CURRCULO OCULTO

HISTEDBR - Grupo de Estudos e Pesquisas Histria, Sociedade e Educao no Brasil

Anais do IV Seminrio Nacional142

143

CURRCULO OCULTO PARA A SELETIVIDADE NA LEGISLAO DO ENSINO BRASILEIRO

Ailse Therezinha Cypreste Romanelli Universidade Federal do Esprito Santo / UFES. Rua Porto Alegre, 229. Praia de Jacarape. 29.173-120 / Serra Esprito Santo

RESUMO

Neste estudo so analisados os textos das vrias leis do ensino no Brasil, no perodo que vai de 1930 a 1971, especialmente a organizao didtica e o sistema de avaliao, tentando localizar a existncia de elementos de um currculo oculto para a seletividade. Quando a educao brasileira se estruturou como sistema, a filosofia que norteou essa sistematizao foi uma filosofia da excluso, expressa claramente nos dispositivos legais. Com o correr dos anos, depois de vrias reformas e novas leis de ensino, a tendncia permaneceu, impregnando todo o processo pedaggico. Mesmo quando o conceito de educao como um direito de todos parece estar plenamente aceito e os princpios constitucionais apontam para a universalizao da educao bsica, a prtica revela que os sistemas de avaliao no evoluram, tendo servido ao exerccio do poder, apresentando-se como seletivos e punitivos, conduzindo os alunos ao fracasso e ao abandono dos estudos.Inicialmente define-se o que vem a ser o currculo oculto e de que maneira ele se forma e desenvolve; a seguir, tomando-se como marcos de referncia o advento das principais leis de ensino promulgadas nos ltimos sessenta anos, procura-se mostrar como evoluiu o currculo oculto para a seletividade, a partir das disposies explcitas nos documentos legais, inerentes a um dado conceito de escolarizao, caracterstico de um determinado momento histrico. A anlise dos dispositivos legais mostrou que ali se reflete uma ideologia que alimenta a chamada cultura da reprovao, determinando a excluso de um vasto contingente de crianas e jovens, mediante sistemas de avaliao fortemente seletivos e currculos elaborados por e para determinados grupos dentro da sociedade.

TEXTO COMPLETO

Introduo

Sempre que se discute a funo da escola o fracasso unanimemente apontado como o problema mais grave e de difcil soluo, permanecendo como um desafio constante aos pedagogos. J no se trata apenas da m conduo do ensino mas de uma verdadeira cultura da reprovao, o reafirmar de uma forma de educao excludente em que a avaliao, como parte do desenvolvimento do currculo, representa um papel preponderante.Sabe-se que o currculo representa, ele prprio, um conjunto de prticas, valores, expectativas e motivaes que se constituem no centro de toda atividade escolar. Flui da produo cultural da sociedade, num dado momento histrico, sob a forma de assertivas sobre aquilo que se deve ou no ensinar s crianas, e como deve ou no, ser conduzido o processo educacional. Todavia, o currculo, enquanto processo que se operacionaliza em sala de aula, traz subjacente uma forma oculta, identificada por Jackson e descrita por Apple como um conjunto de normas e valores implcitos e efetivamente transmitidos pela escola, embora no constem dos fins e objetivos programados pelos professores (Apple, 1982, pg. 127).Este trabalho se prope a analisar historicamente a seletividade, uma presena constante na educao brasileira, como uma das manifestaes do currculo oculto, considerando que, apesar de todo um discurso pedaggico de democracia e de universalizao do ensino, os professores continuam classificando, rotulando e estratificando a populao estudantil.Quando a educao brasileira se estruturou como sistema, ainda nos anos 30, a filosofia que norteou essa sistematizao foi uma filosofia da excluso, expressa claramente nos dispositivos legais. Com o correr dos anos, depois de vrias reformas e novas leis do ensino, a tendncia permaneceu, impregnando todo o processo pedaggico. Mesmo quando o conceito de educao como um direito de todos parece estar plenamente aceito e os princpios constitucionais apontam para a universalizao da educao bsica, a prtica revela que os sistemas de avaliao no evoluram, tendo servido ao exerccio do poder, apresentando-se como seletivos e punitivos, conduzindo os alunos ao fracasso e ao abandono dos estudos. Inicialmente define-se o que vem a ser o currculo oculto e de que maneira ele se forma e desenvolve; a seguir, tomando-se como marcos de referncia o advento das principais leis de ensino promulgadas nos ltimos sessenta anos, procura-se mostrar como evoluiu o currculo oculto para a seletividade, a partir das disposies explcitas nos documentos legais, inerentes a um dado conceito de escolarizao e caractersticas de um determinado momento histrico que, sedimentadas ao longo do tempo, tornaram-se implcitas atividade escolar, constituindo-se posteriormente em uma espcie de ao residual que permeia a atmosfera das salas de aula, criando um sistema sutil de aprendizagens e prticas excludentes, adquiridas e implementadas, sem que os professores tomem conscincia do fato.

