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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA INTERPRETAÇÃO SIMBÓLICA DO TRATADO ALQUÍMICO ‘SPLENDOR SOLIS’: A relevância da Prima Materia no processo de individuação MAYRA PORTELA MENDES 1

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOFACULDADE DE CINCIAS HUMANAS E DA SADE CURSO DE PSICOLOGIA

INTERPRETAO SIMBLICA DO TRATADO ALQUMICO SPLENDOR SOLIS:A relevncia da Prima Materia no processo de individuao

MAYRA PORTELA MENDES

SO PAULO2014

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOFACULDADE DE CINCIAS HUMANAS E DA SADE CURSO DE PSICOLOGIA

INTERPRETAO SIMBLICA DO TRATADO ALQUMICO SPLENDOR SOLIS:A relevncia da Prima Materia no processo de individuao

Trabalho de concluso de curso como exigncia parcial para graduao no curso de Psicologia, sob orientao do Prof. Dr. Noely Moraes

MAYRA PORTELA MENDES

SO PAULO2014

Individual caminho de todas as almas

Agradecimentos

Gratido a todos que acreditam nos meus sonhos!Agradeo a todas as foras csmicas, a todas as energias que auxiliaram meu caminhar, a cada sincronicidade, que tornou possvel cada insight, cada desejo de conhecer, revelao, e apaixonamento por esse saber. Agradeo a oportunidade de estudar e aprofundar-me cada vez mais nos mistrios da alma, no resgate das artes ocultas, nas tradies e sabedorias milenares. Pois, esse conhecimento tem se mostrado nutriente essencial, e linguagem ideal, para o entendimento de mim mesma, do mundo e dos outros.Aos meus pais, pela amizade, segurana e pacincia, por sempre acreditarem e incentivarem meus dons e talentos, aprendendo a cada dia a sonhar comigo meus sonhos. A toda minha famlia em especial as minhas falecidas avs...A toda minha famlia espiritual, Tradio da Cidade Sagrada, formada por irmos e amigos, presentes preciosos em minha vida. Por serem a concretizao desse sonhar, e o eterno lar aberto a me receber. A todos os meus amigos! Em especial a Elaine, Alexandre, Theozinho e Cssio por nossa profunda conexo no importando as circunstncias!As colegas da Psicologia que tornam meu dia a dia mais leve e feliz!A Cirandda da Lua, e a Soraya, por ter me reconhecido, por valorizar o meu trabalho, entendendo e respeitando quem eu sou, por ser essa terra frtil, recebendo gentil minhas sementes de ideias. Ao Cl das Yiayis, por tudo que aprendo com cada uma em palavras, gestos e silncios. Gostaria de agradecer tambm a prof. Sylvia Baptista, que tanto me ensinou sobre Psicologia Analtica, me auxiliando pacientemente na produo desse trabalho, e a prof. Noely Moraes, que tive a sorte de receber como orientadora, me organizando, estruturando, e incentivando minha busca pelo saber.A esta oportunidade...

Resumo

PORTELA MENDES, Mayra. Interpretao simblica do tratado alqumico Splendor Solis: A relevncia da Prima Materia no processo de individuao. 2014. 80. Monografia (Graduao em Psicologia) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2014.

Atravs desse trabalho buscamos elucidar a importncia do estudo da Alquimia para a Psicologia analtica, tendo como objetivo entender qual a relevncia da prima materia na opus alqumica. O tratado Splendor Solis,1582 pareceu ideal para ilustrar o objetivo de nosso trabalho. Esse tratado possui vinte duas imagens, divididas em quatro partes, e sua simbologia descreve de forma velada o processo de obteno da pedra filosofal.Jung (2011b) revela que o estudo da opus alqumica a melhor maneira de exemplificar de forma generalizada o processo de individuao, pois todo o rico simbolismo alqumico nasceu das projees dos alquimistas de contedos internos em seus experimentos. Ao transformar aquela matria prima dentro do vaso alqumico, materializa-se de forma correlata a vivencia psquica.Assim como sua prima matria, a meta da opus alqumica era representada de diversas formas. A pedra filosofal apenas um dos nomes do fim do trabalho, e apesar dessa enorme variedade de smbolos, possvel perceber que estes so correlatos, ou seja, sempre smbolos do Si mesmo, e o mesmo ocorre com a prima matria. Seus nomes, porm, apesar de correlatos ao Si mesmo, o revelam em estado de desorganizao, onde seus elementos essenciais ainda esto em inimizade.Analisamos nesse trabalho apenas a primeira parte desse tratado, intitulada Material primal do trabalho, buscando revelar possveis significados psquicos correlatos a essas imagens. No desenvolvimento deste, mostrou-se intrnseca a relao entre o material primal do trabalho e o fim do trabalho, pois o Si mesmo em estado catico necessita de uma serie de transformaes para que possa realizar-se de forma mais integrada. Dessa forma a opus alqumica descreve um processo de lapidao da personalidade, que tambm um processo de retorno consciente ao inconsciente primevo, onde o objetivo da jornada sempre esteve conosco, pois a pedra filosofal dorme tranquila nos braos da prima materia.-Palavras chave: Alquimia, Individuao, Prima materia, opus alqumicaSumrio

1.Introduo72. Objetivo123. Mtodo134. Conceitos gerais em Alquimia15 4.1 Macrocosmo e microcosmo, cu e terra, psique e matria15 4.2 A opus Magnum (Grande Obra) e o Processo de Individuao20 4.3 As cores e operaes do processo alqumico24 4.4 Caminhos de regenerao da alma28 4.5 Sobre o tratado alqumico Splendor Solis315. Interpretao simblica das pranchas do tratado alqumico Splendor Solis34 5.1 O MATERIAL PRIMAL DO TRABALHO34 5.2 PRANCHA I - Arma rtis46 5.2.1 Prima matria enquanto Defesas psquicas:50 5.3 PRANCHA II O Ovo56 5.3.1 Prima matria enquanto o Alquimista como heri sua jornada57 5.3.2 Prima matria enquanto o Ovo, o Vaso Alqumico59 5.4 PRANCHA III O Cavaleiro da dupla fonte73 5.4.1 Prima matria enquanto o Cavaleiro da dupla fonte: Senhor das sete estrelas, quatro cores e duas guas75 5.4.2 Prima matria enquanto Fonte Mercurial, Fons Merculeares79 5.4.3 Prima matria enquanto Urina da Criana, Urina puerorum82 5.5 PRANCHA IV A Rainha Branca e o Rei Vermelho86 5.5.1 Prima matria enquanto arqutipo anima-animus "coniunctio solis et lunae" (conjuno do sol e da lua).88 5.5.2 Prima matria enquanto relao Ego - Si mesmo.93 5.6 Material primal do trabalho X Fim do trabalho946. Concluso1067. Bibliografia108

1. Introduo

A ideia de fazer um trabalho sobre Alquimia surgiu de uma grande identificao com esse tema e com outros temas relacionados, como o hermetismo, gnosticismo, cincias ocultas, mitologia, smbolos e rituais religiosos. A questo da evoluo espiritual sempre se mostrou central em minha vida e, desta forma, presente em meu campo de interesse e estudo contnuo. Vi na Alquimia uma possibilidade de estudar de forma organizada e aprofundada todos esses temas. A Psicologia Analtica, atravs da interpretao simblica e do conceito de individuao, tambm se mostrou ideal para tratar desse tema.Ao longo da pesquisa de referencial bibliogrfico pude perceber que minha verdadeira vontade me levava a querer tratar da evoluo espiritual em relao ao processo de individuao.Por conta da minha intensa atrao pelo simbolismo alqumico, resolvi procurar tratados, j sabendo que esses em geral contemplam essa busca por evoluo espiritual atravs da imagem da Pedra Filosofal.O tratado alqumico que escolhi chamado Splendor Solis. Sua escolha foi bastante intuitiva, pois diversas imagens do tratado j haviam aparecido em meus sonhos anteriormente e, desde que dei maior ateno s suas pranchas, essas passaram a fazer parte de meus pensamentos constantemente, como se quisessem revelar-se a mim, como se os smbolos vivos de suas pranchas fizessem de minha vida o palco de sua atuao.Segundo Henderson e Sherwood (2003) so 22 imagens alegricas datadas de 1.582, nas quais Trismosin relata suas viagens em busca da Pedra Filosofal. Esse processo tambm foi chamado de "O rei vermelho". Interessante observar que essas 22 imagens parecem ter um significado mstico bastante relacionado ao Tarot e aos Caminhos da rvore da Vida, outros temas importantes de estudo do prprio Salomon Trismosin.Acredito que buscar suas relaes com esses outros smbolos poder ser bastante til para elucidao do processo alqumico. Penso que esse talvez seja o verdadeiro charme da Alquimia: como se ela falasse diretamente com a alma por ser puramente simblica; como se estivesse viva.Sobre o incio do estudo da Alquimia em relao Psicologia Analtica os mesmos (2003), p.1 relatam o seguinte:

Historicamente, a ligao entre a Psicologia Analtica e a Alquimia comeou em 1928, quando Richard Wilhelm enviou a C. G. Jung sua traduo do texto taosta chins, O Segredo da Flor de Ouro. Jung relatou como suas investigaes sobre a natureza do inconsciente ao longo dos 15 anos anteriores o confrontaram com a extensa fenomenologia a qual as categorias e mtodos at agora conhecidos no podem mais ser aplicados. Em sua pesquisa por algum material comparativo com os quais ele poderia testar a abrangncia de seus achados, havia estudado textos gnsticos. No entanto, ele estava frustrado pela falta de fontes adequadas e informaes histricas. Por outro lado, o Segredo da Flor de Ouro continha simbolismo alqumico, e como Jung escreveu isso me colocou no caminho certo. (Livre traduo da autora)

interessante comentar que alm dos estudos iniciados com O Segredo da flor de ouro Jung aprofunda suas pesquisas sobre a Alquimia na Psicologia e publica, em 1943, Psicologia e Alquimia, onde relata sonhos de um cientista natural (Wolfgang Pauli) que continham uma enorme quantidade de smbolos alqumicos. Percebeu como a Alquimia interessante simbolicamente ao homem moderno e como ela poderia abrir nossa compreenso sobre o psiquismo e retratar de maneira fiel processos psquicos, a partir de analogias e amplificaes. Ele mesmo, ao voltar-se Alquimia, notou grande ligao entre esta e a temtica dos sonhos de seus pacientes, e esse pensamento levou von Franz em seu livro Alquimia- Introduo ao simbolismo e psicologia ao questionamento:

Por que o simbolismo alqumico estaria mais prximo do produto inconsciente de muitos modernos do que qualquer outro material? Por que no bastaria estudar mitologia comparada, os contos de fada e a histria das religies? Por que h de ser particularmente a alquimia? (1996 p.4)

Nas mitologias comparadas, assim como na histria das religies, perceberemos que apesar desses smbolos terem tido sua origem no inconsciente, eles passam por constante elaborao atravs da tradio que, a partir de seus dogmas e cultura, os molda e direciona. Assim a tradio fornece ideias conscientes, uma direo consciente num caminho inconsciente de onde todas as imagens poderiam erguer-se. Ela escolhe atravs da conscincia algumas imagens para fixar-se. Essas, em geral correspondem a interesses culturais e histricos. A arte alqumica enquanto prtica era, por um lado, composta de diversas experimentaes acerca dos processos de transmutao da matria e, por outro, filosfica e espiritual pois, atravs de uma postura ritualstica e do estudo simblico, eles buscavam a evoluo espiritual, repetindo em laboratrios a Obra de Deus.

