televisão e cultura: análise da trajetória de duas tvs públicas
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Televiso e cultura:
Anlise da trajetria de duas tvs pblicas
Renata Rocha
Univerdidade Federal da Bahia
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo estudar as relaes entre a televiso e a cultura,
investigadas a partir da anlise das trajetrias de duas TVs pblicas - a Televisin de
Galcia, na Espanha e a Televiso Educativa da Bahia, no Brasil. Pressupe-se que a
televiso, atravs de suas representaes, torna-se um importante fator para a difuso
das identidades e cultura regionais, devido ao seu grande alcance no mundo
contemporneo. Nestas emissoras, em especial, a dimenso regional e o carter pblico
estimulam a construo de novos parmetros de reflexo, ao se considerar os contextos
histricos singulares do processo de comunicao. Realiza-se, assim, uma apreciao
mais aprofundada sobre a televiso pblica e a trajetria das emissoras, observando,particularmente, as estratgias e solues encontradas para alcanar a organizao e
autonomia.
Palavras-chave: televiso pblica, cultura regional, identidades
ABSTRACT
The present work objects the study of the connections between culture and television,
which are to be investigated based on the trajectories of two public network television
Televisin de Galicia, in Spain, and Televiso Educativa da Bahia, in Brazil. It is
assumed that the TV, employing its representations, becomes a very important factor in
Trabalho apresentado ao Curso de Graduao em Comunicao da Universidade Federal da Bahia,
como requisito para a obteno do grau de Bacharel em Comunicao Social Jornalismo, no ano de2006. Orientadora: Prof Dr Linda Rubim.
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the broadcasting of regional culture and identities, especially when considering the
extent of this media in the contemporaneous world. In both networks analyzed, the
regional dimension and the public character motivate the construction of new
parameters by considering the historical contexts involving the communication process.
This way, it is possible to comprehend a profounder reflection on public television as
well as the path they have followed, the strategies and solutions used to accomplish
organization and autonomy.
Keywords: public television, regional culture, identities.
RESUMN
Este trabajo busca estudiar las relaciones entre la televisin y la cultura, investigadas
por medio de una anlisis de los trayectos de dos canales pblicos - la Televisin de
Galcia, en Espana y la Televiso Educativa da Bahia, en Brasil. Se presupone que la
televisin, por medio de sus representaciones, se convierte en un importante marco para
la difusin de las identidades y cultura regionales, por su gran alcance en el mundocontemporneo. En estes canales, la dimensin regional y el carcter pblico estimulan
la construcin de nuevos parmetros de reflexin, en respecto a los contextos histricos
singulares del proceso de comunicacin. Se efectua, por lo tanto, una evaluacin ms
profundizada acerca de la televisin pblica y del trayecto de estes canales, observando,
particularmente, las estrategias y soluciones encontradas para alcanzar la organizacin y
autonoma.
Palabras-clave: televisin pblica, cultura regional, identidades
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minha me verdadeira e s outras mes que fui encontrando pelo caminho.
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AGRADECIMENTOS
A Linda Rubim, pela orientao e adoo.
A Iraildes Trindade Rocha, minha me, por me apoiar em meus caminhos e socorrer nos
descaminhos.
A Jaildo Vieira Rocha, meu pai, pelo carinho todo que fica guardado.
Aos meus irmos e irmos, Emanuela Trindade, Sharif Mohr, Jlia Paula e Vtor
Freire por estarem do meu lado sempre, e, principalmente a Rebeca Mohr, pelos dias
de monografia, e a Jaildo Filho, pelas noites mal dormidas.
A Dnisson Padilha Filho, pela companhia, pacincia, dedicao, enfim, por todo amor.
Aos meus amigos, por existirem e me suportarem, especialmente a Camila Tenrio,
nestes anos de faculdade, pesquisa, desespero e risadas, e no auxlio com este trabalho.
A Pedro Carrasco Sola, Jaqueline Barreto de Jesus, Roberto SantAna e Marcelo
Martinz Hermida por me auxiliarem na busca de informaes.
A todos os entrevistados, que cederam parte de seu tempo para auxiliar nesta reflexo.
Enfim, a todos meus professores, desde D. Lgia da alfabetizao, at os que esto por
vir, porque o aprendizado no acaba nunca.
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SUMRIO
LISTA DE TABELAS E GRFICOS 09
INTRODUO 07
1 METODOLOGIA 10
2 TELEVISO, CULTURA E SOCIEDADE LOCAL 13
2.1 Dos conceitos de territrio e regio 15
2.2 Representao e identidades 18
2.2.1 Identidade Territorial 19
2.2.2 Televiso e Identidade Regional 21
2.2.3 Identidade baiana e Baianidade 24
2.2.4 Desde a Gallaecia at a Galeguidade 28
3 O SCULO DA TV: PERCURSO HISTRICO E ATUALIDADE 34
3.1 Brasil: Bahia 35
3.1.1 Televiso no Brasil 383.1.2 Televiso Educativa da Bahia 42
3.1.3 Bahia Singular e Plural 49
3.2 Espanha: Galcia 51
3.2.1 Televiso na Espanha 54
3.2.2 Televisin de Galcia 59
3.2.3 TVG e a lngua galega 63
4 DOIS MODELOS DE TV PBLICA 674.1 Financiamento e publicidade 69
4.2 Audincia e programao 74
CONCLUSO 83
REFERNCIAS 87
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LISTA DE TABELAS E GRFICOS
Grfico 1 - Dados mdios das emissoras baianasshare: dezembro de 2004 75
Grfico 2Dados mdios das emissoras galegasshare: temporada 2002/03 76
Grfico 3Perfil de pblico da TVG por classe social 78
Grfico 4Perfil de pblico da TVG por faixa etria 79
Grfico 5Perfil de pblico da TVG por sexo 79
Grfico 6Perfil de pblico da TVE por classe social 80
Grfico 7Perfil de pblico da TVE por faixa etria 81
Grfico 8Perfil de pblico da TVG por sexo 81
Tabela 1 Ranking da programao Local 76
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INTRODUO
Este estudo visa investigar as relaes entre a televiso e a cultura atravs da
anlise do percurso histrico de duas emissoras pblicas: a Televisin de Galcia (TVG)
- localizada na comunidade autnoma1da Galcia, na Espanha - e a Televiso Educativa
da Bahia - situada no Estado da Bahia, no Brasil. Parte-se do pressuposto de que estas
emissoras, pelo seu carter pblico e pelo grande alcance da mdia televisiva no mundo
atual, participam de maneira ativa na formatao e manuteno das identidades
regionais.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE, 2002),
89,9% dos domiclios do Brasil esto dotados de aparelhos televisivos. J na Espanha,
esse nmero chega a 99,5%, segundo o Instituto Nacional de Estadstica2(INE, 2005).
Isto indica que, devido sua forte difuso entre a populao, a televiso o meio de
comunicao que melhor exprime a sociedade contempornea. Alm disso, segundo o
terico Muniz Sodr (1984), esta mdia incorpora, no s as tcnicas de reproduo
desenvolvidas na modernidade, mas tambm todo o ethosmoderno de organizao da
vida social.
O professor Arlindo Machado (2000) observa que o estudo da televiso - como o
de qualquer outro meio de comunicao - pode ser realizado de duas maneiras distintas:
considerando-a como fenmeno de massa de grande impacto na vida social moderna,
que requer uma anlise de cunho sociolgico, ou como um dispositivo audiovisual que
funciona como meio de expresso.
O presente trabalho conjuga essas duas acepes: no analisa o carter
meramente sociolgico da TV, que resultaria em uma abundncia de estudos baseados
na sondagem de audincia, motivo pelo qual, no geral, as abordagens sociolgicas
acabam coincidindo com as pesquisas mercadolgicas (MACHADO, 2000: 11).
Tampouco interessa discutir a qualidade na televiso de maneira aprofundada, pois isto
1O Reino da Espanha dividido politicamente em 17 comunidades autnomas, ou independentes, dentre
elas a Galcia.2Dados de 2003.
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significaria uma abordagem demasiado ampla de aspectos alheios pretenso deste
trabalho.
Busca-se compreender, portanto, como a trajetria de uma emissora de televiso
esse importante aparato de interveno cultural interfere e sofre interferncias da
sociedade onde est localizada, e tambm sua participao no processo de formao e
difuso de determinadas identidades. Para tanto, este estudo adquire um carter
interdisciplinar, com breves incurses em conceitos das cincias sociais, da histria, e
das teorias da comunicao.
Tomando as reflexes anteriores como apoio, prope-se ampliar a discusso
sobre a televiso pblica no Brasil, orientada, principalmente, para a construo de
gestes independentes e da qualidade de programao, devido sua importncia na
divulgao de contedos de interesse pblico e na promoo da cultura regional. A TV
pblica deve ser uma televiso que estabelea uma sintonia entre as demandas de
informao e de educao de cada comunidade local (CARMONA, 2003: 12). Como a
regionalizao ainda uma tendncia em expanso no Brasil, este estudo visa
questionar, atravs da investigao de uma realidade alheia nacional, as solues
postas para os problemas destas emissoras.
Uma vez que a cultura histrica pode ser definida (...) como uma articulao
prtica eficaz, operada pela conscincia histrica na vida de uma sociedade
(MARTINS, 2002: 47), torna-se extremamente relevante conhecer a histria das regies
a serem estudadas. O acompanhamento desta construo identitria, ento, realizado
atravs da reconstituio de um percurso histrico que observa a influncia do meio
televisivo na configurao de um determinado contexto scio-cultural.
Neste aspecto, importante salientar uma srie de pontos em comum quedemonstram uma notvel proximidade existente entre a Galcia e a Bahia. Em primeiro
lugar, so locais com demarcada identidade e cultura histrica, em relao ao pas onde
se encontram. Para alm disso, marcas mais subjetivas expressam tal convergncia, a
exemplo da TVE e TVG surgirem em um contexto similar de abertura democrtica, que
as influencia no resgate de interesses regionais. Coincidentemente, estas duas emissoras
so inauguradas no ano de 1985. Vale a pena assinalar, ainda, que o processo de
implantao televisivo nas duas regies se d de maneira quase simultnea. Enquanto a
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televiso baiana inaugurada em 1960, a primeira transmisso da Televisin Espaola
no pas galego ocorre em 1961.