O Currculo Oculto

Pode-se definir currculo oculto da escola como o conjunto de normas sociais, princpios e valores transmitidos tacitamente atravs do processo de escolarizao. No aparece explicitado nos planos educacionais, mas ocorre sistematicamente produzindo resultados no acadmicos, embora igualmente significativos. Em certo sentido, representa a operacionalizao - ainda que no declarada - da funo social de controle que a escolarizao exerce (Vallance, apud Giroux, 1986, p. 71).A expresso currculo oculto tambm pode ser usada para caracterizar o conjunto das experincias vivenciadas pelas crianas antes que se transformem em alunos, representando um reflexo de seu universo cultural. Neste trabalho, porm, o termo est associado ao processo escolar, na tentativa de descrever e analisar de que maneira repercute na sala de aula aquilo que a sociedade incorporou como legtimo, na ordenao e transmisso do conhecimento.Para um entendimento mais abrangente de como opera o currculo oculto na escola, no espao entre a pedagogia idealizada que se proclama e o que efetivamente realizado na prtica, Giroux prope trs insights essenciais:

As escolas no podem ser analisadas como instituies removidas do contexto scio-econmico em que esto situadas;As escolas so espaos polticos envolvidos na construo e controle do discurso, dos significados e das subjetividades; Os valores e crenas do senso comum que guiam e estruturam a prtica escolar no so universais a priori, mas construes sociais baseadas em pressuposies normativas polticas (Giroux, 1986, p. 70).

As primeiras pesquisas sobre o assunto foram desenvolvidas por Jackson que identificou no ambiente escolar algumas circunstncias propcias ao desenvolvimento do que ele chamou de currculo oculto - a convivncia grupal, a possibilidade de punies e recompensas e o confronto com o poder. Diz Jackson:

... os estudantes aprendem a subjugar seus prprios desejos... aprendem a ser passivos e aceitar a multiplicidade de regras, regulamentos e rotinas em que est mergulhado. Aprende a suportar com serenidade as frustraes... ...e as interrupes de seus desejos e aspiraes sociais (Jackson, 1968, p. 36).

Por sua vez, Apple examina como os significados subjacentes so transmitidos nas escolas e a maneira pela qual alguns valores ocorrentes em determinados contextos polticos e econmicos se tornam os valores dominantes. Por definio de quem? Argui ele (Apple,1982, p. 52 ).Para melhor compreender o processo, ser preciso reportar-se ao incio do sculo e observar a crescente aceitao da funo social de controle atribudo educao escolarizada, sob a influncia do movimento da administrao cientfica, da psicometria e da crena na Eugenia. Tais princpios derivados de uma concepo de educao enquanto promotora de civilizao e mobilidade social, serviram para fundamentar uma escola criadora de valores e ideais democrticos, cuja misso seria desenvolver a comunidade e promover a integrao social ( Carnoy, 1987 p.29). Considerando-se, ainda , o longo perodo de imerso da criana nos cursos regulares, a escola representaria um eficiente instrumento de aculturao pela oportunidade de produo e inculcao de significados necessrios a esse controle social. Como observa Bernstein,

os grupos sociais dominantes dentro de uma sociedade, de uma certa forma procuram regular aquilo que transmitido, e que comporta a ordenao e reordenao de discursos de domnios diversos e que, aps recontextualizados surgem como currculo (Bernstein, apud Domingos, Barradas et alii, 1985).