...a qumica nasceu da alquimia; para ser mais exato, nasceu da decomposio da ideologia alqumica. Mas no panorama visual de uma histria do esprito, o processo se apresenta de distinto modo: a alquimia se erigia em cincia sagrada, enquanto que a qumica se constituiu depois de ter despojado s substncias de seu carter sacro. Existe, portanto, uma necessria soluo de continuidade entre o plano do sagrado e o da experincia profana. (Eliade, 1983, p.5)A Alquimia ao trabalhar em lapidar a matria lapida tambm o esprito. Dessa forma ela une de forma simblica o sagrado e o profano, transformando a partir do real o psquico, e a partir do psquico o real, atravs projeo que faz com que o alquimista derrame sua alma sobre o material a ser trabalhado.Na Alquimia a imaginao inconsciente ao deparar-se com materiais a princpio desconhecidos projeta imagens arquetpicas livremente. Dessa forma, a influncia da cultura no determinante na constituio dos smbolos alqumicos. A prpria tradio alqumica nasce de um processo diferenciado pela natureza de cada um de seus adeptos. Existe um caminho arquetpico de desenvolvimento espiritual, mas de que forma o seguiremos, ou qual a meta que nos mantm nesse caminho, algo absolutamente individual, e deve ser para se manter verdadeiro. Cada opus nica, particular, e dessa forma funciona analogamente ao processo de individuao descrito por Jung.Este considerou que justamente pelo processo de livre projeo, trazendo conscincia contedos coletivos primordiais sem a censura ou direcionamento da cultura ou tradio. Os materiais psquicos resultantes do processo alqumico possuem a mesma natureza que os sonhos e a imaginao ativa, diferenciando-se da mitologia comparada, histria das religies e contos de fadas.

As relaes do mundo da intuio alqumica e dessas duas formas do processo de interpenetrao inconsciente-consciente so to prximas a ponto de ser justo supor-se que no procedimento alqumico se trata de processos semelhantes ou iguais aos da imaginao ativa e dos sonhos, e enfim ao processo de individuao. (Jung, 2011b, p.354, PP.448)

Os alquimistas, por mais que possussem suas metas, tinham como principal foco seu processo: estudar esses fenmenos desconhecidos da matria atravs de observaes e interpretaes, mas sem planos especficos ou norteadores. Isso fez da arte alqumica uma projeo inconsciente e bastante espontnea, como a prpria imaginao ativa. A tcnica da imaginao ativa foi formulada por Jung no mesmo perodo em que este se dedicava ao estudo da Alquimia. Consistia em deixar-se tomar, como numa espcie de sonho acordado, por imagens vindas do inconsciente, e atravs de recursos egicos, colocar-se em relao com este contedo. Ao trabalhar com a imaginao ativa, ele pde perceber a natureza comum de suas imagens quando comparadas Alquimia, e assim observou como a linguagem alqumica nos fala de camadas profundas do inconsciente coletivo, amplamente vinculadas s suas formas arquetpicas.A imaginao ativa tambm foi considerada pelo prprio Jung como uma psicose artificial. O material psquico, presente nas alucinaes de psicticos, tambm de natureza inconsciente e espontnea - analogamente Alquimia. Esta foi utilizada por Jung como linguagem e conhecimento capazes de compreender e organizar esses materiais psquicos.

o mistrio que estavam tentando descobrir, o mistrio da estrutura do universo, estava neles mesmos, em seus prprios corpos, e naquela parte de sua personalidade que chamamos de o inconsciente, mas que eles diriam ser a vida de sua prpria existncia material. (von Franz, 1992, p.16).

Existem diversas alegorias presentes nos processos alqumicos. Fundamentam-se no fato de que todos os smbolos empregados representam, alm de uma transmutao qumica, tambm seu efeito psquico correlato. Esse desenvolvimento psquico atravs de smbolos era propiciado pela facilidade de projees de material inconsciente em relao s substncias qumicas utilizadas na opus. Elas deveriam ser transmutadas at chegar a sua maior integridade. Essas etapas so anlogas ao processo de formao da personalidade e, consequentemente, ao de individuao.A Alquimia o resultado das projees dos alquimistas sobre uma matria at ento desconhecida, que atravs de diversos processos tornaria-se um material puro, preciso e ntegro.

...as projees alqumicas mostram como meta de redeno para nossa vida ativa e cheia de desejos um smbolo do inorgnico- a pedra que no vive por si mesma, mas apenas existe ou vem a ser, e nela acontece um jogo incalculvel de oposies. (Jung, 2011c, p.251, PP.286)

C. G. Jung dedicou muito de seus ltimos anos de vida estudando Alquimia. Ele a considera como fundamental a concepo de estrutura de personalidade. Via na Alquimia, ao desvendar suas metforas, uma psicologia pr-cientfica. Importante ressaltar que o processo alqumico baseia-se na reconciliao, unio e criao a partir de substncias opostas ou conflituosas. Um funcionamento simblico dialtico onde o real objetivo encontra-se no processo. Henderson e Sherwood (2003) esclarecem que o estudo do simbolismo alqumico tem muito mais a revelar acerca da estrutura e funes da psique do que objetivamente acerca da transmutao dos metais.Os processos alqumicos representam assim processos psquicos necessrios integrao da personalidade e, logo, sua individuao, seu ouro metafrico.Segundo von Franz (1992), a Alquimia teria comeado no sec. I a.c. tendo dois pais, a filosofia racional grega e a tecnologia egpcia, e desenvolve-se originando uma tradio ocidental e uma oriental. No trabalho Undus Mundus de Hoffman (2006), encontra-se a informao de que a Alexandria teria sido o bero da Arte alqumica, por ser um centro intelectual e cultural que era frequentado por egpcios, gregos e judeus, isto revela-se na mescla de influencias histrico espirituais que apresenta-se o universo da Alquimia. (Hoffman, 2006, p.48)Alguns elementos so considerados estruturantes s origens da Alquimia, (especificamente a Alquimia alexandrina) como os conhecimentos gnsticos, hermticos e a cosmologia grega.

2. Objetivo

O tratado que escolhi para interpretao dos processos alqumicos um tratado europeu. O primeiro manuscrito encontrado est em alemo. Nosso foco ser, ento, o trabalho com os smbolos da tradio alqumica ocidental. Atravs da interpretao simblica das quatro primeiras imagens contidas no tratado alqumico Splendor Solis, pretendemos esclarecer os processos psquicos envolvidos na opus alqumica, traando uma comparao entre esses e o processo de individuao. Observando qual a importncia e representao que os smbolos alqumicos tm para psique.Os conceitos da Psicologia Analtica sero utilizados a fim de interpretar a opus descrita nas pranchas alqumicas. Dessa forma, tentaremos mostrar a intrnseca relao da Alquimia com o processo de individuao, e em especifico qual a relevncia da prima materia para a opus alqumica.

3. Mtodo

Neste trabalho pretendemos fazer uma interpretao simblica do Tratado Alqumico Splendor Solis, cuja autoria remetida a Salomon Trismosin, adepto e professor de Paracelso. Como estratgia de interpretao, proponho dividir este tratado em quatro partes: As quatro primeiras imagens foram intituladas de "O material primal do trabalho"; em sequncia, as prximas sete pranchas foram chamadas "As sete fases do processo em alegoria da morte e renascimento - primeira srie". J as sete prximas, "As sete fases do processo em alegoria da morte e renascimento -segunda srie". Esta ltima diretamente ligada aos sete planetas conhecidos at ento. O ltimo grupo de imagens que, como o primeiro, tambm possui quatro pranchas, foi intitulado "O fim do trabalho".Este tratado revela a opus magnum, o processo alqumico da busca pela Pedra Filosofal entendida na Psicologia Analtica como smbolo do Si mesmo, da totalidade, representando o momento de mxima ampliao de conscincia e evoluo espiritual.Os processos alqumicos e a busca da realizao de sua meta narram simbolicamente uma jornada rumo a Si mesmo, assim como o tar e a rvore da vida. Buscamos apresentar como a Alquimia, que contm um rico arcabouo simblico, capaz de oferecer grande material de interpretao e compreenso da psique e suas produes. Nosso objetivo com este estudo ser elucidar o processo da Grande Obra, obteno da Pedra filosofal, analisando as imagens do Tratado Splendor Solis. Para tanto focaremos na primeira diviso do tratado, intitulada material primal do trabalho, pois esta matria guarda o mistrio de todo processo, sendo tambm representante do Si mesmo.

ANALISAREMOS NESTE TRABALHO APENAS AS QUATRO PRIMEIRAS PRANCHAS, DE FORMA SEQUENCIAL, LEVANTANDO OS SIMBOLOS CENTRAIS E RELEVANTES PARA O OBJETIVO DESSE TRABALHO: RELACIONAR O PROCESSO ALQUIMICO REPRESENTADO POR ESTAS COM O PROCESSO DE INDIVIDUAO DESCRITO POR C.G. JUNG.AS QUATRO PRIMEIRAS PRANCHAS DESTE TRATADO FAZEM PARTE DE UMA SUBDIVISO INTITULADA: MATERIAL PRIMAL DO TRABALHO.ESTA NOSSA TEMTICA CENTRAL NESSE TRABALHO: A RELEVANCIA DO SIMBOLISMO DA PRIMA MATERIA PARA O PROCESSO DE INDIVIDUAO.

O mtodo de anlise da pranchas a amplificao simblica. Objetivamos, atravs dos smbolos centrais de cada prancha, levantar sua temtica relevante buscando, dentro dos estudos alqumicos, onde e de que forma esses smbolos aparecem e o que representam. importante ressaltar que este trabalho visa a redescoberta dos smbolos alqumicos e sua correlao simblica com a Psicologia Analtica. Respeitaremos a diviso temtica existente dentro do tratado, utilizando essas sequencias temticas enquanto norte para nossa interpretao.

4. Conceitos gerais em Alquimia

4.1 Macrocosmo e microcosmo, cu e terra, psique e matria

Na verdade, na verdade, sem dvidas ou incertezas: o que est em baixo assemelha-se ao que est em cima, e o que est em cima ao que est em baixo, para realizar os prodgios do Uno. Tbpula Smaragdina, Hermes Trimegisto (ROOB,1997, p.9)

Hermes Trismegisto, considerado pelos alquimistas como aquele que traz suas leis, seus "mandamentos", teria concedido suas verdades, contando a estes os princpios fundamentais que regeriam esse universo. Essas leis universais estariam presentes tanto na Tbua de Esmeralda quanto no Caibalion. Ambos os textos teriam sido entregues pelo prprio deus Hermes em sua face 'Trismegisto', que resultado de seu sincretismo com o deus egpcio Tot divindade ligada ao conhecimento e palavra e retratada como mestre da escritura e patrono dos magos. Esse sincretismo parece bastante natural incluso as semelhanas entre esses deuses, sendo Hermes um deus mensageiro, que rege os caminhos. patrono da Alquimia e imagem de excelncia em cultos gnsticos. Hermes Trismegisto, que quer dizer "Hermes trs vezes mximo", fundador lendrio do Hermetismo e da Alquimia.Os ditos "princpios hermticos" fundamentaram todo o trabalho da Alquimia. Dentre eles, um dos mais relevantes a Doutrina da Correspondentia (citada no incio deste texto). Dizer que o que est em cima igual ao que est em baixo, acreditar numa analogia correspondente entre microcosmo e macrocosmo. Do mesmo modo, os arqutipos que povoam o inconsciente coletivo so, a priori, formas.

