arú e como e onde me perdera, e eu lhe relatei por extenso

    todo o sucesso da minha viagem e perdição, de que ele ficou assaz espantado(

     %orm, antes que trate de outra cousa me pareceu necess&rio dar relação do fim que teve esta

    guerra dos /chens, e em que parou o aparato da sua armada, para que fique entendida a razão do

     progn!stico e do receio em que tantas vezes com gemidos e suspiros tenho apontado por parte da nossa )alaca, tão importante ao estado da 'ndia quanto +ao que parece, esquecida daqueles de quem com razão

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    devera ser mais lembrada( %orque entendo que por via de razão, de duas h&-de ser uma> ou destruir-se

    este /chem, ou por seu respeito virmos n!s a perder toda a banda do sul, como )alaca, @anda, )aluco,

    Bunda, @orno e 2imor, afora no norte a 1hina, =apão, 8quios, e outras muitas terras e portos em que a

    nação portuguesa, por seus tratos e comrcios tem o mais importante e o mais certo remdio de vida que

    em todas as outras quantas são descobertas do cabo de @oa .sperança para diante, cu#a grandeza

    tamanha que se estende a terra por costa em dist5ncia de mais de trs mil lguas, como se poder& ver nos

    mapas e cartas que disso tratam, se sua graduação estiver na verdade( . tambm nesta perda +que *eus

     por sua infinita miseric!rdia nunca permitir& que ha#a, por mais descuidos e pecados que ha#a em n!s se

    arrisca perder-se a alf5ndega do )andovim da cidade de ?oa, que a milhor cousa que temos na 'ndia,

     porque nos portos e ilhas atr&s nomeadas consiste a maior parte do seu rendimento, afora a droga de

    cravo, noz e maça, que de l& se traz para este 6eino( . do mais que pudera dizer acerca disto, como

    testemunha de vista, não quero tratar aqui mais, porque isto somente me parece que basta para se

    entender a grande import5ncia deste neg!cio" e, entendida, não duvido que se lhe dar& o remdio que

     parecer necess&rio( . com isto me torno a meu prop!sito( .ste tirano rei achem foi aconselhado pelos seus

    que, se queria tomar )alaca, por nenhuma maneira o poderia fazer cometendo-a de mar em fora, como #& por seis vezes tinha tentado no tempo de dom .stvão da ?ama e de outros capitães atr&s passados, senão

    com se fazer primeiro senhor deste reino de /arú, e se fortificar no rio de %aneticão, donde as suas

    armadas podiam continuar de mais perto a guerra que lhe pretendia fazer, porque então ficava muito

     pouco custoso fechar os estreitos de 1incapura e de 3abaom, e tolher que as nossas naus passassem ao

    mar da 1hina e Bunda e @anda e )aluco, por cu#o respeito poderia tambm facilmente haver à mão toda

    a drogaria daquele arquiplago, para ficar assi efeituado o novo contrato que por meio do bax& do 1airo

    tinha assentado cCo 2urco(

     DEF 

    Cap. $% – Como nos perdemos na iha dos &adr'es.

     Gavendo #& sete meses e meio que continu&vamos nesta enseada de um bordo no outro, e de rio

    em rio, assi em ambas as costas de norte e sul, como na desta ilha de /inão, sem /nt!nio de 0aria em todo

    este tempo poder ter novas nem recado de 1o#a /cem, enfadados os soldados deste trabalho em que havia

    tanto tempo que continavam, se a#untaram todos e lhe requereram que do que tinham aquirido lhes desse

    suas partes conforme a um assinado que dele tinham, porque com isso se queriam ir para a 'ndia, ou para

    onde lhes bem viesse(

     . sobre isto houve assaz de desgosto e enfadamentos, por fim dos quais se concertaram em irem

    invernar a 3ião, onde se venderia a fazenda que traziam nos #uncos, e que despois de ela ser feita em ouro

    se faria a repartição que requeriam( . com este concerto #urado e assinado por todos, se vieram surgir a

    Ha ilha que se dezia Idos ladrAesJ, por estar mais fora da enseada que todas as outras, para daí com as primeiras bafugens da monção fazerem sua viagem(

     . havendo #& doze dias que aqui estavam, e todos com muito dese#o de darem efeito a isto que

    tinham assentado, quis a 0ortuna que com a con#unção da lua nova de Kitubro, de que nos sempre

    tememos, veio um tempo tão tempestuoso de chuvas e ventos que não se #ulgou por cousa natural( . como

    n!s vínhamos faltos de amarras, porque as que tínhamos eram quase todas gastadas e meias podres,

    tanto que o mar começou a se empolar, e o vento sueste nos tomou em desabrigado e travessão à costa, fez 

    um escarco tão alto de vagas tão grossas que conquanto se buscaram todos os meios possíveis para nos

    salvarmos, com cortar mastos, desfazer chapitos e obras mortas de popa e proa, ali#ar o convs,

    guarnecer bombas de novo, baldear fazendas ao mar, e ahustar calabretes e viradores para talingar em

    outras 5ncoras com a artilharia grossa que se desencarretara dos repairos em que estava, nada disto nos

    bastou para nos podermos salvar( %orque como o escuro era grande, o tempo muito frio, o mar muito

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    grosso, o vento muito ri#o, as &guas cruzadas, o escarco muito alto, e a força da tempestade muito

    terrível, não havia cousa que bastasse a nos dar remdio senão s! a miseric!rdia de Losso 3enhor, por

    quem todos com grandes gritos e muitas l&grimas continuamente cham&vamos( )as como, por nossos

     pecados, não ramos merecedores de nos .le fazer esta merc, ordenou sua divina #ustiça que sendo #&

     passadas as duas horas despois da meia-noite nos deu um pegão de vento tão ri#o que todas as quatro

    embarcaçAes assi como estavam vieram à costa e se fizeram em pedaços, onde morreram quinhentas e

    oitenta e seis pessoas, em que entraram vinte e oito portugueses(

     . os mais que nos salv&mos pela miseric!rdia de Losso 3enhor +que ao todo fomos cinquenta e

    trs, de que os vinte e dous foram portugueses, e os mais, escravos e marinheiros nos fomos assi nus e

     feridos meter num charco de &gua no qual estivemos at pela menhã( . como o dia foi bem claro, nos

    torn&mos à praia, a qual ach&mos toda #uncada de corpos mortos, cousa tão lastimosa e espantosa de ver

    que não havia homem que s! desta vista não caísse pasmado no chão, fazendo sobre eles um tristíssimo

     pranto, acompanhado de muitas bofetadas que uns e os outros davam em si mesmos(

     *urou isto at quase a vspora, em que /nt!nio de 0aria +que prouve a *eos que fosse um dos que

     ficaram vivos, com que tivemos algum pequeno de alívio reprimindo em si a dor que n!s outros não podíamos dissimular, se veio aonde todos estavam, vestido nHa cabaia de grã, que despira a um dos que

     #aziam mortos, e com rosto alegre e os olhos enxutos, fez a todos Ha breve fala, tocando por vezes nela

    quão v&rias e mentirosas eram as cousas do mundo, pelo que lhes pedia, como a irmãos que trabalhem

    todo o possível pelas porem em esquecimento, visto como a lembrança delas não servia de mais que de se

    magoarem uns aos outros( %orque visto bem o tempo e o miser&vel estado em que a 0ortuna, por nossos

     pecados, nos tinha posto, conheceríamos e entenderíamos quão necess&rio nos era o que nos dezia e

    aconselhava, porque ele esperava em *eos Losso 3enhor que ali naquele despovoado e espesso mato lhes

    havia de trazer cousas em que se salvassem, porque se havia de crer firmemente que nunca .le permitia

    males que não fosse para muito maiores bens( %elo que ele esperava com firme f que, se ali perdramos

    quinhentos mil cruzados, que antes de pouco tempo tornaríamos a ganhar mais de seiscentos mil( / qual breve pr&tica de todos foi ouvida com assaz de l&grimas e desconsolação( . provendo-se

    logo no enterrar dos mortos que #aziam na praia, se gastaram nisso dous dias e meio, em que tambm

    salv&mos algum mantimento molhado para nos sustentarmos( K qual inda que foi muito, não durou mais

    que s!s cinco dias de quinze que aqui estivemos, porque como vinha passado de &gua salgada, apodreceo

    de maneira que nenhum proveito nos fazia o comer dele(

     %assados com assaz de trabalho estes quinze dias que digo, prouve a Losso 3enhor, que nunca

     falta aos que nC .le confiam de verdade, trazer-nos milagrosamente o remdio com que, assi nus e despidos

    como est&vamos, nos salv&mos, como logo direi(

    Cap. $( – Dos mais trabahos que pass)mos nesta iha# e da maneira com que

    miagrosamente nos sa*)mos.