Esta funo se exerce atravs dos especialistas a quem compete, no s a ordenao e reordenao do conhecimento mas tambm projetar os contornos escolares e desenvolver critrios para a seleo dos significados, com os quais os alunos entrariam em contato.Ao longo do tempo, e como resultado de condies histricas especficas, esses interesses sociais transformam-se em idias correntes sobre pedagogia, sobre o controle institucional, incorporando-se, de alguma forma, ao currculo oficial, mesmo que este, no futuro, venha a sofrer alteraes significativas, decorrentes de mudanas scio-polticas e/ou estruturais. desse modo que disposies normativas, tradies culturais e o conhecimento objetivo que um dia compuseram o currculo explcito, passam a integrar um currculo oculto, sob a forma de modos especficos de pensar, agir e sentir, expectativas sociais e econmicas, aceitas pela sociedade com base no consenso, como estrutura subjacente aos contextos de aprendizagem (Apple, 1982. P. 78). Nesse processo de sedimentao operam duas poderosas foras sociais - a hegemonia e a tradio seletiva. A hegemonia pode ser compreendida como um conjunto de significados, prticas, valores e aes sociais, prprias dos grupos dominantes, que se reforam reciprocamente, na medida em que so experienciados, conferindo realidade um sentido, mas um nico sentido (Williams, apud Apple, 1982 p. 16). Numa certa situao histrica chega a organizar os hbitos e significados do chamado senso comum, com o poder de direcionar indivduos e grupos, tendo como instrumento ideal a escola, via currculo (Torres Santom, 1995, p. 19). A tradio seletiva age ao nvel epistemolgico e de tal forma que alguns contedos e prticas so sempre enfatizados e selecionados como importantes para constar nos currculos, enquanto outros so minimizados ou deixados de lado. Sob a influncia da tradio seletiva, o corpus formal do conhecimento escolar produz e reproduz a hegemonia, fazendo com que certos aspectos da cultura coletiva sejam apresentados nas escolas como conhecimento objetivo. Produz uniformizao e estabilizao dos contextos de aprendizagem e formas de conscincia padronizadas o bastante para aceitar como dados da escolarizao o controle social, o conformismo, as distines de classe gnero e raa, a seletividade (Apple, 1982, p. 125). Na realidade, ao preservar um conhecimento que os especialistas consideram como vlido, a escola nada mais faz do que conferir legitimao aos saberes de grupos determinados e assim, propiciar formas qualitativamente diferentes de educao a alunos de diferentes origens sociais, facilitando, dificultando e/ou impedindo o trnsito e a permanncia desses alunos no sistema. As escolas so espaos polticos modelados, de um lado, pela fora das relaes sociais de poder e, de outro pela prtica escolar e os professores precisam se conscientizar desse jogo de foras para que, atentos ao seu poder de interferncia, possam agir no sentido de minimizar seus efeitos negativos. Para tornar possvel a identificao dos elementos que compem o currculo oculto, dado seu carter de temporalidade, preciso ir alm do cotidiano das salas de aula para investigar as razes histricas, tentando identificar at que ponto esses elementos esto articulados com a realidade legal das prescries oficiais, que modelam e direcionam a atividade pedaggica.

