cadernos_15_ok
TRANSCRIPT
![Page 1: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/1.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 1/158
CADERNOS ESPINOSANOS
Estudos sobre o século XVII
XVSão Paulo – 2006
ISSN 1413-6651
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:391
![Page 2: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/2.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 2/158
Cadernos Espinosanos / Estudos sobre o século XVII São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP,
1996-2006.Periodicidadesemestral. ISSN: 1413-6651.
Ficha Catalográfica
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:392
![Page 3: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/3.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 3/158
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui
Editora Responsável
Tessa Moura Lacerda
Comissão Editorial
Eduardo Baioni, Henrique Xavier, Luís César Oliva.
Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Bento Prado Júnior (UFSCar/ USP), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAurélio(Univ. Nova de Lisboa),Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria dasGraças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini(Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École NormaleSupérieure de Lyon).
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
CADERNOS ESPINOSANOSESTUDOS SOBRE O SÉCULO XVIIN. XV, JUL-DEZ DE 2006 – ISSN 1413-6651
Endereço para correspondência:
Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail:[email protected]
Universidade de São Paulo
Reitora: Suely VilelaVice-Reitor: Franco Maria Lajolo
FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretor: Gabriel CohnVice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini
Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr NovaesVice-Chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoordenador do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio deÁvila Zingano
Capa: Camila MesquitaEditoração eletrônica: Pablo Enrique Abraham ZuninoTiragem: 1000 exemplares
AComissãoEditorialreserva-seo direito de aceitar, recusar ou reapresentar o originalao autorcom sugestõesde mudanças.
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:393
![Page 4: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/4.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 4/158
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:394
![Page 5: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/5.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 5/158
O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofiada Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos. Ao longo
deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-sefazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar asforças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. OsCadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.
Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, osCadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII ,seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia naprática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempreestiveram presentes a cada edição.
O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar
semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindoum canal de expressão dos estudantes e pesquisadores destee de outrosdepartamentos de Filosofia do país.
Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos queestudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento decursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estesCadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autoresbrasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com oacervo sobre o assunto.
Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os
filósofosdaquele período a que estapublicação é inteiramente dedicadae permitacriar ou ampliara comunicaçãoentreos que estão envolvidoscom a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outrosdepartamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimentodeste trabalho.
Franklin Leopoldo e Silva
AAAAAPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAAAAAPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃO
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:395
![Page 6: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/6.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 6/158
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:396
![Page 7: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/7.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 7/158
SSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOSSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIO
1. A ÚLTIMA METAFÍSICA DE LEIBNIZ E A QUESTÃO DO IDEALISMO
Michel Fichant 09
2. UNIVERSALIDADE E SIMBOLIZAÇÃO EM LEIBNIZ
Franklin Leopoldo e Silva 41
3. BONDADE DIVINA E CONTINGÊNCIA EM LEIBNIZ
Luís César Oliva 59
4. LEIBNIZ: EXPRESSÃO E CARACTERÍSTICA UNIVERSAL
Tessa Moura Lacerda 87
5. A FILOSOFIA ESPINOSANA PARA ALÉM DO CORPO-MÁQUINA: O PARALELISMO
EM QUESTÃO
Ericka Marie Itokazu 111
6. DESCARTES E A “REFLEXÃO ESPESSA”: UMA LEITURA MERLEAU-PONTIANA
DO DUALISMO CARTESIANO
Silvana de Souza Ramos 139
7. NOTÍCIAS 153
8. CONTENTS 157
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:397
![Page 8: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/8.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 8/158
cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:398
![Page 9: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/9.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 9/158
9
MICHEL FICHANT
A última metafísica de Leibniz
e a questão do idealismo*
MICHEL FICHANT**
Résumé:
La question de la nature et du sens d’un “idéalisme leibnizien”
se trouve, depuis plus d’une vingtaine d’années, au centre d’un granddébat dans les études leibniziennes, principalement anglo-saxonnes.La conception la plus conséquente et la plus radicale d’un tel idéalismea été exposée par Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist,
Theist, Idealist , 1994): “Le principe le plus fondamental de lamétaphysique de Leibniz est que ‘il n’y a rien d’autre dans les chosesque lessubstances simples et,en elles, lesperceptions et lesappétitions’.Cela signifie que les corps, qui ne sont pas des substances simples,peuvent seulement être construits à partir des substances simples etde leurs propriétés de perception et d’appétition” (p. 217).
Ce débat en rencontre un autre, qui porte sur la reconnaissancede périodes dans la formation de la métaphysique leibnizienne et sur lepointdevuequipermetd’enrendrecomptedelafaçonlaplusadéquate:expression constante d’un « Système de Leibniz » invariant dans sesthèses et sa structure, ou plutôt recherche ouverte où l’inventionconceptuellenese referme jamaissur une formule systématique unique?En effet, ceux-là même qui ont voulu reconnaître une période des“années moyennes” (Daniel Garber), où Leibniz n’aurait pas adhéré àl’idéalisme, ont généralement concédé que la dernière métaphysique,celle qui se déploie proprement selon la thèse monadologique, estbien caractérisée finalement par cette adhésion.
* Versão de uma conferência proferida na Universidade de São Paulo, em 16 deoutubro de 2006. Agradeço imensamente Tessa Lacerda por sua tradução para oportuguês.** Professor da Sorbonne (Paris 4).
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:399
![Page 10: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/10.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 10/158
10
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Je me propose de développer les arguments suivants :1. Du point de vue génétique, la thèse monadologique répond
bien originellement à la requête d’un fondement de la réalité des corps.2. Les développements de la métaphysique leibnizienne de la
dernière période (après 1700) ne donnent pas congé à la recherche decaractérisation d’une vraie “substance corporelle”.
3. C’est la spécificité de ce qu’il appelle l’ “Organisme” quiretient Leibniz de laisser le dernier mot à un idéalisme tel que celui qui
lui est attribué. Si idéalisme il y a, il faut l’entendre en un autre sens.
Resumo:
A questão da natureza e do sentido de um “idealismoleibniziano” encontra-se, já há vinte anos, no centro de um grandedebate nos estudos leibnizianos, principalmente anglo-saxões. Aconcepção mais conseqüente e mais radicaldesse idealismo foi expostapor Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist, Theist, Idealist,
1994): “o princípio mais fundamental da metafísica de Leibniz é quenão há nada mais nas coisas que substâncias simples e, nelas, aspercepções e as apetições” (p. 217).
Esse debate encontra um outro sobre o reconhecimento deperíodos na formação da metafísica leibniziana e sobre o ponto devistaque permite darconta desses períodos da maneira mais adequada:expressão constante de um “Sistema de Leibniz” invariável em suasteses e sua estrutura, ou, antes, pesquisa aberta na qual a invençãoconceitual não se fecha nunca em uma fórmula sistemáticaúnica? Comefeito, mesmo aqueles que quiseram reconhecer um período de “anosintermediários” (Daniel Garber), durante o qual Leibniz não teriaaderido ao idealismo, geralmente concederam que a última metafísica,aquela que se desenvolve propriamente segundo a tese monadológica,
está, finalmente, bem caracterizada por essa adesão.Proponho-me desenvolver os seguintes argumentos:1. Do ponto de vista genético, a tese monadológica responde
originariamenteà exigência de um fundamento da realidadedos corpos.2. Os desenvolvimentos da metafísica leibniziana do último
período (depois de 1700) não dispensam a caracterização de umaverdadeira “substância corporal”.
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3910
![Page 11: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/11.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 11/158
11
MICHEL FICHANT
3. É a especificidade do que chama de “Organismo” que impedeLeibniz de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que se
atribui a ele. Se há idealismo, é preciso entendê-lo em outro sentido.
* * *
Uma experiência ora bastante longa convenceu-me da estreitacomplementaridade que associa as maiores apostas interpretativas,
feitas pelos grandes pensadores da história da filosofia, ao tratamento
técnico o mais rigoroso dos problemas postos pela constituição dos
textos, sua recepção, sua edição.
Os estudos leibnizianos oferecem, hoje ainda, um caso exemplar
dessa complementaridade. Estes são caracterizados pelo fato maior
de que não existe ainda uma edição das “Obras completas de Leibniz”.
O corpus dos escritos de Leibniz está imerso em uma massa de mais
de dois metros cúbicos de papéis, conservados, a maior parte, na
Biblioteca regional de Hannover, sob a forma de minutas de cartas,
notas de leitura, esboços mais ou menos elaborados, que vão desde
uma folha de papel de alguns centímetros recoberta por uma reflexão
prematura até conjuntos acabados, várias vezes recopiados, relidos e
rearranjados, prontos para umapublicação que, o mais freqüentemente,
não aconteceu. Sabe-se que, de seu incessante trabalho de escrita,
Leibniz só tornou acessível em vida porsuas publicações pouquíssimos
vestígios, na maior parte das vezes sob a forma de artigos nos jornaiscientíficos. Daí sua advertência: “Quem só me conhece pelo que
publiquei, não me conhece” 1 . Mas Leibniz providenciou para que
pudesse ser um dia mais bem conhecido que pelos seus
contemporâneos, já que quis também conservar toda essa quantidade
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3911
![Page 12: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/12.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 12/158
12
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
de papéis. Desde a sua morte, em 14 de novembro de 1716, a história
de Leibniz — a história de seu pensamento em todos os domínios
com os quais se ocupou e, logo, também de sua concentração em
metafísica —, é a história de todas as explorações e escavações feitas
nesse legado, do qual os arqueólogos apresentaram edições diversas,
de extensão, ambição e rigor variáveis, que constituem a base acessível
dos escritos de Leibniz em nossas bibliotecas.