    2odos os que escap&mos daquele miser&vel naufr&gio que atr&s deixo contado, and&mos nus e

    descalços por aquela praia e por aqueles matos, passando tantos frios e tantas fomes que muitos dos

    companheiros, estando falando uns cC os outros, caíam supitamente mortos em terra, de pura fraqueza( . 

    não causava isto tanto a falta do mantimento, quanto ser-nos esse que comíamos muito per#udicial, por

    ser todo podre e bolorento, e alm de feder incomportavelmente, amargava de maneira que não havia

    quem o pudesse meter na boca(

     )as, como *eos Losso 3enhor de sua pr!pria natureza bem infinito, não h& i parte tão remota

    nem tão deserta onde se lhe possam esconder as misrias dos pecadores, e onde os não socorra com uns

    efeitos da sua infinita miseric!rdia tão alheios da nossa imaginação que, se pusermos bem os olhos nos

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    termos por onde eles correm, veremos claramente que são mais obras milagrosas de suas divinas mãos

    que curso de natureza, com que o nosso fraco #uízo muitas vezes se engana(

     *igo isto porque estando n!s um dia, que era o em que se celebra a festa do /rcan#o 3ão )iguel,

    derramando todos muitas l&grimas, e com tanta desconfiança de todo o remdio humano quanta nos dava

    a fraqueza de nossa misria e pouca f, passou acaso voando por cima de n!s um milhano, que vinha de

    detr&s de um cabeço que a ilha fazia contra a parte do sul, e peneirando no ar com asas estendidas lhe caío

    das unhas um mugem fresco de quase um palmo de comprido( . dando #unto donde estava /nt!nio de

     0aria, o fez ficar um pouco confuso e indeterminado at que conheceo o que era(

     . despois de estar um pouco olhando para o peixe, se p$s em #oelhos, e em meio de muitas

    l&grimas que lhe corriam pelo rosto abaixo, arrancando do mais intrínseco do seu peito um grande

    suspiro, disse>

    M 3enhor =esu 1risto, eterno 0ilho de *eos, peço-te humildemente pelas dores da tua sagrada

     paixão que nos não acoimes a desconfiança em que a misria de nossa fraqueza nos tem postos( %orque

    muito bem creio que aquele que antiguamente foste para *aniel no lago dos leAes quando pelo %rofeta

     Gabacuc o mandaste prover, esse por tua miseric!rdia nos ser&s agora aqui, e o ser&s em toda a parteonde qualquer pecador chamar por 2i com firme f e esperança( %elo que, 3enhor meu e *eos meu, te peço,

    que não por mim, senão por 2i, e pela intercessão deste teu santo /n#o, cu#a festa a tua santa 9gre#a ho#e

    nos representa, não ponhas os olhos no que te merecemos, mas no que 2u mereceste para n!s, por que assi 

    tenhas por bem de nos conceder o remdio que s! de 2i esperamos, e nos mandes por tua miseric!rdia com

    que daqui nos leves a terra de cristãos, onde perseverando em teu santo serviço, acabemos como fiis(

     . tomando o mugem o assou nHas brasas e o deu aos doentes que tinham dele mais necessidade(

     . olhando para a parte do outeiro donde o milhano viera, vimos outros muitos que voando se

    alevantavam e abaixavam, pelo que se suspeitou que poderia haver ali algHa caça ou carniça em que

    aquelas aves se cevavam( . como todos est&vamos dese#osos de algum remdio para os doentes, que

    tínhamos muitos, nos fomos em procissão o milhor que pudemos, com nossa ladainha envolta eml&grimas, para aquela parte, e subidos em cima do morro, descobrimos um vale muito plano de muitas

    &rvores de diversas fruitas, e pelo meio dele Ha ribeira de &gua doce( . antes de chegarmos a ela nos

    deparou Losso 3enhor um veado degolado de aquela hora que um tigre começava a comer, e dando-lhe

    todos Ha grande grita, no-lo deixou assi como estava, e se foi fugindo para o mais espesso do mato(

     L!s vendo isto, o tom&mos em bom pron!stico, e nos decemos abaixo à ribeira, e nela nos

    agasa9h&mos aquela noite, com grande banquete assi deste veado como de muitos mugens que nela

    tom&mos, porque havia ali muita quantidade de milhanos que deciam à &gua, onde tomavam muitos

    daqueles peixes, e com as gritas que n!s lhe d&vamos, lhe caíam muitas vezes das unhas(

     Lesta ribeira continu&mos esta nossa pescaria desde a segunda-feira que cheg&mos a ela at o

    s&bado seguinte, no qual logo pela menhã vimos vir Ha vela demandar a ilha( . estando n!s duvidos se

     ferraria ela o porto ou não, nos decemos abaixo à praia onde nos tínhamos perdido, e passada quase meia

    hora enxerg&mos que era cousa pequena, pelo que nos foi forçado tornarmo-nos a meter para dentro do

    mato, por nos não verem(

    1hegada ao porto esta embarcação, que era Ha fermosa lante& de remo, os que nela vinham a

    atracaram com dous proizes de popa e de proa com a ribanceira que a ponta da calheta fazia, para se

     poderem servir com prancha( . desembarcados todos em terra, que seriam at trinta pessoas pouco mais

    ou menos, entenderam logo em fazerem aguada e lenha, lavarem sua roupa e guisarem de comer, e alguns

    se ocupavam em lutas e em outros passatempos, bem fora de lhes parecer que podia haver ali quem os

    estorvasse(

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    7endo então /nt!nio de 0aria quão descuidados e desordenados todos andavam, e que na

    embarcação não havia pessoa nenhHa que no-la pudesse tolher, nos disse, estando n!s todos #untos>

    M @em vedes, senhores e irmãos meus, o triste estado em que nossos pecados nos tm posto, de

    que eu creio, e vos confesso, que s!s os meus foram causa( )as como Losso 3enhor infinitamente

    misericordioso, eu espero nC .le que não h&-de permitir que acabemos aqui tão miseravelmente( . ainda

    que sei quão escusado trazer-vos à mem!ria quanto nos importa trabalhar por tomarmos esta

    embarcação que Losso 3enhor milagrosamente agora aqui nos trouxe, todavia vo-lo lembro, para que

    todos assi como estamos, cC o seu santo nome na boca e no coração, arremetamos #untamente a ela, e antes

    que nos sintam nos lancemos todos dentro( . como a ganharmos vos peço que não entendamos em mais

    que em nos apoderarmos das armas que acharmos, por que com elas nos possamos defender e ficar

    senhores disto em que, despois de *eos, est& toda a nossa salvação( . tanto que eu disser trs vezes I=esu,

    nome de =esuJ, fazei o que me virdes fazer(

     / que todos responderam que assi o fariam sem falta nenhHa(

     . preparados n!s no modo conveniente a tão bom prop!sito, /nt!nio de 0aria fez o sinal que

    disse, e arremeteo logo correndo, e n!s todos #untos com ele( . chegando à lante&, nos apoder&mos logodela, sem contradição algHa, e largando os proizes com que estava atracada, nos afast&mos ao mar obra

    de um tiro de besta(

    Ks chins, que estavam descuidados disto, tanto que sentiram a revolta acudiram logo à praia com

    grande pressa, e vendo a embarcação tomada ficaram tão pasmados que nenhum deles se soube dar a

    conselho" e tirando-lhe n!s com um meio berço de ferro que traziam na lante&, se acolheram todos ao

    mato, onde então ficaram chorando o sucesso da sua m& fortuna, como n!s at então tínhamos chorado o

    nosso(

    Cap. $$ – Como nos partimos desta iha dos &adr'es para o porto de &iampoo# e do que

     pass)mos até chegarmos a um rio que se di+ia ,ingrau

     *epois de sermos todos recolhidos na lante& e seguros de nos poderem os chins empecer em cousa

    alguma, nos pusemos a comer muito descansadamente o seu #antar que um velho lhe tinha aparelhado, o

    qual era dous tachos de arroz com adens e toucinho picado, que então nos foi a todos de muito gosto,

    segundo o apetite que todos lhe tínhamos(

     *epois que acab&mos de #antar e demos graças a *eus pela merc que nos fizera, se buscou a

     fazenda que vinha na lante&, e se achou nela seda, retr!s, cetins, damascos e trs boiAes grandes de

    almíscar, e tudo foi avaliado em quatro mil cruzados, afora uma boa matalotagem de arroz, açúcar,

    lacAes, e duas capoeiras de galinhas, que então se estimaram mais que tudo para convalescerem os

    doentes, de que ainda havia muitos( . começando uns e outros a cortar pelas peças sem medo, nos provemos de toda a falta que então tínhamos(

     /nt!nio de 0aria vendo um minino que tambm ali estava, de doze at treze anos, muito alvo

    bem-assombrado, lhe preguntou donde vinha aquela lante&, ou por que causa viera ali ter, cu#a era, e

     para onde ia(

    K qual lhe respondeu>

    M .ra do sem-ventura de meu pai, a quem caiu em sorte triste e desaventurada tomardes-lhe v!s

    outros em menos de uma hora o que ele ganhou em mais de trinta anos( K qual vinha de um lugar que se

    chama Quoamão, onde a troco de prata comprou toda esta fazenda que aí tendes, para a ir vender aos

     #uncos de 3ião que estão no porto de 1omhaN( . porque lhe faltava a &gua quis sua triste fortuna que a

    viesse tomar aqui para v!s lhe tomardes sua fazenda, sem nenhum temor da #ustiça do 1u(

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     /nt!nio de 0aria lhe disse que não chorasse e o afagou quanto p$de, prometendo-lhe que o

    trataria como filho, porque nessa conta o tinha e o teria sempre(

     / que o moço, olhando para ele, respondeu com um sorriso, a modo de esc&rnio>

    M Lão cuides de mim, inda que me ve#as minino, que sou tão parvo que possa cuidar de ti que

    roubando-me meu pai me ha#as a mim de tratar como filho( . se s esse que dizes, eu te peço muito, muito,

    muito, por amor do teu *eus, que me deixes botar a nado a essa triste terra onde fica quem me gerou,

     porque esse o meu pai verdadeiro, com o qual quero antes morrer ali naquele mato, onde o ve#o estar-me

    chorando, que viver entre gente tão m& como v!s outros sois(

     /lguns dos que ali estavam o reprenderam, e lhe disseram que não dissesse aquilo, porque não

    era bem dito(

     / que ele respondeu>

    M 3abeis porque vo-lo digoO %orque vos vi louvar a *eus depois de fartos, com as mãos

    alevantadas e cCos beiços untados, como homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao 1u,

    sem satisfazer o que tm roubado( %ois entendei que o 3enhor da mão poderosa não nos obriga tanto a

    bulir cCos beiços quanto nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dous pecados tãograves quanto depois de mortos conhecereis no rigoroso castigo de sua divina #ustiça(