As razes histricas

As lei de educao produzidas no pas marcam determinados perodos, e uma histria da organizao escolar pode ser escrita a partir da anlise desses textos, considerando-se o momento poltico e as foras econmicas que os geraram.. Eles refletem as tendncias pedaggicas ocorrentes (s vezes), e os interesses dominantes(sempre), embora nem sempre o que se encontra prescrito nos textos oficiais tenha chegado ao cotidiano das escolas. No caso da avaliao ocorreu o inverso. Ela no s se efetivou tal como fora proposta, como se perpetuou, transformando-se em caracterstica do sistema em seu aspecto mais contraditrio: uma escola que seleciona impiedosamente, mas produz alunos muito mal preparados. Neste estudo tomou-se como ponto de partida a dcada de 30, quando a Lei Francisco Campos realizou a primeira tentativa de organizar o ensino no Brasil em bases nacionais. Antes dele, no se pode falar de uma poltica nacional de educao quando o que existia eram sistemas estaduais desarticulados, embora uma vigorosa rede de cursos preparatrios direcionasse toda a educao secundria visando aprovao nos exames chamados parcelados.Era o comeo do sculo XX e a grande crise de 29 produziu profundas alteraes sociais. Graas crescente ascenso de uma classe burguesa urbana, voltada para a indstria, a classe latifundiria perdeu parte de seu poder. Paralelamente desenvolvia-se uma classe mdia emergente formada por pequenos comerciantes e funcionrios, tendo como pano de fundo a forte crena generalizada no poder da educao como instrumento de formao do intelecto, promotora de mobilidade social e participao poltica. Dessa forma

a demanda social de educao comeou a aumentar, atingindo as camadas mais baixas da populao e obrigando a sociedade a ampliar sua oferta escolar ... o ttulo de doutor valia tanto quanto o de proprietrio de terras, como garantia para a conquista de prestgio social e de poder poltico (Romanelli, 1984, p. 132).

Nesse contexto, os exames parcelados j no eram suficientes para conter o fluxo crescente dessa classe mdia que buscava um lugar na sociedade atravs dos ttulos acadmicos. O ensino que essa classe procurava era o mesmo oferecido classe dominante, ou seja, a educao das elites rurais, a nica que classificava (Romanelli, 1984, p. 131). O Ministrio da Educao adquiriu grande relevncia poltica e para ocup-lo ningum melhor que Francisco Campos, entusiasta defensor da diferenciao social, que props um plano educacional eminentemente autoritrio e seletivo, necessrio que era controlar, de alguma forma, a ascenso desses grupos emergentes, criando-se uma estrutura descrita por Ansio Teixeira como

um tipo de educao para a ascenso social que no fosse suscetvel de quebrar a estrutura conservadora e aristocrtica da sociedade (Ansio Teixeira, apud Romanelli, 1984, p. 133).