Essa base, da qual naturalmente emergem as contribuiçõesmaiores dasgrandes coleções reunidas por Foucher de Careil, Gerhardt,
Couturat, Grua, mas também outras contribuições que se limitaram a
exumar materiais textuais mais restritos, é por natureza divergente,
uma vez que as intenções, os critérios de escolha e os preceitos de
estabelecimento dos textos estão eles mesmos sujeitos a todo tipo de
variação. Não há, portanto, para Leibniz nada de equivalente ao que
nos oferecem Adam et Tannery para Descartes, Gebhardt para
Espinosa, a Akademie Ausgabe para Kant, Colli-Montinari paraNietzsche, Robinet para Malebranche. Mas a essa variedade da
qualidade editorial se acrescenta o fato quantitativo de que ainda hoje
a integralidade do corpus ainda não foi completada pela reunião dessas
múltiplas publicações.
Como se sabe, há mais de um século, por ocasião do Congresso
Internacional de Filosofia que aconteceu em Parisem 1900, foi tomada
a decisão, pelos mais eminentes historiadores alemães e franceses da
época, de trabalhar numa edição verdadeiramente e definitivamenteintegralde todas as cartas e escritos de Leibniz, sob a dupla patronagem
do Instituto de França e daAcademia de Berlim. Depois que a guerra
de 1914 rompeu a cooperação para fazer dessa edição uma tarefa
exclusivamente alemã, ela prosseguiu em meioàs dificuldades geradas
pelos sobressaltos e tragédias da história daAlemanha, até a queda do
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3912
![Page 13: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/13.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 13/158
13
MICHEL FICHANT
muro de Berlim. Desde esse último acontecimento, a reunificação do
país permitiu o estabelecimento de uma prática racional e coordenada
para o prosseguimento do trabalho.
A história da edição, por suas vagas sucessivas de amplitude
desigual, teve um efeito determinante na percepção que cada época
pôde ter da filosofia de Leibniz (mas também de sua matemática ou de
sua dinâmica ou de suas idéias religiosas), e, portanto, nas
interpretações que eram concebíveis em função do que poderia serchamado a abertura e a profundidadedo campo devisão assim definido,
sobre um plano de fundo ainda virtual. Os exemplos são numerosos.
Citar-se-á o da publicação do segundo volume dos Philosophische
Schriften de Gerhardt, que contém a correspondência com De Volder,
na qual a definição da substância pela lei de uma série teve um efeito
determinante sobre a interpretação neo-kantiana de Natorp e de
Cassirer 2 . Há também exemplos inversos, quando uma hipótese de
interpretação orientou a seleção de textos até então inéditos: é porqueCouturat tinha uma idéia precisa do que era chamado em seu tempo
de álgebra da lógica, depois logística, que pôde encontrar interesse e
sentido em manuscritos que outros tinham percorrido sem nada
compreender3 .
Poder-se-ia pensar que o efeito de uma publicação integral
seria o de colocar um fim nos deslocamentos históricos desse tipo de
circularidade que une estado da edição e interpretação. Esse será talvez
o caso quando a edição estiver acabada, mas na medida em que ela éainda uma obra em curso, o trabalho de edição produz também, à sua
maneira, efeitos sobre o sentido, pelo próprio fato de suas escolhas
metodológicas. Estas foram principalmente duas: 1/ um princípio de
divisão em séries disjuntivas,que era uma condição para poder avançar
no estabelecimento dos textos e de sua publicação. Correspondências
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3913
![Page 14: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/14.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 14/158
14
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
e outros escritos de natureza diferente foram separados; para cada
grupo, uma divisão temática foi adotada, de maneira que temos séries
distintas de volumes que reúnem: I. A Correspondência geral, política
e pessoal, II. A Correspondência filosófica, III. A Correspondência
matemática e científica, IV. Os Escritos políticos, VI. Os Escritos
filosóficos, VII. Os Escritos matemáticos, VIII. Obras científicas4 . 2/
A escolha metodológica mais importante foi a de publicar todas as
peças de cada Série segundo a ordem cronológica de redação melhordeterminada ou mais provável e justificada pelas mais seguras razões
de datação. Essa escolha procedia de uma suposição da qual a inteira
força só pôde ser constatada pelos efeitos, quando a edição já estava
bastante avançada, notadamente na série dos Escritos filosóficos: é
que a prática de escritura incoativa e fragmentária de Leibniz implica
que os textos adquiram seu sentido uns em relação aos outros em sua
sucessão diacrônica, mais que em uma copresença idealmente
sincrônica. Eles são menos os elementos coordenados de um sistemaque os momentos de uma experiência de escritura pensante sempre
recomeçada (que poderia ser comparada talvez com o que revelam as
notas e os manuscritos de Husserl). Essa segunda escolha foi reforçada
e radicalizada pela decisão, tomada quando do reinício do trabalho
editorial depois da segunda guerra mundial, de apresentar, a partir de
então, sistematicamente todos os textos, quaisquer que fossem a
amplitude, a forma e o tema, reproduzindo o conjunto das variantes
genéticas do ou dos manuscritos de um mesmo opus: palavras oupassagens rasuradas, substituições,acréscimos, são postos sob os olhos
do leitor e lhe fornecem, em princípio, a possibilidade de reconstituir
os estados da escritura desde o primeiro esboço até o estado no qual
Leibniz considerou seu texto como acabado, a menos que ele tenha
abandonado o prosseguimento do texto. Assim, foi generalizada a
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3914
![Page 15: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/15.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 15/158
15
MICHEL FICHANT
intenção cuja fecundidade tinha sido provada, em se tratando de textos
essenciais, pela admirável edição de Lestienne do Discurso de
metafísica (1907), depois pelas edições de Clara Strack (1917) e em
seguida de André Robinet (1954) da Monadologia e dos Princípios
da Natureza e da Graça.
Eis, aqui, pois, onde estamos hoje: a Série II, Correspondência
filosófica, comporta apenas um volume editado, que foi um dos
primeiros a ser publicado (1926); eleacabou de ser inteiramente refeitopara se adequar às normas da edição atual. Ele compreende as cartas
que se distribuem de 1663 a 16855 . A Série VI, Escritos filosóficos,
colocando à parte o sexto volume, centrado nos Novos ensaios sobre
o entendimento humano, publicado antecipadamente (1962), consta
de quatro volumes publicados. O último publicado (1999) reúne, em
um conjunto impressionante de 3000 páginas de textos e 500 páginas
de índices e tabelas diversas, todos os textos da primeira maturidade
de Leibniz, a que se ordena filosoficamente em torno do Discurso demetafísica, de 1677 a junho de 1690 (retorno a Hannover depois da
viagem à Itália) 6 .
* * *
Essa referência ao estado da edição permite precisar a
dificuldade que comporta a referência a uma “última metafísica” deLeibniz. Com efeito, nota-se que essa “última metafísica” tem seu
começo para além do que avançou a edição integral dos Escritos
filosóficos até seu estado atual. Enquanto conhece-se hoje tão bem
quanto é possível, através de um denso conjunto de textos, a gênese
das concepções que tomam corpo anteriormente e logo depois do
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3915
![Page 16: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/16.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 16/158
16
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
ponto de equilíbrio do Discurso de metafísica, o período posterior a
1690 só nos é acessível através das edições existentes, as quais nos
apresentam uma restituição forçadamente fragmentária, descontínua,
que não permite, portanto, um controle precisamente ponderado das
proposições interpretativas. E é esse justamente o caso da proposição
a respeito do idealismo atribuído a essa última metafísica.
Conhece-se há muito tempo uma “primeira filosofia de
Leibniz”, estudada na admirável tese latina de Arthur Hannequin(1895)7 , que cobre o período que se completa no momento da chegada
de Leibniz a Paris em 1672, logo depois da publicação das duas
Theoriae motus de 1671. A filosofia do chamado “jovem Leibniz”
pôde ser estudada recentemente em numerosas publicações e
colóquios, com uma grande precisão, tornada agora possível com o
avanço da edição integral. Como conseqüência, estendeu-se esse
período de juventude até o fim dos anos parisienses, em 1676, quando
Leibniz tinha trinta anos.Algumas vezes, incluiu-se mesmo o primeirotempo de instalação em Hannover nesse período. Como quer que seja,
reconhece-se em vista de declarações autobiográficas concordantes
de Leibniz que a maturidade de seu pensamento, satisfeito a respeito
de questões fundamentais, estabelece-se definitivamente no curso dos
primeiros anos da década de 80. O Discurso de metafísica é a primeira
síntese dessa maturidade, na ordem de questões metafísico-teológicas
que é a sua, aí juntando-se, na vertente da lógica, o grande estudo
inacabado das Generales Inquisitiones de Analysi notionum et veritatum 8 .