(...) No concernente aos contedos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor, primordiais, isto , de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos (...)(Jung, 2011a p.13,PP.5).

Toda evoluo humana, criao da cultura, pode ser entendida como uma forma de conscientizar e elaborar esses contedos, embora esses nunca sejam totalmente conscientes. No podemos apreend-los em si mesmos, apenas em suas manifestaes. Logo, o que conhecemos sobre os arqutipos so suas representaes arquetpicas, como por exemplo, as que se manifestam nos mitos, contos de fadas e na prpria Alquimia. Presentes no inconsciente coletivo, os arqutipos so "formas" bsicas; so fundamentais e estruturais em todas as culturas e tempos. So correlatos em funcionamento ao que os alquimistas chamavam macrocosmo, ou prpria imagem de ideias a priori presente no 'eidos' platnico. Essas imagens quando espelhadas, manifestando-se na criao humana, constituem o microcosmo.Uma imagem bastante utilizada pela Alquimia, a fim de exemplificar a relao anloga entre macrocosmo e microcosmo, a imagem da 'totalidade' em relao ao 'eu', do universo em relao ao indivduo. Podemos indicar que a relao entre Si mesmo e ego possui significado semelhante; o ego microcsmico regido pelas mesmas leis que o Si mesmo macrocsmico, faz parte desse e apenas um pequeno fragmento da totalidade. Assim na terra, como no cu, frase marcante presente na orao do Pai Nosso, uma das mais importantes da tradio crist, pode tambm ser entendida como correlata ao princpio alqumico da correspondncia. A vontade de Deus a mesma, ela rege os princpios etreos e fsicos pois, no final das contas, esses princpios compem um mesmo todo.O Princpio de Correspondncia o que mais tarde Jung (2012) chamaria de sincronicidade:

(...) uma coincidncia significativa de dois ou mais acontecimentos, em que se trata de algo mais do que uma probabilidade de acasos. (Jung, 2012a, p.111, PP.959)

Tentando explicar essa to intangvel 'causalidade mgica', von Franz (1992), considera que a base arcaica de todas as realizaes mgicas da humanidade essa capacidade simblica de ser expressa atravs de analogias:

Por exemplo, na magia africana para atrair a chuva, a maneira mais frequente derramar gua de uma cabaa enquanto so efetuados certos encantamentos e oraes acompanhados de certas danas. Ento, comea a chover. (p. 131)

Desta forma podemos observar que nossos rituais e mitologias so repeties em pequena escala do que ocorre no cosmos e na natureza. Assim tambm se d o funcionamento do processo alqumico e da psique. A Alquimia possui uma linguagem que detm em si esses princpios de maneira bastante prtica. Ela um processo que se desenvolve no nvel fsico, psquico e espiritual, e isso acontece concomitantemente, tendo um mesmo objetivo.O processo alqumico tem como premissa, tambm derivada do Princpio da correspondncia, que o fsico e o espiritual juntos, e a partir de sua oposio, compem uma unidade plena. Assim tambm se d toda criao simblica de forma dialtica, onde dois conflitos (opostos) conseguem se completar gerando um terceiro, atingindo enfim uma unidade.

Este o efeito teraputico da Alquimia: ela fora as metforas sobre ns. Somos carregados pela linguagem para dentro de um como se, para dentro tanto da materializao da psique, quanto da psiquizao da matria, ao pronunciarmos nossas palavras. (Hillman, 2001, p.28)Ainda, segundo Hillman, a produo do smbolo torna-se inerente na linguagem alqumica, que simblica em si mesma pois seus smbolos e suas palavras so a melhor expresso possvel de um processo no qual o jogo dialtico est intrnseco - as imagens alqumicas so fsicas e psquicas ao mesmo tempo: a Alquimia tem palavras-coisa, palavras-imagem, palavras-arte.A linguagem alqumica est amplamente relacionada ao processo de individuao. Todo fenmeno alqumico , portanto, tanto material quanto psicolgico. A Alquimia, assim como nossa psique, tambm metafrica e simblica.Dessa forma, atravs de sua linguagem, a Alquimia busca reproduzir toda uma cosmogonia dentro seu laboratrio, pois parte da premissa que tanto micro quanto macrocosmo so sujeitos s mesmas leis que regem o Todo. Essa totalidade s poderia ser vislumbrada a partir da relao dialtica entre consciente e inconsciente, micro e macrocosmo, ego e Si mesmo, o que justificado pela busca por integrao de ambos esses opostos num terceiro e novo elemento.A noo de undus mundus, emprestada da filosofia medieval, confere dinamismo ao todo e integra microcosmo e macrocosmo. (Pena, 2004, p.11)O conceito do alquimista Dorneus de undus mundus o pice da busca espiritual e religiosa dentro da opus, pois representa a integrao dinmica entre micro e macrocosmo, que simbolizam ego e Si mesmo (Hoffman 2006). Dessa forma a autora demonstra que, por conta dessa polarizao da psique, esta mostra-se capaz de representar os contedos arquetpicos, mas no de perceb-los em si mesmo, pois consciente e inconsciente formam um casal de opostos complementares, fundamental para a funo simblica da psique. No Caibalion (Trs iniciados, 2008), um dos princpios fundamentais do Hermetismo e da Alquimia o Principio da Polaridade. Segundo este, tudo em nosso universo possui polos e estes polos so opostos e complementares. Devemos observar tambm que todos os opostos possuem a mesma essncia, de forma que eu e totalidade, frio e calor, consciente e inconsciente, psique e matria, so polos opostos de uma mesma essncia. O texto ainda revela que todos os paradoxos so conciliveis, pois os extremos se encontram.

Como a psique e a matria esto encerradas em um s e mesmo mundo, e, alm disso, se acham permanentemente em contato entre si, e em ltima anlise, se assentam em fatores irrepresentveis, h, no s a possibilidade, mas at mesmo uma certa probabilidade de que a matria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma s e mesma coisa.(...) (Jung, 2011g, p.165, PP,418)

A ambivalncia psquica pode ser observada em sua capacidade de representar matria e esprito atravs de conceitos e smbolos - como podemos observar na linguagem alqumica. Existe, porm, um elemento chamado por Jung de psicide, que transcende a matria e o espiritual, fazendo ao mesmo tempo parte desses e sendo metafsico.

Nunca cheguei a uma concluso precipitada desse tipo, porque nunca acreditei que nossas percepes pudessem apreender todas as formas de existncia. Por isso estabeleci o postulado de que o fenmeno das configuraes arquetpicas acontecimentos psquicos por excelncia repousa sobre a existncia de uma base psicide, isto , condicionalmente psquica, mas ligado a outras formas de ser. (Jung,1963, p.135)

Undus mundus, pode ser considerado esse uno formado pela dinmica de opostos fundamentais presentes na psique, e desta forma pertence amplamente ideia de arqutipo psicide.Sobre isto, na carta de maio de 1953, escrita por Jung destinada ao fsico Wolfgang Pauli, este relata o seguinte esquema quaternrio, tambm presente no trabalho de Hoffman (2006):

Trancedental (Psicide)PsiqueEspritoMatria[footnoteRef:1] [1: Imagem: Hoffman, C. R. (2006) p.36]

Nesse sentido, ao reino transcedental psicide corresponde uma ponte conceitual entre distintos reinos (matria, psique, esprito). Habita uma esfera transcedental e portanto de unidade, trazendo tona o conceito metafsico do alquimista Dorneus Undus Mundus. (p. 36)

Segundo o Si mesmo, em sua constante atualizao e elaborao na conscincia do ego, converge ao padro quaternrio e tem por meta o unitrio que aqui relacionamos com o conceito de undus mundus. ... marca o caminho do Si mesmo em direo meta do opus individuations ou iluminamento. (Byington 1984 p.102) O smbolo do quaternrio representa a totalidade, a transcendncia desses pares de opostos, que culminariam na ideia de undus mundus. De acordo com Jung (2011e), pode ser entendido enquanto mundo totalizado em unidade, o grau mais elevado da coniunctio alqumica, por significar a unio do homem total com o todo, o uno.

4.2 A opus Magnum (Grande Obra) e o Processo de Individuao

O objetivo principal da meta alqumica lanar a psique na opus, trazer os alquimistas para dentro de seu prprio processo individual de evoluo.

A meta s importa apenas enquanto ideia; o essencial o opus (a obra) que conduz meta: ele d sentido vida enquanto esta dura. (Jung, 2012c, p.85, PP.400)

O processo de individuao descrito por Jung (2011b), como o caminho para tornar-se aquilo que se . Esse processo no possui um fim especfico, mas depende da sua meta para direcionar esse caminhar, que acontece durante toda a vida. Essa justamente uma trajetria onde o inconsciente tem possibilidade de se realizar:

Minha vida a histria de um inconsciente que se realizou. Tudo que nele repousa aspira tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de condies inconscientes e experimentar-se como totalidade. (Jung, 1963, p.19)

Isto , o potencial presente no inconsciente deseja ser conscientizado, ampliando os recursos do ego, tornando aquele indivduo mais pleno, mais prximo das expresses de seu Si mesmo, de sua totalidade enquanto ser.Entendemos aqui como Si mesmo a soma dos processos inconscientes e conscientes da personalidade, e desta forma a psique enquanto todo. Enquanto por ego entendemos o resultado at ento de diversas atualizaes do Si mesmo e o centro da conscincia. Importante observar que impossvel esgotar o inconsciente, embora o processo de individuao justamente busque a conscientizao do Si mesmo no mximo de suas possibilidades. O funcionamento psquico ocorre de forma compensatria entre a conscincia e o inconsciente e sua produo simblica corresponde sntese desse processo.Todo ser humano a partir de seu nascimento est em processo de individuao, no existindo possibilidade de viver fora dele. Embora, segundo Byington (1984), Jung tenha descrito o processo de individuao na segunda metade da vida, deixando a primeira metade delegada funo de estruturao do ego na infncia, aquele considera que o desenvolvimento do ego tambm dele faa parte desde sempre.Todos ns temos uma busca comum a ser vivida, mas ao mesmo tempo cada busca individual; esse paradoxo do coletivo e individual fundamenta o conceito de individuao. Individuar entendido como (...) dar expresso individual ao vir-a-ser arquetpico. (Baptista, 2008, p.15)Atravs da conscincia temos a capacidade de expressarmos aspectos do inconsciente coletivo sob uma forma absolutamente individual. desse modo que humanizamos o arqutipo, e existem tantos arqutipos quanto possibilidades de humanizaes desses.Segundo Baptista, a vida o vaso alqumico onde a opus, representao arquetpica do processo de individuao, acontecer. A opus necessita do vaso para realizar-se da mesma forma que o processo de individuao necessita da vida.Importante ressaltar que cada alquimista, de acordo com seu o processo de individuao, possui diferentes metas. Todos eles buscavam o ouro metafrico, smbolo perfeito do Si mesmo. Mas, a opus de cada um especfica, pois, o Si mesmo a ser realizado possui expresses singulares. A individuao o tornar-se um consigo mesmo, e ao, mesmo tempo, com a humanidade toda, em que tambm nos inclumos (Jung, 2011f, p. 127, PP.227)O paradoxo da meta alqumica esse: A meta a mesma para todos o Si mesmo, mas, diferente para cada um justamente pelo mesmo motivo. A busca pelo Si mesmo, ou pela realizao de sua opus, a busca de uma verdadeira vocao que deseja realizar-se ao longo de toda uma vida. Apresenta-se como uma imagem inata de si, estrutural do carter, que se utiliza do processo de individuao para tornar-se o mais plena possvel conscincia, realizando o mximo de seus recursos e talentos. (...)existe uma razo por que minha singular pessoa est aqui e que h coisas de que preciso cuidar alm da rotina diria, e isso deve dar uma razo de ser a essa rotina, sentimentos de que o mundo, de certa forma, deseja que eu esteja aqui, que responda a uma imagem inata que estou preenchendo em minha biografia. (Hillman,2001, p.14)

Existe em cada um, uma potncia especfica a ser realizada dentro de sua individuao, isto , existe no ser uma singularidade pedindo para ser vivida antes mesmo de comear a ser vivida, e essa singularidade se expressa atravs das mltiplas metas da opus alqumica. Segundo Hillman, (2001, p.366): As imagens da meta - a prola do alto preo, o corpo de jade, o diamante, o elixir, o ouro, e o Lpis philosophorum. Esta ltima , a Pedra filosofal, considerada a opus magnum dos alquimistas. Com essa pedra, o alquimista poderia realizar suas transmutaes, priorizando, na maior parte dos textos, a arte de transmutar metais em ouro. Mas por exemplo, Paracelso buscava uma pedra que curasse todos os males. A estrutura do processo alqumico revelada e realizada atravs de distintas fases. Descrevendo desta forma a jornada de desenvolvimento da psique em sua opus, as imagens alqumicas levam o adepto a uma transformao psicolgica que visa simbolicamente a obteno da pedra filosofal.