Os caminhos trilhados no desenvolvimento deste projeto reproduzem as
estratgias experimentadas na pesquisa 40 anos de Televiso na Bahia, coordenada
pela professora Lindinalva Rubim e desenvolvida desde agosto de 2000, com o objetivo
de estudar a histria da televiso baiana, com nfase em seu carter cultural. A
participao neste grupo de investigao por quatro anos, num ambiente de discusso
sobre comunicao, particularmente, sobre a televiso, indica a construo de
estratgias de anlise da histria da TV e sua relao com a cultura, que so essenciais
para a realizao deste trabalho.
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1 METODOLOGIA
Este trabalho se realiza em diversas etapas. A primeira delas consiste na
delimitao e escolha do objeto de estudo: as relaes entre televiso e cultura, atravs
da anlise de emissoras de regies distintas do globo. Elaborar um conhecimento
sistemtico sobre a trajetria de duas TVs pblicas e regionais, no caso em questo, a
TV Educativa da Bahia e a Televisin de Galcia (TVG) - estimula a construo de
novos parmetros de reflexo para o questionamento da interferncia do contexto
histrico nos processos de comunicao.
Neste aspecto, a pesquisa 40 anos de televiso na Bahia tem fundamental
importncia, no sentido de apurar o interesse e viabilizar a aproximao com a temtica
escolhida. Durante o perodo de participao no referido projeto, foi possvel o
cumprimento de um intensivo programa de leitura e a discusso de uma bibliografia
referente televiso, alm de incurses por outras reas do conhecimento de modo a
entender a trajetria desta mdia, sempre vinculada a um panorama interdisciplinar do
conhecimento.
Partindo deste pressuposto original, mantido na realizao do presente trabalho,
importante citar tambm como mtodo de aproximao com o objeto: os seminrios
internos promovidos pelo grupo de pesquisa; a participao em fruns externos de
discusso, como o Seminrio anual do PIBIC e da Redecult; e ainda, a produo de
textos acadmicos que, sem dvida, servem para solidificar a percepo da televiso
como tema central de estudo para este trabalho monogrfico.
A incluso da Televisin de Galcia motivada pela grande singularidade da
cultura galega, perante a nao espanhola, o que, em certa medida, similar situao
baiana frente ao restante do Brasil. Tambm pesa sobre esta escolha o fato de tratar-se
de uma emissora pblica de participao ativa nas questes identitrias locais, como
ocorre com a TVE. Com o propsito de investigar mais detidamente essa proximidade
realiza-se uma viagem pelo Programa de Intercmbio da UFBA para a Universidade de
Santiago de Compostela, no territrio galego, no perodo de setembro de 2004 a junho
de 2005.
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No contato com a realidade galega, percebe-se a necessidade de desenvolver
uma metodologia de anlise diferenciada daquela que foi desenvolvida pela pesquisa no
estudo da televiso baiana, posteriormente adotada por este projeto. Na Bahia, a
inexistncia de um material acadmico rigoroso, com nfase na histria da TV, leva ao
desenvolvimento de uma srie de estratgias e mecanismos de modo a obter maiores
informaes sobre o assunto, diferente da Galcia, onde se encontra uma profuso
bibliogrfica centrada na histria da televiso e sua relao com a cultura local, em
especial, o idioma galego. Neste sentido a investigao naquele pas priorizou
sobremaneira como fonte, a produo acadmica existente.
Para o estudo da Televiso Educativa da Bahia, so utilizados como fonte
primria os jornais impressos que circulam em Salvador, desde a inaugurao da TV
Itapoan, em 1960, at o ano de 20003. Adota-se como procedimento de trabalho, o
levantamento de informaes sobre a televiso em trs datas: o dia de inaugurao da
emissora, o dia anterior e o dia posterior ao surgimento da mesma.
importante ressaltar que o tratamento do material coletado tambm procura
adotar alguns parmetros a fim de preservar a fidedignidade da amostra pretendida.
Assim, procede-se a leitura dos jornais, elegendo como objeto de anlise as seguintes
sesses: anncios publicitrios, notas, matrias, chamadas de capa e colunas. Em
seguida, so arquivadas cpias das informaes de maior destaque, alm da
programao diria das emissoras. Alm desta fonte de informao, realizada, uma
srie de entrevistas com pessoas que participam ou participaram da histria da emissora,
focalizando as discusses sobre televiso e cultura na Bahia. Servem tambm como
instrumento de informao, parte dos relatrios anuais da TVE4; o clippingda biblioteca
do IRDEB - com reportagens, matrias, artigos e entrevistas de diversos jornais e
revistas -; e o material audiovisual da emissora, disponibilizado pela Videoteca do
IRDEB.
Em relao Televisin de Galicia, a coleta de informaes iniciada ainda no
Brasil, atravs de pesquisa telematizada, em sites como a pgina web da Companhia de
3Dirio de notcias (at 1981), Jornal A Tarde, Tribuna da Bahia, Correio da Bahia, Jornal da Bahia (at
1993) e Bahia Hoje (at 1997).4So analisados apenas os materiais posteriores ao ano de 2000, marco da informatizao.
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Radio e Televisin de Galicia5, do Consello da Cultura Galega 6 e na Biblioteca do
Centro Cultural Caballeros de Santiago. Nesta etapa, objetiva-se conhecer a histria e
cultura galegas. Sobre trajetria da TVG e sua relao com a cultura, os dados
encontrados so esparsos, constando apenas o livroInfluencia da TVG na promocin do
galego, de Arturo Maneiro Vila, na referida biblioteca.
Durante estada em Santiago de Compostela, feita a coleta de informaes nas
Bibliotecas da Faculdade de Comunicao da Universidade de Santiago de Compostela
e do Consello da Cultura Galega, que possuem um vasto acervo sobre o canal galego
de TV. Naquele perodo, so realizadas entrevistas com profissionais da emissora e
estudiosos da histria da televiso na Galcia.
Depois de coletado, o material passa por uma primeira apreciao exploratria,
que indica o levantamento de nova bibliografia, agora concentrada na discusso de
aspectos como identidade, representao, regio e territrio, alm da histria da cultura
nas sociedades pesquisadas. Cabe enfatizar, aqui, o aumento substancial de reflexes
sobre a identidade baiana, traduzida por baianidade que circunscreve os territrio de
Salvador e Recncavo. No entanto, ainda so raras as referncias relativas a outras
regies que no sejam quelas especificamente vinculadas cultura negra.
Desta maneira, a anlise da trajetria destas emissoras desenvolvida,
priorizando-se as diferentes modalidades de relao com a sociedade local seja no
mbito identitrio-cultural, poltico, econmico, dentre outras orientaes. Dedica-se
uma ateno especial aos fluxos de programao das TVs, com nfase na temtica
regional.
5
< http://www.crtvg.es/cgi-bin/iniciocrtvg.asp?idioma=galego>6
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2 CULTURA, TELEVISO E SOCIEDADE LOCAL
Para a realizao desse trabalho indispensvel a busca por uma definio de
cultura, a fim de tornar possvel seu uso operacional. Apesar da multiplicidade de
significados, a noo de cultura parece convergir, para uma viso antropolgica
contempornea de prtica diferenciada regida por um sistema, que se entende como o
conceito das relaes internas tpicas da realidade da produo, pelos indivduos, do
sentido que organiza as suas condies de coexistncia com a natureza, com os prprios
membros do seu grupo e com outros grupos humanos (SODR, apud MIGUEZ, 2002:
44).
Dessa forma, a cultura, ao abranger os elementos distintivos pelos quais cada
indivduo refere sua identidade pessoal ao conjunto de fatores que a definem
(MARTINS, 2002: 43-44), remete s prticas de organizao simblica, de produo
social de sentido e de relacionamento com o real.
Nesse estudo, particularmente, opta-se por analisar a cultura de duas regies
distintas, atravs da evoluo de um meio de comunicao influente, como a televiso.
Para melhor facilitar a compreenso do nosso objeto, cabe delinear os conceitos aquiutilizados para a classificao das emissoras de TV em seus diversos mbitos, atravs de
uma perspectiva legal7.
No Brasil, a televiso tecnicamente definida como comunicao eletrnica,
com a transmisso de sons e imagens - classificada como um servio de radiodifuso,
regido por leis prprias e considerado de interesse nacional. Trata-se, portanto, de um
servio pblico a ser prestado pela Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios, ou
concedido, mediante concorrncia, pessoa jurdica ou consrcio de empresas quetenham capacidade para seu desempenho (ALARCON, 2005).
Quanto autorizao da recepo, uma emissora de televiso pode ser:
7As informaes foram obtidas no site do Ministrio das Comunicaes do Brasil (MINISTRIO DASCOMUNICAES, acesso em 20 mar. 2006) e atravs do Projeto de Lei para o audiovisual daColmbia (PROYECTO DE LEY 149, 2002, acesso em 20 mar. 2006) .
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Aberta: o sinal pode ser recebido livremente por qualquer pessoa situada
na rea de servio da estao
Fechada: o sinal, independentemente da tecnologia de transmisso
utilizada, alcana apenas as pessoas autorizadas para a recepo.
Quanto propriedade podemos classificar a TV da seguinte forma:
Pblica: de programao e produo realizada por um operador pblico,
para a promoo da cultura e da sociedade. No possui fins lucrativos.
Privada: de operao e programao realizada por uma empresa privada,
com o objetivo de gerar lucros.
Comunitria: controlada geralmente por fundaes ou associaes de
moradores, visando satisfazer os anseios de uma determinada
comunidade. Este tipo de emissora ainda bastante rara no Brasil.
Em relao programao, a emissora pode ser:
Comercial: a programao destina-se apenas a atender os hbitos e
gostos dos televidentes, visando o aumento de audincia e conseqente
gerao de lucro;
Educativa/Cultural: programao orientada, geralmente, para a satisfao
das necessidades educativas e culturais da audincia;
Retransmissora/repetidora: a programao oriunda de outros canais
retransmitida sem promover alteraes. No Brasil a maior parte das
emissoras regionais veicula os programas de uma rede nacional,
produzindo localmente apenas parte de seus espaos.
No que se refere rea de servio, a emissora classificada em:
Local: quando o servio prestado numa rea geogrfica contnua,
sempre e quando esta no supere o mbito de um municpio, distrito, rea
metropolitana ou associao de municpios;
Regional: trata-se do sinal de TV que abrange uma rea geogrfica
determinada, formada pelo territrio do estado, ou de alguma regio do
pas;
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Nacional: quando o canal televisivo autorizado a cobrir, de maneira
permanente, todo o territrio nacional.