Por muito tempo agiu-se como se, a partir daí, tudo estivesse
posto, e como se estivesse constituído de uma vez por todas, sob a
forma de um invariável “Sistema”, um conjunto de conceitos
fundamentais, de teses principiais e de argumentos, o qual, em seguida,
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3916
![Page 17: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/17.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 17/158
17
MICHEL FICHANT
bastaria que Leibniz haurisse segundo os pontos de vista preparados
por intenções particulares ou circunstâncias exteriores, fazendo
somente com que se variasse a expressão, como espectadores girando
em torno da mesma cidade da qual têm perspectivas de visão variadas
que se reúnem na unidade de seu geometral. Com efeito, a preocupação
constante de coerência ao dar inteligibilidade a um universo ordenado,
que de fato sempre foi a preocupação de Leibniz, poderia, até certo
ponto, legitimar essa representação. Entretanto, por todo tipo derazões, algumas das quais, ligadas ao trabalho editorial, já foram
evocadas, e que em geral dizem respeito à mudança das práticas do
ofício de historiador da filosofia, que dão agora um lugar maior à
materialidade do fato textual, esse modo de ver, que poderia ser
qualificado de idealista à sua maneira, foi, senão abandonado, em todo
caso fortemente ameaçado por uma atenção maior dedicada às
transformações múltiplas que o pensamento de Leibniz não deixa de
fabricar em seu período de maturidade.A transformação maior, que permite estabelecer nesse período
uma divisão identificável, é aquela que encontra sua completude na
coordenação de todos os componentes do que chamo a tese
monadológica. A tese monadológica propriamente dita, ausente do
Discurso de metafísica e da primeira fase da Correspondência com
Arnauld, começa a despontar nas discussões da segunda fase que dizem
respeito ao sentido das formas substanciais e, portanto, ao estatuto de
substancialidade dos corpos
9
. Presente sob uma forma ainda pouconítida na primeira parte do Sistema novo da natureza e da comunicação
das substâncias, publicado em 1695 (no qual os leitores
contemporâneos não a viram, para se concentrar na discussão da
correspondência entre a alma e o corpo apresentada na segunda parte
do artigo), ela é afirmada a partir do momento em que o recurso à
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3917
![Page 18: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/18.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 18/158
18
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
própria palavra mônada, em 1696, condensa todo um trabalho de
análise e de elaboração conceitual anterior. Reduzida à sua formulação
elementar, a tese monadológica consiste na afirmação de que existem
substânciassimples, chamadas unidades verdadeiras, ou mônadas, uma
vez que existem “coisas” compostas, pois “sem o simples, não haveria
compostos” ou, ainda, porque “as multiplicidades supõem as
unidades”10 . A partir daí, toda a complexidade associada à tese, e da
qual seu enunciado simplificado não dá conta, está ligada à ordenaçãodas soluções que serão dadas às questões da natureza dessas
substâncias simples, da natureza das coisas compostas, da relação entre
essas duas ordens, na medida em que essas questões envolvem, para
Leibniz, o conjunto da metafísica tal como ele a entende.
* * *
É desse ponto de vista que a questão do sentido e da natureza
de um idealismo leibniziano está, há mais de vinte anos agora, no
centro de um grande debate nos estudos leibnizianos, principalmente
de língua inglesa. Uma certa indeterminação de vocabulário faz com
que esse idealismo seja chamado às vezes também “fenomenalismo”
(dir-se-ia antes em francês “phénoménisme” [“fenomenismo”]).
Esse debate é característico da orientação tomada doravante
pela maior parte dos trabalhos, numerosos e, em geral, de excelentequalidade, consagrados à filosofia de Leibniz na área anglo-saxã. A
ênfase colocada prioritariamente durante muito tempo nas
interpretações que privilegiavam a lógica e a filosofia da linguagem
foisuplantada porum interesse, antes de tudo, pela metafísicaenquanto
tal. Os argumentos lógicos e o tratamento analítico de problemas não
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3918
![Page 19: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/19.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 19/158
19
MICHEL FICHANT
desapareceram, mas aparecem apenas como meios de elucidação e de
justificação entre outros, e não são mais considerados como
inteiramente determinantes do sentido da metafísica de Leibniz, como
era o caso enquanto dominava o modelo de abordagem que se apoiava
nos grandes precedentes de Bertrand Russell e de Louis Couturat.
Em sua abertura, o debate em torno do fenomenismo e do
idealismo atribuídos a Leibniz levou a maior parte dos participantes,
mas não todos, a admitir um recorte segundo o qual, durante umperíodo chamado de “anos intermediários”, que abrangeria as duas
décadas de 1680 e 1690, Leibniz teria defendido uma concepção
aristotélicada substância corporal, como composta de matéria e forma,
ele teria sido inclinado a isso pela preocupação prioritária de dar à
física fundamentos conceituais sólidos11 .
Pôde-se conceder ou contestar a validade da interpretação
assim proposta dos anos intermediários, mesmo admitindo, em todo
caso, que a esses anos seguia-se um último período, o de uma últimametafísica que abandonaria as escolhas realistas precedentemente
justificadas pela prioridade atribuída à questão dos fundamentos da
física. Seja como conseqüênciado Sistema Novo (1695) e da introdução
consecutiva da palavra “mônada” como designação da substância em
sentido primeiro, seja a partir dos primeiros anos 1700, com a
formulação definitivamente completada tese monadológica (a transição
tendo sido operada na correspondência com De Volder), Leibniz teria
abandonado essa concepção em proveito da restrição da noção desubstância às mônadas, concebidas como almas ou sujeitos análogos
às almas, recusando qualquer realidade substancial aos corpos,
remetidos ao plano de fenômenos.
A expressão mais conseqüente e mais acabada de um idealismo
leibniziano desse tipo foi exposta por Robert Merrihew Adams,
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3919
![Page 20: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/20.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 20/158
20
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
principalmente na terceira parte de sua grande obra Leibniz.
Determinist, Theist, Idealist , Oxford University Press, 199412 .
R. M. Adams cita uma passagem bem conhecida da carta de
30 de junho de 1704 a De Volder, da qual dou aqui a restituição
completa:
E inclusive, para considerar a questão com atenção,
é preciso dizer que não há nada nas coisas além das
substâncias simples e, nelas, a percepção e a apetição; amatéria e o movimento, porém, não são substâncias ou
coisas, mas fenômenos dos que percebem e sua realidade
reside na harmonia dos que percebem consigo mesmos
(em tempos diferentes) e com os outros que percebem. 13
R. M. Adams explora esse texto em termos que são, a meu
ver, hiperbólicos: “O princípio mais fundamental da metafísica de
Leibniz é que ‘não há nada nas coisas além de substâncias simples e,
nelas, as percepções e as apetições’ (GP II, 270). Isso implica que os
corpos, que não são substâncias simples, só podem ser construídos a
partir de substâncias simples e de suas propriedades de percepção e
apetição” (op. cit., p. 217).
É sempre arriscado isolar de seu contexto um enunciado
leibniziano para reconhecernele um princípio, e mais ainda um princípio
declarado mais fundamental que os outros. Quando formula essa
proposição, Leibniz evitou atribuir a ela uma tal caracterização. Esse
seria antes para ele o lugar que o princípio de razão ocupa – masdeixemos isso de lado. Eu observaria, antes de voltar a isso, quanto à
estrutura e ao léxico do argumento apresentado aqui:
1/ que Leibniz fala, para aí reconhecer os “fenômenos dos que
percebem”, da matéria e do movimento, mas não, como lhe atribui a
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3920
![Page 21: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/21.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 21/158
21
MICHEL FICHANT
paráfrase de Adams, de corpos. Para que essa paráfrase fosse uma
tradução conceitual correta, seria preciso que Leibniz considerasse
que matéria e movimento são os constituintes suficientes da natureza
do corpo, o que não é o caso.
2/ que Leibniz não apresenta a redução fenomênica da matéria
e do movimento (e não dos corpos enquanto tais) como uma
conseqüência extraída do princípio de que as únicas substâncias são
as substâncias simples, mas antes como uma proposição que écomplementar a esse princípio e independente dele, e que deve,
portanto, ter recebido alhures sua justificação.
As posições tomadas e presentes no debate partem, em geral,
da dificuldade que haveria em conciliar duas teses de Leibniz: essa
mencionada agora, segundo a qual os corpos seriam apenas fenômenos
das mônadas, estes compreendidos como o que aparece às mônadas
como a sujeitos que percebem, e aquela segundo a qual os corpos são
“agregados de mônadas”ou, como Leibniz sublinha serpreferível dizer,“resultantes das mônadas”. A versão mais radical da primeira tese
consiste em reduzir toda a realidade do fenômeno apenas à realidade
objetiva, no sentido escolástico-cartesiano, isto é, em um outro
vocabulário, ao que seria identificado como conteúdo representacional
da percepção de uma mônada qualquer. Atribui-se a Leibniz, assim,
uma forma de idealismo próxima à de Berkeley. A questão é
evidentemente, então, construir uma interpretação coerente dos textos,
de resto mais numerosos, quefazem doscorposagregados(resultantes)de mônadas. Se se parte antes dessa segunda tese, tratar-se-á então de
compreender como um agregado de mônadas de algum modo se
fenomenaliza: concebe-se nesse caso que haja nos corpos uma realidade
outra que a da mônada que percebe, a saber, a realidade de uma
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3921
![Page 22: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/22.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 22/158
22
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
infinidade de outras mônadas que são os ingredientes ou os requisitos
desse corpo14 . Qualquer precaução que se tome, não se pode fazer
outra coisa que propor variantes da teoria da deformação perceptiva,
segundo a qual a apreensão de multiplicidades por um espírito finito
embaralha a distinção de seus elementos na representação confusa de
um corpo contínuo e de suas propriedades sensíveis (missperception
thesis)15 .
* * *
Há, entretanto, boas razões para pensar que a última metafísica
deLeibniz não se reduz a essa caracterização unilateral de um idealismo
que negaria qualquer possibilidade de legitimar, no contexto da tese
monadológica, um conceito de substância corporal propriamente dita.
Consideraremos aqui as três seguintes razões:1/ Do ponto de vista genético, a tese monadológica provém
originariamente da busca de um fundamento para a realidade dos
corpos.