     .spantado /nt!nio de 0aria das rezAes deste moço, lhe disse se queria ser cristão( / que o moço,

     pondo os olhos nele, respondeu>

    M Lão entendo isso que dizes, nem sei que cousa essa que me cometes( *eclara-mo primeiro, e

    então te responderei a prop!sito(

     . declarando-lho /nt!nio de 0aria por palavras discretas ao seu modo, lhe não respondeu o moço

    a elas, mas pondo os olhos no cu, com as mãos alevantadas disse chorando>

    M @endita se#a, 3enhor, a tua pacincia, que sofre haver na terra gente que fale tão bem de ti e use

    tão pouco da tua lei, como estes miser&veis e cegos, que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer

    como aos príncipes tiranos que reinam na terra( . não querendo mais responder a pregunta nenhuma, se foi p$r a um canto a chorar, sem em trs

    dias querer comer cousa nenhuma de quantas lhe davam(

    2omando-se então conselho sobre o caminho que dali se faria ou que rota se seguiria, se para o

    norte, se para o sul, houve sobre isto alguns pareceres bem diferentes, por fim dos quais se assentou que

    nos f$ssemos a 8iampoo, que era um porto adiante dali para o norte duzentas e sessenta lguas, porque

     poderia ser que ao longo da costa nos melhoraríamos doutra embarcação maior e mais acomodada a

    nosso prop!sito, porque aquela era muito pequena para tão comprida viagem, e com receios de tantas

    tempestades quantas causam as luas novas na costa da 1hina, onde continuamente se perdiam muitos

    navios(

    1om esta determinação demos a vela #& quase sol-posto daqui desta ilha, ficando os chins na

     praia como pasmados, e corremos aquela noite com a proa a ls-nordeste( . sendo #& quase menhã

    houvemos vista de um ilhu que se dezia ?uintoo, no qual tom&mos uma barcaça de pescadores com muita

    soma de peixe fresco, da qual tom&mos o necess&rio, com mais oito homens de doze que nela ach&mos,

     para nos marearem a lante&, porque a nossa gente não estava para o poder fazer, por vir muito fraca e

    debilitada dos trabalhos passados(

     . perguntados estes oito pescadores que portos havia por aquela costa at o 1hincheo, onde nos

     parecia que podíamos achar alguma nau de )alaca, nos disseram que dali a dezoito lguas estava um rio

    muito bom e de bom surgidouro, que se dezia Pinguau, onde continuamente havia muitos #uncos que

    carregavam de sal, de pedra hume, de azeite, de mostarda e de gergelim, no qual bem largamente nos

     podíamos aparelhar e prover de tudo o de que tivssemos necessidade( La entrada do qual estava uma

    7

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    aldea pequena que se chamava PamoN, povoada de pescadores e de gente pobre, mas que dali a trs

    lguas pelo rio acima estava a cidade, onde havia muita seda, almizcre, porcelanas, e outras sortes de

     fazendas que de veniaga se levavam para diversas partes(

    1om esta informação nos fomos demandar este rio, onde cheg&mos ao outro dia à tarde, e

    surgimos defronte dele obra de uma lgua ao mar, por arrecearmos que nossos pecados nos trouxessem

    aqui alguma desaventura como as passadas(

     /quela noite seguinte tom&mos um parau de pescadores, e lhe pergunt&mos que #uncos estavam

    dentro, quantos eram e que gente tinham, e outras cousas que faziam a nosso caso( / que responderam

    que l& em cima na cidade haveria obra de duzentos #uncos somente, porque os mais eram #& partidos para

     /inão e 3umbor e 8ailoo e outros portos de 1auchenchina, mas que ali na povoação de PamoN podíamos

    estar seguros, onde nos venderiam todo o mantimento que houvssemos mister( 1om isto entr&mos para

    dentro do rio, e surgindo #unto da aldea nos deix&mos assi estar obra de meia hora" e seria isto então a

    meia-noite pouco mais ou menos(

     . vendo /nt!nio de 0aria que a lante& em que vínhamos não era embarcação suficiente para

    irmos dali a 8iampoo, onde tínhamos determinado de ir invernar, assentou com parecer dos maiscompanheiros e soldados de se prover de outra milhor" e ainda que naquele tempo não est&vamos para

    cometer cousa alguma, todavia a necessidade nos obrigou a fazermos mais do que nossas forças

    requeriam(

     .stava então naquele porto surto um #unco pequeno, s! e sem haver outro nenhum, o qual tinha

     pouca gente, e esses que eram estavam então todos dormindo( . vendo /nt!nio de 0aria que era esta boa

    ocasião para efeituar seu intento, fez logo arriar da amarra, e se igualou com ele, e escolhendo dos vinte e

    sete soldados que levava os quinze, com mais oito moços, se subiu acima ao convs do #unco, sem at então

    ser sentido de ningum( . achando nele dormindo seis ou sete chins marinheiros, os mandou atar de pis e

    de mãos, ameaçando-os que se bradassem os havia de matar a todos, pelo que nenhum deles com medo

    ousou de falar( . cortando-lhe ambas as amarras com que estava surto, o mais depressa que p$de se fez àvela para fora do rio, e vele#ando tudo o que restava da noite, sempre coCa proa no mar, foi amanhecer

     #unto de uma ilha que se chamava %ullo Quirim, nove lguas donde tinha partido(

     . a#udando-nos *eus com vento fresco de velas cheias, fomos dali a trs dias surgir a uma ilha

    chamada 8uxitaN, na qual foi necess&rio para convalecncia dos doentes determo-nos quinze dias, assi por

    ela ser muito sadia e de boas &guas, como por algum refresco que pescadores ali nos traziam a troco de

    arroz(

     /li foi buscado todo o #unco, e não se achou nele mais fazenda que arroz somente, que ali no porto

    de PamoN se estava vendendo, de que a maior parte se lançou no mar, por ficar o #unco mais boiante e

    menos perigoso para a nossa viagem( . baldeando o fato da lante& dentro no #unco, a var&mos em terra

     para a espalmarmos, por nos ser necess&ria para fazermos aguadas nos portos onde entr&ssemos(

     Listo gast&mos, como #& disse, quinze dias nesta ilha, nos quais os enfermos convaleceram de

    todo( . nos partimos na via do reino de 8iampoo, onde tínhamos por novas que havia muita gente

     portuguesa, que aí era vinda de )alaca, de Bunda, de 3ião e de %atane, a qual toda naquele tempo ali 

    costumava de vir invernar(

    Cap. $- – Como Antnio de /aria pee0ou com o cors)rio Co0a Acém e do que com ee he

    sucedeu

    7ele#ando n!s pelo rio acima com vento e mar que Losso 3enhor então nos deu, em menos de

    uma hora cheg&mos onde os inimigos estavam, que at este tempo nos não tinham ainda sentido" mas

    como eles eram ladrAes e se temiam da gente da terra, pelos males e roubos que ali cada dia lhe faziam,

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    estavam tão aparelhados e tinham tão boa vigia que em nos vendo tocaram um sino muito

    apressadamente, ao som do qual foi tamanho o rumor e revolta de gente, tanto da que estava em terra

    como da que estava embarcada, que não havia quem se ouvisse com eles o que vendo /nt!nio de 0aria,

    bradou logo, dizendo>

    M .ia, senhores e irmãos meus, a eles, como nome de 1risto, antes que as suas lorchas lhes

    acudam 3antiago

     . disparando toda a nossa artilharia, prouve a Losso 3enhor que se empregou tão bem que dos

    mais esforçados que #& neste tempo estavam em cima do chapitu, veio logo abaixo a maior parte, feitos

    em pedaços, o que foi um bom progn!stico do nosso dese#o(

     /p!s isto, os nossos atiradores, que seriam cento e sessenta, pondo fogo a toda a arcabuzaria,

    conforme o sinal que lhes fora feito, os conveses de ambos os #uncos ficaram tão vazios da multidão que

    antes neles se via, que #& nenhum dos inimigos ousava aparecer( Ks nossos dois #uncos, abalroando então

    os dois dos inimigos assim como estavam, a briga se travou entre todos, de maneira que realmente

    confesso que não me atrevo a particularizar o que nela se passou, ainda que me achasse presente, porque

    ainda neste tempo a manhã não era bem clara, e a revolta dos inimigos e nossa era tamanha, #untamentecom o estrondo dos tambores, bacias e sinos, e com as gritas e brados de uns e dos outros, acompanhados

    de muitos pelouros de artilharia e de arcabuzaria, e na terra o retumbar dos ecos pelas concavidades dos

    vales e outeiros, que as carnes tremiam de medo" e durando assim esta briga por espaço de um quarto de

    hora, as suas lorchas e lanteas lhes acudiram de terra com muita gente de reforço, vendo o que, um tal 

     *iogo )eireles, que vinha no #unco de QuiaN %an#ão, e que o seu condest&vel, dos tiros que fazia nenhum

    acertava, por andar tão pasmado e fora de si que nenhuma coisa acertava, estando ele então para dar

     fogo a um camelo, meio turvado, o empurrou tão de ri#o que deu com ele da escotilha abaixo, dizendo>

    M ?uar-te daí, vilão, que não prestas para nada, porque este tiro neste tempo para os homens

    como eu, e não para os tais como tu

     . apontando o camelo por suas miras e regra de esquadria, de que sabia razoavelmente, deu fogoà peça que estava carregada com o pelouro e roca de pedras, e tomando a primeira lorcha que vinha na

    dianteira, por capit5nia das quatro, a descoseu toda de popa a proa pelo alcatrate da banda de estibordo,

    com o que tudo ficou raso com a &gua, de maneira que logo ali a pique se foi ao fundo, sem dela se salvar

     pessoa nenhuma, e vare#ando a munição da roca por cima, deu no convs de outra lorcha que vinha um

     pouco mais atr&s, e lhe matou o capitão e seis ou sete que estavam #unto dele, do que as outras duas

     ficaram tão assombradas que querendo tornar a voltar para terra, se embaraçaram ambas nos guardins

    das velas de maneira que nenhuma delas se p$de mais desembaraçar, e assim presas uma na outra

    estiveram ambas estacadas sem poderem ir para tr&s nem para diante(

    7endo então os capitães das nossas duas lorchas +os quais se chamavam ?aspar de Kliveira e