Alm dessa breve incurso acerca das definies das emissoras de TV, faz-se
necessria para a continuidade deste estudo, uma introduo sobre conceitos bsicos a
saber: regio, territrio, identidade e representao, alm da compreenso de como a
atual conjuntura mundial os decompe, molda e transforma.
2.1 Dos conceitos de territrio e regio
As teorias da modernizao inspiradas no estrutural-funcionalismo sustentam a
tese de que a revoluo dos meios de comunicao, os movimentos migratrios
internacionais e a mobilidade territorial provocariam o fim do apego ao territrio, do
localismo e do sentimento regionalista. A antropologia chamada ps-moderna
(GEERTZ; CLIFFORD apud GIMNEZ, 2000), por sua vez, transfere essa discusso
para as relaes entre cultura e territrio, de maneira que a cultura ps-moderna torna-
se, quase que por definio, uma cultura desterritorializada e desespacializada,
resultado da globalizao, do crescimento exponencial da migrao e da deslocalizao
das redes modernas de comunicao.
O cientista social Gilberto Gimnez (2000), no entanto, interpreta a globalizao
a partir do pressuposto de que este fenmeno obedece a uma configurao que tem
como base o ncleo dos estados-naes mais ricos do globo, mantendo um carter
territorial e perfeitamente cartografvel. Para o autor, o que ocorre no a
desterritorializao, mas sim a onipotncia dos pases centrais sobre outros territrios. A
mundializao, portanto, necessita dos territrios interiores - as regies, por exemplo -
como suporte e estao de relevo para sua expanso:
...los territorios interiores, considerados en diferentes escalas (v.g., lolocal, lo regional, lo nacional, etc.), siguen en plena vigencia, con suslgicas diferenciadas y especficas, bajo el manto de la globalizacin,aunque debe reconocerse que se encuentran sobredeterminados porsta y, consecuentemente, han sido profundamente transformados enla modernidad (GIMNEZ, 2000: 89,grifo do autor)8.
8...os territrios interiores, considerados em diferentes escalas (v.g., o local, o regional, o nacional, etc.),seguem em plena vigncia, com suas lgicas diferenciadas e especficas, sob o manto da globalizao,
ainda que se deva reconhecer que se encontram sobredeterminadospor esta e, consequentemente, foramprofundamente transformados na modernidade (traduo da autora).
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Neste contexto, embora o territrio no mais represente uma condio necessria
para a caracterizao desta ou daquela identidade, o grande fluxo migratrio,
comunicacional e cultural no impede que os indivduos mantenham um sentimento de
pertena em relao sua terra mater.
Em busca de uma compreenso da noo sociolgica de territrio, Gimnez
(2000) opta pelo abandono da definio enciclopdica de qualquer extenso da
superfcie terrestre habitada por grupos humanos. Para tanto, toma relevo a apropriao
do termo espao - entendido aqui como uma combinao de dimenses, que so a
matria-prima de qualquer territrio na eleio do conceito de territrio como um
espao apropriado e valorizado - simblica e/ou instrumentalmente - pelos grupos
humanos (RAFFESTIN apudGIMNEZ, 2000: 90, traduo da autora).
O territrio pode pluralizar-se segundo escalas historicamente constitudas desde
o local at o supranacional, intermediadas por nveis que no obedecem a uma lgica
de continuidade, mas de imbricao - como o municpio, a regio, a provncia, a nao,
etc. (GIMNEZ, 2000: 96).
Dentro desta constituio, o conceito de regio destaca-se como o mais relevante
para o prosseguimento deste estudo. Trata-se de uma abstrao do que seria um espao
geogrfico maior que uma localidade (um povoado, cidade ou vila, por exemplo) e
menor que um Estado-Nao, cujos limites so desvinculados de demarcaes poltico-
administrativas, com fronteiras penetrveis. A regio configura-se, portanto, como
ponto intermedirio entre territrios prximos ou identitrios e territrios mais vastos
(GIMNEZ, 2000).
Diante da dificuldade de precisar o conceito de regio - que pode ser definido apartir de qualquer ngulo de diferenciao, seja ele econmico, poltico, cultural,
antropolgico ou histricomostra-se mais acertada a escolha pela tradio conceitual
mais enraizada, a geogrfica no sentido amplo, na qual o termo regio seria a sntese
entre os processos de formao social, econmico e histrico, baseados num certo
espao caracterstico (OLIVEIRA, 1977).
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Pierre Bourdieu (1989) observa que as regies delimitadas em funo dos
diferentes critrios concebveis (lngua, habitat, tamanho da terra, etc.) no coincidem
perfeitamente.
...a realidade, neste caso, social de parte a parte e as classificaesmais naturais so, em grande parte, produto de uma imposioarbitrria, quer dizer, de um estado anterior da relao de foras nocampo das lutas pela delimitao legtima. A fronteira, esse produto deum acto jurdico de delimitao, produz a diferena cultural do mesmomodo que produto desta (BOURDIEU, 1989: 115).
Trata-se, pois, de uma realidade que uma representao, ou seja, de uma
imposio que passa a ser absorvida pela sociedade at ser considerada uma di-viso9
natural. Desta forma, essa separao, ainda que imposta arbitrariamente, pode vir a
gerar um fossoseja ele poltico, lingstico ou culturalentre as regies envolvidas.
Para Gilberto Gimnez (2000: 93), a apropriao de um determinado espao
pode ser classificada - tendo como ponto de partida o uso e as relaes sociais - como
instrumental-funcional ou simblica-expressiva. Em uma primeira instncia acontece a
relao utilitria com o lugar, ou seja, o territrio corresponde s necessidades
econmicas sociais e polticas (como em casos de mera explorao econmica ou de
obteno de vantagens geopolticas). Essa produo, entretanto, costuma sustentar-se
nas relaes sociais, de maneira que o territrio vem a se conformar tambm como
espao de sedimentao simblico-cultural e como suporte para identidades individuais
e coletivas.
Ainda segundo Gimnez (2000: 100-102), so de trs tipos as relaes possveis
entre cultura e territrio. Em uma primeira dimenso, o prprio territrio como meio
natural antropizado torna-se um bem cultural, um elemento a mais de inscrio da
cultura para determinada sociedade. O territrio tambm pode funcionar como rea de
distribuio de instituies e prticas culturais espacialmente localizadas, ainda que no
dependentes dessa ligao espacial como maneiras de vestir, a culinria local, as
festas e danas tpicas traos denominados cultura etnogrfica. Por fim, o territrio
pode ser apropriado como objeto de representao e apego afetivo e, sobretudo, como
smbolo de pertena socioterritorial. Neste caso os sujeitos (individuais ou coletivos)
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A grafia di-viso utilizada por Pierre Bourdieu visa dar ao termo o significado - alm do seu prpriode diviso como quebra, separao - de uma viso dupla, um surgimento de pontos de vista distintos.
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interiorizam o espao integrando-o ao seu sistema cultural. Assim, ainda que haja o
distanciamento fsico, no h uma desterritorializao em termos simblicos e
subjetivos.
2.2 Representao e identidades
O conceito de representao social foi desenvolvido na Psicologia Social,
disciplina que estuda a relao entre o indivduo e a sociedade. Durkheim (apud
GUARESCHI, JOVCHELOVITCH, 1995) foi o primeiro estudioso, no campo
sociolgico, a discutir representaes sociais ou coletivas, definindo-as como categorias
de pensamento atravs das quais determinada sociedade elabora sua realidade. Estasconstrues coletivas geram uma identificao do indivduo com a sociedade, a partir
dos processos de constituio simblica.
Nesse contexto, os significados que surgem no novo mundo das representaes,
inicialmente extrados dos aspectos sociais, terminam por modificar a prpria sociedade
que as constroem. As representaes sociais emergem desse modo como processo que
ao mesmo tempo desafia e reproduz, repete e supera, que formado, mas que tambm
forma a vida social de uma comunidade (GUARESCHI e JOVCHELOVITCH, 1995:82).
Pierre Bourdieu, no livro O Poder Simblico (1989: 118), define as
representaes como enunciados performativos que pretendem que acontea aquilo
que enunciam. Trata-se de uma luta travada com o objetivo de se definir a realidade.
Assim, a representao da realidade- se reconhecida e exercida com a cumplicidade
dos que a ela esto submetidospassa realidade da representao.
Para uma melhor apreenso da realidade, no percurso deste estudo, faz-se
necessrio que se considere a existncia do efeito simblico, exercido pelo discurso
cientfico, tendo em vista que os critrios ditos objetivos podem ser utilizados como
arma nas lutas simblicas pelo (re)conhecimento na produo de uma unidade real ou
da crena nesta unidade.
So os fenmenos sociais de representao que formam o que se chama
identidade. A sua fora mobilizadora, segundo Bourdieu (1989), encontra-se na
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alteridade. Narrado atravs dos tempos, o texto identitrio visa diferenciar um
determinado povo, o eu, em relao ao seu outro. Para Renato Ortiz (1994 : 08),
no existe uma identidade autntica, mas uma pluralidade de identidades, construdas
por diferentes grupos sociais em diferentes momentos histricos.
Por outro lado, h uma dimenso interna prpria de cada identidade, pois
medida que se afirma e se concebe a diferena, surge a necessidade de demarcao do
que seria esse eu. Ainda que no se possa ignorar que a luta pela definio do que
seria uma identidade autntica uma forma de se delimitar as fronteiras de uma poltica
que procura se impor como legtima (ORTIZ, 1994: 09), no h veracidade ou
falsidade em sua produo, j que toda identidade uma construo simblica.
O perodo da ps-modernidade, segundo Stuart Hall (1999), complexifica as
questes identitrias a partir do momento em que o sujeito, antes visto como possuidor
de uma identidade nica e estvel, torna-se fragmentrio, possuidor de diversas
identidades, muitas vezes contraditrias e no resolvidas.
... medida em que os sistemas de significao e representaocultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidadedesconcertante e cambiante de identidades possveis, com cada umadas quais poderamos nos identificar ao menos, temporariamente(HALL, 1999: 13).