Um ponto foi suficientemente estabelecido em 1986 por André
Robinet16 : quando o conceito de mônada encontra definitivamente
sua denominação em 1696, é para assumir o posto da operação já
tentada na época anterior através da reabilitação das formas
substanciais. O Discurso de metafísica apresentava uma duplaconcepção da substância: de um lado a substância individual definida
por sua noção completa (segundo o que deu lugar à chamada teoria
lógica da substância), exemplificada principalmente pelos sujeitos de
ação ou “personagens” da história do mundo (Alexandre, César, Pedro,
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3922
![Page 23: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/23.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 23/158
23
MICHEL FICHANT
Judas, etc.); de outro, a forma substancial, exigida para se conceber
em que os corpos podem comportar uma realidade além da
simplesmente fenomênica. Tratando-se dessa segunda versão, André
Robinet também estabeleceu de forma indiscutível que, lido através
de todos os estratos de escritura de seus estados genéticos, o texto do
Discurso de metafísica é atravessado por uma tensão (uma
“disjunção”) entre duas interpretações: de um lado, se os corpos são
substâncias, e uma vez que a extensão, contrariamente ao que sustentaDescartes, não basta para constituir uma substância, então é preciso
recorrer às formas substanciais reabilitadas pela noção de força para
dar conta da identidade persistente da realidade corporal; mas, de um
outro lado, a fórmula permanece condicional e pode dar-se que os
corpos não sejam substâncias, mas somente fenômenos verdadeiros
como o arco-íris. Que seja dito entre parênteses, essa tensão ou
disjunção deveria ser suficiente para estabelecer que a possibilidade
do idealismo já estava inscrita no princípio mesmo dos anos ditosmédios e para, assim, colocar em dúvida a univocidade da adesão de
Leibniz durante esse período a um realismo aristotélico da substância
composta de matéria e forma.
Tentei, de minha parte, mostrar que é a discussão com Arnauld
que levou Leibniz pouco a pouco às fórmulas que balizam o campo da
tese monadológica, totalmente ausente do Discurso de metafísica17 .
Pois, contrariamente ao que uma longa tradição de aproximações
conceituais permitiu sustentar, a substância individual do Discursonão é a mônada. Nem do lado da substância individual, nem do lado
da forma substancial intervém o argumento que coloca em jogo as
multiplicidades e as unidades, os compostos e os simples.
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3923
![Page 24: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/24.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 24/158
24
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Uma primeira fase da correspondência com Arnauld apóia-se
exclusivamente na doutrina da noção completade substância individual.
É somente uma vez que esse debate se encerra que se abre uma nova
discussão, apoiada simultaneamente na solução proposta ao problema
da união da alma e do corpo, que ainda não é chamada de harmonia
preestabelecida, e na questão da substancialidade dos corpos. O
desenvolvimento das respostas suscitadas pelas interrogações de
Arnauld sobre o sentido da reabilitação das formas substanciais, nessesegundo período da correspondência, permitiu produzir pouco a pouco
as condições da formulação da tese monadológica. A carta de 30 de
abril de 1687 marca, desse ponto de vista, o momento decisivo no
qual Leibniz termina por reconhecer como sua a caracterização da
substância que Arnauld tinha desvelado nos textos em que ela era
tacitamente assumida, sem ser ainda expressamente formulada: “A
substância exige uma verdadeira unidade” (GP II, 96), ou ainda,
“ … não concebo nenhuma realidade sem uma verdadeira unidade”(97). Uma vez que a completude da noção cede o passo à unidade do
ser, a tese monadológica pode ser enunciada pela primeira vez, muito
antes do recurso à denominação mesma de “mônada”. Deixando de
lado as definições escolásticas, é preciso agora “considerar as coisas
de bem mais alto”, no nível da relação entre o uno e o múltiplo, que
uma série de formulações vai munir de suas variações:
Todo ser por agregação supõe seres dotados de
uma verdadeira unidade, porque só tem realidade a partirda realidade dos seres de que é composto […] Se há
agregados de substâncias, é preciso também que haja
verdadeiras substâncias de que os agregados são feitos
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3924
![Page 25: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/25.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 25/158
25
MICHEL FICHANT
[…] Não há multiplicidade sem verdadeiras unidades […]
O plural supõe o singular (GP II, 96-97).
Faltam ainda, evidentemente, etapas a cumprir, mas as
condições conceituais que exigem, por assim dizer, por si mesmas o
recurso à velha palavra grega que quer dizer unidade já estão reunidas.
Se, então, a tese monadológica e, com ela, a constituição definitiva do
próprio conceito de mônada intervêm diretamente na continuidade da
discussão sobre as formas substanciais, é exatamente porque ela deve
responder à mesma questão: a de saber em que consiste a
substancialidade dos corpos, se eles são substâncias ou, pelo menos,
se comportam em si alguma coisade substancial. É preciso acrescentar,
enfim, que, no momento em que a análise dá essa volta, ela assume
uma interpretação que se aproxima mais do sentido da versão idealista.
Pois, se é preciso reconhecer unicamente por substâncias os “Seres
completos, dotados de uma verdadeira unidade [...], todo o resto sendo
apenas fenômenos, abstrações ou relações!”, segue que os compostos,
possuindo uma unidade apenas acidental, não são propriamente
substâncias. Sem dúvida conceder-se-á
que há graus de unidade acidental, que uma
sociedade regrada tem mais unidade que uma turba
confusa, e que um corpo organizado ou uma máquina tem
mais unidade que uma sociedade, isto é, é mais adequado
concebê-los como uma única coisa, porque há mais
relações entre os ingredientes; mas, enfim, todas essasunidades recebem seu acabamento dos pensamentos e
aparências, como as cores e outros fenômenos, que não
deixam de ser chamados de reais. […] pode-se, portanto,
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3925
![Page 26: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/26.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 26/158
26
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
dizer desses compostos e coisas semelhantes o que
Demócrito falava tão acertadamente deles, a saber, esse
opinione, lege, nómôi. E Platão tem a mesma opinião a
respeito de tudo o que é puramente material (GP II, 101).
Notemos que aqui o corpo organizado, colocado no mesmo
plano que a máquina, não se diferencia senão por um grau das outras
formas de multiplicidade. Veremos na seqüência a importância desse
ponto.
2/ O desenvolvimento da metafísica leibniziana do último
período, mesmo situando seu início depois de 1700, não dispensa a
exigência de uma caracterização de uma verdadeira “substância
corporal”.
Coloquemo-nos agora bem perto do fim, no momento em
que Leibniz chega à expressão final de sua última metafísica. As
primeiras linhas do texto sem título, ao qual seu tradutor alemão deu
um em 1720, o universalmente conhecido Monadologia, e as dos
Princípios da Natureza e da Graça restituem o conteúdo essencial
dessa metafísica sob a forma mais lapidar: a mônada é uma substância
simples que entra nos compostos, e é preciso que haja mônadas, uma
vez que há compostos e que as multiplicidades supõem sempre as
unidades de que são feitas ou das quais tiram sua realidade derivada.
Assim formulada, a tese pode sem dúvida sustentar uma
interpretação idealista e fenomenista. De um lado haveria as mônadas,
substâncias simples, sem partes, cuja natureza é perceber e passar deuma percepção a outra e a percepção é inexplicável por razões
mecânicas. De outro lado, haveria apenas agregados, que não possuem
nunca unidade intrínseca, e cuja unidade nominal é sempre relativa à
percepção, isto é, ao mesmo tempo à seqüência coerente de percepções
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3926
![Page 27: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/27.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 27/158
27
MICHEL FICHANT
de uma mônada e ao acordo das percepções das mônadas entre si. O
texto da Monadologia, lido estritamente, pode encorajar essa maneira
de ver: a substância figura nele apenas como substância “simples”,
portanto como mônada, e jamais como “substância composta”; o termo
“composto(s)” é empregado sempre como um neutro, para designar
alguma coisa que, precisamente, não chega ao nível ontológico da
substância.
É verdade que Wolff, sobre o qual se afirma, comoconseqüência de um trabalho de A. Lamarra, ser o autor da tradução
latina da Monadologia publicada em 172118 , não se incomodou por
forçar o texto para o sentido de sua própria interpretação da física do
simples e do composto, traduzindo “les composés” [“os compostos”]
por“substantiae compositae”, ao passo que ele devia se contentar em
designar sem adição como os “composita”. Mas isso talvez se dê
porque ele tinha também sob os olhos uma cópia do texto
contemporâneo àquele, os Princípios da Natureza e da Graça, quesugeria essa infidelidade literal, uma vez que dessa vez encontramos
as expressões “substância composta”, e mesmo “substância viva”,
assim introduzidas:
1. A substância é […] simples ou composta. A
substância simples é aquela que não possui partes. A
composta é a reunião de substâncias simples ou mônadas
[…] 3. […] cada substância simples ou Mônada distinta,
que constitui o centro de uma substância composta (como,por exemplo, um animal) e o princípio de sua Unicidade,
está rodeada por uma Massa composta de uma infinidade
de outras Mônadas, que constituem o corpo próprio desta
Mônada central, a qual representa, segundo as afecções
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3927
![Page 28: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/28.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 28/158
28
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
desse corpo, como em uma espécie de centro, as coisas
que estão fora dela. […] 4. Cada Mônada, com seu corpo
particular, constitui uma substância viva.