A individuao, portanto, s pode significar um processo de desenvolvimento psicolgico que faculte a realizao das qualidades individuais dadas; em outras palavras, um processo mediante o qual um homem se torna o ser nico que de fato . Com isto, no se torna "egosta", no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como dissemos, totalmente diferente do egosmo ou do individualismo (Jung, 2008, p.50, PP.267)

O processo de individuao caracteriza-se por um movimento cclico, pois nossa matria prima (Si mesmo), tambm nossa meta (Si mesmo). Da a imagem da matria prima enquanto a pedra bruta, e a meta como a pedra lapidada, embora ambos, de fato, sejam a mesma pedra.Isto , a matria prima seria equivalente a uma totalidade inconsciente enquanto a pedra filosofal corresponderia possibilidade de conscientizao desta. A busca da qual se trata o processo de individuao , em suma, o processo de integrao do Si mesmo conscincia, e a opus alqumica descreve a jornada de desenvolvimento da psique nessa busca. O processo alqumico, segundo Jung, capaz de descrever de forma metafrica, da melhor maneira possvel os aspectos centrais do processo de individuao, a opus alqumica vivenciada por todas as pessoas sendo profundamente anloga a este.

Todo procedimento alqumico (...) pode muito bem representar o processo de individuao num indivduo particular, embora com a diferena no desprovida de importncia de que nenhum indivduo particular abarca a riqueza e o alcance do simbolismo alqumico. Este tem a seu favor o fato de ter sido construdo ao longo dos sculos. (...) tarefa muito difcil e ingrata a tentativa de descrever o processo de individuao a partir de materiais de casos. (...) Na minha experincia, nenhum caso suficientemente amplo para revelar todos os aspectos com uma riqueza de detalhes que o leve a ser considerado paradigmtico. (...) A alquimia, por conseguinte, realizou para mim o grande e inestimvel servio de fornecer o material em que minha experincia pudesse encontrar espao suficiente, o que me possibilitou descrever o processo de individuao, ao menos em seus aspectos essenciais. (Jung, 2011e/2, pp.446, p.382)

A opus considerada assim, o processo de individuao do alquimista, que projeta livremente os contedos de suas transformaes internas na matria, que como estes tambm passar por diversas transformaes at alcanar sua meta.Segundo Edinger (1990), a Alquimia poderia ser considerada uma espcie de fenomenologia do inconsciente coletivo por ser capaz de descrever atravs de sua linguagem simblica, fenmenos arquetpicos presentes de alguma forma no psiquismo de todas as pessoas. Ainda que em camadas muito profundas do inconsciente, esses smbolos revelam-se atravs de sonhos, imaginao ativa, fantasias etc, servindo como linguagem capaz de revelar o sentido do processo de individuao, porm no de forma individual, mas de forma genrica, arquetpica. A linguagem alqumica ideal para esse entendimento, pois carrega em si, os paradoxos presentes no prprio conceito de individuao, enquanto individual e coletiva.

4.3 As cores e operaes do processo alqumico

Dentre diversas descries da opus, autores como Jung, Edinger e Hillman apresentam trs etapas como fundamentais nesse processo, embora outras tambm sejam citadas. Essas etapas so: nigredo, albedo e rubedo, respectivamente caracterizadas pelas cores, preto, branco e vermelho. A relao entre claro e escuro, luz e trevas foi nomeada de alguma forma em todas as lnguas. A primazia dessa dupla (branco e preto) demonstra a necessidade compensatria da psique em busca sempre de um equilbrio. Em diversas culturas, acrescentada a essas cores o vermelho, de forma que essa trade considerada sagrada como foras arquetpicas primordiais.Segundo Wilberg (2007) de acordo com a mitologia indiana, todo o desenvolvimento do universo est baseado nos poderes da natureza. Esses poderes dividem-se nos trs gunas: tamas (preto), rajas (vermelho) e sattva (branco); correspondem respectivamente trade da criao hindu, os trs devas (divindades) Shiva, Brahma e Vishnu. Tamas representa o poder da morte e das trevas; seu deva Shiva, chamado de o destruidor, ou o transformador. A tristeza e a inrcia so um chamado para a transformao. Esse guna corresponderia nigredo. Rajas o poder da vitalidade; rege o prazer e a violncia. Seu regente seria Brahma, o criador, representando toda potncia criativa do universo, smbolo bastante relacionado libido, smbolo da vida que tem no sangue sua melhor expresso. Esse princpio seria a prpria rubedo. J sattva o representante da luz, da alvorada, e da felicidade, regido pelo deva Vishnu, o preservador, responsvel pela conservao e manuteno do universo, correspondente albedo no processo alqumico. Segundo Jung, como citaremos abaixo, a nigredo marca o incio da obra. Os alquimistas rejubilavam-se ao ver sua matria tornar-se preta, pois sabiam que ento sua opus tinha comeado. Este preto ter de passar por inmeras lavagens e purificaes para chegar ao branco da albedo. Quem marca a entrada na albedo a cauda do pavo -cauda pavonis- que anuncia a aurora. Essa pureza absoluta da albedo dever ser sacrificada para renascer na rubedo, onde enfim terminaria a opus com a obteno da pedra filosofal em toda sua potncia criadora. Embora existam diversos tipos de processos alqumicos, esse padro bastante descrito. Por exemplo, Paracelso descreve a pedra filosofal, como um corpo slido de cor rubi escura, transparente, flexvel, porm quebradia; outros a descrevem como um p ou tintura vermelha.

Na linguagem dos alquimistas a matria sofre at que a nigredo desaparea; ento a cauda do pavo (cauda pavonis) anunciar a aurora e surgir um novo dia, a lekosis ou albedo. Mas neste estado de brancura no existe verdadeira vida, um estado abstrato, ideal. Para infundir-lhe vida preciso infundir-lhe "o sangue", a rubedo, o vermelho da vida. Somente a experincia de todos os estgios do ser pode transformar o estado ideal da albedo em uma forma de existncia plenamente humana. Somente o sangue pode vivificar o estado de conscincia mais alto, no qual dissolvido o ltimo trao de negrume, no qual o demnio no tem mais existncia autnoma mas integrado reconstituindo a profunda unidade da psique. Ento a opus magnum est completa: a alma humana est completamente integrada.( MCGUIRE, W. e Hull, R. ,1982, p.4)

O processo alqumico, apesar de ter metas diferentes de acordo com cada alquimista, trabalha sempre com a ideia de transformar o que vil, em algo sagrado. Para que isso ocorra necessrio que uma prima matria seja sujeitada a diversas operaes, entre elas, segundo Edinger (1990): calcinatio, solutio, coagulatio e sublimatio.Os pr-socrticos consideravam a prima matria como uma matria original da onde tudo teria se criado, mas, no houve registros de uma concluso acerca de que matria seria esta. Esses filsofos estavam divididos entre, ar, fogo, gua ou terra.Os quatro elementos foram entendidos como funcionando em dois pares, grupos de contrrios, e assim a ideia de uma estrutura qudrupla universal utilizada como base de todo ocultismo ocidental.Podemos traar um correlato psicolgico dessa ideia ao pensarmos que a partir do inconsciente (o caos indiferenciado) a conscincia surge; o nascimento de um ego, que se d dentro do processo de desenvolvimento das quatro funes da tipologia junguiana. De acordo com Psicologia Analtica, a conscincia se desenvolveria do inconsciente atravs das seguintes funes: pensamento, intuio, sentimento e sensao, respectivamente: ar, fogo, gua e terra.Em seu livro Anatomia da psique (1990), Edinger tambm nos conta sobre a conexo entre essas operaes e os quatro elementos primordiais. Atravs delas, o adepto poderia transformar os mais impuros metais na pedra filosofal, isto , elaborar, trazer conscincia recursos psquicos, a fim de transform-los numa matria sagrada- a prpria pedra filosofal.A operao alqumica da calcinatio, relaciona-se intimamente com o elemento fogo. Atravs dele, que representa em Si mesmo vitalidade, libido, vontade, podemos retirar a gua presente nos slidos, ficando apenas com um p seco. Essa capacidade de 'secar' as substncias demonstra a potncia da vontade e da criatividade em transformar sentimentos ou liber-los. J a solutio, a operao relacionada gua. Sua principal caracterstica dissolver, tornar gua, e assim, trazer algo novamente a seu estado indiferenciado, como uma tendncia regressiva ao tero da me, para que algo novo renasa. A gua est sempre relacionada aos sentimentos.A coagulatio tem como caracterstica tornar as coisas fixas, lhes dar uma forma. Ela transforma as coisas em terra; torna as coisas concretas, trazendo conscincia e ampliando. Assim, a coagulatio capaz de dar forma ao que antes no possua. Ela coloca o material numa posio onde a transformao poder recomear.A ltima das operaes vinculadas aos quatro elementos a sublimatio. Ela possui em si um enorme poder de purificao, capaz de separar substncias puras de impuras, e ao mesmo tempo elev-las de forma ascendente, transform-las em ar, para que subam ao cu novamente, tornando-se parte do todo, de modo que o que reste de palpvel seja apenas o puro.Mas a opus no termina aqui; existem ainda trs processos alqumicos para sua concluso. Essa trade funciona de maneira transcendente, dialtica. Apenas aps duas operaes opostas em caractersticas, poder surgir uma terceira operao que concilie e una as duas outras. A sim, obteremos a pedra filosofal.O primeiro processo dessa trade a mortificatio, processo que representa a morte, o apodrecimento da matria, sua decomposio e fragmentao. A esse processo pertence a nigredo. Suas imagens comuns so a da tortura e mutilao, pois coloca o adepto em contato com suas dores. Mas, ao mesmo tempo, ela o prenncio do incio da reconciliao com a vida, com o claro, com a albedo. Ela indica o caminho do retorno.O seguinte processo a separatio, operao responsvel pela conscientizao da dualidade, pela distino dos opostos, onde mostra-se presente a albedo. A separatio, introduz ordem no caos da mortificatio, traz a capacidade de conter e dar conta desses opostos, dissolvendo conflitos ambivalentes. Ela deve direcionar-se integrao, e no satisfao de opostos. Dessa forma, ela apresenta o esprito que indica o final do caminho da opus.O resultado da separatio chamado de 'terra branca', e sob esta terra que os princpios opostos, representados pelo masculino e feminino se uniro, isto , o par de opostos s pode se integrar aps a purificao particular de cada um deles.Enfim, o pice da opus a coniunctio. Ela a unio perfeita de antes matrias inconciliveis. Desta forma, restaurando sua pureza e integridade, logo a ciso da psique desaparece numa unidade, onde h a reconstruo do eixo ego-Si mesmo. O adepto retorna ento a Si mesmo. A coniunctio a operao relativa rubedo de onde surge a pedra filosofal como smbolo dessa integrao, da imagem inata do alquimista. O principal smbolo alqumico da coniunctio o casamento do rei e da rainha, onde o amor agente ativo, pois sem ele no h verdadeira unio e reconciliao. Essa uma breve descrio de uma opus contra naturam que visa trazer de volta aquilo que est impuro e dissociado, sua verdadeira unidade. Omnia in unum: Tudo em Um.Segundo Jung, em Psicologia e Alquimia, o lapis trinus et imus (trs em um), fazendo referncia s trs substncias primordiais descritas por Paracelso.Interessante observar que este alquimista, em seu livro Botnica Oculta (1976), trata sobre a questo da Teoria das trs substncias. Estas eram consideradas bases necessrias a todos os corpos, e a fora vital de todo ser vivo consistiria na unio dos trs princpios: enxofre, mercrio e sal. Esses princpios no representavam as substncias em si, mas so termos sigilosos para nominar propriedades materiais que poderiam ser retiradas ou acrescentadas s substncias atravs do processo alqumico. Desta forma, eles representam respectivamente: volatilidade, fluidez e solidez.Podemos entender tambm o enxofre como uma fora masculina, corrosiva, de energia vibrante e capaz de danificar os metais, correspondendo tambm nigredo e mortificatio.Mercrio representa um princpio passivo, malevel, ligado ao feminino, considerado uma espcie de solvente universal na Alquimia, como se a tudo purificasse e alimentasse. Possui uma relao de dualidade e oposio ao enxofre, mas ao mesmo tempo o alimenta enquanto este, no incio da opus, considerado o embrio da prpria pedra filosofal. Dessa forma, podemos dizer que o mercrio anlogo albedo e separatio.O Sal pode ser considerado agente ativo na coniunctio, pois ele o meio de integrao do enxofre e mercrio, o esprito mediador na unio. Nesse sentido a representao da rubedo.Os metais seriam sujeitos, ento, a todos esses processos alqumicos descritos acima. Estes representariam os recursos psquicos do adepto, qual caracterstica exatamente estaria sendo transformada, e atravs de qual processo.