    7icente )orosa o tempo disposto para efectuarem o dese#o que traziam, e a inve#a honrosa de que ambos

    se picavam, arremeteram #untamente a elas, e lançando-lhes muita soma de panelas de p!lvora, se ateou o

     fogo em ambas, de maneira que assim #untas como estavam arderam at ao lume da &gua, com o que a

    maior parte da gente se lançou ao mar, e os nossos acabaram ali de matar a todos às zargunchadas, sem

    um s! ficar vivo" e somente nestas trs lorchas morreram passante de duzentas pessoas" e a outra que

    levava o capitão morto, tão-pouco p$de escapar, porque QuiaN %an#ão foi atr&s dela na sua champana,

    que era o batel do seu #unco, e a foi tomar #& pegada com terra, mas sem gente nenhuma, porque toda se

    lhe lançou ao mar, de que a maior parte se perdeu tambm nuns penedos que estavam #unto da praia, com

    a qual vista os inimigos que ainda estavam nos #uncos, que podiam ser at cento e cinquenta, e todos

    mouros lusAes, e bornus, com alguma mistura de #aus, começaram a enfraquecer, de maneira que muitos

    começavam #& a se lançar ao mar(

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    K perro do 1o#a /cm que at este tempo não era ainda conhecido, acudiu com muita pressa ao

    desmancho que via nos seus, armado com uma coura de l5minas de cetim carmesim fran#ada de ouro, que

     fora dos portugueses, e bradando alto para que todos o ouvissem, disse por trs vezes>

    M 8ah hilah hilah lah muhamd roçol halah, ! massoleimAes e homens #ustos da santa lei de

     )afamede, como vos deixais vencer assim por uma gente tão fraca como são estes cães, sem mais 5nimo

    que de galinhas brancas e de mulheres barbadasO / eles, a eles, que certa temos a promessa do livro das

     flores, em que o profeta Lobi abastou de deleites os daroeses da casa de )eca( /ssim far& ho#e a v!s e a

    mim, se nos banharmos no sangue destes cafres sem lei

    1om as quais malditas palavras o *iabo os esforçou de maneira que fazendo-se todos num corpo,

    amoucos, tornaram a voltar tão esforçadamente que era espanto ver como se metiam nas nossas espadas(

     /nt!nio de 0aria então bradando tambm aos seus, lhes disse>

    M /h, cristãos e senhores meus, se estes se esforçam na maldita seita do *iabo, esforcemo-nos em

    1risto Losso 3enhor posto na 1ruz por n!s, que nos não h&-de desamparar, por mais pecadores que

    se#amos, porque enfim somos seus, o que estes perros não são(

     . arremetendo com este fervor e zelo da f, ao 1o#a /cm, como quem lhe tinha boa vontade, lhedeu com ambas as mãos com uma espada que trazia, uma tão grande cutilada pela cabeça, que cortando-

    lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão, e tornando-lhe com outro revs lhe decepou

    ambas as pernas, de que se não p$de mais levantar, o qual sendo visto pelos seus, deram uma grande grita

    e arremetendo a /nt!nio de 0aria se igualaram com ele uns cinco ou seis com tanto 5nimo e ousadia que

    nenhuma conta fizeram de trinta portugueses de que ele estava rodeado, e lhe deram duas cutiladas, com

    que o tiveram quase no chão, o que vendo os nossos, acudiram logo com muita pressa, e esforçando-os ali 

     Losso 3enhor, o fizeram de maneira que em pouco mais de dois credos foram mortos, dos inimigos ali 

    sobre o 1o#a /cm, quarenta e oito, e dos nossos catorze somente, de que s! cinco foram portugueses, e os

    mais moços escravos muito bons cristãos e muito leais( =& neste tempo os que ficavam começaram a

    enfraquecer, e se foram retirando desordenadamente para os chapitus da proa, com a tenção de se fazerem aí fortes a que vinte soldados dos trinta que estavam no #unco de QuiaN %an#ão, acudiram com

    muita pressa, e tomando-o do rosto antes que se assenhoreassem do que pretendiam os apertaram de

    maneira que os fizeram lançar todos ao mar, com tamanho desatino que uns caíam por cima dos outros(

     /nimados estão os nossos com o nome de 1risto Losso 3enhor, por quem chamavam continuamente, e com

    a vit!ria que #& conheciam, e com a muita honra que tinham ganho, os acabaram ali de matar e consumir

    a todos, sem ficarem deles mais que s! cinco que tomaram vivos, os quais, depois de presos e atados de ps

    e mãos, e lançados em baixo na bomba para com tratos se lhes fazerem algumas perguntas, se degolaram

    às dentadas uns aos outros, com receio da morte que se lhes podia dar( . estes tambm foram feitos em

    quartos pelos nossos moços e lançados ao mar, em companhia do perro do 1o#a /cm, seu capitão e caciz-

    mor de el-rei de @intão, e derramador e bebedor do sangue portugus, como se ele intitulava nos começos

    das suas cartas, e publicamente pregava a todos os mouros, por causa do que, e pelas superstiçAes da sua

    maldita seita, era deles muito venerado(

    Cap. 76 – Como António de Faria chegou a esta ermida e do que se passou nela

    1aminhando /nt!nio de 0aria para a ermida que tinha diante, com o maior silncio que podia, e

    não sem algum receio, por não saber at então o em que se tinha metido, levando todos o nome de =esus na

    boca e no coração, cheg&mos a um terreiro pequeno que estava diante da porta, e ainda at aqui não

    houvemos vista de pessoa nenhuma, e /nt!nio de 0aria que ia sempre adiante com um montante nas

    mãos, apalpou a porta e a sentiu fechada por dentro, e mandando a um dos chins que estava #unto dele,

    que batesse, ele o fez por duas vezes e de dentro lhe foi respondido>

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    M 3e#a louvado o criador que esmaltou a formosura dos cus * a volta por fora e saberei o que

    quer(

    K chin rodeou a ermida e entrou nela por uma porta travessa, e abrindo a em que estava, ele com

    toda a gente entrou dentro da ermida e achou dentro dela um homem velho, que pelo parecer seria de mais

    de cem anos, com uma vestidura de damasco roxo muito comprida, o qual no seu aspecto parecia ser

    homem nobre, como depois soubemos que era, o qual em vendo o tropel da gente, ficou tão fora de si que

    caiu de focinhos no chão, e tremendo de ps e de mãos não p$de por então falar palavra nenhuma" porm,

     passado um grande espaço em que a altercação deste sobressalto ficou quieta e ele tornou a si, pondo os

    olhos em todos, com rosto alegre e palavras severas perguntou que gente ramos ou que queríamos(

    K intrprete lhe respondeu por mandado de /nt!nio de 0aria que ele era um capitão daquela

    gente estrangeira natural do reino de 3ião, e que vindo de veniaga num #unco seu com muita fazenda para

    o porto de 8iamp!, se perdera no mar, do qual se salvara milagrosamente com todos aqueles homens que

    ali trazia consigo, e que porque prometera vir em romaria àquela terra santa a dar louvores a *eus por o

    salvar do grande perigo em que se vira, vinha agora a cumprir a sua promessa, e #untamente lhe vinha

     pedir ele alguma coisa de esmola com que se tornasse a restaurar de sua pobreza, e que ele lhe protestavaque dali a trs anos lhe tornaria dobrado tudo o que agora tomasse(

    K Giticou +que assim se chamava o ermitão, depois de estar cuidando consigo um pouco no que

    ouvira, olhando para /nt!nio de 0aria, lhe disse>

    M )uito bem ouvi o que disseste, e tambm entendi a danada tenção em que o sulco da tua

    cegueira, como piloto do inferno te traz a ti e a essoutros à c$ncava funda do lago da noite, porque em vez 

    de dares graças a *eus por tamanha merc que te fez, o vens roubar( %ois pergunto> se assim o fizeres, que

    esperas que faça de ti a divina #ustiça, no derradeiro boce#o da vidaO )uda esse teu mau prop!sito e não

    consintas que em teu pensamento entre imaginação de tamanho pecado, e *eus mudar& de ti o castigo( . 

     fia-te de mim que te falo verdade, assim me ela valha enquanto viver(

     /nt!nio de 0aria, fingindo que lhe parecia bem o conselho que ele lhe dava, lhe pediu muito que senão agastasse porque lhe certificava que não tinha então outro remdio de vida mais certo que aquele que

    ali vinha buscar" a que o ermitão olhando para o cu e com as mãos levantadas, disse chorando>

    M @endito se#as, 3enhor, que sofres haver na terra homens que tomem como remdio de vida

    ofensas tuas, e não como certeza de gl!ria servir-te um s! dia(

     . depois de estar um pouco pensativo e confuso com o que via diante, tornou a p$r os olhos no

    tumulto e rumor que todos fazíamos no desarrumar e despregar dos caixAes" e olhando para /nt!nio de

     0aria que neste tempo estava em p, encostado ao montante, lhe rogou que se sentasse um pouco a par

    dele, o que /nt!nio de 0aria fez com muita cortesia e muitos cumprimentos, porm não deixou de acenar

    aos soldados que continuassem com o que tinham entre mãos, que era escolher a prata que se encontrava

    nos caixAes, de mistura com os ossos dos finados que tambm estavam dentro, o que o ermitão sofria tão

    mal que duas vezes caiu esmorecido do banco em que estava sentado, para baixo, como homem que sentia

    aquilo como ofensa grave( . tornando pesadamente a continuar com /nt!nio de 0aria, lhe disse>

    M Quero-te declarar como a homem que me pareces discreto, o em que consiste o perdão do

     pecado em que tantas vezes me apontaste, para que não pereças para sempre sem fim no derradeiro

    boce#o da tua boca( =& que me dizes que a necessidade te obrigou a cometeres delito tão grave e que tens

     prop!sito de restituir o que tomares antes que morras, se a possibilidade te der lugar para isso, far&s trs

    coisas que te agora direi> a primeira restituíres o que tomares, antes que morras, para que não se

    impeça da tua parte a clemncia do alto 3enhor" a segunda, pedires-lhe com l&grimas perdão do que

     fizeste, pois tão feio diante da sua presença, e castigares por isso a carne continuamente de dia e de

    noite" e a terceira, repartires com os seus pobres tão liberalmente como contigo, e abrires as tuas mãos

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  • 8/16/2019 _Peregrinacao___excertos_

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    com discrição e prudncia, para que o servo da noite não tenha que te arguir no dia da conta( . por este

    conselho te peço que mandes a essa tua gente que torne a recolher os ossos dos santos, para que não

     fiquem desprezados na terra(

     /nt!nio de 0aria lhe prometeu que o faria assim, com muitas palavras de cumprimentos, de que o

    ermitão ficou algum tanto mais quieto, ainda que não de todo satisfeito( . chegando-se mais para ele, o

    começou de amimar e afag&-lo com palavras brandas, e de muito amor e cortesia, certificando-lhe que

    depois que o ouvira se arrependera muito de ter cometido aquela viagem, mas que os seus lhe diziam que

    se se tornasse, o matariam logo, e que isto lhe descobria, em grande segredo" ao que ele respondeu>