A Reforma Campos estabeleceu um sistema de ensino seriado, com freqncia obrigatria e dividido em dois ciclos de estudos, o segundo deles com finalidades propeduticas e diferenciado em trs ramos, conforme os cursos superiores a que se destinassem os candidatos. A composio curricular era basicamente a mesma que se tem hoje: Portugus, Francs, Ingls, Latim e Alemo (opcional), Geografia e Histria, Matemtica, Cincias, Fsica, Qumica e Histria Natural, Desenho e Msica. Embora tenha tido o mrito de conferir organicidade ao ensino brasileiro, acabando com os parcelados e preparatrios, o projeto apresentava um carter de extrema seletividade, garantida por rgidos e minuciosos processos de avaliao, onde as provas escolares eram tratadas como exames: classificatrias e eliminatrias. Analisando-se o texto legal, v-se que todo o tempo escolar devia ser gasto em provas. Mensalmente eram aplicadas argies e trabalhos prticos, com freqncia obrigatria, atribuindo-se a nota zero quele que no comparecesse, mesmo que por motivo de doena. O ano letivo estava dividido em quatro bimestres e, em cada um deles realizava-se um exame parcial. No fim do ano havia um exame final, sob a forma de prova oral, perante trs examinadores e um Inspetor, figura onipresente em toda a vida da escola. Era uma forma autoritria e carregada de forte conotao punitiva, de exercer um rigoroso controle tcnico da comprovao de que os professores cumpriam os seus deveres e os contedos teriam sido adequadamente adquiridos. Pelo fato de se revestirem de uma prtica ritualstica, os exames encerram uma caracterstica que os distingue de outras formas de avaliao. por meio do seu cerimonial que se define quem detm o poder, qual deve ser o saber legtimo e quem deve ser digno dele (Torres Santom, 1995, p. 46). Em primeiro lugar, vem o arranjo especial da sala de aula: carteiras separadas e rigorosamente alinhadas umas atrs das outras; o papel, timbrado segundo os padres oficiais e o mais absoluto silncio. As provas no podiam ser assinadas para que no fossem identificados seus autores e, depois de corrigidas pelos respectivos professores, deviam ser rubricadas pelo Inspetor e por um representante do estabelecimento, para depois serem remetidas, em pacote lacrado, ao rgo de educao local para serem revisadas, recebendo uma segunda nota. O resultado final, registrado em escala numrica de zero a cem, seria a mdia aritmticas dos dois julgamentos. Exercia-se, assim, um duplo controle: dos conhecimentos dos alunos e da ao dos docentes. O xito no era seu objetivo maior, porque, naturalmente, no estava ao alcance de todos ( Decreto no 21.241, Arts. 36 a 46). Entretanto, a reforma Campos representou uma oferta de escolarizao coerente com o momento histrico que combinava uma demanda social por educao com fatores econmicos, herana cultural e o poder poltico vigente. importante assinalar que se tratava de uma escola absolutamente leiga e cientifista, uma vez que, desde a Constituio de 1891, a religio oficial fora banida e o ensino religioso deixara de ser obrigatrio. Francisco Campos, adepto do Positivismo, projetou em seu programa de ensino sua prpria filosofia de educao A lei Campos incidiu sobre o curso superior, o curso comercial e o secundrio, este ltimo obrigatrio para o acesso Universidade, deixando intocados o ensino elementar, a formao para o magistrio e alguns ramos do ensino mdio profissional dos Liceus de Artes e Ofcios. Dez anos depois, instaurada a ditadura Vargas e o Estado Novo, os princpios que orientaram a lei Francisco Campos consolidaram-se na chamada Reforma Capanema, embora as Leis que a integram no tenham sido todas promulgadas no perodo.Na nova lei, a tnica foi a educao geral. Ao contrrio de Campos que valorizava a formao cientfica, Capanema retoma o humanismo maneira jesuta. Introduz a Educao Militar nas escolas secundrias com programao e diretrizes fixadas pelo Ministrio da Guerra. O Ensino Religioso retornou ao currculo, com regime didtico fixado pela autoridade eclesistica, como contrapartida de Vargas ao apoio que lhe dera a Igreja. A Educao Moral e Cvica foi tornada obrigatria e a Orientao Educacional estava includa com o objetivo da manuteno da ordem e disciplina, produtividade no estudo e ajustamento profissional. A Lei definia, no s a organizao didtica e o regime escolar, mas os prprios programas de ensino, acompanhados de diretrizes metodolgicas mediante portarias especficas. Com os objetivos explcitos de formar slida cultura geral ... servir de base a estudos mais elevados ... formar individualidades condutoras a Lei Orgnica do Ensino Secundrio reproduzia o plano Gentile, da educao italiana no governo de Mussolini ( Decreto Lei 4.244). A lei Capanema fixou-se no Ensino Mdio estruturando-o mediante um conjunto de documentos simtricos - as chamadas Leis Orgnicas, uma para cada ramo do ensino - em cursos estanques e no articulados entre si. Conservou a avaliao rigorosa da legislao anterior com a manuteno da idia de exame, assegurando-se o carter de seletividade da escola. Prope