Os metais, as pedras e suas variedades trazem em Si mesmos a sua quintessncia, o mesmo que os corpos orgnicos e, embora sejam considerados sem vida, possuem essncias de corpos que viveram. (Paracelso,1976 p.20)

4.4 Caminhos de regenerao da alma

Hesodo (1996) em Os trabalhos e os dias, nos fala sobre As cinco raas, correlatas a distintas Idades, fases de desenvolvimento da humanidade, foram nomeadas pelo autor com o nome de diferentes metais.

Primeiro, as raas de ouro e de prata no tem nenhum conhecimento da necessidade, tudo lhes dado espontaneamente, vivem sem preocupaes, achando-se assim ligadas infncia(...)J as raas de bronze e dos heris se vinculam ao vigor fsico prprio da idade adulta. A raa de ferro a nica que conhece a degradao da infncia para a velhice e a morte. (Hesodo, 1996, p.81)

A primeira Idade foi a do Ouro, nesta os homens e deuses estavam lado a lado, os homens desta Era eram como os Deuses, e nenhum terror os acometia nem nada lhes faltava, viviam numa espcie de den, de Paraso.

Mas o que paraso? Obviamente o Jardim do den com a rvore da vida e do conhecimento bifronte e seus quatro rios. Na verso crist tambm a cidade celeste do Apocalipse, o qual, como o Jardim do den, concebida como mandala. Mas a mandala um smbolo de individuao.

(...) O par de opostos deserto-paraso significa portanto o outro par de opostos isolamento-individuao ou o tomar-se si-mesmo. (Jung, 2011a, p.44)

Segundo Torrano (1991) Hesodo declara que gostaria de j estar morto antes da raa de ferro ou nascer depois dela, pois a raa de ferro representa a natureza mais primitiva do ser humano, a perda da imortalidade, a humanidade e apresentada doena, fome, velhice.Tambm a respeito dessa teoria Sallis (2012) em Metamorfoses e a Teoria alqumica dos metais, relata que os homens da primeira raa eram imortais como os deuses, e tudo lhes era dado, essa fase correlata ao den cristo, e tambm a fase matriarcal do desenvolvimento da conscincia. De acordo com Bygton (1984) a fase matriarcal representa alem da simbiose do bebe com a me, a dimenso onde todos somos a mesma coisa, e o universo funciona como um todo integrado, porem ainda indiscriminado. A raa de ouro, tal qual essa dinmica, e uma raa que no conhece a necessidade, o trabalho e a morte.Porem a humanidade no sabendo a justa medida de seu poder comea um processo de degenerao da alma, tornando-se corruptvel, o que d inicio a Idade da Prata, onde essncia e aparncia diferem, dando espao a mentira, e falsidade. A partir desta ainda viro maiores degeneraes. Da prata degenera ao bronze, onde no se morre de velhice ou doena mas, a morte j e possvel atravs da violncia e do bronze ao ferro, idade onde estamos hoje.A Idade de ferro marcada pela finitude do corpo, pela necessidade de trabalhar para conseguir sobreviver, incio de angstias e sofrimentos que nunca antes a raa humana conhecera. Devemos ressaltar que o conceito que buscamos explicar nesse texto, e o de caminho de regenerao da alma. Viemos explicando a teoria de Hesodo justamente para demonstrar uma representao do processo de degenerao e corrupo da alma, o que refora a necessidade de pensarmos formas de lidar com as questes de nossa Idade.Apesar das condies desta fase, continuamos podendo atingir a Idade de ouro, ao menos psiquicamente falando, e esta fase e correlata ao ouro alqumico smbolo do Si mesmo.Devemos ento regenerar nossa alma de ferro a ouro, ou como diriam os alquimistas, de Saturno a Sol. Fica evidente ento que no estamos tratando aqui do termino de um processo de declnio, mas da existncia de uma continuidade cclica, e de uma possibilidade de retorno.Os processos de iniciaes espirituais, partem do mesmo principio, da ideia de desenvolvimento espiritual, ideia que se baseia na capacidade de integrao do todo do qual nossa singularidade teria emergido, como a prpria conscincia emerge do inconsciente.Outro exemplo desse sentido, pode ser observado no significado da palavra religio, do latim religare, reconexo. Novamente a ideia de evoluo espiritual, como o retorno consciente ao inconsciente primevo.A Idade de ouro representa o ouro alqumico e dessa forma tambm e correlata ao Sol. Ela foi assim nomeada, pois o ouro representao da mxima espiritualidade, da alma incorruptvel. Segundo Sallis (2011), na antiguidade este metal no poderia ser comprado por qualquer um, pois nas tradies arcaicas era atribudo a este um valor espiritual. Por exemplo, na Grcia arcaica s poderia usar um adorno de ouro, quem fosse alado categoria de heri, isto o ouro era de quem o conquistava por merecimento, dado a quem completava o caminho de regenerao junto aos Deuses. Para resgatarmos o ouro de nossa alma, nossa imortalidade perdida, precisamos adentrar em uma busca profunda, uma busca de regenerao da alma, teremos de fazer o caminho de volta, opus contra naturam, at o ouro. nessa hora onde somos podemos ser verdadeiros heris, detentores da pedra filosofal.Podemos observar que a jornada alqumica, e o caminho do heri no fundo apontam para o mesmo processo, a qual C. G. Jung chamaria de processo de individuao, ambas os caminhos apontam para a realizao do ser enquanto totalidade.

4.5 Sobre o tratado alqumico Splendor Solis

Em meu levantamento bibliogrfico, encontrei poucos textos que discorressem diretamente sobre esse tratado, embora muitos trabalhos sobre Alquimia usem de forma ilustrativa uma ou outra imagem deste. Entre os autores encontrados, destaco Sharpe, Henderson, Wisner e Sherwood.Os textos encontrados sobre o tratado Splendor Solis foram os seguintes:Sharpe, Elizabeth & J.K. (Editors). Splendor Solis: Alchemical Treaties of Solomon Trismosin. Written 1582. Copyright 1920. Reprinted by Kessinger Publishing U.S.A., Henderson, J. L. e Sherwood, D. N. (2003) Transformation of the psyche. Nova York: Brunner-Routledge,Wisner, K. (2010) Splendor Solis- Its Possible Influence on the Ogdoadic System, Part 1,The Ogdoadic Journal - of the Western Mysteries- Vol. 1 No. 4:Historical Threads of the Ogdoadic Tradition. Sun Lion Publications - ORDO ASTRUM SOPHI, Sherwood, D. N. (2010) Alchemical images, implicit communication, and transitional states. Sun Lion Publications.De acordo com Kerry Wisner, em seu artigo Splendor Solis its Possible Influence on the Ogdoadic System, Part 1, o tratado alqumico Splendor Solis foi encontrado na Europa no final do sc. XVI. Contava com fragmentos de texto e 22 pranchas com ricas e elaboradas imagens alqumicas.Esse artigo foi publicado na revista The Ogdoadic Journal - of the Western Mysteries- Vol. 1 No.4, onde o autor busca esclarecer a relao entre o simbolismo presente no tratado, em relao aos processos iniciticos da Ordo Astrum Sophiae, ordem espiritualista, de fundamento hermtico e cabalista. It is my suspicion that this forgotten text, along with the paintings, contains elements of esoteric wisdom that reach back to the earliest foundations of the Western Mystery Tradition. (Wisner, 2010, p.5) Entendo que este texto, esquecido junto com as pinturas, contm elementos de sabedoria esotrica que remontam os primeiros fundamentos da Tradio de Mistrios Ocidentais (Traduo livre da autora)

A autoria do tratado de Salomon Trimosin, lendrio professor de Paracelso. Este afirma que boa parte do conhecimento presente no tratado, veio de suas viagens na Itlia, onde trabalhou com diversos alquimistas, teve muitos professores com quem estudou ocultismo, cabala, a antiga religio egpcia, entre outros temas.