    M Queira *eus que se#a isto assim, porque ao menos não ter&s tanta pena como essoutros

    ministros da noite, que como cães esfaimados me parece que toda a prata do mundo os não poder& fartar(

    Cap. 11 – Do mais que Antnio de /aria passou nesta ermida até se embarcar 

     *epois de ser recolhida toda a presa que ali havia, e mandada às embarcaçAes, pareceu bem a

    todos não se bulir por então com mais nada, tanto por não conhecermos a terra, como por ser #& quase

    noite, esperando que ao outro dia o poderíamos fazer mais à nossa vontade( . querendo-se /nt!nio de

     0aria embarcar, se quis despedir primeiro do ermitão, e o consolou com boas palavras, dizendo que lhe

     pedia muito pelo amor de *eus que não se escandalizasse, porque lhe certificava que a muito pobreza em

    que se via o fizera fazer aquilo em que na verdade não era de sua condição, e que depois que falara com

    ele, arrependido do que cometera, se quisera logo tornar, porm que aqueles homens lhe foram à mão e lhe

     #uraram todos que o haviam de matar se tal fizesse, e que por isso, constrangido ele de medo, se calara e

    consentira naquilo que claramente via ser tamanho pecado como ele tinha dito, pelo que levava

    determinado, logo que se visse desembaraçado deles, ir-se logo por esse mundo a fazer tanto penitncia

    quanto entendia que lhe era necess&ria para satisfação de tamanho crime( /o que o ermitão respondeu>

    M %reza ao 3enhor que vive reinando sobre a fermosura de suas estrelas, que te não faça mal 

    entenderes tanto dele quanto mostras nessas palavras, porque te afirmo que muito maior perigo corre o

    que isso entende, se faz m&s obras, que o ignorante sem lei, a quem a falta do entendimento est&

    desculpando com *eus e com o mundo(

     /qui se quis intrometer na conversa um dos nossos, de nome Luno 1oelho, e lhe disse que se não

    agastasse por tão pouco, a quem ele respondeu>

    M )uito mais pouco o temor que tu tens da morte, pois gastas a vida em feitos tão su#os quão

    su#a eu creio que estar& tua alma, das portas desse monturo da tua carne para dentro( . se queres mais

     prata, como mostras na sede da tua cobiça, para com ela acabares de encher o fardel do teu infernal 

    apetite, nessoutras casas que por aí estão, achar&s com que bem te enchas at rebentares, e quiç& que não

    errar&s, porque #& que por essa que tens tomado h&s-de ir para o 9nferno, vai tambm por essoutra, porque quanto mais peso levares sobre tua cabeça, tanto mais depressa ir&s ao fundo, como parece pelo

    que tuas m&s obras de ti testemunham(

     . tornando o Luno 1oelho a replicar que lhe rogava que tomasse em tudo pacincia porque assim

    o mandava *eus em sua santa lei, o ermitão pondo a mão na testa a modo de espanto, e bulindo cinco ou

    seis vezes com a cabeça, sorrindo-lhe do que lhe tinha ouvido, lhe respondeu>  

    Cap. 1 – Como esta primeira noite 3omos sentidos# e por que causa# e do mais que sucedeu

    sobre isso

     *epois de ser embarcado /nt!nio de 0aria, e n!s todos com ele, que seria #& quase às ave-marias,nos pass&mos a remo à outra parte da ilha, e surtos a cerca de um tiro de falcão, dela, nos deix&mos assim

    12

  • 8/16/2019 _Peregrinacao___excertos_

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    estar at quase à meia-noite, com determinação, como #& atr&s disse, de logo que ao outro dia fosse

    manhã, tornarmos a sair em terra e acometer as capelas dos #azigos dos reis que estavam a menos de um

    quarto de lgua de n!s, para nelas carregarmos ambas as embarcaçAes, o que quiç& poderia muito bem

    ser, se nos quisramos negociar ou /nt!nio de 0aria quisesse tomar o conselho que lhe davam, o qual foi 

    que pois que at então não ramos sentidos, que trouxesse consigo o ermitão para que não desse recado na

    casa dos bonzos do que tínhamos feito, o que /nt!nio de 0aria não quis fazer, dizendo que seguro estava

    disso, tanto por ser o ermitão tão velho como todos víamos, como por ser gotoso e ter as pernas tão

    inchadas que se não podia ter nelas" porm não foi assim como ele cuidava, porque o ermitão logo que nos

    viu embarcados +segundo o que depois soubemos assim tr$pego como estava, se foi em ps e em mãos à

    outra ermida que distava da sua pouco mais de um tiro de besta, e deu conta ao ermitão dela do que

    tínhamos feito, e lhe requereu que pois ele se não podia bulir por causa da sua hidropisia, fosse ele logo dar

    rebate na casa dos bonzos, o que o outro ermitão logo fez( D(((F 

     %orm /nt!nio de 0aria, sem fazer caso do que eles diziam, saltou em terra com seis homens de

    espadas e rodelas, e subiu pelas escadas do cais acima, quase afrontado e fora de si, e subindo

    desatinadamente por cima das grades de que toda a ilha, como #& disse, era cercada, correu como doido deuma parte para a outra, sem sentir coisa alguma, e tornando-se às embarcaçAes muito afrontado

    conversou com todos sobre o que nisto se devia fazer, e depois de se darem muitas razAes que ele não

    queria aceitar, lhe fizeram os mais dos soldados requerimento que em todo o caso partissem logo, e ele

    receoso de haver algum motim, respondeu que assim o faria, mas que para sua honra lhe convinha

     primeiro saber o de que havia de fugir, e que portanto lhes pedia muito por merc que o quisessem ali 

    esperar, porque queria ver se podia tomar alguma língua que o certificasse mais na verdade desta

    suspeita, e que para isso lhes não pedia mais de espaço que s! meia hora, visto que ainda havia tempo

     para tudo antes que fosse manhã(

    M R certo que agora ve#o o que nunca cuidei que visse nem ouvisse, maldade por natureza e

    virtude fingida, que furtar e pregar( ?rande deve ser a tua cegueira, pois confiado em boas palavrasgastas a vida em tão m&s obras( Lão sei se grace#ar& *eus contigo no dia da conta

     . não o querendo mais ouvir, se virou para /nt!nio de 0aria que neste tempo #& estava em p, e

    com as mãos alevantadas lhe pediu com muita efic&cia que não consentisse cuspirem-lhes os nossos no

    altar, porque o sentia mais que tirarem-lhe mil vezes a vida, ao que ele respondeu que assim se faria, e em

    tudo o mais que mandasse seria logo servido, de que o Giticou ficou algum tanto consolado(

     . por ser #& muito tarde, determinou /nt!nio de 0aria de se não deter então ali mais" porm,

    antes que se recolhesse, vendo que lhe era necess&rio tomar informaçAes de algumas coisas importantes,

     para se certificar de alguns receios que tinha, perguntou ao ermitão que gente haveria em todas aquelas

    ermidas, a que ele respondeu que trezentos e sessenta talagrepos somente, um em cada ermida, e quarenta

    menigrepos que os serviam de fora e os proviam de mantimento e da cura de alguns doentes( . 

     perguntando se vinham os reis da 1hina àquele lugar algum ano, ou em que tempo, respondeu que não,

     porque o rei, por ser filho do 3ol, ele podia absolver a todos e ningum o podia condenar a ele( . 

     perguntando se tinham aqueles ermitAes alguma maneira de armas, respondeu que não, porque aos que

     pretendiam caminhar para o cu, não lhes eram necess&rias armas para ofender, senão pacincia para

    sofrer( . perguntado por que causa estava aquela prata naqueles caixAes de mistura com aqueles ossos,

    disse que era porque era esmola que aqueles defuntos levavam consigo, para l&no cu da 8ua se valerem

    dela em suas necessidades( . depois de lhe perguntarem outras muitas coisas, perguntando por último se

    tinham mulheres, respondeu que aos que houvessem de dar vida à alma, lhes era muito necess&rio não

    gastarem dos deleites da carne, porque claro estava que no favo doce do mel se criava a abelha que,

     picando, escandalizava e magoava os que o comiam( /nt!nio de 0aria, abraçando-o então, e pedindo-lhe

    13

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    muitos perdAes ao seu modo, que eles chamam de charachina, se veio embarcar #& quase noite, com

    determinação de ao outro dia tornar a acometer as outras ermidas onde tinha por novas que havia uma

    muito grande quantidade de prata e alguns ídolos de ouro, mas os nossos pecados nos tolheram vermos o

    efeito disto que com tanto trabalho e risco das vidas tínhamos procurado, havia passante de dois meses e

    meio, como logo se dir&(

    Cap. – Como daqui partimos para a cidade de Pequim# e das grande+as da cidade de

     4anquim

     D(((F 

     . tornando ao meu prop!sito> esta cidade de Lanquim est&, como #& disse, situada ao longo deste

    rio de @atampina, em uma elevação de boa altura, por onde fica sobranceiro às campinas que estão em

    torno dela, cu#o clima algum tanto frio, porm muito sadio" tem oito lguas de cerca por todas as partes,

    a saber> trs lguas de largo e uma de comprido por cada parte" a casaria comum de um s! at doissobrados, porm as casas dos mandarins são todas trreas e cercadas de muro e cava, em que h& pontes

    de boa cantaria que dão serventia para as portas, as quais todas tm arcos de muito custo e riqueza, com

    muitas diversidades de invençAes nos coruchus dos telhados, o qual edifíco visto todo por #unto representa

    aos olhos uma grande ma#estade( /s casas dos chans, e anchacis, e aitaus, e tutAes, e chumbis, que são

    senhores que governaram províncias e reinos, tm torres muito altas de seis e sete sobrados, com

    coruchus cobertos de ouro, onde tm seus armazns de armas, suas rec5maras, seus tesouros e seu m!vel 

    de seda e de peças muito ricas, com infinidade de porcelanas muito finas que entre eles pedraria, a qual 

     porcelana desta sorte não sai fora do reino, tanto porque entre eles vale muito mais que entre n!s, como

     por ser defeso, sob pena de morte, vender-se a nenhum estrangeiro, salvo aos persas do Patam&s, a que

    chamam sofi, os quais com licença que tm para isso, compram algumas peças por muito grande preço(