O conceito de identidade, ento, adquire o carter de processo contnuo de
formao e transformao, relacionado forma em que os sujeitos so representados ou
interpelados nos sistemas culturais que os rodeiam.
2.2.1 Identidade territorial
Para a formao da identidade, imprescindvel a existncia do sentimento de
pertena a uma coletividade mltipla. Desta forma, a relao identitria entre indivduo
e territrio se d, principalmente, a partir dosentimento de pertena socioterritorial, ou
seja, do compartilhamento do complexo simblico-cultural caracterizado pelo sentido
territorial.O territrio ao tornar-se mais um componente desse sentimento, desempenha
um importante papel para o contexto da ao e das relaes humanas (GIMNEZ,
2000).
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Para o terico Nestor Garca Caclini (1999), aps longos perodos de
desvinculao do territrio, surge uma demanda de maior afirmao do local, contra a
supremacia da massificao. Os meios de comunicao representam um importante
papel, neste processo.
Simultaneamente desterritorializao das artes, h fortesmovimentos de reterritorializao, representados por movimentossociais que afirmam o local e tambm por processos de comunicaode massas: rdios e televises regionais, criao de micromercados demsica e bens folclricos, a desmassificao e a mestiagem dosconsumos engendrando diferenas e formas locais de enraizamento.(CANCLINI, 1999: 170)
A persistncia das identidades locais e nacionais, porm, depende da inseroem um processo de comunicao que se estabelece atravs de circuitos de produo,
comunicao e apropriao da cultura. Trata-se de um relato construdo e reconstrudo
incessantemente por diversos atores e poderes, que, entretanto, possuem condies de
interveno desiguais.
Essa nova configurao global promove o enfraquecimento da identificao com
a cultura nacional, reforando outros tipos de laos culturais, de maneira que as
identidades nacionais permanecem fortes, especialmente no que diz respeito amanuteno dos direitos legais e da cidadania, mas as identidades locais, regionais e
comunitrias tm se tornado mais importantes (HALL, 1999: 73). Assim, estas
identificaes, que podem ser definidas como globais, comeam a deslocar e at
mesmo apagar as identidades nacionais.
Trata-se, enfim, do advento da Idade Mdia10, quando o global e o local se
encontram e se mesclam de maneira tal que,
em verdade, o mundo contemporneo, em ntima conexo com acomunicao e sua verso miditica, deve ser formulado comoglocalidade, isto , como conjuno, tensa, entre fluxos culturaislocais e globais, possibilitando, dentre outros procedimentos, pelacomunicao midiatizada. (RUBIM. A., 2000a: 75)
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Chamamos de Idade Mdia a sociedade contempornea estruturada e ambientada pela comunicao. In RubimA.A contemporaneidade como Idade Mdia. Disponvel em:
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No atual contexto de globalizao econmica e mobilidade social, as identidades
territoriais mantm sua relevncia, ainda que sob formas modificadas e segundo novas
configuraes. O territrio perde seu carter totalizador at ento ostentado nas
sociedades tradicionais - e tende a fragmentar-se, tornando-se multifocal e puntiforme.
O apego territorial assume um valor simblico-expressivo e uma carga emocional, sem
que haja a necessidade da mediao de convivncia fsica e pertinncia a uma
comunidade local, do ponto de vista normativo.
Nesse processo, existem ainda outros meios de legitimar e difundir as
identidades territoriais. Considerando a importncia da televiso na sociedade
contempornea, indispensvel uma incurso nos aspectos determinantes para sua
condio de participante nos processos identitrios.
2.2.2 Televiso e Identidade Regional
A anlise da Televiso Educativa da Bahia, no Brasil, e da Televisin de Galcia
(TVG), na Espanha, parte do pressuposto de que a televiso - pelo seu amplo poder de
alcance - possui hoje um papel extremamente significativo para a vivncia e
convivncia dos indivduos. A TV caracteriza-se como um poderoso aparato do sistematecnolgico da Idade Mdia vivida atualmente, quando perde o seu carter de mero
transmissor de mensagens e alcana ostatusde formatador da prpria realidade. Dessa
forma, este meio de comunicao adquire importncia para a difuso e manuteno da
identidade no contexto contemporneo.
Ao transformar a representao em realidade, a televiso remete idia de
telerrealidade:
A mdia, ao consumar um espao eletrnico em rede, povoado detelevivncias em abrangncia globalizante, em verdade, constri umaoutra e nova dimenso constitutiva da sociabilidade contempornea, aqual sugere denominar de telerrealidade (Rubim, 2000: 40).
Trata-se da produo de uma realidade espao-temporal inovadora, que
possibilita ao indivduo a relao instantnea com o mundo, atravs da TV. Para o
jornalista e professor Eugnio Bucci, A Televiso no mostra lugares, no traz lugares de
longe para muito pertoa Televiso um lugar em si. Do mesmo modo, ela no supera os
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abismos de tempo entre os continentes com suas transmisses na velocidade da luz: ela encerra
um outro tempo(BUCCI e KEHL, 2004: 31.grifos do autor).
Assim, esta mdia assegura o registro no simblico como pr-requisito para o
real de maneira que o real s admitido como argumento aps sua absoro pelo
simblico. S verdadeiro o que adquire visibilidade. Da a assertiva de que o que no
aparece na TV, no acontece de fato (BUCCI e KEHL, 2004: 33).
Em relao importncia da TV para a identidade regional, Nestor Garca
Canclini (1999) observa que, durante a primeira metade do sculo, o rdio e o cinema
emergem como colaboradores na organizao dos relatos da identidade e do sentido de
cidadania nas sociedades nacionais. A partir do seu surgimento e expanso como meio
de comunicao de massas, a TV torna-se mais um agente das inovaes tecnolgicas,
sensibilizando a populao para o uso de aparelhos eletrnicos e para a liberalizao dos
costumes com um horizonte mais cosmopolita. Ao mesmo tempo, h uma unificao de
padres de consumo com uma viso nacional, tendo em vista que os meios pertenciam
predominantemente aos capitais nacionais.
Na dcada de 80, porm, com a abertura da economia dos pases aos mercados
globais e aos processos de integrao regional reduz o papel das culturas nacionais. Atransnacionalizao das tecnologias e da comercializao de bens culturais diminui a
importncia de referentes tradicionais, de maneira que a associao exclusiva a uma
comunidade nacional deixa de ser o principal definidor da identidade (CANCLINI,
1999).
Nesse contexto, a televiso interliga-se a um emaranhado de identidades a serem
desenvolvidas:
Mltiplas possibilidades de identidades emergem com fora emtempos de globalizao ou melhor, de glocalizao, porqueconjugando fluxos e estoques globais e locais, colocados em contato enegociao pelas redes de comunicao contemporneas. (Rubim, A.e RUBIM, L., 2004:26).
Em outras palavras, a televiso, que paradoxalmente vem a ser considerada
como instrumento de comunicao geralmente utilizado numa perspectiva de
desnacionalizao (WOLTON, 1996: 280), pode tornar-se um importante recurso
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para a construo dos projetos identitrios na contemporaneidade numa co-produo
com os processos culturaisartsticos, histricos, polticos, etc.- de determinada regio.
No Brasil, pela incipincia da Televiso regional, so muito poucos os estudos
que se debruam sobre o tema. Para definir o conceito de televiso regional, portanto,
faz-se necessrio recorrer tradio europia. O terico catalo Bernat Lpez (1998) a
define como referente
a las actividades televisivas de cobertura especfica ydeliberadamente regional (inferior al mbito localmunicipal),tanto en sentido geogrfico como periodstico (contenidos). Enla tradicin europea, televisin regional se refiere
preferentemente a las emisiones desconectadas de los centros
regionales pertenecientes a cadenas estatales (generalmentepblicas)11(LPEZ, 1998: 07).
Com a proliferao de TVs independentes de carter regional, na Europa dos
anos 1980 e 90, essa definio considerada pejorativa, sendo preterida em prol da
noo de televiso de proximidade, utilizada para emissoras que se dirigem,
fundamentalmente, a uma comunidade humana de tamanho mdio a pequeno, delimitada
territorialmente, com contedos relativos sua experincia cotidiana, suas preocupaes e
problemas, seu patrimnio lingstico, artstico, cultural e sua memria histrica (LPEZ,
1998).
No Brasil, ao contrrio do que ocorre na Europa, a televiso regional
independente no um fenmeno comum, sendo mais caracterstico a existncia de
emissoras afiliadas a redes nacionais, com parte da programao produzida localmente
(SIMES, 2005). Desta forma, tanto a definio de televiso regional, como a de
televiso de proximidade, parecem apropriadas para ambas as emissoras estudadas.
parte das atribuies das emissoras pblicas estaduais e municipais a
contribuio na legitimao e difuso das identidades locais. Desta forma, as duas
televises estudadas possuem um compromisso com as sociedades onde esto
localizadas e devem orientar-se promoo da cultura regional, atravs de suas
11s atividades televisivas de cobertura especfica e deliberadamente regional (inferior ao mbito local-municipal), tanto em sentido geogrfico como jornalstico (contedos). Na trad io europia, televiso
regional diz respeito, preferentemente, s emisses desconectadas de centros regionais pertencentes aredes estatais (geralmente pblicas) (traduo da autora).
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polticas. Contudo, no processo de formao identitria, tambm toma relevo fatores
como o contexto histrico de desenvolvimento da sociedade estudada e sua
conformao scio-cultural.
2.2.3 Identidade baiana e a Baianidade
A identidade baiana, construda ao longo dos sculos, adquire na atualidade uma
conformao de um arranjo tecido de familiaridade, religiosidade e sensualidade,
reunindo os elementos mais dspares, em um sistema que se baseia justamente na
adjacncia do desigual, dita de forma no problemtica (MOURA, 2000: 10).
Assim, mesmo tratando-se de uma representaopara baianos e no-baianos
a dita baianidade, expressa pela mdia, vendida aos turistas e convertida localmente em
realidade, no chega a traduzir o complexo identitrio do estado (e regio) da Bahia, em
sua totalidade. Do sertanejo e sua cultura cabocla, aos remanescentes dos garimpos da
Chapada Diamantina, passando pelos indgenas, etc., as mltiplas identidades so
reduzidas ao que seria a identidade eminentemente afro-lusitana do litoral, Recncavo e,
principalmente, da capital, Salvador.