Em que sentido a massa que rodeia a “mônada distinta” pode
ser dita “composta de uma infinidade de outras Mônadas”, uma vez
que se admita o uso do conceito de “substância composta”? No curso
dos anos precedentes, e ao longo de todo o período que se diz ser
dominado pela tese idealista, em que se nega aos corpos a realidade
substancial, há, todavia, numerosas provas da busca constantemente
empreendida de uma caracterização, no quadro monadológico, de uma
verdadeira “substância corporal” ou “substância composta”. Deixo
de lado aqui o emprego central de “substância composta” na
correspondência com Des Bosses, que está associada à elaboração
particular do Vinculum substantiale. Mas a noção de substância
composta permanece, entretanto, independente dessa doutrina, e em
textos como o dos Princípios da Natureza e da Graça pode ser
considerada como o equivalente da doutrina da substância corporal.
Sem entrar no detalhe das provas textuais, lembrarei, entre outras
menções possíveis, um fragmento muito interessante, recentemente
publicado, para o qual proporei de bom grado a data de 1709: “A
substância composta é a Mônada considerada com seu corpo orgânico,
como um homem, um carneiro”. Ou ainda uma carta de 1711, na qual
Leibniz define a substância corporal como a que “consiste em uma
substância simples ou mônada (isto é, uma alma ou alguma coisaanáloga à alma) e no corpo orgânico que está unido a ela” 19 .
Donde resulta que uma cláusula inteiramente especial é
requerida para que haja propriamente substância corporal: para isso,
é preciso que, do lado do que constitui o componente físico dessa
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3928
![Page 29: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/29.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 29/158
29
MICHEL FICHANT
substância, seja preenchida uma condição especial, é preciso que se
trate de um corpo orgânico. O que é, então, para Leibniz, um corpo
que corresponde a essa característica?
3/ O Organismo é aquilo cuja consideração impede Leibniz
de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que lhe atribuem
as variantes da interpretação anglo-saxã.
Tentei em um artigo recente20 circunscrever o momento
decisivo no qual Leibniz apodera-se da caracterização do corpoorgânico que lhe é própria: ela se enuncia no conceito e na denominação
de “maquina da natureza”, e é precisamente em 1695, no Sistema
novo, que Leibniz elabora pela primeira vez esse conceito.
Imediatamente, ele introduz uma diferença que desta vez não é mais
gradual, mas essencial, entre as máquinas da natureza e as outras
máquinas como em geral e a fortiori todas as outras formas de
multiplicidade material; em um texto escrito em 1702, ele associa
diretamente o conceito de “máquina da natureza” à publicação doSistema novo, evocando “a grande diferença […] que há entre as
máquinas da natureza e a arte, explicada quando foi publicado o sistema
novo no Journal des savants”21 . A grande diferença é que as máquinas
artificiais originadas de nossa engenhosidade comportam apenas um
número finito de órgãos, que, separados, não são eles mesmos
máquinas, enquanto “uma máquina natural permanece máquina ainda
nas suas menores partes, e mais ainda, ela permanece sempre essa
mesma máquina que ela foi, transformando-se apenas pelas diferentesdobras que recebe, e tanto extensa como condensada, quando se crê
que ela se perdeu”22 . No § 64 da Monadologia, isso dará:
[…] uma Máquina, construída segundo a arte
humana, não é Máquina em cada uma de suas partes. Por
exemplo, o dente de uma roda de latão tem partes ou
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3929
![Page 30: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/30.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 30/158
30
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
fragmentos que não são mais para nós algo artificial e não
têm mais nada que identifique a Máquina para o uso da
qual está destinada a roda. Mas as Máquinas da Natureza,
isto é, os corpos vivos, são Máquinas inclusive em suas
menores partes até o infinito.
A partir de 1704, Leibniz usará o termo de sua invenção,
“Organismo”, para significar não, como em nosso uso corrente, tal
ser determinado, que designamos como um organismo, e que nos
permite falar noplural em organismosvivos, mas o modode ser, sempre
no singular, segundo o qual o corpo orgânico é constituído pelo
envolvimento infinito de órgãos, no qual os elementos da máquina
são sempre também máquinas, isto é, composições funcionais de
instrumentos ordenados a um fim.
É precisamente esse modo de ser que permite a um corpo
determinado adquirir um regime de substancialidade, constituindo o
que Leibniz chama também de um “animal”; só correspondem a
substâncias corporais os animais cujo corpo orgânico – máquina da
natureza – é atualizado ou realizado por uma alma ou, melhor, pela
enteléquia primitivada substância simples que é suamônada dominante
ou principal.
Só conto como substâncias corporais as máquinas
da natureza que possuem almas ou algo de análogo; de
outra maneira não haverá verdadeira unidade (A Jaquelot,
22 de março de 1703, GP III, 457).
Na declaração citada, na qual Robert Adams vê a fórmula do
que será “o princípio mais fundamental de (sua) metafísica”, Leibniz,
como já observei, atribui apenas à matéria e ao movimento não serem
substâncias ou coisas, mas fenômenos da percepção. Não são, pois,
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3930
![Page 31: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/31.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 31/158
31
MICHEL FICHANT
os corpos que são ditos assim, uma vez que Leibniz, precisamente,
jamais reduziu a realidade dos corpos ao movimento e à matéria. Em
uma carta de 1699 a Thomas Burnett, na qual é exposta uma
aproximação muito precisa da realidadeda substância corporalsegundo
sua fundação monadológica, Leibniz opera rigorosamente a distinção,
nos corpos, “entre a substância corporal e a matéria”, e “distingue a
matéria primeira da segunda”. Com essa distinção é introduzida uma
noção tradicional cuja significação dada por Leibniz precisa seranalisada: o que é a “matéria segunda”?
A matéria segunda é um agregado ou composto
de várias substâncias corporais, como um rebanho é
composto de vários animais. Mas cadaanimal e cadaplanta
também é uma substância corporal, tendo em si o princípio
de unidade, que faz com que seja uma verdadeira
substância e não um agregado. E esse princípio de unidade
é o que se chama Alma ou então alguma coisa que temanalogia com a alma. Mas além do princípio de unidade, a
substância corporal tem sua massa ou matéria segunda,
que é ainda um agregado de outras substâncias corporais
menores, e isso vai ao infinito (GP III, 260).
Trata-se exatamente, portanto, de estabelecer ao mesmo tempo
a realidade de uma verdadeira “substância corporal” e, por outro lado,
sua irredutibilidade à matéria (e a fortiori, à extensão à qual Descartes
identificavaerroneamentea matéria).O conceito essencialqueintervémaqui é o de matéria segunda: é por ela que o corpo se apresenta, por
um dos aspectos de sua constituição, como um agregado, do qual a
composição numérica do rebanho (de ovelhas) fornece um modelo
intuitivo. Mas o próprio animal (a ovelha), que é um componente do
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3931
![Page 32: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/32.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 32/158
32
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
agregado do rebanho, é outra coisa diferente do simples agregado do
rebanho, precisamente porque ele tem uma verdadeira unidade de
composição. Leibniz diz isso pelo menos uma vez de maneira
perfeitamente explícita: “Há, com efeito, uma grande diferença entre
um animal e um rebanho”23 .
Segundo um modelo cuja proveniência aristotélica é patente,
Leibniz constitui o animal deuma Enteléquia, que “é oualmaoualguma
coisaanáloga à alma, e sempre realiza naturalmente o corpo orgânico”,e desse próprio corpo, que, “considerado separadamente, isto é, pondo-
se à parte ou retirada a alma, não é uma substância única, mas um
agregado de várias, designando uma máquina da natureza”24 .
Pode-se, pois, distinguir-se agregado de agregado: um
amontoado de pedras ou um rebanho, por exemplo, não constituem
propriamente uma matéria segunda, uma vez que não são enformados
por uma enteléquia ou por alguma coisa análoga a uma alma. Dizer
um rebanho enunciaapenasumaunidade nominal e mental, inteiramenterelacionada à unicidade do nome que exprime a reunião de vários
elementos distintos sob uma só concepção ou percepção. Tais
agregados não são evidentemente substâncias corporais, e não se
concebe que eles possam ser. E o mesmo vale para as pedras que
compõem o amontoado, que tampouco são substâncias corporais. Mas
em relação à ovelha do rebanho, a análise toma um outro caminho: o
corpo dos animais constitui uma matéria segunda enformada pela alma
do animal
25
. Ora, a matéria segunda que entra em uma substânciacorporal se caracteriza como um agregado cujos componentes são
também substâncias corporais. Dito de outra maneira, a matéria
segunda não é diretamente um agregado de substâncias ou de mônadas,
mas um agregado composto de outras substâncias corporais cuja
implicação ao infinito funda a composição do corpo orgânico enquanto
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3932
![Page 33: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/33.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 33/158
![Page 34: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/34.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 34/158
34
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
É por isso que haverá também, inversamente, corpos orgânicos
em toda parte, mesmo onde permanecem imperceptíveis a nossos
sentidos. Há como que uma lei de reciprocidade que exigea correlação
constantemente e universalmente mantida entre cada mônadae o corpo,
do qual Leibniz diz de maneira feliz, antecipando um uso futuro, que
o corpo é “próprio” a ela, e sem o qual, se ela fosse separada, ela seria
“um desertor da ordem universal”28 . A cada mônada seu corpo próprio
significa, então, tantas substâncias simples, quantas substâncias
corporais. Este é, no fim das contas, o princípio de adesão de Leibniz
a uma visão pan-animalculista da natureza “por onde se vê que há um
Mundo de criaturas, de viventes, deAnimais, de Enteléquias, deAlmas
na menor parte da matéria” e onde “cada porção da matéria pode ser
concebida como um jardim cheio de plantas e como um Lago cheio de
peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro do animal, cada gota
de seus humores é também um jardim ou um lago” (Monadologia, §§
66 e 67). Essa visão, que Leibniz sustentava muito seriamente e queera confirmada pelas pesquisas empíricas de seu tempo, não é
compatível com a redução idealista.