     /firmaram-nos os chins, que tem esta cidade oitocentos mil vizinhos, e vinte quatro mil casas de

    mandarins, e sessenta e duas praças muito grandes, e cento e trinta casas de açougues, de oitenta talhos

    cada uma, e oito mil ruas, de que seiscentas, que são as mais nobres, tm todas ao comprido, de uma

    banda e da outra, grades de latão muito grossas feitas ao torno( /firmaram-nos mais que tem duas mil e

    trezentas casas de seus pagodes, de que mil são mosteiros de gente professa, e são edifícios muito ricos com

    torres de sessenta e setenta sinos de metal e de ferro coado muito grandes, que coisa horrenda ouvi-los

    tanger( 2em mais esta cidade trinta prisAes muito grandes e fortes, em cada uma das quais h& dois e trs

    mil presos, e a cada uma destas prisAes corresponde uma casa como de miseric!rdia, que prov toda a

    gente pobre, com seus procuradores ordin&rios em todos os tribunais de cível e crime, e onde se fazem

    grandes esmolas( 2odas estas ruas nobres tm arcos nas entradas, com suas portas que se fecham de noite,

    e as mais delas tm chafarizes de &gua muito boa e são em si muito ricas e de muito trato( 2m, todas as

    luas novas e cheias, feiras gerais, onde concorre infinidade de gente de diversas partes, e h& nelas

    grandíssima abund5ncia de mantimentos quantos se pode imaginar, tanto de frutas como de carnes( K

     pescado deste rio tanto em tanta quantidade, principalmente de tainhas e linguados, que parece

    impossível dizer-se, o qual se vende todo vivo com #uncos metidos pelos narizes por onde vm

    dependurados, e fora este peixe pescado fresco, o seco e salgado que vem do mar tambm infinito(

     /firmaram-nos mais os chins, que tinha dez mil teares de seda, porque daqui vai para todo o reino(

     / cidade em si cercada de muro forte e de boa cantaria, onde tem cento e trinta portas para a

    serventia da gente, as quais todas tm pontes por cima das cavas( / cada porta destas estava um porteirocom dois alabardeiros, para darem razão de tudo o que entra e sai( 2em doze fortalezas roqueiras quase

    14

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    ao nosso modo, com baluartes e torres muito altas, mas não tem artilharia nenhuma( 2ambm nos

    afirmaram que rendia esta cidade a el-rei todos os dias dois mil tais de prata, que são trs mil cruzados,

    como #& disse muitas vezes( *os paços reais não direi nada porque os não vimos senão de fora, nem deles

    soubemos mais que o que os chins nos disseram, o qual tanto que muito para recear cont&-lo, e por isso

    não tratarei por agora deles porque tenho daqui por diante de contar o que vimos nos da cidade de

     %equim, dos quais confesso que estou #& agora receando haver de vir a contar ainda esse pouco que deles

    vimos, não porque isso possa parecer estranho a quem viu as outras grandezas deste reino da 1hina,

    senão porque temo que os que quiserem medir o muito que h&, pelas terras que eles não viram, com pouco

    que vem nas terras em que se criaram, queiram p$r dúvida ou porventura negar de todo o crdito

    àquelas coisas coisas que não se conformam com o seu entendimento e com a sua pouca experincia(

     . querendo-lhe alguns dar algumas razAes contra isto, as não quis ouvir, mas deixando-os assim

    a todos, depois de lhe tomar primeiro as homenagens e lhe dar #uramento nos 3antos .vangelhos, se

    meteu com seis que levava, por dentro do arvoredo no bosque, e caminhando por ele mais de quatro tiros

    de espingarda, ouviu adiante tanger um sino, e atinando pelo som onde era, foi dar numa ermida muito

    mais nobre e rica que a outra em que no dia anterior tínhamos entrado, na qual estavam dois homensquase ambos de uma mesma idade, vestidos em tra#os de religiosos e com suas contas ao pescoço, por onde

    inferiu que eram ermitães, e dando neles de súbito os tornou a ambos, de que um ficou tão pasmado que

     por muito tempo não falou a prop!sito(

     *os nossos, seis ou quatro entraram na ermida e apanharam do altar um ídolo de prata de bom

    tamanho, com uma mitra de ouro na cabeça e uma roda na mão, que não soubemos determinar o que

    significava, e tomaram mais trs candeeiros de prata com suas cadeias muito compridas( . tornando-se

     /nt!nio de 0aria a recolher muito depressa, com os dois ermitães quase a rasto e com as bocas tapadas,

    chegou onde as embarcaçAes estavam, e recolhido nelas se fez logo à vela com muita pressa e se foi pelo rio

    abaixo" e fazendo perguntas a um dos dois que ia mais em seu acordo, e com grandes ameaças se

    mentisse, respondeu que era verdade que um santo homem de uma daquelas ermidas, de nome %ilau /ngirou, chegara #& muito de noite à casa do #azigo dos reis, e batendo muito apressadamente à porta

    dera um grito muito alto, dizendo>

    M S gentes tristes e ensopadas na bebedice do sono da carne, que professaste com #uramento

    solene a honra da deusa /mida, prmio rico do nosso trabalho, ouvi, ouvi, ouvi o miser&vel que antes

    nunca tivera nascido( 3abei que entraram gentes estrangeiras do cabo do mundo, com barbas compridas e

    corpos de ferro, na casa dos vinte e sete pilares, de que um santo homem que me isto disse era vassoura do

    chão, e roubando nela o tesouro dos santos, botaram com desprezo seus ossos no meio da terra e os

    contaminaram com escarros podres e fedorentos, dando muitas ridadas como dem!nios obstinados e

    contumazes no primeiro pecado, pelo que vos requeiro que ponhais cobro em vossas pessoas, porque se diz 

    que tem #urado de quando for manhã nos matarem a todos, e por isso ou fugi ou chamai quem vos socorra,

     pois por serdes religiosos vos não dado tomardes na mão coisa que tire sangue - a cu#as vozes toda a

    gente acordou e acudindo ri#o à porta o acharam quase morto deitado no chão, de tristeza e cansaço, por

    ser #& muito velho, pelo que todos os grepos e menigrepos fizeram os fogos que viste, e em grande pressa

    mandaram logo recado às cidades de 1orpilem e 0umbana, para que, com muita brevidade, acudissem

    com toda a gente que se pudesse #untar, e apelidassem toda a terra para que fizesse o mesmo, pelo que sem

    dúvida vos afirmo que não tardarão mais que o tempo de se #untarem, porque pelo ar, se puder ser, virão

    voando com tanto ímpeto como açores esfaimados quando lhes tiram as prisAes( . sabei que esta a

    verdade de tudo o que se passa, pelo que vos requeiro que nos deixeis ir e não nos mateis, porque ser&

    maior pecado que o que ontem cometeste( . lembremos que nos tem *eus tomado tanto à sua conta pela

     penitncia que fazemos, que quase nos v em todas as horas do dia, e trabalhai por vos pordes a salvo,

    15

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     porque vos afirmo que a terra, o ar, os ventos, as &guas, as gentes, os gados, os peixes, as aves, as ervas,

    as plantas, e tudo o mais que ho#e criado, vos h&-de empecer e morder-vos tanto sem piedade que s!

    aquele que vive no cu vos poder& valer(

    1ertificado /nt!nio de 0aria da verdade deste neg!cio, pela informação que este ermitão lhe

    dera, se foi logo a grande pressa pelo rio abaixo, depenando as barbas e dando muitas bofetadas em si por

    ter perdido por seu descuido e ignor5ncia uma tamanha coisa como a que tinha cometido, se chegara com

    ela ao cabo(

    Cap. -5 – Do que ach)mos por este rio acima até chegarmos a uma *ia chamada

     unquieu# e do que nea *imos# e noutro ugar adiante dea

     %artidos n!s ao outro dia desta cidade de %ocasser, cheg&mos a outra a que chamavam Pilingau,

    tambm muito grande e muito nobre e de muito boa casaria cercada de muros de ti#olo, com sua cava ao

    redor e nos cabos dois castelos de entulho muito fortes e bem acabados, com torres e baluartes quase anosso modo, e nas entradas pontes levadiças que se suspendiam no ar por grossas cadeias de ferro, e no

    meio de cada um destes castelos uma torre de cinco sobrados com muitas invençAes de pinturas de

    diversas cores, nas quais torres ambas, nos afirmaram os chins que estavam, em tesouro, quinze mil picos

    de prata do rendimento daquele anchacilado, que o av$ deste rei ali mandara p$r em mem!ria de um filho

    que ali lhe nascera, de nome 8euquinau, que quer dizer alegria de todos, o qual eles tm que foi santo

     porque acabou em religião e est& ali enterrado num templo da invocação do QuiaN 7aratel, deus de todos

    os peixes do mar, de que estes cegos contam muitos desatinos de leis que inventou e preceitos que deu, que

    espanto ouvi-los, de que a seu tempo farei menção(

     Lesta cidade e noutra mais acima cinco lguas, se tece a maior parte da seda deste reino, por

    causa das &guas que dizem que fazem mais vivas as cores das tintas, que todas as das outras partes( Ks

    teares destas sedas que em soma dizem que eram treze mil, rendiam a el-rei da 1hina cada ano trezentos

    mil tais( D(((F(

     *aqui nos partimos logo e continu&mos nosso caminho pelo rio acima, o qual #& nesta parte

    menos largo que na cidade de Lanquim donde primeiro partimos, mas a terra muito mais povoada de

    aldeias e quintas que todas as outras porque não h& tiro de pedra onde não ha#a uma casa, ou de pagode

    ou de lavrador e gente de trabalho( . indo mais adiante cerca de duas lguas, cheg&mos a um grande

    terreiro todo cercado de grades de ferro muito grossas, no meio do qual estavam em p duas monstruosas

    est&tuas de bronze fundidas, uma de homem e outra de mulher, encostadas a umas grossas colunas de

     ferro coado, da grossura de um barril e de altura de sete braças, e o comprimento destes monstros ambos

    era de setenta e quatro palmos, com ambas as mãos metidas nas bocas e as faces muito inchadas como que

    soprando, e com os olhos tão encarniçados que metiam medo a quem olhava para eles( K nome do macho

    era QuiaN Pingatalor, e o da fmea, /pancapatur e perguntando n!s aos chins pela significação daquelas

     figuras, nos responderam que o macho era o que soprava com aquelas bochechas tão inchadas o fogo do