Jung was also familiar with the Splendor Solis. In his works, he reproduced several images and quoted the text, but he did not consider its images in detail, either separately or as a series.The twenty-two illuminated paintings in the manuscript of the Splendor Solis belonging to the British Library (Harley 3469) are the most beautiful and accessible images of late medieval-early Renaissance European alchemy, and they provide us with a process in images that can touch us at a very deep level. (Henderson e Sherwood, 2003, p.3)

Jung estava familiarizado com o tratado Splendor Solis. Em suas obras, ele reproduziu vrias imagens e citou o texto, mas ele no considerou suas imagens em detalhe, separadamente ou como uma srie.As 22 pranchas do manuscrito Splendor Solis, pertencentes British Library (Harley 3469), so as mais belas e acessveis imagens da alquimia europeia do final da Idade Mdia e incio do Renascimento, elas nos fornecem um processo em imagens que podem tocar-nos em um nvel muito profundo. (Traduo livre da autora)

O tratado mostra as diversas transmutaes da matria, at que esta chegue a Lapis Philosoforum e por revelar smbolos que tratam do processo de individuao, suas imagens so profundamente impactantes. importante ressaltar que essas famosas sequncias de placas alqumicas, esto explicando, atravs de suas prprias imagens, o processo fsico e filosfico da obteno da pedra filosofal. So enigmas figurados, onde suas imagens abrem um enorme campo de amplificaes, captando toda a complexidade de seus processos.

O grande nmero de ilustraes acrescidas ao texto justifica-se pelo fato de as imagens simblicas pertencerem, por assim dizer, constituio espiritual alqumica. (Jung, 2011b, p.11) A importncia da imagem como primordial ao entendimento psquico e Alquimia tambm reforada por Lopes em sua monografia intitulada Saturno. Esta nos coloca o quo a imagem considerada na Psicologia Analtica, como a linguagem da psique, sendo utilizada nas diversas tcnicas expressivas como Sandplay, imaginao ativa, desenhos, entre outras. Hillman (2011), observa que a imagem o que ; revela-se a si mesma a partir da capacidade de nossa conscincia, se esta consegue suportar a angstia do desconhecido. Splendor Solis, fazendo jus Alquimia, um tratado que no demonstra apenas a obteno de um ouro ou material final fsico; atravs de suas imagens vai alm dos processos fsicos pois, sua linguagem simblica, apresentando as transmutaes necessrias evoluo espiritual do alquimista, em busca de seu ouro metafrico. Segundo Sharpe (1920) em seu trabalho Splendor Solis: Alchemical Treaties of Solomon Trismosin, a numerao das pranchas e sua sequncia no pode ser negligenciada, pois, o autor bebeu de conhecimentos muito profundos e antigos, que justificariam a sequncia das pranchas ter ntima relao com o taro, e com os caminhos da rvore da vida judaica.

Whether we consider Alchemy as a Science of Occult Chemistry, or as a Kabbalistic Art of Spiritual Regeneration, the process Splendor Solis endeavours to communicate is equally remarkable and curious. (Sharpe, 1920, p.10)Se considerarmos Alquimia como uma cincia da Qumica Oculta, ou como uma Arte Cabalstica de Regenerao Espiritual, o processo que Splendor Solis se esfora para comunicar igualmente notvel e curioso. (Traduo livre da autora)

Dessa forma, esse tratado alqumico, visa mostrar de modo alegrico o caminho de evoluo espiritual, como o ser humano pode tornar-se mais prximo de Deus, ou de Si mesmo. Atravs da busca por desvendar verdades divinas ocultas em seus smbolos, encontrar verdades pessoais antes encobertas tornar o homem comum um ser espiritual e ntegro, consciente de sua divindade.

5. Interpretao simblica das pranchas do tratado alqumico Splendor Solis

5.1 O MATERIAL PRIMAL DO TRABALHO

Essa matria est diante de todos; todas as pessoas a veem, tocam, amam, mas no a conhecem. Ela gloriosa e vil, preciosa e insignificante, e encontrada em toda a parte... Para resumir, nossa Matria tem tantos nomes quantas so as coisas do mundo; eis porque o tolo no a conhece (The HermeticMuseum, 1:13) meu Deus, como acontece que, neste pobre velho mundo, Tu sejas to grande e, sem embargo disso, ningum Te encontre, que chames com voz to forte e ningum te oua, que estejas to prximo e ningum Te sinta, que Te ds a toda a gente e ningum saiba Teu nome? Os homens fogem de Ti e dizem que no podem encontra-Te, viram- Te as costas e dizem que no podem ver- Te; tapam os ouvidos e dizem que no podem ouvir-te. (Denk, H. In: Aldous Huxley, 1994)

A materia prima, ou prima materia a substncia inicial do processo alqumico; somente atravs dela poderemos alcanar o lpis philosoforum.Existe grande divergncia entre os alquimistas, sobre qual seria a matria prima de sua opus. relevante que o incio da opus seja to enigmtico quanto sua meta, de forma que para esta, existem tantas definies como para a pedra filosofal. O que realmente ambos so e significam torna-se o verdadeiro mistrio da Alquimia.Observaremos aqui quais so seus possveis sentidos psicolgicos, quais smbolos e substncias costumam representar a prima materia:Da o grande nmero de sinnimos utilizados para designar a matria prima. Alguns alquimistas a identificam com o enxofre ou o mercrio, ou o chumbo; outros, com a gua, o sal o fogo etc. Ainda h outros que a identificam com a terra, o sangue, a gua de Juventude, o Cu, a me, a lua, o drago, ou com Vnus, o caos e com a mesma Pedra Filosofal ou com Deus. (Eliade, 1983, p.131)

A matria prima considerada algo raro e vulgar; ela no se encontra apenas em um matria ou elemento, mas est presente como centelha em todos os elementos. Assim, nomeada por muitos alquimistas como o elementum primordiale, o elemento primordial.Dessa forma, aquele que deseja iniciar o processo alqumico deve descobrir qual ser sua matria prima, pois dentro dessa que existe em potncia sua respectiva Pedra Filosofal.

Esta "matria prima" o fundamento da Arte Alqumica. Na "matria prima" esto misturados os quatro elementos em estado desordenado, pois: "terra e gua, que so mais pesadas do que os outros elementos, elevavam-se at o crculo da lua, e o fogo e o ar, que so mais leves do que os outros, desciam at o centro da terra, razo por que esta "matria" chamada, acertadamente, desordenada. Desta matria desordenada, apenas uma parte permanece no mundo, e ela conhecida por todos e vendida publicamente". (Jung, 2011b, p.337)Desse modo, a matria prima se encontraria presente em todos os lugares e seres; dito que consegue fazer de qualquer um rei e ao mesmo tempo apresenta-se de forma desprezvel.Para descobrir a essncia da matria prima de sua opus, Basilio Valentino, alquimista do sculo XIV, construiu um acrstico que resumiria essa busca: VITRIOL. Este j um lema conhecido da Rosa Cruz e maonaria.Vitriol contm todas as respectivas iniciais da seguinte frase escrita originalmente em latim:Visita Interiora Terrae Retificando que Invinies Occultum Lapidem. Sua traduo seria:Visita o Interior da Terra e, Retificando, Encontrars a Pedra Oculta.Isto , a verdadeira matria prima ter de ser encontrada no interior da terra. Podemos pensar nas antigas cavernas iniciticas, nas prprias minas, ou buscando um sentido mais profundo, o interior de ns mesmos, de tudo aquilo que nos constitui. Esse material encontrado equivaleria a uma pedra bruta que necessita de todo um processo (opus alqumica) para que possa enfim tornar-se ntegro e completar sua meta.Assim, a palavra Vitriol com suas sete letras, simboliza a busca de cada alquimista para integrar e trabalhar o seu Si mesmo. Conhecer a matria prima de seu trabalho o primeiro passo.Nos ritos de iniciaes de tradio hermtica, o nefito em um momento especifico do ritual, levado a uma cmara de reflexo, onde se deparar com essa expresso medieval alqumica. A ideia que nessa cmara, o nefito morra nessa vida para que possa renascer como iniciado.A cmara de reflexes pode ser entendida como um vaso alqumico. Acima de tudo, representa o tero no qual ser colocada a matria prima a fim de ser transmutada. Outra representao anloga seriam as cavernas onde muitas das antigas iniciaes eram feitas. Von Franz nos lembra que, nessas cerimnias, o nefito permanecia certo tempo na caverna (no tero da me) e saa desta por uma fenda ou orifcio, como se estivesse nascendo, simbolizando a morte de algum num plano mundano para seu ressurgimento como um ser espiritual.A matria prima morrer no vaso alqumico (mortificatio) para renascer atravs deste como o prprio lpis philosoforum.A primeira fase do processo alqumico a nigredo, onde a matria prima ainda se encontra num estado indiferenciado, um estado de massa confusa, representando o prprio Caos, inconsciente coletivo e tambm a prpria morte da prima materia. Os alquimistas equivalem a nigredo e seu caos gerador, ao prprio elemento terra.

Por essa razo, a prima materia coincide s vezes com a noo do estado inicial do processo, a "nigredo" (negrume). a terra negra na qual semeado o ouro(...) a terra negra, mgica e frtil trazida do Paraso por Ado, e que tambm denominada antimnio e descrita como "o negro mais negro do que o negro" (nigrum nigrius nigro) (Jung, 2011b, p.335, PP. 433)

La palabra alquimia deriva de la voz rabe al-kimiya, que, a su vez, proviene, al parecer, del egipcio keme y designa la tierra negra, que puede ser tanto la denominacin del propio pas de Egipto, como el smbolo de la materia prima de los alquimistas. (Burckhardt, 1979, p.6)A palavra alquimia vem do rabe al-Kimiya, que, por sua vez, aparentemente originria da palavra keme egpcia que designa a "terra preta", que pode ser tanto o nome do pas de origem do Egito, como o smbolo da a matria-prima dos alquimistas. (traduo livre da autora)

Existem diversas especulaes que dizem que a palavra Alquimia seria originada da palavra rabe kimia, derivao do termo egpcio que significa terra negra. No mera coincidncia que diversos alquimistas empreguem como matria prima a prpria terra, recolhida de local sagrado, pois a terra est impregnada com energia csmica.Os metais so os espritos planetrios da terra, pois em seu interior se daria toda a sua evoluo.A terra na alquimia considerada assim, a me dos metais. Assim como o cu guarda em si as estrelas, a terra carrega os metais em seu ventre.

Ora, a base de fundao de todos os elementos, a terra, pois ela o objeto, sujeito e receptculo de todos os raios e influncias celestiais; nela esto contidas as sementes e as virtudes seminais de todas as coisas ; e por isso se diz que ela animal, vegetal e mineral. Frutificada pelos outros elementos e pelos cus, ela gera tudo de si; recebe a abundncia de todas as coisas e, sendo a primeira fonte, dela que brotam todas as coisas. Ela o centro, a fundao e a me de todas as coisas. (Agrippa, 2008, p. 89)

A substncia de nossa matria demonstra ainda outras conexes com o smbolo terra; muitas vezes chamada terra admica, por ter sido a terra que Deus utilizara para a criao do ser humano.

7. O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente. (Bblia Sagrada, Gnesis, 2)

Essa terra uma matria primordial de onde as coisas podem ser esculpidas. Atravs dela Deus poder criar sua esttua viva, a esttua de Ado.Como materia vilis carrega em si o caos da inimizade entre os elementos. Essa energia ainda muito primitiva, indiscriminada, indiferenciada dever nascer conscincia atravs da forma que tomar. O Si mesmo sempre esteve presente na opus, pois ele j existia de forma catica na prima matria; a opus apenas trabalhar em tornar essa substncia o mais organizada em sua essncia, o mais de Si mesmo em Si mesmo.