O historiador e antroplogo, Antonio Risrio, em seu livro Uma histria da
cidade da Bahia (2004), busca desvendar o momento em que os brasileiros com
exceo dos indgenas - so considerados baianos, e no lusitanos ou africanos. Para
tanto, faz uso de acontecimentos histricos que antecedem inclusive o reconhecimento
do Brasil como nao.
Em 1602, quando membros da Ordem de So Bento [na Bahia]propuseram admitir novios pertencentes gente brasiliense denaso, a iniciativa foi sumariamente rejeitada. O que interessa nesteepisdio , em primeiro lugar, a desconfiana dos beneditinos nashabilidades dessa gente, mas tambm o fato de que essas pessoas deorigem mista eram definidas pelo lugar em que haviam nascido, nocaso, o Brasil, e que esse lugar estava sendo usado como critrio paradefinir sua etnicidade. Este o primeiro momento, tanto quanto me dado entender, em que se considera o fato de se ter nascido no Brasilcomo elemento que define a identidade e como elemento precursor danacionalidade (SCHUARTZ apudRISRIO, 2004: 425).
Para o antroplogo Darcy Ribeiro (apud RISRIO, 2004), os mestios
brasileiros mamelucos e mulatos etnicamente pertencem a uma terra de ningum,
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durante o perodo da colnia, por no serem ndios, europeus, ou negros africanos. A
fim de fugir dessa ninguendade, eles se vem impelidos a criar uma identidade tnica
at ento inexistente: a brasileira. Por sua vez, os brancos, ou quase brancos,
pertencentes elite do pas, consideram-se portugueses, pois as terras brasileiras so
propriedade do Reino de Portugal.
A Bahia, por sua vez, ainda que sob o jugo de uma forte hierarquia, no prima
pelo apartesmo. As relaes sociais locais so em sua maioria marcadas por uma
informalidade tal que choca os viajantes europeus oitocentistas. Com amplos espaos de
convvio, negros e mestios podem engendrar mundos culturais paralelos e nutrir-se do
circuito de idias e crena da cultura erudita.
De lance em lance, de trama em trama, esses mestios foram sesentindo, mais e mais genuinamente, filhos da terra em que de fatohaviam nascido. Como rebentos da Bahia. E por esses caminhos foiprincipiando a se configurar, entre ns, um povo (RISRIO, 2004:436).
Naquela poca, a percepo global de pas, existe apenas para a metrpole, j
que, localmente, no se vislumbra a idia de Brasil como nao e da existncia um povo
brasileiro. Essa situao comea a modificar-se apenas com a chegada de Dom Joo VIe sua corte para o Rio de Janeiro em 1808, fugidos das tropas de Napoleo. Nesta
ocasio, cria-se uma situao atpica em que a metrpole tem de curvar-se colnia,
ento sede do imprio portugus. Como conseqncia, a Revoluo Constitucionalista
do Porto pede a independncia das terras do Brasil, em 1820 (RISRIO, 2004).
A proclamao da independncia, em 07 de setembro de 1822 ocorre de maneira
pacfica em todo o pas, com exceo da Bahia. Os lusitanos instalados no Estado
recusam-se a reconhecer a independncia, entrando em guerra contra os nativos. Com avitria baiana, em 02 de Julho de 1823, criado um dos maiores smbolos de identidade
no Estado: a festa de Dois de Julho. As comemoraes pela independncia da Bahia, se
caracterizam por um tradicional desfile, cujo ponto culminante a passagem do
caboclo12. O evento tambm realizado em muitas cidades do interior do estado,
12As comemoraes baianas do Dois de Julho no possuem como centro a figura de nenhum monarca ou
da famlia real e sim da figura nativa do caboclo, legtimo representante dos baianos que lutaram pelaindependncia da Bahia.
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como o exemplo de Lenis, ainda que no se tenha registro da participao daquela
regio na guerrarestrita a Salvador e Recncavo (Idem, Ibidem).
Uma identidade baiana de fato se conforma somente entre o final do sculo XIX
e incio do XX. A proibio do trfico negreiro, por volta de 1850, promove a reduo
substancial da chegada dos africanos, o que contribui para a incorporao sociedade
baiana, dentro de algumas dcadas, dos negros que aqui se encontram.
Com a letargia econmica que toma conta da regio nordeste, assolada pela seca
e pelas arraigadas desigualdades sociais, na primeira metade do sculo XX, dada a
largada para o processo migratrio em direo ao sudeste do pas em busca de melhores
condies de vida. Este xodo torna-se a mola propulsora do estigma13, em relao
aos nordestinos, de ignorantes e inaptos para o trabalho, criado na regio sul e sudeste.
J os negros e mestios da Bahia, mesmo pertencendo ao grupo estigmatizado,
se diferenciam, em parte, dos outros migrantes do nordeste, na medida em que so
vistos como povo extico, dotado de certa realeza, de um ritmo prprio que veio a
gerar o samba -, alm de possuidor de grande autoridade em relao s religies afro
descendentes e de uma beleza e luxria peculiar (MOURA, 2000).
Em sntese, a identidade baiana conforma-se a partir de uma matriz histricatanto como resposta a um estigma, quanto pelo reconhecimento da alteridade em relao
ao outro. O povo da Bahia caracterizadopor artistas, estudiosos, intelectuais e pelos
prprios baianos - como possuidor de uma sensibilidade especfica, marcada pela
ludicidade, pela musicalidade e pela disposio de aproximar a produo simblica da
vida cotidiana.
A hibridizao14 predominantemente afro-lusitana concorre para uma
representao caracterizada pela familiaridade nas relaes pessoais, que vai de
encontro desigualdade social e evita o estranhamento radical; a religiosidade, pea-
chave na conformao dos falares baianos, devido grande tradio oral das religies
13 Segundo Pierre Bourdieu (apud REBOREDO, 2000: 228), os grupos estigmatizados, aos que soatribudas uma pertena determinada a partir de propriedades desqualificadoras que constituem aidentidade social, vem-se fechados numa categorizao que os obriga a destacar o mais positivo da visooferecida pelos outros a fim de conseguir uma classificao minimamente favorvel.14Canclini (1999) se refere hibridizao como um processo de apropriao, pelos diferentes grupos, de
elementos de vrias sociedades. Essa apropriao se d de maneira desigual, atravs da combinao etransformao das diferentes culturas.
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africanas que acrescentam inmeros vocbulos ao idioma portugus; e a sensualidade:
Salvador como plo feminino e negro, com ritmos e comida exticos, objeto de desejo
do homem branco e mais recentemente dos turistas e forasteiros (MIGUEZ, 2002).
um texto construdo, sim, posto que texto, para isto concorrendo otrabalho de um sem nmero de artistas e escritores, como JorgeAmado e Dorival Caymmi, entre os nativos, e muitos outros,incluindo alguns que muito pouco estiveram em Salvador, comoCarmem Miranda e Ari Barroso. E construdo tambm pelos diversossetores do empresariado do turismo e pelas elites que vm ocupando ogoverno estadual e o municipal quase ininterruptamente desde os anossessenta, que souberam captar e re-elaborar o capital simblico dabaianidade na forma de uma propaganda que, ao mesmo tempo,apresenta a Bahia como sede da fruio tropical e moradia de um povofeliz. (MOURA, 2001: 09)
A identidade baiana, porm, no tem origem nesse momento, e sim adquire nova
formatao, na qual as caractersticas convenientes, tanto para o fomento do turismo,
quanto para o grupo poltico que dirige o estado h cerca de trinta anos, so enfatizadas
e reafirmadas. O Produto Bahia aparece, ento, nessa nova perspectiva, com o turismo
intensificando as relaes com o campo cultural atravs das estratgias de marketing da
BAHIATURSA, que oferecem, dentre seus bens simblicos, festas tradicionais baianas
e manifestaespopmodernas, direcionados no s ao pblico local, mas tambm a um
consumidor externo. Da a definio de Bahia for export.
A essa imbricao do Turismo com um mercado da cultura que se vaiconsolidando na cidade de forma crescentemente subordinada a umalgica de indstria cultural, comparecem, como bvio, acomunicao miditizada e a cultura miditica, j presentes noterritrio baiano. E comparecem, no exatamente como novidades,uma vez que, desde os anos 1970 as aes de marketing daBAHIATURSA vinham se utilizando largamente das possibilidadesabertas por estes dois campos, em especial, recorrendo s tcnicas domerchandisingtelevisivo (MIGUEZ, 2002: 252).
A televiso, ao acompanhar os fluxos em prol da valorizao do local, cumpre
um papel importante na formatao de uma nova identidade baiana. Neste projeto,
destaca-se a TV Bahia, emissora pertencente famlia do senador Antonio Carlos
Magalhes e retransmissora da programao da Rede Globo de Televiso. Os motivos
da adeso concepo, principalmente governamental, de baianidade, so diversos.
Entre eles, sobressai a emergncia contempornea de uma regionalizao que promova
identificao com o pblico. Interessa Rede Bahia grupo empresarial ao qual a
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emissora pertence -, no s o desenvolvimento do Estado, como a manuteno dostatus
quo baiano que a beneficie atravs da participao e apoio s suas mais variadas
propostas, alm da extensa publicidade veiculada.
A Televiso Educativa da Bahia, por sua vez, se preocupa em promover a
identidade baiana de forma mais ampliada. Em sua programao, alm da nfase em
aspectos como a cultura afro-baiana - as religies, as festas, a capoeira, a msica, etc.
verifica-se o destaque de manifestaes culturais de outras regies da Bahia com sua
variedade de tecidos antropolgicos e sua diversidade de processos civilizatrios
(MIGUEZ, 2002: 23).
A TVE se caracteriza pela difuso de uma nuana da cultura baiana que se
diferencia, de certa forma, da cultura tradicionalmente promovida pelos meios de
comunicao baianos hegemnicos e campanhas voltadas para o turismo. A Bahia
exibida pela emissora, embora expanda seu raio e atuao por diversos modos de ser
baianos, no avana no sentido de enfatizar possveis tenses e conflitos. Apenas so
priorizados os aspectos festivos de um estado bero de culturas, com suas tradies,
ritos, danas e folguedos.
Atravs das mais diversas contribuies culturais, miditicas, polticas artsticase histricas, a identidade baiana se forma e se estabelece. Tambm na Galcia o
processo de constituio da identidade funciona com bastante eficcia, ainda que de
maneira diferenciada da baiana, devido sua grande antecedncia histrica e ao peso de
manifestaes da cultura regional como o idioma, que desde a formao da nao
espanhola, sofreu perodos de represso e constante desvalorizao por parte do poder
central.