     9nferno para atormentar as almas daqueles que nesta vida lhe não davam esmolas, e a fmea era a

     porteira do 9nferno e que os que na vida lhe davam esmola os deixava fugir para um rio de &gua muito

     fria, de nome Kchileudai, onde os tinha escondidos sem os diabos lhes fazerem mal nenhum( Tm dos da

    nossa companhia não se p$de ter que se não risse de tamanha parvoíce e diab!lica cegueira, de que uns

    trs bonzos que ali estavam +que são os sacerdotes, se escandalizaram tanto que meteram em cabeça ao

    chifu que nos levava que, se não nos castigasse de maneira que aqueles deuses se houvessem por satisfeitosdaquela zombaria que fizramos deles, sem dúvida a sua alma seria muito atormentada deles ambos, sem

    16

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    nunca a deixarem sair do 9nferno, a qual ameaça assombrou tanto o perro do chifu que, sem esperar mais,

    nos mandou a todos os nove atar de ps e mãos, e com umas cordas dobradas nos deram a cada um mais

    de cem açoites, de que todos fic&mos assaz sangrados, e dali por diante nunca mais zomb&mos de coisa

    que víssemos( / estes dois diab!licos monstros, no tempo em que ali cheg&mos, estavam incensando doze

    bonzos com seus incens&rios de prata, cheios de muitos cheiros de &guila e ben#oim, e diziam em voz alta e

    muito desentoada>

    M /ssim como te servimos, assim nos a#uda(

     / que outra grande soma de sacerdotes respondia com uma grande grita>

    M /ssim to prometo como bom senhor(

     . assim andaram todos em procissão à roda do terreiro com estes desentoados clamores por

    espaço de uma grande hora, tangendo sempre muitos sinos de metal e de ferro coado, que fora do terreiro

    estavam postos em campan&rios, e outros tangiam com tambores e sestros que faziam um tamanho

    estrondo que em verdade afirmo que metia medo(

    Cap. -( – 7uais 3oram os 3undadores das primeiras quatro cidades da China# e d)!se conta

    de agumas grande+as da cidade de Pequim

     D(((F 

     *esta maneira que brevemente tenho contado, se fundou esta cidade e se, povoou este imprio

    chim por este príncipe filho de Lanc&, chamado %equim, que era o mais velho de todos( Ks outros dois seus

    irmãos mais moços, que se chamavam %acão e Lacau, fundaram depois outras duas cidades a que

    tambm puseram os seus pr!prios nomes( . da mãe deles que como disse se chamou Lanc&, se l tambm

    que fundou a cidade de Lanquim, que a segunda desta monarquia, e que dela tomou o nome que ainda

    ho#e em dia tem(

     .ste imprio chim se l que foi sempre correndo por direitas sucessAes de uns reis nos outros,

    desde aquele tempo at uma certa idade que, segundo parece pela nossa conta, foi no ano do 3enhor, de

    mil cento e treze, e então foi esta cidade de %equim entrada de inimigos, e assolada, e posta por terra vinte

    e seis vezes( )as como #& neste tempo a gente era muita e os reis muito ricos, dizem que o que então

    reinava, que tinha por nome Pixipão, a cercou toda em roda da maneira que agora est&, em vinte e trs

    anos, e outro rei de nome =umbileitai, que era seu neto, fez a segunda cerca dali a oitenta e dois anos, as

    quais ambas tm de circuito sessenta lguas, trinta cada uma, convm a saber> dez de comprido e cinco de

    largo, das quais cercas ambas se l que tm mil e sessenta baluartes redondos e duzentas e quarenta torres

    muito fortes, largas e altas, com seus coruchus de diversas cores, que lhe dão muito lustro e em todas

    estão leAes dourados sobre bolas ou pomas redondas, os quais são a divisa ou as armas do rei da 1hina,

     pelos quais quer dar a entender que ele leão coroado no trono do mundo( %or fora desta derradeiracerca, vai uma muito grande cava de &gua, de mais de dez braças de fundo e quarenta de largo, dentro da

    qual h& continuamente grande soma de navios de remo toldados por cima como casas, em que se vendem

    todas as coisas quantas se podem imaginar, tanto de mantimentos como de toda a diversidade de

    mercadorias a que se pode p$r nome(

    2em mais esta cidade em roda, segundo os chins nos afirmaram, trezentas e sessenta entradas,

    em cada uma das quais estão sempre quatro upos como h& pouco disse, armados e com alabardas nas

    mãos, para darem razão de tudo o que se passa nela( G& ali tambm umas certas casas que são como

    casas de c5mara, que a cidade para isso tem destinadas, com seus anchacis e oficiais de #ustiça, e aonde

    tambm se levam os moços que se perdem, para que seus pais os venham ali buscar(

     *as mais grandezas desta insigne cidade, direi a seu tempo, porque isto que agora contei assimde corrida, foi somente para dar uma breve relação da origem e fundação deste imprio e do primeiro que

    17

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     fundou esta cidade de %equim, metr!pole com razão e com verdade, de todas as do mundo, na grandeza,

    na polícia, na abastança, na riqueza, e em tudo o mais quanto se pode dizer ou cuidar, e tambm para dar

    conta da fundação e princípio da segunda cidade deste grande imprio, que a de Lanquim, como #& disse,

    e destoutras duas de %acão e Lacau de que atr&s tenho contado, nas quais ambas #azem estes dois seus

     fundadores, em templos muito nobres e ricos, numas sepulturas de alabastro verde e branco, guarnecidas

    de ouro, postas sobre leAes de prata, com muitas l5mpadas ao redor e perfurmadores de muitas

    diversidades de cheiros(

    Cap. -1 – Do que *imos depois que sa8mos de uma cidade a que chama*am /unquiniau

     DEF 

     . partidos daqui, seguimos nossa viagem pelo rio acima, vendo sempre de uma banda e da outra,

    muitas e muito nobres cidades e vilas, e outras povoaçAes muito grandes, cercadas de muros muito fortes e

    largos, com seus castelos roqueiros ao longo da &gua, fora muitas torres e casas ricas de suas gentílicas

    seitas, com campan&rios de sinos e coruchus cobertos de ouro, e pelos campos havia tanta quantidade de

    gado vacum que em algumas partes ocupavam dist5ncia de seis a sete lguas da terra, e no rio havia

    tamanho número de embarcaçAes que em algumas partes onde havia a#untamento de feiras, se não podia

    alcançar com a vista, fora outros muitos magotes mais pequenos de trezentos, quinhentos e de mil barcos

    que a cada passo encontr&vamos, tanto de uma parte como da outra, nas quais se vende toda a

    diversidade de coisas a que se pode p$r nome( . muitos chins nos afirmaram que neste imprio da 1hina,tanta era a gente que vivia pelos rios como a que habitava nas cidades e vilas, e que se não fosse a grande

    ordem e governo que se tem no prover da gente mec5nica e no trato e ofícios com que os constrangem a

    buscarem vida, que sem dúvida se comeriam uns aos outros, porque cada sorte de trato e de mercancia de

    que os homens vivem, se divide em trs e quatro formas, desta maneira> no trato das adens, uns tratam

    em botar os ovos de choco e criarem adinhos para venderem, outros em criarem adens grandes para

    matar e vender chacinadas, outros tratam da pena somente, e das cabidelas, e das tripas, e outros dos

    ovos somente, e o que trata de uma destas coisas, não h&-de tratar da outra, sob pena de trinta açoites em

    que não h& apelação nem agravo, nem valia, nem aderncia que lhe possa valer" nos porcos, uns tratam

    em os venderem vivos por #unto, outros em os matarem e os venderem aos arr&teis, outros em os

    chacinarem e os venderem de fumeiro, outros em venderem leitAes pequenos, outros nos miúdos de tripas,

    e banhas, ps, sangue, e fressuras" no peixe, o que vende o fresco, não h&-de vender o salgado, e o que

    vende o salgado, não h&-de vender o seco, e todas as outras coisas, tanto de carnes, caças, e pescados,

    como de frutas e hortaliças, se governam a este modo( . nenhum dos que tm qualquer trato destes, se

     pode mudar para outro sem licença da c5mara, e s! por causas #ustas e lícitas, sob pena de trinta açoites(

     G& tambm outros que vivem de venderem pescado vivo que tm em grandes tanques e charcos de &gua,

    dos quais carregam muitas embarcaçAes de remo onde em pai!is muito estanques o levam em viveiro para

    diversas terras dali muito longe( G& tambm ao longo deste grande rio da @atampina, por onde fizemos

    este nosso caminho da cidade de Lanquim para a de %equim, que dist5ncia de cento e oitenta lguas,

    tanto número de engenhos de açúcar e lagares de vinhos e de azeites, feitos de muitas e muito diversas

    maneiras de legumes e frutas, que h& ruas destas casas ao longo do rio, de uma parte e da outra, de duas e

    18

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    trs lguas em comprido, coisa decerto de grandíssima admiração( .m outras partes h& muitos armazns

    de infinidade de mantimentos, e outras tantas casas com terecenas muito compridas, em que chacinam,

    salgam, empezam e defumam todas as sortes de caças e carnes quantas se criam na terra, em que h&

    rimas muito altas de lacAes, marras, toucinhos, adens, patos, grous, batardas, emas, veados, búfalos,

    antas, badas, cavalos, tigres, cães, raposos, e toda a mais sorte de animais que a terra cria, de que todos

    est&vamos tão pasmados quanto requeria uma tão nova, tão espantosa e quase incrível maravilha, e

    muitas vezes dizíamos que não era possível haver gente no mundo que pudesse acabar de gastar aquilo em

    toda a vida( DEF 

    Cap. 99% – Da maneira que se tem para ha*er em todo o reino ceeiros para os pobres# e qua  3oi o rei que isto ordenou