currculos profissionais especializados para os filhos dos trabalhadores, uma nova escola que encaminhava seus alunos a diferentes campos do mercado de trabalho por meio de cursos igualmente diferentes. As intenes no podiam ser mais explcitas desde que a prpria Constituio j havia determinado que o ensino profissional destinava-se s classes menos favorecidas. A filosofia educacional discriminatria prosseguiu com a criao, no mesmo perodo, de um sistema paralelo composto de cursos de treinamento profissional, de carter supletivo, atravs do SENAI e SENAC, empresas hbridas, criadas pelo poder pblico, mas mantidas com recursos da Indstria e do Comrcio. Tais cursos atenderiam, ao mesmo tempo, aos interesses das empresas por mo de obra qualificada e a necessidade de um nvel de escolaridade baixa o bastante para evitar novas presses sociais, continuando o ramo secundrio acadmico a servir como nica via de acesso aos cursos superiores. Reforou-se, mais uma vez, a predominncia dos estudos acadmicos sobre o ensino tcnico, e a educao, anteriormente aristocrtica, um distintivo de classe, aps Campos e Capanema, passou a ser seletiva (Romanelli, 1984, p. 142).Quanto ao ensino fundamental, pela primeira vez desde 1827, mereceu estudo e regulamentao em documento oficial especfico emanado da esfera federal. Como s foi concludo em 1946, aps a ditadura Vargas, beneficiou-se dos ideais democrticos, dos avanos propostos pelos pioneiros ainda nos anos 30. Introduziu a obrigatoriedade escolar, a gratuidade do ensino e at uma certa descentralizao, com a previso de planejamento educacional anual pelos diversos estados. Chegou a inovar, ao determinar a previso de recursos para a implantao do novo sistema de educao primria, mas, ao conservar a idia de exame como forma de avaliao, na verdade ampliou para o nvel elementar o padro de seletividade j incorporado ao ensino mdio ( Decreto Lei 8.529 de 2-1-46). A interferncia do Positivismo foi marcante na elaborao de ambas as leis, no s no enciclopedismo dos programas de ensino como na disposio das disciplinas, segundo a hierarquia proposta por Comte. Outras idias correntes na poca, como o desprestgio das ocupaes que requerem habilidades manuais, a crena na transferncia automtica das habilidades intelectuais e no poder da educao como formador da mente, determinaram uma teoria da escolarizao consagrada na poca e que subsiste hoje na base das regularidades e rotinas da sala de aula. Em Geografia e Histria, decorar listas de dados fortaleceria a memria alm de contribuir para uma slida cultura geral. A Matemtica, uma disciplina importante segundo Comte, sendo de difcil aprendizagem, exercitaria o intelecto, desenvolvendo o raciocnio, o mesmo ocorrendo com a Lgica, a Gramtica e o Latim. Sob a influncia desses fatores, duas ordens de acontecimentos ocorreram, naquele momento, para a fixao do perfil da escola brasileira. Em primeiro lugar, a viso do currculo, legitimado pela avaliao rigorosa, como instrumento de controle a ser exercido pela sociedade poltica sobre as instituies de ensino e, atravs delas, sobre a sociedade civil. Em segundo lugar, a crena nas possibilidades da educao como agente de controle social. O plano de Capanema, autoritrio e seletivo, constituiu-se em ampliao e aperfeioamento da estrutura anteriormente proposta por Campos, ambos implementados e controlados mediante um numeroso corpo de Inspetores de Ensino, prontos a penalizar e desqualificar aqueles que se afastassem do modelo. Em 1961, a educao sofreu nova reforma com a Lei de Diretrizes e Bases, que se apresentou como uma proposta mais democrtica, com a descentralizao do sistema e a liberao dos professores da tutela do poder central. Entretanto, a ideologia da classe dominante j se disseminara o suficiente no sistema escolar. Embora o esprito da letra da Lei afirmasse uma postura mais flexvel e aberta, a estrutura dos cursos permaneceu intocada at na denominao. Os currculos mnimos permaneceram os mesmos, ainda que sem a rigidez de proposta nica para todo o territrio nacional. A palavra exame ainda aparece no texto legal, mas a avaliao, agora a cargo dos estabelecimentos, perdera o rigor com a eliminao das provas parciais e final; recomendou-se a preponderncia dos resultados obtidos durante o ano letivo e manteve-se o exame de 2a poca; finalmente, os professores ganharam certa autonomia, j no sendo mais punidos caso no cumprissem todo o programa.As mudanas pareciam significativas, porm pouca coisa se alterou no regime escolar. A obrigatoriedade do ensino foi mantida mas, ao mesmo tempo em que a Lei determinava sanes para os infratores, abria-lhes a possibilidade de iseno de pena pela insuficincia de escolas, encerramento das matrculas e pobreza das famlias.Props-se liberdade para a organizao curricular mas no se previu a preparao dos recursos humanos em quantidade e qualidade suficientes. Na insegurana perante o novo e na falta de financiamento, foi mais fcil repetir o j conhecido e mais barato. Modificou-se o sistema de avaliao, mas conservou-se a figura