* * *
Há, entretanto, uma outra maneira de ser idealista diferente da
de Berkeley, a quem Leibniz tomava, alhures, por “ser desse gênerode homens que querem se dar a conhecer por seus paradoxos”29 . Em
uma Anotação célebre da Ciência da Lógica, Hegel define assim o
idealismo: “A proposição que o finito é ideal constitui o Idealismo. O
Idealismo, segundo a filosofia, não consiste em nada mais que não
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3934
![Page 35: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/35.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 35/158
35
MICHEL FICHANT
reconhecer o finito como um verdadeiro Ente. Toda filosofia é
essencialmente Idealismo ou, pelo menos, o Idealismoem seuprincípio,
e a questão é, então, somente, até que ponto esse princípio é
efetivamente acabado”. Algumas páginas adiante, em uma outra
Observação, ele nota ainda: “O ser representante de Leibniz, a Mônada,
é uma coisa essencialmente ideal”30 .
Em linguagem leibniziana, isso seria: o que o pensamento põe
como elementos últimos da realidade, as mônadas, são efetivamenteelementos inteligíveis. É de fato um idealismo, se se entende ainda, à
maneira platônica, uma ontologia segundo a qual os constituintes
últimos do ser são elementos ideais. Mas Leibniz quis também mostrar
como esses elementos reúnem-se em um Ente verdadeiro, desde que
compõem-se como a mediação infinita da qual a estrutura recursiva
das máquinas da natureza expõe a figura sensível. Isso certamente
não é um idealismo que reduziria indiferentemente a realidade dos
corpos unicamente ao conteúdo objetivo das representações sensíveis.O que havia em Leibniz de fidelidade constante ao aristotelismo o
dissuadiu de dar a última palavra a um idealismo filosófico que não
teria sabido dar conta, com e na realidade orgânica, da concretude
sensível do inteligível. É assim quesua filosofia cumpre,efetivamente,
o princípio do Idealismo, a ponto de Hegel poder dizer ainda que ela
“é a contradição completamente desenvolvida”31 .
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3935
![Page 36: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/36.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 36/158
![Page 37: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/37.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 37/158
37
MICHEL FICHANT
8 Originalmente publicados por Couturat, Opuscules et fragments
inédits, op. cit., p. 356-399. Excelente edição com tradução alemã e
comentários por Franz Schupp, Allgemeine Untersuchungen über die
Analyse der Begriffe und Wahrheiten, Felix MeinerVerlag, Hamburg,
1982.
9 Para mais detalhes, cf. meu ensaio “L’invention métaphysique”, in
Introduction à Leibniz. Discours de métaphysique suivi de
Monadologie, et autres textes. Edição estabelecida, apresentada e
anotada por Michel Fichant, Gallimard, Paris, 2004.
10 Cf. respectivamente, Princípios da natureza e da graça, art. 1, “É
preciso que em toda parte haja substâncias simples porque sem as
simples não haveria compostos”, e “não há multiplicidades sem
verdadeiras Unidades”, carta à Princesa Sophie, 31 de octobre de 1705,
in Die philosophischen Schriften, ed. Gerhardt (citado doravante GP),
VII, p. 558, fórmula já literalmente presente na carta a Arnauld de 30
de abril de 1687, GP, II, p. 97.
11 O artigo de referência aqui é o de Daniel Garber : “Leibniz and the
Foundations of Physics : The Middle Years”, em The Natural
Philosophy of Leibniz, ed. by K. Okruhlik and J.R. Brown, Reidel,
Dordrecht, 1985.
12 Esse capítulo retoma e estende consideravelmente o artigo mais
antigo do mesmo autor “Phenomenalism and Corporeal Substance in
Leibniz”, Midwest Studies in Philosophy, 8 (1983),13 GP, II, p. 270.
14 Essa interpretação foi exposta por Donald Rutherford em uma série
de artigos: “Phenomenalism and the Reality of Body in Leibniz’s Later
Philosophy”, Studia Leibnitiana, 22 (1990); “Leibniz Analysis of
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3937
![Page 38: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/38.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 38/158
38
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Multitude and Phenomena into Unities and Reality”, Journal of the
History of Philosophy, 28 (1990); “Leibniz and the Problem of Monadic
Aggregation”, Archiv für Geschichte der Philosophie, 76 (1994).
15 Sustentada, por exemplo, por Nicholas Jolley, “Leibniz and
Phenomenalism”, Studia Leibnitiana, 18 (1986).
16 Architectonique disjonctive, automates systémiques et idéalité
transcendantale selon G. W. Leibniz, Paris, Vrin, 1986.17 “L’invention métaphysique”, op. cit., p. 81-95.
18 Cf. Antonio Lamarra, Roberto Palaia, Pietro Pimpinella. Le prime
traduzioni della “ Monadologie” di Leibniz (1720-1721). Introduzione
storico-critica, sinossi di testi, concordanze contrastive, Firenze,
Olschki, 2001.
19 Respectivamente: “Substantia composita est Monas sumta cum suo
corpore organico, ut homo, ovis” (Texto inédito publicado por Enrico
Passini em sua obra Corpo et funzione cognitivi in Leibniz, Franco
Angeli, Milano, 1996, p. 208); “Substantiam corpoream voco, quae in
substantia simplice seu monade (id est anima vel Animae analogo) et
unito ei corpore organico consistit”, a Bierling, 12 de agosto de 1711
(GP VII, p. 501).
20 “Leibniz et les machines de la nature”», Studia Leibnitiana, 35/1
(2003) [publicado em 2005]. Uma versão preliminar desse artigo foi
publicada em português: “Leibniz e as máquinas da natureza”, Dois
Pontos, Revista dos Departamentos de Filosofia da Universidade
Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos, vol. 2,
num. 1, 2005.
21 Adição à Explicação do Sistema novo …, GP IV, p. 575.
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3938
![Page 39: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/39.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 39/158
39
MICHEL FICHANT
22 Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, GP
IV, p. 482.
23 “Multum enim interest inter animal et gregem”, em um opúsculo de
1702, GP IV, p. 395.
24 Ibid., p. 395-396.
25 “Assim, não digo na verdade que um pedaço de pedra seja em si
mesmo uma substância corporal animada ou dotada de um princípiode unidade e de vida; mas antes que há em toda parte tais substâncias
equenãohánenhumpedaçodamatérianoqualnãohajaouanimalou
planta, ou qualquer outro corpo orgânico vivo, embora só conheçamos
plantas e animais. De sorte que uma massa de matéria não é
propriamente o que chamo de uma substância corporal, mas um
amontoado ou um resultado (aggregatum) de uma infinidade dessas
substâncias, como um rebanho de carneiros ou um monte de larvas”,
Eclaircissement sur les Natures Plastiques et les Principes de Vie et de Mouvement (GP VI, 550).
26 “Accurate autem loquendo materia non componitur ex unitatibus
constitutivis, sed ex iis resultat”, carta a De Volder de 30 de junho de
1704 (GP II, p. 268).
27 A vida consiste para Leibniz em “percepção e apetite”,
Animadversiones circa assertiones aliquas Theoriae medicae verae
Clar. Stahlii, § VIII (Dutens II-2, p. 137).
28 “Os corpos orgânicos não estão nunca sem almas, e […] as almas
não estão nunca separadas de qualquer corpo orgânico […] Não
admito, portanto, que haja almas inteiramente separadas, nem que
haja Espíritos criados inteiramente destacados de algum corpo […] as
criaturas que ultrapassassem ou estivessem livres da matéria estariam
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3939
![Page 40: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/40.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 40/158
40
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
destacadas, ao mesmo tempo, da ligação universal, e seriam como
desertores da ordem geral”, Considérations sur les Principes de Vie
et sur les Natures plastiques, 1705 (GP VI, p. 545-546).
29 “Qui in Hybernia corporumrealitatem impugnat, videtur necrationes
afferre idoneas, nec mentem suam satis explicare. Suspicor esse ex eo
hominum genere, qui per Paradoxa cognosci volunt”, carta a Des
Bosses de 15 de março de 1715 (GP II, p. 492). Tradução francesa de
Christiane Frémont em L’être et la relation. Lettres de Leibniz à Des
Bosses, Paris, Vrin, 1981, p. 237.
30 A Ciência da Lógica, Doutrina do Ser , Primeira seção,
respectivamente do cap. 2, c, Anotação 2, depois do cap. 3 A, b,
Anotação.
31 Encyclopédie des sciences philosophiques, I La Science de la
Logique, § 194. Trad. Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 1979, p. 435.
1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3940
![Page 41: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/41.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 41/158
![Page 42: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/42.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 42/158
42
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
of the impossibility of a simultaneous and articulate vision of all of theelements of a compound and, thus, we are lead in the direction of adeterminable universality. The fundaments, procedures and risks in-
volved therein constitute the subject of this text.