H de certo modo quatro etapas no processo alqumico (tetrameria), caracterizadas pelas quatro cores, por sobre as quais a catica substncia do arcano atinge a unidade final, que o Unum (o Um), isto , o lpis (pedra), o qual simultaneamente um homunculus (homnculo, homenzinho). Deste modo o filsofo alquimista repete expressis verbis (expressamente, na expresso da palavra) a obra criadora de Deus no Gnesis. Por isso no de admirar que ele designe sua prima matria como Ado. (Jung, 2011, p.170)

No processo alqumico, o alquimista torna-se criador e repete a obra de Deus. Podemos dizer que de forma anloga, Ado pedra filosofal de Deus, da o smbolo do homnculo como meta da opus. Esse homnculo tradicionalmente descrito como uma pequena cpia viva do alquimista. Logo, realmente, para cada alquimista existe um lpis, aqui descrito como smbolo de sua integrao. Esse lpis criado a partir da prima matria, feito imagem e semelhana do alquimista, tal qual Ado teria sido criado por Deus.Designa-se tambm a prima materia com o ttulo de Ado primitivo, o Ado que precisar passar por toda uma srie de transformaes para que possa tornar-se Ado Csmico, sua meta, esse correlato ao prprio Jesus cristo.

O primeiro Ado e seus filhos foram criados de elementos efmeros; conseqentemente, aquilo que era composto devia ser decomposto; o segundo Ado designado como o homem filosfico foi criado de elementos puros que se tomaro eternos. (Jung, 2011g, p. 408 PP.473)

Jung em Mysterium Coniunctiones II (2011e) nos explica que o alquimista paracelsiano Dorneus havia chamado seu lpis de Ado. Este, dentro de si, guardava sua Eva invisvel representante de sua anima. Ao integrar-se com ela tornaria-se o verdadeiro Ado hermafrodito.Na doutrina gnstica eles chamam este segundo homem de Adamas, o homem perfeito e verdadeiro. Ado , ento, o homo maximus que no apenas a matria prima da obra, mas, a anima universalis de todos os homens. Na Cabalah judaica, um exemplo deste homem universal o Ado Kadmon representante do homem arquetpico e primordial, a prpria sntese da rvore da vida.O mdico e alquimista Paracelso escrevia em seus textos, tanto sobre Medicina quanto Alquimia. Ao discorrer acerca do macro e microcosmo, considera ainda uma terceira instncia. Da mesma forma que o macrocosmo corresponde a Deus e o microcosmo ao ser humano, ele relaciona o que chama de matriz mulher. Com essa distino, ele busca esclarecer a funo feminina no mundo, tomando por base sua funo biolgica de gerar a vida, e ressaltando que homem e mulher possuem uma natureza diferente. Essa dupla natureza do ser humano, tambm se reflete na prima materia da opus, que consiste na reproduo laboratorial da concepo. Dessa forma, a natureza masculina da prima matria se apresenta atravs do smen, ou como Paracelso prefere chamar ens seminis (esprito do smen). Este smen ser recebido pela matriz, representada pelo corpo da mulher; analogia perfeita com uma semente que ser gestada pela terra, at que esta possa sobreviver ao mundo exterior.Sobre a semente, ou ainda sobre o smen, esse alquimista escreve:

Toda semente trplice, ou melhor, contm trs substncias misturadas, j que tudo que est na semente est junto e no dividido. Por isso, a semente representa a prpria juno da unidade. (Paracelso,1973, p. 208)

Essa essncia trplice, muito descrita por Paracelso, est presente em todas as coisas. Esses elementos primordiais, nomeados pelo prprio, seriam mercrio, enxofre e sal. Os alimentos para que a semente humana possa se alimentar e desenvolver esto presentes unicamente na matriz. Esta matriz puramente feminina. A semente s poder viver diretamente conectada ao macrocosmo aps passar pela gestao na matriz; ela guarda e responsvel pelo esprito divino no interior do homem. Relevante que Paracelso tambm considera a prima matria de forma bastante paradoxal.

Como podemos falar da natureza da matriz se ningum nunca viu a sua primeira matria? E quem poderia ver o que existiu antes de cada um? O certo que todos viemos da matriz e ningum a viu por que ela existiu antes do homem. (Paracelso, 1973, p.328)

A ideia de matriz est fundamentada na ideia de regressus ad uterum (regresso ao tero), regresso ao feminino primordial. Esse retorno representa a morte de uma vida para o incio de outra. No artigo Alquimia, Ocultismo, Maonaria: o ouro e o simbolismo hermtico dos cadinhos (sculos XVIII e XIX) (Silva, 2003), explicitado o simbolismo inicitico da Ordem Manica e outras doutrinas hermticas:

Simbolicamente a Ordem discorre, atravs dele, sobre morte e ressurreio associadas transmutao, redeno que permite ressurgir para uma nova vida, no plano macrocsmico, microcsmico ou individual, e inicitico. (p.30)

Dessa forma, o iniciado aquele que nasceu duas vezes na mesma vida. Esse segundo nascimento tem como premissa a ideia de morte em vida. A morte da vida mundana o nascimento para a vida espiritual, e apenas na matriz que essa transformao de nascimento morte renascimento possvel.Como j foi dito acima, a prima materia tem muitos nomes, e sua relao com o feminino bastante relevante.Os alquimistas a descrevem como uma matria intocada, virgem por nunca ter tido nenhum contato com um princpio masculino; ao mesmo tempo, como prostituta porque est aberta ao contato com todos os metais, e me, pois ela capaz de carreg-los em si e transform-los, trazendo algo novo vida, e purificando os metais em seu uterus.Jung, em seu livro MysteriumConiunctionis/ 1, cap. II (2011e), escreve acerca do chamado Enigma bolognese, nomeado desta forma por ter sido encontrado num epitfio em Bolonha. Este evidencia o carter paradoxal da prima matria, paradoxal tal qual a ideia de plenitude ou de todo potencial. Segue o primeiro trecho do epitfio:Aelia Laelia Crispis no nem homem, nem mulher, nem andrgena, nem menina, nem jovem, nem velha, nem casta, nem meretriz, nem pudica, mas tudo isso.(p.84)A prima materia possui outra caracterstica bastante relevante: ela criadora em si mesma, pois matria para que todas as coisas existam. Dessa forma, seu marido s pode ser seu filho, pois ela a Senhora da qual nascem todas as coisas; ela a me do lpis philosoforum. A temtica do incesto filho-me est presente em muitos tratados e textos alqumicos.Segundo Jung (2011), a deusa sis considerada muitas vezes como Mater Alquimia (me da Alquimia), aparecendo como uma mestra tida como discpula ou filha do prprio Hermes Trismegisto.

No texto se alude com frequncia Isis como a Viva, da que do comeo mesmo da alquimia se chame pedra filosofal, ao mistrio, o mistrio da viva,a pedra da viva ou a pedra do rfo; havia uma conexo entre a viva e o desamparado, mas tudo aponta Isis. (vonFranz, 1996, p. 44)

Sua caracterstica paradoxal tal qual sua identificao com a prima materia; assim ela chamada Deusa dos mil nomes. Seu ventre o vaso alqumico do mundo, e sua matria, a potncia una da qual o filius macrocosmi ser criado. Ela a prpria Lua em todas as suas faces: na crescente ela donzela, na cheia ela me, na minguante ela anci, e na nova ela a prpria morte. Por isso, ela Uma, que tudo. Outro nome bastante comum nossa prima matria o menstruo da rameira, representando o smbolo da expulso do terus de sua matria morta, no fertilizada. Dessa forma, atravs da potncia da morte representada pela menstruao o alquimista pretendia buscar a potncia de vida presente nessa matria tida como morta. Interessante ressaltar que em sua condio de matriz a prima matria no possui esposo, de forma que no fertilizada e a menstruao tambm representa isso.

Menstruo excematur Diadema Regale. [Em nossa matria inicial existem muitas coisas heterogneas suprfluas que nunca podem ser reduzidas (para a nossa Obra) ao estado de pureza; convm, pois, expurg-las completamente, o que de fato impossvel sem a teoria de nossos arcanos (segredos primordiais), atravs da qual ensinamos os meios de extrair o Diadema Rgio do menstruo da meretriz] (Nota de rodap: Jung, 2011b, p. 301)

A ideia de prima materia corresponde a imagem original de um todo indiferenciado posterior diferenciao de todos os outro elementos. Assim, buscar a prima matria procurar a reduo das substncias ao seu estado pr- cosmolgico indiferenciado, onde tudo est em pura potncia criativa.As mitologias antigas reproduzem a prima materia como a massa catica de onde todas as coisas viriam a ser. Um exemplo bastante claro acerca disso dado por Hesodo em sua Teogonia:

Do Caos rebo e Noite negra nasciamDa Noite alis ter e Dia nasceram ,gerou-os fecundada e unida a rebos em amor. (Hesodo, 1991, p.109, 125)

Tudo que existe no universo viria do Caos, um infinito de plena potncia indiferenciada e desorganizada, de onde surgiria rebo representante da potncia masculina do Caos, tal qual a semente, ou smen, e a deusa Nyx, representando o teros que conter e dar forma a toda essa matria. Tanto rebo quanto Nyx so as expresses criativas do Caos, e logo da prima matria. A Noite negra pode ser interpretada como regente da nigredo, senhora da morte e escurido, to relacionada ao material primal do trabalho. Interessante observar que ao se unir em amor a rebos, ela gera Dia e ter, representantes da albedo alqumica.Gostaramos de fazer uma breve correlao entre essa temtica e a arvore da vida, presente nos ensinamentos da Cabala judaica. A arvore da vida, um diagrama que representa todas as dimenses (cada uma delas e chamada sephirah, representando determinado campo), e como estas se organizam, sua relao cosmognica e tambm enquanto viso de caminho de evoluo espiritual. Sobre a arvore da vida, descreve a ocultista Dion Fortune (2006): O todo, o Si mesmo, representado pela sephirah Kether ao manifestar-se, entra num estado de pura potncia desorganizada, criativa, representada pela sephirah Chockmah. Este um campo de energias potenciais ainda sem forma. Esse estgio de indiferenciao do todo anlogo simbolicamente ao esperma ou semente; s atingir o reino das formas ao ser recebido pelo teros da sephirah Binah.

Kether diferencia-se em Chokmah a Binah antes de alcanar a existncia fenomenal. Os cabalistas chamam essas duas Sephiroth de Abba, o Pai Supremo, a Ama, a Me Suprema. Binah recebe tambm o nome de Grande Mar, a Shabathai, a Esfera de Saturno (Fortune, 2006, p.33)

Binah regida pelo planeta Saturno, pois a senhora da morte e da vida, e nela toda Fora (Chockmah) encerrada em Forma. assim a sephirah onde a manifestao do todo se torna enfim diferenciada, e as sementes tornam-se fetos, fertilizam o teros gerando vida.Exemplo anlogo a este se d no tratado alqumico Rosarium Philosoficum Philosoforum citado por Jung (2011b):

Beya montou sobre o Gabricus e lhe encerrou em sua matriz, de forma que no ficou visvel nada dele. Abraou-lhe com tanto amor que lhe absorveu por inteiro em sua prpria natureza (...)(p.348).

No exemplo desse tratado pode-se observar que a semente do falus de Gabricus dissolvida ao entrar na matriz, no terus de Beya, onde esta, reduzida prima matria poder gerar uma nova vida. Esse processo representa plenamente o processo biolgico de cpula gravidez nascimento.Psicologicamente, retornar ao estado catico e original da matria equivalente a uma morte na psique. Esse processo est intimamente relacionado nigredo, mortificatio, solutio, em suas capacidades de dissoluo das formas psquicas fixas de um indivduo, levando-as a um regresso prima matria, onde a partir disso um novo processo poder surgir, bem como uma nova forma de organizao psquica. De acordo com os alquimistas, o regresso cosmolgico da matria equivaleria a uma segunda morte em vida, o incio de um processo inicitico.Esse retorno simblico s origens do mundo, re-institui ao indivduo seu papel como criador.