2.2.4 Desde a Gallaecia at a Galeguidade15
Como a identidade um construto frequentemente submetido aos processos
histricos, o estudo da identidade galega se volta busca das bases de formao do que
15O termo Galeguidade escolhido como representante da identidade galega aps verificao de seuuso por estudiosos do tema (REBOREDO; BARAMENDI. 2000; 2000) e, principalmente, porque guardasimilaridades com o termo local baianidade. Alm disso, trata-se do ttulo de um programa da Televisin
de Galicia, que aborda a temtica da imigrao, tendo sido o primeiro a ser emitido regularmente viasatlite pela TVG, em dezembro de 1994.
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se convenciona chamar Galcia. Nesse sentido, a noo de territrio faz-se presente,
tendo em vista que os grupos tnicos originrios da velha Europa, salvo raras excees,
contam com um referente territorial definido de maneira relativamente precisa
(REBOREDO, 2001).
No perodo castro-romano, so abundantes as referncias Gallaeciagrande
regio que abarca os territrios onde hoje esto as comunidades espanholas da Galcia,
Len e Astrias, alm de Portugal. Seus habitantes so batizados pelos romanos como
galaicos e stures (GONZLEZ REBOREDO, 2001). Entre os sculos VIII e XI, o
termo Galcia passa a ser aplicado a um territrio de fronteiras semelhantes s atuais,
de modo que esta definio deixa de ser meramente administrativa para cobrir-se de
significado geogrfico, poltico, populacional e antropolgico (PREZ, apud
GONZLEZ REBOREDO, 2001).
A partir do sculo XI, tnues e sucessivas divergncias geram as divises de
territrio responsveis pela atual configurao. Desde que se perfila o condado de
Portus Cale, entre o Rio Minho e o Mondego, inicia-se um processo de distanciamento,
tanto poltico como cultural, entre o norte e o sul do velho territrio dos galaicos. No
sculo XII, essa diviso j aparece consolidada. Em documentos do perodo, o Rio
Minho aparece como um marco fronteirio entre Portugal e Galcia, como nos dias de
hoje (GONZLEZ REBOREDO, 2001).
Alm do trao territorial, tambm o idioma pode ser considerado um acentuado
demarcador de uma identidade especfica. Mesmo que o galego lngua derivada do
antigo tronco galaico-portugus - no se restrinja unicamente s fronteiras da
Comunidade Autnoma, sua permanncia e conservao tornam se um ponto a mais de
reafirmao identitria.
Desde a primeira metade do sculo XII, so encontrados registros da existncia
de seres humanos denominados como galegos emcontraposio a outros, chamados
portugueses, leoneses, castelhanos16, etc. Dentre as fontes utilizadas para tal assertiva,
destaca-se a Historia Compostelana, escrita por religiosos vinculados Igreja do
16 Os castelhanos so as pessoas originrias da provncia da Castela , na Espanha. Essa denominao
passa a indicar, pela centralidade da provncia nos acontecimentos histricos, o idioma espanhol e osespanhis em geral.
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apstolo Tiago, durante o perodo de influncia de um dos personagens mais destacados
da histria galega, o arcebispo Xelmrez (GONZLEZ REBOREDO, 2001).
No entanto, de acordo com o antroplogo galego, Justo G. Beramendi (2001),
em seu texto Os usos ideolxicos da etnicidade. Comparacin dos nacionalismos
galego e espaol,a primeira conscincia nacional surgida na Galcia a espanhola e
no a galega, embora seja evidente a diferena entre lngua, costumes, cultura popular,
etc., dos habitantes da comunidade autnoma, e das outras unidades histricas da Coroa,
no final do sculo XVIII. Esse fato se deve grande castelhanizaodos grupos sociais
superiores galegos que, desde o sculo XVI, no assumem a identidade regional,
comumente vinculada s classes mdias e pobres e aos campesinos.
Esta valencia de marcador social negativo intensificaranse aindamis no decurso do sculo XIX, coa introducin e xeneralizacin,ainda que deficientes, dos mecanismos de nacionalizacin e
socializacin en clave espaola do estado liberal e tamn coaorientacin da emigracin cara a tantos outros territorios do proprio
Estado como a pases de lingua e cultura oficial orixinariamentecastels. Isto far que, paradoxalmente, a etnicidade galega funcione contrario, como poderoso inhibidor da implantacin social amplade calquera idea de nacin galega centrada precisamente nas
peculiaridades etnolingsticas17(BERAMENDI, 2001: 298).
A identidade pr-nacional espanhola fruto de uma srie de aes em prol da
unificao, desde o perodo do chamado Antigo Regime18, dentre as quais, a
generalizao do castelhano nos usos pblicos e intelectuais, com a imposio do ensino
do idioma e a proibio de que se publiquem livros em outras lnguas; a uniformidade
religiosa em torno do catolicismo; e a extenso das instituies polticas e de direito
pblico maior parte dos territrios da monarquia. Em relao ao exterior, a apario
dos estados modernos e a constncia de confrontos com outros estados na Europa e
17Esta qualidade de marcador social negativo se intensificar ainda mais no decurso do sculo XIX, coma introduo e generalizao, ainda que deficientes, dos mecanismos de nacionalizao e socializaofundamentalmente espanhola do estado liberal e tambm com a orientao da emigrao a tantos outrosterritrios do prprio Estado, como a pases de lngua e cultura oficial originariamente castelhanas. Istofar que, paradoxalmente, a etnicidade galega funcione ao contrrio, como poderoso inibidor daimplantao social ampla de qualquer idia de nao galega centrada precisamente nas peculiaridadesetnolingsticas (traduo da autora).18 Antigo Regime o termo utilizado pelos revolucionrios franceses para designar os sistemasmonrquicos de modelo similar ao francs, antes da revoluo de 1789. Na Espanha, este sistema de
governo que se origina na Idade Mdia e caracterizado pelo poder absoluto do rei e diviso dasociedade em estamentos - perdura at o incio do sculo XIX.
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Amrica provocam a propagao de esteretipo pr-nacionais na Europa dos sculos
XVI-XVIII (BERAMEDI, 2000).
Apesar de todas estas medidas, as identidades no castelhanas presentes na
Espanha sobrevivem com bastante fora. Isso se deve ao carter pluritnico e grande
diversidade territorial das instituies do pas, principalmente em relao aos idiomas e
aspectos materiais e simblicos das regies. J a religio, sempre catlica, aparece como
uma exceo nesse contexto. Assim, pode-se afirmar que
existin numerosas identidades tnicas en sentido estricto, cun maioro menor grao de extensin social respecto da etnicidade castel, queera a de referencia para o protonacionalismo espaol. (...) Pero moi
significativo que nin a etnicidade, nin as peculiaridades institucionais
previas, nin a suma de mbolos dous factores sexan no futurocondicins suficientes, mais si necesarias, para o desenvolvementodun nacionalismo alternativo espaol. Como sabemos, isto socorrer en Catalua, Pas Vasco e Galicia antes da Guerra Civil19(BERAMENDI, 2001: 290).
Durante as guerras napolenicas (1808-1814), que submetem a Espanha ao
poder de um imperador estrangeiro, duas correntes nacionalistasuma de continusmo
e colaborao com o regime francs e outra que implica a mutao do
protonacionalismo ao nacionalismo liberal espanholadquirem particular relevncia e
se sobrepem s identidades regionais. Com a derrota francesa, o nacionalismo liberal
ganha fora, atravs da legitimidade do novo sistema, e utiliza como base para sua
expanso uma vasta historiografia espanholizadora. A lngua castelhana novamente
promovida como instrumento de nacionalizao (BERAMENDI, 2001).
A consolidao do estado liberal moderno, em meados do sculo XIX, gera uma
situao contraditria: ainda que a identidade nacional espanhola fosse monoplica em
todo o territrio do Estado, as identidades chamadas tnicas se reforam e comeam a
ser utilizadas em revivais ideolgicos-culturais, incluindo o galego. Condicionado pelo
processo poltico no estado espanhol, surge o galeguismo, movimento que possui trs
19 Existiam numerosas identidades tnicas, no sentido estrito, com maior ou menor grau de extensosocial voltada etnicidade castelhana, que era a de referncia para o protonacionalismo espanhol. (...)Porm, muito significativo que nem a etnicidade, nem as peculiaridades institucionais prvias, nem asoma de ambos os fatores sejam, no futuro, condies suficientes, mas sim necessrias, para o
desenvolvimento de um nacionalismo alternativo ao espanhol. Como sabemos, isto s ocorrer naCatalunha, Pas Basco e Galcia antes da Guerra Civil (traduo da autora).
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etapas: o provincialismo, de 1840 a 1885; o regionalismo, de 1885 a 1915, e o
nacionalismo de 1916 em diante (OBELLERIO, 1997).
Na fase provincialista, o galeguismobaseia-se principalmente na exaltao da
Galcia e de seu povo, em protesto ao estigma imposto pelos castelhanos. No se
verifica, ainda, a assuno de uma Galcia dotada de nacionalidade prpria. A
publicao do livro Cantares gallegos, de Rosala de Castro, em 1863, impulsiona o
Rexurdimento Literrio, ou seja, o ressurgimento de uma literatura no idioma galego,
acompanhado pela afirmao de uma historiografia regional e pela tentativa de
consolidao do jornalismo impresso em galego (Idem, ibidem).
J o regionalismo tem Manuel Murgua, como principal expoente. Trata-se de
um perodo formado por diversas correntes ideolgicas que possuem em comum a
crena da Galcia como uma nacionalidade com direito a recuperao e defesa de seus
sinais de identidade culturais e lingsticos e a autonomia poltica. A fase
nacionalista, por sua vez, conta com o intelectual Vicente Risco como idelogo e
busca a essncia da nacionalidade galega na etnicidade e na exaltao de um modo de
vida especfico (BERAMENDI, 2001).
O movimento galeguista, no entanto, encontra-se reduzido a um pequeno grupode profissionais liberais, estudantes e intelectuais, at 1931, quando proclamada a II
Repblica e se multiplicam os partidos nacionalistas. Em 1936, o Estatuto da
Autonomia aprovado no parlamento galego, mas com o incio da guerra civil e com o
golpe militar, o documento perde sua validade (OBELLERIO, 1997).