* * *
“A mathesis universalis é a ciência da quantidade em geral, ou
da razão que calcula (de ratione aestimandi) que assinala os limites
dentro dos quais algo possa ocorrer. E porque toda criatura tem limites,
então pode-se dizer que, tal como a metafísica é a ciência geral das
coisas (scientia rerum generalis), assim a mathesis universalis é a
ciência geral das criaturas (scientiam creaturarum generalem).”1 A
diferença que se pode estabelecer entre Leibniz e Descartes a partir de
um texto como este serve para nos introduzir na compreensão da
concepção leibniziana de universalidade. Para Descartes, a Mathesis
Universalis, ao revelar os fundamentos metódicos da Matemática,
desvenda os arcanos da razão. O teor de racionalidade que se pode
esperar de qualquer conhecimento possível está de antemão ilustrado
na evidência matemática, que deve a partir daí ser entendida como
modelo universal. Descartes distingue claramente a Matemática da
Mathesis Universalis: tal distinção, entretanto, não deixa de carregar
uma ambigüidade, posto que esta instância mais profunda da
matemática nos permitirá atingir, ao fim e ao cabo, o carátermatematizante de todo conhecimento. Poderíamos dizer, portanto,
que, embora Descartes ambicione chegar a um nível de evidência
metódica mais profundo e mais abrangente do que a aritmética e a
geometria, esta camada fundamental estaria ainda no domínio de uma
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3942
![Page 43: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/43.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 43/158
43
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Matemática, desde que a consideremos nas suas possibilidades mais
fundamentais de racionalidade. Afinal a ciência geral da Ordem e da
Medida não se constitui como um gênero diferente da Matemática,
vista na sua maior generalidade possível. Assim, o caráter
demonstrativo do conhecimento estará definitivamente comprometido
com um modelo de evidência que, estabelecido a partir de uma ciência
determinada, assegura, sem superar a configuração desta ciência, a
universalidade da certeza.Leibniz julga poder apontar as limitações nesta visão cartesiana
dos fundamentos e do alcance da evidência, e isto a partir de uma
identificação da definição de Mathesis como ciência da Ordem e da
Medida à ciência da quantidade. Essa identificação entre o sentido
geral da Matemática e a quantidade atua como um operador crítico
frente ao processo cartesiano de constituição dos fundamentos da
evidência, indicando a restrição do modelo. Desta forma fica
questionada a legitimidade da passagem da evidência matemática àuniversalidade da evidência. O que a crítica de Leibniz atinge, na
verdade, é a afirmação, implícita na concepção cartesiana, da
identificação entre evidência e evidência matemática. EmboraDescartes
nunca tenha dito que a noção de Mathesis Universalis implicava uma
simples extensão da evidência matemática para o domínio de todo o
conhecimento, a universalidade da Ordem e da Medida como critérios
fundamentais de inteligibilidade aparece, para Leibniz, como a
sobreposição, indevida, da Matemática ao conhecimento racional. AMathesis Universalis, como ciência da quantidade, não tem o alcance
geral que Descartes reivindicara. Ela não pode ser considerada
verdadeiramente como uma ciência geral, mas sim como “ciência da
quantidade em geral”. Ora, poderíamos dizer que o geometrismo
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3943
![Page 44: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/44.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 44/158
![Page 45: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/45.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 45/158
![Page 46: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/46.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 46/158
![Page 47: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/47.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 47/158
![Page 48: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/48.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 48/158
48
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
A “razão” de outras proposições contingentes encontra-se na
compreensão metafísicada estruturado universo.Através destas razões
todas as verdades, mesmo as contingentes, sãoremetidas à necessidade
e à universalidade.
Esta última observação nos remete à questão da vigência, em
Leibniz, do pressuposto cartesiano da unidade da razão. Não só este
pressuposto é conservado, como também se pode dizer que a teoria
leibniziana da verdade o leva até as últimas conseqüências. “Verdadeiraé uma afirmação cujo predicado está incluído no sujeito, e assim, em
toda proposição afirmativa, necessária ou contingente, universal ou
singular, a noção do predicado de algum modo está contida na noção
do sujeito; de maneira que quem compreendesse perfeitamente ambas
as noções do modo como Deus as compreende veria assim claramente
que o predicado está incluído no sujeito.”5 O caráter analítico da
verdade implica a absoluta necessidade regendo qualquer relação entre
sujeito e predicado, de tal forma que a verdade da proposição repousaem última análise na identidade fundamental entre os dois termos.
Como isso se aplica a toda proposição, “necessária ou contingente,
universal ou singular”, o conhecimento repousa num fundamento
universal que garante a relação analítica dos termos da proposição.
Existe, portanto uma instância de inteligibilidade fundamental que
justifica o projeto de racionalismo integral como característica do
pensamento de Leibniz: tal instância deve ser concebida como anterior
a todo e qualquer conteúdo proposicional, seja ele de caráter físico oumetafísico. Só pode, neste sentido, ser uma instância formal, aquém
mesmo da distinção da evidência matemática, caso exemplar de
demonstrabilidade e de ligação analítica. Esta instância, para Leibniz,
é a Lógica.
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3948
![Page 49: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/49.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 49/158
![Page 50: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/50.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 50/158
50
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
deve, no limite, vinculá-lo, por mediação de várias regras e leis
subalternas, às leis universalíssimas que em última instância explicam
o lugar de cada indivíduo na totalidade, e nos fariam ver também que
ele a expressa necessariamente. A plena racionalidade levaria a
compreender a individualidade, na sua singularidade própria, como
expressão sempre adequada do universal. Por isto podemos dizer que
o motivo pelo qual não podemos conhecer nem o indivíduo nem o
universal pleno é, no limite, o mesmo.As relações estabelecidas entrecontingência e necessidade no §13 do Discurso de Metafísica não
deixam dúvida quanto à possibilidade, existente de direito, ao menos,
de compreender o contingente como necessário ex hypothesi como
um grau menor de necessidade se comparado à necessidade absoluta,
aquela que deriva diretamente do princípio de contradição. Embora a
primeira dependa de umaescolha de Deus, existencialmente explicitada
por meio de um decreto, o que permite que pensemos escolhas diversas
como possíveis e não contraditórias com as efetivamente decretadas,aindaassimaregradeperfeiçãoquenosimpededeconceberummundo
mais perfeito nos leva a atribuir necessidade aos decretos, e por esta
via às realidades livremente decretadas por Deus. É preciso lembrar
que o Deus leibniziano se caracteriza pela absoluta consistência entre
todos os seus predicados, o que não permite que estabeleçamos nele o
primado da vontade, como seria o caso do Deus cartesiano, nem
mesmo, creio que se possa dizer, qualquer diferença, em termos de
efetividade de ação, entreos predicados lógicos e os predicados ligadosà perfeição moral. Por isto, à integridade da estrutura lógica do mundo
criado corresponde a sua máxima perfeição, embora esta derive da
liberdade divina e não do Princípio de contradição unicamente. Como
em Deus o saber e o poder não podem ser concebidos por meio de
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3950
![Page 51: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/51.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 51/158
51
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
qualquer relação de subordinação, a universalidade racional recobre
tanto o aspecto lógico quanto o aspecto moral da ação criadora. Daí
a possibilidade de reconduzir a contingência à necessidade e a
particularidade individual à universalidade das leis fundamentais.
Permanece, no entanto, a impossibilidade de fato de que isto
ocorra no plano do intelecto humano. É preciso desde logo afastar
uma possível objeção ou falso problema. Esta impossibilidade não
configura uma oposição entre o intelecto humano e o intelecto divino.Para Leibniz, a relação entre o humano e o divino no plano da
racionalidade é de participação. Mesmo não aceitando o pressuposto
ontológico da Teoria da Reminiscência em Platão (pré-existência da
alma) Leibniz adota os resultados desta teoria, que nele passa a ter
uma base ontológica na concepção do inatismo radical conjugada com
a idéia de virtualidade. A partir disto temos condições de pensar o
intelecto humano como participante do divino, de forma tal que a
homogeneidade fundamental não impeça a diferençaradical, concebidana fronteira entre qualidade e quantidade, posto que se trata de uma
relação entre finito e infinito.Assim, não devemos entender que Deus
tem simplesmente um conhecimento mais completo do que o nosso,
mas que o seu conhecimento é de outra qualidade – qualidade esta
que deriva da possibilidade da visão simultânea de todas as relações e
assim também da simultaneidade das razões e dos seus efeitos, sejam
estes necessários ou contingentes. Desta forma Leibniz, no
cumprimento de seu projeto de racionalidade integral, concebe aunidade da Razão de modo a incluir a razão humana no mesmo âmbito
formal da razão infinita de Deus.
No entanto, como já dissemos, esta homogeneidade
fundamental nãoimpedeas limitações do intelecto humano, que Leibniz
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3951
![Page 52: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/52.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 52/158
![Page 53: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/53.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 53/158
![Page 54: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/54.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 54/158
![Page 55: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/55.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 55/158
55
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
mesmos problemas que aparecem no plano das verdades de fato. Mas
isto nos mostra também a relevância do símbolo para o conhecimento:
é precisamente porque podemos estabelecer significadosunívocos para
os símbolos matemáticos que esta ciência é verdadeiramente
demonstrativa. A certeza da matemática provém de uma eficiência
simbólica — se assim se pode dizer — que as palavras não possuem.
O caráter analítico das significações matemáticas está sempre presente
em todas as operações simbólicas. Eis a razão pela qual nem sequer secoloca o problema da universalidade nas demonstrações desta ciência.
O princípio de contradição é fundamento direto.
A relevância do conhecimento simbólico não modifica a sua
condição epistemológica, inferior à dos conhecimentos claros e
distintos. Por isto dissemos antes que se trata de superar
operatoriamente a dificuldade de conhecer claramente os compostos.