Como toda criao e toda construo reproduziam o modelo cosmognico, o homem, ao fabricar algo, imitava a obra do Demiurgo. Mas ali onde os smbolos cosmognicos se apresentavam em um contexto embriolgico a fabricao de objetos equivalia a uma procriao; toda fabricao a partir da matria vivente ctnica (em nosso exemplo, os minerais) adquiria uma equivalncia obsttrica... (Eliade,1983, p.59)

Assim, a matria prima representa, dentro do processo alqumico, seu incio, e em si mesma guarda o segredo de seu fim, de sua meta. Ao simbolismo cclico desta, os antigos alquimistas usam a representao do roboro, usualmente um drago ou serpente engolindo ou mordendo a prpria cauda, formando um crculo.O mundo originrio matriarcal tem como smbolo primordial o drago que gera e destri a Si mesmo. Sobre isso diz Jung (2011b):

Por esta razo o "opus" muitas vezes chamado de "circulare" = de forma singular ou "rota" = roda (...) (p.305, PP.404)

Ao devorar a Si mesmo enquanto prima matria o drago morre, e ao renascer, nasce como o lpis philosoforum. O smbolo do drago alqumico refora a concepo de que a opus provm de uma s matria, devendo retornar sua unidade. Este certamente um dos maiores paradoxos alqumicos.Existe ainda outra importante interpretao sobre o roboro: Enquanto smbolo representante da prima matria, aquele, ao gerar a Si mesmo, o faz atravs de autofecundao, reforando o carter bissexual da matria originria.Enquanto smbolo alqumico, o drago, alm de representar a prima matria, representa Saturno, regente do chumbo dos alquimistas.Saturno a representao da matria-prima; tambm representada pelo chumbo e pelas guas saturninas... (Lopes, 2009, p. 39)Em relao aos metais, dito que esses, de acordo com o tempo que passam na terra, chegam qualidade mais pura e essencial dos minerais o ouro. Logo, todos os metais poderiam, em potncia, tornar-se ouro desde que gestados da forma e perodo correto dentro do ventre da terra. Considerado como o mais rudimentar dos metais, o chumbo representaria a potncia mineral em seu estado mais bruto. Desta forma, ele um dos materiais mais relacionados prima matria, representando o mineral ainda em estado bruto e sem lapidao.O chumbo o metal correspondente a Saturno, considerado pelos alquimistas como o esprito de Saturno na Terra. Saturno representa toda a limitao da corporeidade; representa ao esprito sua restrio na condio de matria, com limites e regras a serem seguidos para a preservao de sua prpria sobrevivncia. Em sua monografia intitulada Saturno, Lopes (2009) fala sobre as mais comuns denominaes deste: O pai da morte, o porto das trevas, o governador da priso, raiz da obra, esqueleto material, m dos filsofos etc.Segundo Junito Brando, em seu livro Mitologia Grega vol.I (1986), Saturno chamado de Crono. Este representa o prprio tempo que engole os homens. Crono devora, ao mesmo tempo que gera.(p.198). Pois, na poca onde era o patrono do mundo este temendo perder seu posto para algum de seus filhos, a todos devorava, assim ele personificao do tempo que mata e limita a humanidade a condio da corporeidade que existe sob seu domnio, tornando os homens seres temporais, logo finitos.Olimpiodoro fala do chumbo negro e est claro que se trata da substncia originria e que , por conseguinte, o mistrio do qual j falamos a prima materia, a substncia bsica do mundo, onde reside o segredo divino da vida e da morte. Ele o chama nosso chumbo, que ao princpio no negro, e o contrape ao chumbo comum (vonFranz, 1992, p.79)

Como o senhor do tempo, Saturno tem o poder sobre a vida e a morte. De forma anloga, seu metal correspondente (o chumbo) s considerado o verdadeiro chumbo dos alquimistas, quando esse metal encontra a cor negra, pois ao entrar na fase da nigredo, garante o incio da obra, que em si morte para renascimento.Tanto a nigredo, o chumbo e Saturno, possuem seus aspectos simblicos profundamente associados depresso e melancolia, propiciando psique um retorno a seu mundo interior, levando ao contato com contedos de difcil integrao na personalidade, muitas vezes contedos sombrios. Saturno promove o encontro com o conflito entre opostos, to central opus alqumica e ao processo de individuao. Esse encontro marcado pela tenso e sofrimento, que se ultrapassados, abriro espao criatividade e sabedoria, sendo ento possvel a entrada da opus na albedo, levando a psique a uma nova estruturao.

A realidade depressiva contribui no Processo de Individuao, pois proporciona um movimento de compensao inconsciente, desenvolvendo com isto a psique. (...) Percebemos que Saturno, tanto mitolgico como planetrio, com seus aspectos considerados frios, speros, austeros, adstritivos, nocivos, perigosos e negativos, associados ao chumbo alqumico, podem, numa realidade mais positiva, promover o desenvolvimento e o movimento psquico atravs do sofrimento e da depresso, passando assim numa postura mais criativa do inconsciente (...) (Amui, 2003, p.5)

O processo de morte e renascimento psquico um processo considerado inciatico, capaz de ampliar a conscincia humana e, por consequncia, marca uma etapa bastante importante do processo de individuao. Eliade (1983), em seu livro Ferreiros e Alquimistas (1983, p.130), nos exemplifica isso, dizendo que a sabedoria de Saturno, apenas reservada aos que anteciparam em vida a experincia de morte, e acrescenta que essa a razo da melancolia taciturna dos magos e alquimistas.A prima materia o smbolo do todo a ser individuado, da obscuridade da inconscincia primeira pronta a ser levada luz da conscincia. Ela representa o Si mesmo em potncia de humanizao atravs do processo alqumico.

5.2 PRANCHA I - Arma rtis[footnoteRef:2] [2: Imagem: Henderson e Sherwood (2003) p.33]

A estratgia de interpretao escolhida visa respeitar pequenas sequncias de pranchas, que em conjunto totalizam a srie. As quatro primeiras pranchas so entituladas: O material primal do trabalho. Dentro do campo da psicoterapia analtica, isso poderia ser traduzido pelo material psquico inicial ao qual propomos um processo de transformao. A primeira prancha desse tratado nomeada Arma rtis. Segundo Wisner (2010), esse seria um mote alqumico em latim, e significaria armas da arte, ou ainda braos da arte. Aqui analisaremos essa prancha enquanto prima materia do processo alqumico buscando desvelar seus significados ocultos.Descrio: A prancha traz ao centro trs degraus, acima do terceiro um elmo antigo ornado com plumas azuis. Sobre o elmo, uma coroa dourada que est em cima de um manto azul com estrelas pequenas tambm douradas. Esse elmo est vazio e flutua; junto a ele tambm flutuante, um escudo azul com desenho de um Sol. Parece existir trs rostos dentro da figura solar, dois localizados na rea dos olhos e um na da boca.- Arma rtisAtrs h uma espcie de bandeira vermelha onde aparece um Sol dourado de rosto bastante humanizado com vinte e quatro raios ondulados alternados com retos. Abaixo deste, trs luas prateadas em fase crescente. Ao fundo, um homem de vermelho e um de preto conversam e caminham.Prima materia enquanto encontro do mestre-aprendiz e a questo da perpetuao da arte alqumica.Elmo, escudo, bandeira, braso, so smbolos que representam a defesa de uma tradio, cujo aprofundamento necessita grande dedicao, estudo, e f. A Alquimia foi bastante perseguida enquanto uma arte hertica, o que tornou sua linguagem simblica estratgica na defesa de sua arte. So Toms de Aquino (2000) considerava Deus, ou o demiurgo, como um artista de vasto polifacetismo, por ser autor de dramas, comdias, farsas, considerando a Alquimia uma obra satrica que poderia ter por nome Alquimia ou impenetrabilidade. Isso refora o carter secreto da arte, e a necessidade de proteg-la.Se logras compreender o sentido de nossa escrita e o mistrio de como se obtm a tintura de ouro, deixa-te aoitar at a morte antes de o revelar, pois vontade divina que isto se mantenha oculto. (p.10)Podemos entender essa preocupao com o segredo da Alquimia, como um alerta sobre o caminho de evoluo espiritual e expanso da conscincia. O prprio processo psicoterpico um processo de conscientizao bastante doloroso, pois coloca o sujeito em conexo com os aspectos sombrios de sua personalidade, de forma que o saber sobre Si mesmo pode ser muito libertador, porm desafiador. O contato com o inconsciente coletivo, com representaes arquetpicas, exerce enorme fascnio sobre o ser humano. Quem intermedeia essa relao o ego, e a forma como ele est estruturado d maior ou menor suporte expresso do contedo arquetpico. Assim, alerta Jung:

No existe nenhuma razo para querer conhecer mais do inconsciente coletivo do que se consegue por meio de sonhos e intuies. Quanto mais se sabe sobre ele, maior e mais pesada a responsabilidade moral, por que os contedos do inconsciente coletivo se transformam em tarefas individuais to logo comeam a se tornar conscientes. (Jung, 1991, p.389)

A Alquimia visando a evoluo espiritual, prope que aquele que capaz de desvendar seu enigmas, apropriar-se de seus smbolos e armas, far parte desta Armada da Arte; por isso, a arte alqumica velada, secreta, e est defendida pela linguagem que to poucos sabem. justamente a capacidade de conscientizao, que est em questo aqui. Por isso, Jung fala de to pesada responsabilidade moral. Aquele que desvenda demais os trmites do inconsciente tem responsabilidades enormes consigo mesmo e com o universo, pelo seu saber e sobre a forma que o utilizar.Sobre os tratados alqumicos:Basta dizer que os autores desses escritos partiam da seguinte base: quem no tem a intuio suficiente para descobrir por si prprio o mistrio, no digno de t-los por outros meios (Aquino, 2000, p.20)A prancha Arma rtis est bastante vinculada proteo e smbolo de honra de sua prpria tradio, assim como fala sobre a defesa de sua continuidade. Ao fundo da imagem dois homens caminham e conversam; um veste preto e o outro vermelho. Como j citamos anteriormente (Edinger, 1990) vermelho, preto, e branco so as cores centrais da opus alqumica, ento por que um homem de preto e um de vermelho?O homem de preto representa a fase alqumica da nigredo, correlata ao processo da mortificatio. Este o momento inicial da opus, o momento da morte da prima materia. Esta fase marcar o comeo de um processo inicitico, de morte e renascimento. O homem de preto o nefito nesta arte.J o homem de vermelho representa a rubedo, correlata coniunctio. Est no auge de sua grandeza e evoluo espiritual, ele mesmo enquanto a prpria pedra filosofal, integrao resultante da transcendncia do casamento sagrado da coniunctio. o mestre, aquele que ensinar a arte alqumica para o aprendiz, e dessa forma o conduzir a tambm ser um mestre, garantindo o ciclo e eternizando sua arte, perpetuando o saber alqumico -porm sem banaliz-lo por ser de carter secreto e simblico.A bandeira vermelha da arte alqumica aparece por trs do elmo, com seu Sol de vinte e quatro