O perodo do ps-guerra pode ser considerado como tempos difceis para a
cultura galega. Para as comunidades autnomas, a ditadura franquista significa uma
forte tentativa de bloqueio a toda e qualquer expresso de uma cultura diferenciada, doque se convenciona chamar identidade espanhola, caracterizada pela tentativa de
eliminar sistematicamente as lnguas e culturas nacionais. Na Galcia, bastante
significativo deste perodoslogansdo tipo Gallego, no seas brbaro, habla la lengua
del Imperio.20(ALONSO FERNNDEZ, 1997: 389).
Esta situao comea a se modificar apenas a partir dos anos cinqenta, com a
fundao da editorial Galaxia.Os exilados polticos e emigrantes tambm contribuem
20 Galego, no seja brbaro, fale a lngua do Imprio (traduo da autora)
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para o soerguimento da cultura e da lngua galega ao seguir escrevendo, editando jornais
e realizando programas de rdio em galego, em um esforo coletivo sem precedentes,
em prol da manuteno da cultura. O resultado foi a ampliao do nacionalismo galego
(Idem,Ibidem).
De feito, como x dixen, o franquismo tivo a medio prazo efectosparadoxalmente potenciadores do que queria exterminar, pois, emcontra da sa vontade, lexitimou os nacionalismos alternativos edeslexitimou o nacionalismo espaol por identificalo diante damaiora coa prpria dictadura, cs seus crimes e mesmo coa purairracionalidade21(BARAMENDI, 2000: 304).
Desta forma, durante a transio da ditadura para a democracia, os caminhos
interrompidos na II Repblica apontam para o reestabelecimento dos partidos, inclusive
os nacionalistas, e a instaurao de instituies governamentais autnomas. Alm disso,
a instituio da Televisin de Galcia representa um importante passo para a
preservao da cultura galega, levantando como principal bandeira a normalizao
lingstica, atravs da emisso em idioma galego de quase 100% de sua programao.
No entanto, para compreender melhor de que maneira a televiso se desenvolve
e se relaciona com a cultura da sociedade, na regio em que se encontra, opta-se por
uma rpida incurso na histria do breve sculo XX.
21 Efetivamente, como j foi dito, o franquismo, em mdio prazo, teve efeitos paradoxalmentepotencializadores do que queria exterminar, pois, ao contrrio do que se desejava, legitimou os
nacionalismos alternativos e deslegitimou o nacionalismo espanhol por sua identificao, pela maioria,com a prpria ditadura, com seus crimes e mesmo com a pura irracionalidade (traduo da autora).
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3 O SCULO DA TV: PERCURSO HISTRICO E CONTEXTO ATUAL
No se sabe precisar ao certo como surge a televiso, um dos inventos mais
fascinantes do sculo XX. Fruto de uma srie de pesquisas e descobertas, este meio de
comunicao - criado entre as dcadas de 1920 e 1930 e consolidado mundialmente
aps o fim da Segunda Guerra - implica diversas mudanas nos modos de socializao,
comportamentos e rotinas da sociedade.
O sculo XX escolhido como recorte histrico para a descrio das sociedades
estudadas, por tratar-se de um perodo que abrange o nascimento do meio televisivo e
sua legitimao como aparato imprescindvel configurao da sociedade atual. Esse
itinerrio, portanto, se inicia por volta dos anos trinta, devido opo de enfatizar a
evoluo das sociedades de consumo, nos pases onde as emissoras estudadas se
desenvolvem, tendo em vista que seu estabelecimento delineia-se como uma condio
sine qua nonpara a ocorrncia do avano global dos meios de comunicao de massas,
dentre os quais a TV emerge como principal cone.
As regies abordadas neste trabalho, a Bahia e a Galcia, pertencem a contextos
geogrficos, populacionais e histricos distintos. O estado da Bahia possui um territrio
de 564.692,669 Km e contingente populacional de cerca de 13 milhes de habitantes,
distribudos em 415 municpios (IBGE, 2000). A Comunidade Autnoma de Galcia,
por sua vez, possui 29.574,4 Km de rea, e apenas 2.760.000 habitantes (IGE, 2005),
populao semelhante da capital baiana, Salvador. O pas galego dividido em quatro
provncias: Ourense, Pontevedra, Lugo e A Corua22, onde est a capital Santiago de
Compostela. As lnguas oficiais da Galcia so o galego e o espanhol.
Mesmo com este significativo descompasso populacional e territorial, opta-se
pela manuteno de toda a regio da Bahia, quando possvel, e no apenas a capital e
sua regio metropolitana, tendo em vista que esta investigao inclui as estratgias
comunicacionais e polticas da Televiso Educativa da Bahia, que possui como maior
slogana promoo da diversidade cultural do estado.
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Segundo grafia em galego a provncia denomina-se A Corua, embora a grafia espanhola La Coruaseja a mais conhecida.
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3.1 Brasil: BahiaO Brasil da dcada de 1930 enfrenta um perodo de renovao poltica e
econmica. Uma ciso entre as oligarquias agrrias paulista e mineira provoca o fim da
Repblica Velha, quando uma aliana temporria entre as faces burguesas
desvinculadas do caf - maior produto de exportao brasileiro -, as classes mdias e o
setor militar tenentista levam o poltico gacho Getlio Vargas ao poder (KOSHIBA e
PEREIRA, 2004).
No campo econmico, o esgotamento do modelo agroexportador iniciado
durante a Primeira Guerra Mundial, culminando com a crise que assola o mundo aps o
crashda bolsa de Nova Iorque, em 1929. A desvalorizao sem precedentes do caf
obriga o governo a adotar medidas visando reerguer a economia nacional. Alm da
manuteno da renda atravs da destruio de milhares de toneladas de gros para
minimizar os efeitos da superproduoa mquina estatal adota medidas de incentivo e
proteo incipiente indstria nacional, como a desvalorizao da moeda e a expanso
da indstria de base (GREMAUDI, VASCONCELOS e TONETO JR., 2002).
No entanto, somente durante o perodo conhecido como Estado Novo, ditadura
instituda pelo ento presidente Getlio Vargas, de 1937 at 1945, que a indstria
comea a exercer uma influncia significativa na economia brasileira. Sob uma bandeira
nacionalista, Vargas amplia os investimentos na indstria pesada para viabilizar a
substituio de importaes de bens de consumo durveis. O pas inicia um perodo de
reconfigurao, modernizando-se em diferentes setores. Entre as principais mudanas,
possvel destacar o aumento gradativo da urbanizao, a expanso da classe operria e
das camadas mdias, o crescimento populacional e o desenvolvimento do setor tercirio
em detrimento do agrrio. (ORTIZ, 1998).
Embora aumentem o grau de concentrao de renda, essas transformaes
implicam uma melhoria significativa dos indicadores sociais, como a queda da taxa de
analfabetismo e o aumento da expectativa de vida. O perodo de industrializao atinge
seu auge em meados da dcada de 50, com o governo de Juscelino Kubitscheck
(GREMAUDI, VASCONCELOS e TONETO JR., 2002).
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A industrializao responsvel pelo incremento da economia nacional, mas
continua restrita a determinados setores e, para a cultura em especial, desenvolve-se de
maneira ainda mais lenta, motivada pela incipincia do mercado. O rdio, por exemplo,
ainda que esteja organizado em termos comerciais desde 1935, se expande apenas na
dcada de 50, influenciado pela legislao de 1952, que aumenta de 10% para 20% o
percentual de publicidade permitido. Esse meio, apesar de ser o mais popular do pas na
poca, exclui grande parcela da populao (ORTIZ, 1998).
Mesmo atravessando um processo de tentativa de unificao poltica, motivado
pela Revoluo de 30 e pelo Estado Novo, o Brasil da dcada de cinqenta no possui
ainda a integrao cultural nos moldes de uma sociedade de massa na qual
imprescindvel um centro onde se agrupem as instituies legtimas. Tambm a
descentralizao dos plos econmicos e sociais contribui para o fato de que a
construo da identidade nacional brasileira seja considerada apenas um projeto.
Em relao ao Brasil, a Bahia possui um atraso de duas dcadas na consolidao
das transformaes em marcha no pas desde 1930. Aps viver pesadamente o estigma
do atraso e conservadorismo, o estado fomenta um fluxo de produo cultural altamente
cosmopolita e vanguardista, a partir de 1950, no qual a Universidade da Bahia23tem um
significativo papel. Entre outras aes, a instituio, atravs da contratao de
professores estrangeiros, promoveu o intercmbio de civilizaes, oxigenando diversas
reas do conhecimento nos campos das artes e das cincias que certamente vieram
contribuir, de uma maneira geral, para a emergncia de um ambiente de positividades
(RUBIM. L., 1999).
Neste contexto, tambm se destacam outras manifestaes culturais da cidade
como as jogralescas e a revista Mapa, movimentos liderados pelos estudantes
secundaristas (dentre eles o cineasta Glauber Rocha), e o Clube de Cinema da Bahia. O
mesmo acontece no aspecto econmico, com a instalao da Petrobrs e a adoo de
polticas governamentais de incentivo industrializao, que trazem o desenvolvimento
para o estado (Idem,Ibidem).
23A atual Universidade Federal da Bahia (UFBA)
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O ciclo virtuoso da renascena baiana, no entanto, possui curta durao,
chegando ao fim no incio da dcada de 1960. O vazio cultural24 se instala no estado
com uma antecedncia de dez anos em relao ao resto do pas. Essa interrupo se
deve, segundo o estudioso Paulo Miguez (2002), combinao de pelo menos quatro
elementos: o golpe militar em 1964, que provoca o xodo dos artistas locais, seja para
fugir da represso, seja para buscar alternativas de mercado para a produo; o
afastamento de Edgar Santos da reitoria da Universidade da Bahia, diminuindo a
agitao vivida pela instituio; a modernizao urbana de Salvador, que desloca o
movimento cultural do centro da cidade para diversos pontos da orla martima e, por
ltimo, as transformaes sofridas pelo campo cultural25 baiano e brasileiro,
caracterizadas pela centralidade da produo da cultura no eixo Rio-So Paulo.