do exame, negando-se matrcula ao aluno repetente pela segunda vez. Essa excessiva valorizao do desempenho acadmico no admite qualquer possibilidade de atividades alternativas para os no muito aptos e/ou poucos interessados. Realizaes desportivas ou artsticas que oportunizem a compensao de fracassos continuados esto ausentes da escola, no sendo considerados de valor educativo.Depois de anos de obedincia servil, a sbita autonomia desnorteou os professores. Sem receber qualquer tipo de treinamento ou capacitao, seguiram fazendo aquilo que sabiam fazer, tendo como nica certeza a necessidade de manter os rigores na avaliao como garantia da qualidade do ensino: escola boa a que reprova... Na realidade, a Lei props suas mudanas de modo a que tudo continuasse como antes. O movimento de democratizao do ensino caracterstico das ltimas dcadas, e sua presso pela ampliao da oferta de matrculas e permanncia do aluno no sistema escolar, esbarrou nas foras sociais, econmicas e polticas - a hegemonia e a tradio seletiva - que agem sobre a escola controlando uma possvel mudana social que as novas idias talvez pudessem propiciar. Tais foras produziram a internalizao das normas explcitas, impostas ainda na dcada de 30, modelando a escola pblica que hoje temos e impedindo a plena implantao da Lei de Diretrizes e Bases e da Lei 5692/71. Esta ltima trouxe junto com a idia de profissionalizao, uma proposta mais pedaggica que administrativa; introduziu o conceito de avaliao qualitativa e de recuperao de estudos; abriu a possibilidade de progresso continuada, visando a uma sensvel reduo da seletividade, ao mesmo tempo em que ampliou a faixa da obrigatoriedade escolar. Mas, incapazes de estabelecer qualquer relao entre o conhecimento a ser cobrado dos alunos e o contexto mais amplo em que se situa a escola, os professores deixaram-se levar pela tradio seletiva, reforando, na prtica, aquilo que condenavam teoricamente. A escola persistiu na avaliao compulsiva a que se acostumara, chamando-a agora de formativa; rejeitou solenemente a recuperao, por consider-la um afrouxamento no controle da distribuio do saber, mantendo a sistemtica da antiga 2a poca; jamais fez avaliao qualitativa, primeiro porque no sabia bem o que era, e, depois quando soube, recusou-se a fazer por ser trabalhosa, requerer iseno e efetivo acompanhamento dos sucessos do aluno. Afinal, preciso fazer o aluno crer ser o nico responsvel pelo prprio fracasso, negando-lhe ajuda efetiva e exigindo nveis de desempenho nem sempre compatveis com suas reais possibilidades.Outro resduo inconfundvel das antigas prticas o costume generalizado em todas as escolas de arquivar as provas da recuperao final como se fossem provas finais, no comentadas e nem devolvidas aos alunos, sem qualquer possibilidade de reviso.A par de outros fatores, a populao no estava interessada no ensino profissionalizante aps trs sculos a ligar o trabalho com a idia de escravido (Romanelli, 1984) e acabamos por retornar ao ensino acadmico por via da Lei 7044/82. Nas vrias leis de educao, os planos curriculares, enquanto projeto poltico, favoreceram a internalizao da hegemonia dos programas da educao burguesa do incio do sculo, realizando historicamente a ideologia das classes dominantes, que se transformaria, ao longo dos anos, em senso comum. Nosso sistema escolar est, pois, suficientemente impregnado de idias hegemnicas sobre escolarizao e, embora o esprito dos novos tempos afirme a necessidade de uma postura mais democrtica, permanece a educao de elite, bem ao estilo de Campos e Capanema, quando reprovaes e evaso no representavam indicadores de fracasso, mas qualidade de ensino, uma vez que escola cabia selecionar as lideranas que renovariam os quadros dirigentes na manuteno do poder. Discriminao e seletividade sempre estiveram presentes na educao brasileira, um leit-motiv em toda a sua histria. Foram presena na filosofia educacional jesuta de selecionar os melhores para a formao de lideranas; na proibio dos escravos, das ndias e demais mulheres de freqentar a escola; nos sistemas paralelos de ensino: um ofcio para os pobres e ensino acadmico para os proprietrios. Estiveram explcitas no texto constitucional que encaminhava as classes menos favorecidas ao ensino profissional; na legislao que se propunha a formar personalidades condutoras; explcitas num rigoroso sistema de provas e exames; no currculo de erudio que vigora at hoje. Esses princpios e valores submersos no imaginrio social ressurgem vivos na base do senso comum que orienta hoje o cotidiano das salas de aula, criando e recriando a cultura da reprovao.A leitura que o professor faz das normas oficiais, a caracterizao dos princpios que fundamentam sua prtica docente; a identificao das expectativas em relao classe que recebe; sua confiana na prpria capacidade de antecipar o sucesso ou insucesso do aluno, podero desvendar, na estrutura subjacente ao currculo explcito, uma verdadeira lei da escola que, aparentemente, costuma favorecer apenas aqueles que a ela se submetem.