     DEF 

     /ssim em todas as coisas h& neste reino um tão excelente governo e uma tão pronta execução nas

    coisas dele, que entendendo bem isto no tempo que l& andou, aquele bem-aventurado padre-mestre

     0rancisco Pavier, lume no seu tempo de todo o Kriente, cu#a virtude e santidade o fizeram tão conhecido

    no mundo que por isso escusarei por agora de tratar mais dele, espantado, tanto destas coisas como

    doutras muitas excelncias que nesta terra viu, dizia que se *eus alguma hora o trouxesse a este reino,

    havia de pedir de esmola a el-rei nosso senhor que fizesse ver as ordenaçAes e os estatutos de guerra e da

     fazenda por que esta gente se governava, porque não tinha dúvida que eram muito melhores que os dosromanos no tempo de sua felicidade, e que os de todas as outras naçAes de gentes de que os escritores

    antigos trataram(

    Cap. 9%% – Como desembarc)mos nesta iha de :ani;um)# e do que pass)mos com o senhor 

    dea

     DEF 

     . quando ao outro dia foi manhã clara, nos mandou ao #unco um grande parau de refresco, em

    que entravam uvas, peras, melAes, e toda a sorte de hortaliça que h& nesta terra, com cu#a vista demos

    muitas graças e louvores a Losso 3enhor( K necod& do #unco lhe mandou pelo mensageiro algumas peçasricas e brincos da 1hina, em retorno do refresco, e lhe mandou dizer que quando o #unco ancorasse no

    surgidouro onde estivesse seguro do tempo, o iria logo ver a terra e levar-lhe as amostras da fazenda que

    trazia para vender( . ao outro dia, logo que foi manhã desembarcou em terra e nos levou consigo a todos

    trs, com mais dez ou doze chins, os que lhe pareceram mais graves e autorizados em suas pessoas, quais

    os ele queria para o ornamento desta primeira visita, em que esta gente costuma mostrar-se com muita

    vaidade(

    1hegando n!s a casa do nautaquim, fomos todos muito bem recebidos por ele, e o necod& lhe deu

    um bom presente, e ap!s isso lhe mostrou as amostras de toda a sorte de fazenda que trazia, de que ele

     ficou satisfeito e mandou logo chamar os principais mercadores da terra, com os quais se tratou do preço

    dela, e concertados nele se assentou que ao outro dia se trouxesse a uma casa que mandou dar ao necod&em que se agasalhasse com a sua gente at se tornar para a 1hina(

    19

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     9sto ordenado, o nautaquim tornou de novo a praticar connosco e a perguntar-nos por muitas

    coisas miudamente, a que respondemos mais conforme ao gosto que nele víamos, que não ao que

    realmente era verdade, mas isto foi em certas perguntas em que foi necess&rio a#udarmo-nos de algumas

    coisas fingidas, para não desfazermos o crdito que ele tinha desta nossa p&tria( / primeira foi dizer-nos

    que lhe tinham dito os chins e lquios, que %ortugal era muito maior em quantidade tanto de terra como de

    riqueza, que todo o imprio da 1hina, o que n!s lhe concedemos( / segunda, que tambm lhe tinham

    certificado que tinha o nosso rei sub#ugado por conquista de mar, a maior parte do mundo, o que tambm

    dissemos que era verdade( / terceira, que era tão rico o nosso rei, de ouro e de prata, que se afirmava que

    tinha mais de duas mil casas cheias at ao telhado, e a isto respondemos que do número de duas mil casas,

    nos não certific&vamos, por ser a terra e o reino em si tamanho, e ter tantos tesouros e povos, que era

    impossível poder-se dizer-lhe a certeza disso( . nestas perguntas e em outras desta maneira, nos deteve

    mais de duas horas, e disse para os seus>

    M R certo que se não deve de haver por ditoso nenhum rei de quantos agora sabemos na terra, senão s! o

    que for vassalo de tamanho monarca como o imperador desta gente(

     . despedindo o necod& com toda a sua companhia, nos rogou que quisssemos ficar naquela noitecom ele em terra" porque se não fartava de nos perguntar muitas coisas do mundo, a que era muito

    inclinado, e que pela manhã nos mandaria dar umas casas em que pous&ssemos #unto com as suas, por ser

    o melhor lugar da cidade, o que n!s fizemos de boa vontade, e nos mandou agasalhar com um mercador

    muito rico que nos banqueteou muito largamente, tanto nesta noite como em doze dias mais que pous&mos

    com ele(

    Cap. 9%( – Da honra que o nautaquim 3e+ a um dos nossos por o *er atirar com uma

    espingarda# e do que da8 sucedeu

     8ogo ao outro dia seguinte, este necod& chim desembarcou em terra toda a sua fazenda como o

    nautaquim lhe tinha mandado, e a meteu numas boas casas que para isso lhe deram, a qual fazenda se

    vendeu toda em trs dias, tanto por ser pouca como porque estava a terra falta dela, na qual este cors&rio

     fez tanto proveito que de todo ficou restaurado da perda dos vinte e seis barcos que os chins lhe tomaram,

     porque pelo preço que ele queria p$r na fazenda, lha tomavam logo, de maneira que nos confessou ele que

    com s! dois mil e quinhentos tais que levava de seu, fizera ali mais de trinta mil(

     L!s os trs portugueses, como não tínhamos veniaga em que nos ocup&ssemos, gast&vamos o

    tempo em pescar e caçar, e ver templos dos seus pagodes que eram de muita ma#estade e riqueza, nos

    quais os bonzos, que são os seus sacerdotes, nos fasiam muito gasalhado, porque toda a gente do =apão

    naturalmente muito bem inclinada e conversadora( Lo meio desta nossa ociosidade, um dos trs que

    ramos, de nome *iogo Ueimoto, tomava algumas vezes por passatempo atirar com uma espingarda quetinha de seu, a que era muito inclinado, e na qual era assaz destro( . acertando um dia de ir ter a um paul 

    onde havia grande soma de aves de toda a sorte, matou nele com a munição, umas vinte e seis marrecas(

    Ks #apAes, vendo aquele novo modelo de tiros que nunca at então tinham visto, deram rebate

    disso ao nautaquim que neste tempo andava vendo correr uns cavalos que lhe tinham trazido de fora, o

    qual espantado desta novidade, mandou logo chamar o Ueimoto ao paul onde estava caçando, e quando o

    viu vir com a espingarda às costas, e dois chins carregados de caça, fez disto tamanho caso que em todas

    as coisas se lhe enxergava o gosto do que via, porque como at então naquela terra nunca se tinha visto

    tiro de fogo, não sabiam determinar o que aquilo era, nem entendiam o segredo da p!lvora, e assentaram

    todos que era feitiçaria(

    K Ueimoto, vendo-os tão pasmados e o nautaquim tão contente, fez perante eles trs tiros em que

    matou um milhano e duas rolas, e para não gastar palavras no encarecimento deste neg!cio, e para

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    escusar de contar tudo o que se passou nele, porque era coisa para se não crer, não direi mais senão que o

    nautaquim levou o Ueimoto nas ancas de um cavalo em que ia acompanhado de muita gente, e quatro

     porteiros com bastAes ferrados nas mãos, os quais bradando ao povo que era neste tempo sem conto,

    diziam>

    M K nautaquim, príncipe desta ilha de 2anixum& e senhor de nossas cabeças, manda e quer que

    todos v!s outros, e assim os mais que habitam a terra de entra ambos os mares, honrem e venerem este

    chenchicogim do cabo do mundo, porque de ho#e por diante o faz seu parente, assim como os facharAes que

    se sentam #unto de sua pessoa, sob pena de perder a cabeça o que isto não fizer de boa vontade( / que todo

    o povo respondia>

    M /ssim se far& para sempre(

     . chegando o Ueimoto com esta pompa mundana ao primeiro terreiro dos paços, descavalgou o

    nautaquim e o tomou pela mão, ficando n!s os dois um bom espaço atr&s, e o levou sempre #unto de si at

    uma casa onde o sentou à mesa consigo, na qual tambm para lhe fazer a maior honra de todas, quis que

    dormisse aquela noite, e sempre dali por diante o favoreceu muito, e a n!s por seu respeito, em alguma

    maneira( . entendendo então o *iogo Ueimoto que em nenhuma coisa podia melhor satisfazer ao

    nautaquim alguma parte destas honras que lhe fizera, e que nada lhe daria mais gosto que lhe dar a

    espingarda, lha ofereceu um dia que vinha da caça com muita soma de pombas e rolas, a qual ele aceitou

     por peça de muito apreço e lhe afirmou que a estimava mais que todo o tesouro da 1hina, e lhe mandou

    dar por ela mil tais de prata, e lhe rogou muito que o ensinasse a fazer a p!lvora, porque sem ela ficava a

    espingarda sendo um pedaço de ferro desaproveitado, o que o Ueimoto lhe prometeu e lho cumpriu( . 

    como dali por diante o gosto e passatempo do nautaquim era no exercício desta espingarda, vendo os seus

    que em nenhuma coisa o podiam contentar mais que naquela de que ele mostrava tanto gosto, ordenaram

    mandar fazer, por aquela, outras do mesmo teor, e assim o fizeram logo( *e maneira que o fervor deste

    apetite e curiosidade foi dali por diante em tamanho crescimento que #& quando dali nos partimos, que foi dali a cinco meses e meio, havia na terra passante de seiscentas( . depois a derradeira vez que me l&

    mandou o vice-rei *( /fonso de Loronha, com um presente para o rei do @ungo, que foi no ano de :;;V, me

    afirmaram os #apAes que naquelas cidade do 0uchu, que a metr!pole deste reino, havia mais de trinta

    mil( . fazendo eu disto grande espanto, por me parecer que não era possível que esta coisa fosse em tanta

    multiplicação, me disseram alguns mercadores, homens nobres e de respeito, e mo afirmaram com muitas

     palavras, que em toda a ilha do =apão havia mais de trezentas mil espingardas, e que eles somente tinham

    levado de veniaga para os lquios, em seis vezes que l& tinham ido, vinte