Referimo-nos consolidao de um campo de indstria cultural quetendo a televiso como ponta de lana e o Centro-Sul do pas comoplo centralizador e irradiador, vai reconfigurar a cultura e a sociedadebrasileiras no seu conjunto. Com efeito, a metade dos anos 1960 noBrasil marca um trnsito de uma cultura de cariz escolar-universitriopara uma cultura midiatizada, uma cultura com padres de organizaoeconmica e valores estticos prprios (MIGUEZ, 2002: 208).
Essa reconfigurao da sociedade brasileira a qual se refere o estudioso Paulo
Miguez (2002) se d a partir do golpe militar de 31 de maro de 1964, que depe o
ento presidente Joo Goulart. Temerosos com a grande instabilidade poltica
caracterizada pelo avano das manifestaes promovidas pelas organizaes populares
no incio da dcada, as elites conservadoras e os oficiais militares - apoiados pela classe
mdia e pela igreja - implantam uma ditadura com durao de mais de vinte anos.
O novo regime, institucionalizado em 1968 com o decreto do Ato Institucional
n.5, confere poderes extremos ao Executivo como o de fechar o congresso, cassarmandatos, baixar leis em quaisquer esferas, etc. , estabelece o fim do
pluripartidarismo, impe a censura aos meios de comunicao e persegue os dissidentes,
24Nacionalmente, os primeiros anos da dcada de 70 foram denominados pelos estudos sobre culturabrasileira como vazio cultural, em funo do grande esmaecimento do fluxo criativo nacional a partir dodecreto do Ato Institucional n. 5, que provocou o aumento da censura e da represso sociedade civil(RUBIM, A. apudMIGUEZ, 2002).25O conceito de campo culturalremete, inevitavelmente Pierre Bourdieu, responsvel por desenvolveruma teoria geral dos campos para o entendimento de processos sociais. A noo de campo se refere aum espao social de relaes objetivas que permite identificar, nos mais diversos domnios da vida
social (cultura, economia, religio, artes plsticas, etc.), quais os traos prprios de todos os campos equais os especficos de cada um deles (BOURDIEU apudMIGUEZ, 2000: 161-163).
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atravs de um forte esquema de represso e do sistema de inteligncia nacional
(KOSHIBA e PEREIRA, 2004).
Economicamente, o Brasil atravessa um perodo de crescimento indito,
motivado pela boa situao econmica mundial e pelo endividamento externo. O
milagre brasileiro, como fica conhecido, dura at o incio da dcada de setenta e
decorre das reformas institucionais e da recesso do momento anterior com a crise do
populismo e o longo perodo de instabilidade poltica -, que geram uma capacidade
ociosa da indstria nacional, alm do crescimento da economia mundial, permitindo a
superao das taxas histricas de crescimento (GREMAUDI, VASCONCELOS e
TONETO JR., 2002).
A dcada seguinte marcada pela transio pacfica do regime militar para a
democracia, pela elaborao da nova constituio em 1988 e por um ciclo de crises
econmicas que assolam o pas, marcadas principalmente pela hiperinflao. O
pesquisador Albino Rubim, define com clareza aquele momento histrico:
A transio (lenta e gradual, como se dizia na poca) para ademocracia no pas foi marcada por enormes limitaes e inmerasambigidades. A derrota do movimento das Diretas J, em 1984,oferece um exemplo notvel dos compromissos da transio pelo alto,
ento realizada. O produto acabado dessa transio conservadora foi a(auto)proclamada Nova Repblica, em cujo governo, comandadopor Tancredo Neves e depois Jos Sarney, conviviam ilustrespersonalidades e foras que serviram fielmente ditadura e sujeitospolticos que contra ela lutaram, empenhando-se na democratizaodo pas (RUBIM. A., 2001: 109).
Na dcada seguinte, o plano real, implantado pelo ento Ministro da Fazenda
Fernando Henrique Cardoso (FHC) consegue debelar a hiperinflao custa de um
rgido controle dos gastos pblicos e da prtica de juros altos, culminando na eleio de
seu criador para a presidncia da repblica em 1994 e posterior reeleio em 1998
(KOSHIBA e PEREIRA, 2004).
3.1.1 A televiso no Brasil
A televiso chega ao Brasil por intermdio do empresrio Assis Chateubriand,
que, na dcada de 40, compra uma emissora da Radio Corporation of Amrica(RCA),
nos Estados Unidos. Apesar da implantao desta mdiaser considerada prematura por
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uma pesquisa encomendada aos americanos, a TV Tupi, pertencente aos Dirios
Associados, inaugurada de maneira precria e improvisada em setembro de 1950, no
estado de So Paulo, com quadro profissional oriundo, em sua maioria, do rdio
(VALIM e BIONDO, 2002).
Para que se tenha uma idia, pouco antes da inaugurao da emissora, o tcnico
americano responsvel pela sua instalao percebe que no h, no pas, aparelhos
televisivos para captar as imagens a serem transmitidas. Ciente da demora no processo
de importao, Chateubriand contrabandeia 200 televisores e os instala pela cidade em
lojas, bares e no saguo da emissora, onde a multido espera para ver a novidade. Um
ano depois, j existiam mais de sete mil aparelhos entre o Rio de Janeiro e So Paulo
(GONALO JNIOR apudMATTOS, 2000).
A TV passa ento a fazer parte do projeto de construo nacional. A
incipincia do mercado - devido a fatores como o alto custo dos aparelhos receptores e a
precariedade do empreendimento, ainda sem concorrentes - se evidencia pelos anncios
da poca que, ao invs de convencer o espectador da qualidade do produto, expressam
um discurso pedaggico em tom interpelativo, em prol da necessidade de modernizao
do Brasil:
Voc quer ou no quer a televiso? Para tornar a televiso umarealidade no Brasil, um consrcio rdio-jornalstico inverteu milhesde cruzeiros. Agora a sua vez qual ser a sua contribuio parasustentar to grandioso empreendimento? Do seu apoio depender oprogresso, em nossa terra, dessa maravilha da cincia eletrnica. Baterpalmas e aclamar admirativamente louvvel, mas no basta seuapoio s ser efetivo quando voc adquirir um televisor (SIMESapudORTIZ, 1998: 60).
Em 20 de janeiro de 1951, inaugurada a TV Tupi Rio, a segunda emissora dos
Dirios Associados, condomnio de empresas de comunicao, sob a tutela de
Chateaubriand. A programao, neste perodo, produzida localmente e ao vivo. No
final da dcada de 1950, j existem outras oito empresas de televiso em funcionamento
inclusive com iniciativas de outros grupos concessionrios (MATTOS, 2000).
Na Bahia, a primeira exibio pblica da TV, ocorre em 1957, em Salvador, com
equipamentos e televisores cedidos por emissoras de outros estados. Os aparelhos so
instalados na Praa da S, Rua da Misericrdia e Avenida Sete de Setembro, mostrando
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um programa em circuito fechado, com objetivo de dar credibilidade ao novo meio
(CARVALHO, 1989).
Trs anos depois, em 19 de novembro de 1960, inaugurada a TV Itapoan. No
incio, a emissora funciona ancorada em um contingente de profissionais locais e com
produo ao vivo, que valoriza e d visibilidade mo de obra nativa, constituindo-se
um mercado emergente, principalmente para os profissionais das artes cnicas, oriundos
da Escola de Teatro da Universidade da Bahia.
Socialmente, a inaugurao da TV para os baianos, a exemplo de outros estados
brasileiros, no s representa o acesso ao media eletrnico, como tambm significa
status, poder de compra. E, no caso em particular, tudo o que a sociedade metropolitana
mais privilegiada pode desejar. Naquele momento, a televiso especialmente
percebida pela populao como um dos cones mais representativos da modernidade
outrora to escamoteada pela velha cidade que, naquele momento, vive sua
renascena (RUBIM, L. apudVALIM e BIONDO, 2002).
A programao da TV Itapoan, em seus primeiros anos, composta
majoritariamente com material local, transmitido ao vivo26, com destaque para
programas de auditrio e musicais. A inexistncia de tecnologias como a transmissovia satlite e o videoteipe - aparelho que permite a gravao dos programas -, inviabiliza
a utilizao de uma programao nacional. (ROCHA, 2003).
O videoteipe desembarca em terras brasileiras em 1959, chegando Bahia em 18
de novembro de 1961, possibilitando a exibio de programas da Rede Tupi, em cadeia
nacional (FABULOSOS PROGRAMAS..., 1961). As inovaes tecnolgicas
patrocinadas pelo governo militar tambm contribuem para a expanso do sistema de
redes.
Em 1965, ano em que o Brasil se associa ao Sistema Internacional de Satlites
(INTELSAT), criada a Empresa Brasileira de Telecomunicaes (EMBRATEL). Em
1967, configura-se o Ministrio das Comunicaes que, ao reduzir a interferncia das
26Em trabalho anterior, a autora divide a histria da TV baiana em trs etapas: local e ao vivoperodorelativo ao monoplio da TV Itapoan-; a fase da lgica de redesmarcada pela expanso da Rede Globoe centralizao das produes no eixo Rio-So Paulo e, finalmente, a fase do retorno ao localquando as
emissoras reavivam o interesse pelo local, ainda que dotado de particularidades prprias ao contextocontemporneo (ROCHA, 2003).
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empresas privadas, refora a influncia oficial no setor, facilitando a ingerncia poltica
nos meios de comunicao (MATTOS, 2000). No ano seguinte, a rede nacional de
microondas da EMBRATEL e o sistema de transmisso via-satlite so postos em
prtica. Alm disso, a instituio do crdito ao consumidor facilita a compra de
aparelhos televisivos.
A execuo do projeto de integrao nacional comea, ento, a tomar corpo,
no final da dcada de sessenta. As empresas de televiso, em especial a Rede Globo, so
as principais representantes desta poltica, visto que a iniciativa estatal contribui para
criao de um mercado nacional para as telecomunicaes, beneficiando apenas poucas
empresas (BOLAO; ORTIZ, 1988, 1989). Estes anos se caracterizam pelo amplo uso
de programas estrangeiros nas emissoras nacionais por motivos tanto econmicos
quanto polticos, j que os enlatados custam muito menos do que produzir um
programa local e no trazem problemas com a censura (MATTOS, 2000).
Na Bahia, essa nova fase da televiso brasileira iniciada em 1969, com a
inaugurao da segunda emissora baiana a TV Aratu, retransmissora da Rede Globo. A
estri