Referncias Bibliogrficas

APPLE, Michel. Ideologia e currculo. So Paulo, Brasiliense, 1982.BRASIL, Ministrio da Educao e Cultura. Lei orgnica do ensino secundrio e legislao complementar. Servio de Documentao, 1953.___ . Ministrio da Educao e Cultura. Decreto 21.241 de 4 abr 1932 (mimeo).___ . Ministrio da Educao e Cultura. Decreto-Lei 8.529 de 2 jan 1946. Lei orgnica do ensino primrio. In: Lex: coletnea de legislao. So Paulo, Lex Ltda., ano X, p.10-29, 1946.___ . Ministrio da Educao e Cultura. Lei 4.024 de 20 dez 1961. Fixa diretrizes e bases da educao nacional. Rio de Janeiro, Grfica Editora Aurora, Ltda. 1962.___ . Ministrio da Educao e Cultura. Lei 5.692 de 11 ago 1971. Fixa as diretrizes e bases para o ensino de 1o e 2o grau e d outras providncias. In: Habilitaes profissionais do ensino de 2o grau. Rio de Janeiro, Editora expresso e Cultura, Braslia, INL / DEM / DEF / MEC, 1972.___ . Ministrio da Educao e Cultura. Lei 7.044 de 18 out 1982. Altera dispositivos da Lei 5.692 de 11 ago 1971, referentes profissionalizao do ensino de 2o grau. In: Lex: coletnea de legislao e jurisprudncia, So Paulo, Lex Editora S/A, ano XLVI, p.339-41. Out/dez 1982. CARNOY, Martin e LEVIN, Henry, M. Escola e trabalho no estado capitalista. So Paulo, Cortez, 1987.DOMINGOS, Ana M., BARRADAS, Helena et alii. A teoria de Bernstein em Sociologia da educao. Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1985.GIROUX, Henry. Teoria crtica e resistncia em educao ( para alm das teorias da reproduo) Petrpolis, Vozes, 1986.JACKSON, Phillip W. Life in classrooms. USA Holt, Rinehart and Winston, In., 1968.ROMANELLI, A. T. Cypreste. O currculo oculto da escola e sua influncia no rendimento dos alunos - um estudo de caso. 1990. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade Federal do Esprito Santo.ROMANELLI, Otaza de Oliveira. Histria da educao no Brasil. 5.ed., Petrpolis, Vozes, 1984.TORRES SANTOM, Jurjo. O curriculum oculto. Portugal, Porto Editora, 1995.