O ideal seria a visão clara, distinta e simultânea de todos os elementos
do composto, o que seria o conhecimento intuitivo, termo que temem Leibniz uma acepção diferente da cartesiana, já que reúne as
virtudes do conhecimento analítico e do conhecimento direto, que
para Leibniz só é possível como identidade formal. Como a forma
intuitiva está fora do alcance do intelecto humano no caso dos
compostos — a menos que cada composto fosse sempre inteiramente
analisado, o que não é factível — Leibniz procura resgatar a
legitimidade do conhecimento simbólico, mesmo porque ele está
presente necessariamente com muita freqüência em nossa atividadeintelectual. Por isto mesmo é que cumpre estabelecer com rigor os
requisitos que deveriam tornar o conhecimento simbólico
absolutamente seguro, eliminando assim o risco, mencionado
anteriormente, da substituição da explicação analítica dos termos pela
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3955
![Page 56: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/56.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 56/158
![Page 57: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/57.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 57/158
57
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
de comunicação do pensamento, de juízos e de invenção dotados de
total demonstrabilidade. Desta forma a expressão permitiria uma
ponderação (o “peso” da sabedoria bíblica) que poderia ser efetuada
simultaneamente aos enunciados, de forma que o acordo acerca de
possíveis controvérsias se faria por meio do cálculo, isto é, por meio
de uma operação que utilizaria símbolos unívocos e regras
explicitamente estabelecidas. Trata-se, portanto do instrumento
privilegiado, talvez o único perfeitamente adequado, da razão
calculadora.
Vê-se porque um tal instrumento permitiria superar os riscos
do conhecimento simbólico. Não haveria qualquer elemento lexical
que não correspondesse à transparência analítica requisitada pelo
conhecimento simbólico. Neste caso, a universalidade da certeza,
derivada da evidência de todos os termos utilizados na cadeia
demonstrativa, estaria assegurada de antemão, pela própria índole dos
termos empregados. Nenhuma obscuridade subsistiria numa tal notaçãode idéias. E a expressão da realidade ficaria garantida pelo pressuposto
leibniziano da identidade entre lógica e ontologia no plano das relações.
Como o conhecimento é cálculo de relações, todos os campos do
saber poderiam contar com a mesma evidência matemática, não por
terem sido “matematizados”, mas por corresponderem às formas
fundamentais do cálculo demonstrativo. Em todos os setores do saber
a universalidade lógica estaria então imediatamente presente.
Trata-se de um instrumento, mas pode-se ver o quanto ele énecessário para a realização do ideal leibniziano de um racionalismo
integral. Não é por outra razão que um tal instrumento está revestido
das características metafísicas e teológicas com que ele se apresenta
na exposição leibniziana. Apesar de todos os problemas que a
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3957
![Page 58: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/58.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 58/158
58
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Característica Universal apresenta — apontados por vários
comentadores — o projeto se inscreve perfeitamente na concepção
rigorosamente formalista da universalidade da verdade. A
universalidade deve ser atingida, como diz Leibniz, “para além das
palavras”.
Notas
1 Leibniz, G., Mathesis Universalis, in Gerhardt, Matematische
Schriften, VII, p.53, apud Cardoso, A., Leibniz Segundo a
expressão, Lisboa: Colibri, 1992, p.32.2 Leibniz, G., Verdades necessárias y contingentes, in Escritos
Filosóficos, org. Ezequiel de Olaso, Buenos Aires: Charcas, 1982,
p.338ss (o título foi dado pelo organizador do volume).3 Idem, ibidem, p.331.4 Idem, ibidem, p.331.5 Idem, ibidem, p.328.6 Idem, ibidem, p.332.7 Leibniz, G., Meditaciones sobre el conocimiento, la verdad y las
ideas, in Escritos Filosoficos, ob. cit., pp.271 ss.8 Idem, ibidem, p.272-273.9
Idem, ibidem, p.273.10 Idem, ibidem, p.273.11 Leibniz, G., Historia y Elogio de la Lengua ou Característica
Universal, in Escritos Filosóficos, ob. cit., p.165.12 Idem, ibidem, p.166.
2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3958
![Page 59: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/59.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 59/158
59
LUÍS CÉSAR OLIVA
Bondade Divina e Contingência em Leibniz
LUÍS CÉSAR OLIVA*
* Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.
Resumo: Em sua correspondência comArnauld, Leibniz mostra comoo recurso à vontade divina é fundamental para garantir o espaço da
contingência no interior de uma metafísica que não permite aindeterminação. No entanto, ainda resta perguntarse a bondade divina,uma das perfeições incluídas na noção de Deus, não torna necessárioaquilo que Leibniz chamara de contingente. Porisso faremos um exameda concepção leibniziana de vontade divina, sobretudoa distinção entrevontade antecedente e vontade conseqüente, visando determinar atéque ponto a bondade divina (entendida como vontade perfeitíssima)implica ou não um necessitarismo universal.
Palavras-chave: Leibniz, contingência, bondade divina, vontadeantecedente, vontade conseqüente.
Abstract: In his correspondence with Arnauld, Leibniz shows us howthe appeal to the divine will is fundamental to guarantee a space tocontingency in a metaphysics that does not allow indetermination.Nevertheless, we must still ask if divine goodness, one of the perfec-tions included in the notion of God, does not render necessary whatLeibniz had called contingent. This is why we will examine Leibniz’snotion of divine will, especially the distinction between antecedentand consequent will, intending to determine in which measure divinegoodness (understood as the most perfect will) implies or not a uni-
versal necessitarism.Key-words: Leibniz, contingency, divine goodness, antecedent will,consequent will.
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3959
![Page 60: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/60.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 60/158
![Page 61: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/61.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 61/158
61
LUÍS CÉSAR OLIVA
A contingência do mundo melhor
Apesar de as duas possibilidades não serem excludentes e
Leibniz oscilar bastante em opúsculos diversos,Adams inclina-se para
a segunda e toma por base textual sobretudo o seguinte trecho: Ora,
não reconheço como necessária nenhuma proposição que não pode
ser demonstrada por uma redução àquilo cujo contrário implica
contradição. É o mesmo argumento: “Deus quer necessariamente aobra mais digna de sua sabedoria”. Digo que ele quer, mas não
necessariamente, já que , embora esta obra seja a mais digna, isto
não é uma verdade necessária. É verdade que esta proposição “Deus
quer a obra mais digna dele” é necessária. Mas não é verdade que
ele a queira necessariamente. Pois esta proposição “esta obra é a
mais digna” não é uma verdade necessária, é uma verdade
indemonstrável, contingente, de fato.3
Se não é demonstrável que este mundo é o melhor, então écontingente que ele seja o melhor, de modo que, ainda que fosse
necessário que Deus quisesse o melhor (hipótese que Leibniz concebe
no mesmo texto), Deus não o quereria necessariamente. Em outras
palavras, poderíamos atribuir a Leibniz a seguinte formulação: é
necessário que Deus queira contingentemente o melhor. Esta
ambigüidade que dá verdadeiros nós na cabeça do leitor se deve à
maneira como Leibniz aplica o adjetivo necessário . Ele o aplica à
totalidade da proposição (“Deus quer o melhor”), mas não ao conteúdodo predicado (“o melhor”). Como esta armadilha é possível? Graças à
indemonstrabilidade de que este mundo é o melhor. Tal operação
requereria uma análise infinita, não só dos elementos deste mundo,
mas de todos os infinitos mundos possíveis com os quais o melhor é
comparado. E isso nossa finitude não permite realizar.
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3961
![Page 62: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/62.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 62/158
![Page 63: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/63.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 63/158
63
LUÍS CÉSAR OLIVA
Talvez não. Se prosseguirmos no texto de Leibniz acima citado,
encontraremos o seguinte: nas contingentes o progresso da análise
vai ao infinito, de razão em razão, de modo que não se obtém jamais
uma demonstração acabada; todavia a razão da verdade subsiste
sempre, embora ela seja perfeitamente compreendida apenas por
Deus, único que penetra a série infinita em um só ato do espírito.6
Sem percebê-lo, Leibniz oferece uma objeção poderosa a sua própria
argumentação. É bem verdade que a demonstração do contingente éigualmente interminável para nós ou para Deus, mas isto se dá por
causa do caráter sucessivo, temporalmente desdobrado, do processo
de análise. Mas Deus não conhece desta maneira: Apenas Deus vê,
não, bem entendido, o fim da resolução, que não existe, mas pelo
menos a ligação dos termos, quer dizer, o envolvimento do predicado
no sujeito, pois ele vê tudo o que está na série.7 O caráter intuitivo do
conhecimento divino homogeneízaos dois campos queLeibniz buscava
tornar heterogêneos com o apoio da análise infinita. Os limites são doprocedimento, seja ele executado por um ser finito ou infinito, mas só
nós estamos condenados a tal procedimento. Deus percebe que este
mundo é o melhor tão imediatamente quanto nós percebemos A=A.
Sendo assim, este critério valioso, que nos permite mapear o campo
da contingência no mundo criado, bem como no interior dos outros
mundos possíveis, é inócuo para Deus no avaliar a possibilidade da
criação. Ou, como diz Ribeiro de Moura: a contingência,
mundanamente aclimatada pelo recurso à análise infinita, na verdadecarece de sustentação metafísica.8
E o que poderia dar tal sustentação? Algo que garantisse a
Deus alternativas reais. No caso em questão, a possibilidade
metafisicamente garantida de que outros mundos fossem o melhor.
Mas quais são as alternativas para algo que se define exatamente por
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3963
![Page 64: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/64.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 64/158
![Page 65: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/65.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 65/158
![Page 66: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/66.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 66/158
66
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
mas nada fala da bondade, correspondente a nossa vontade limitada.
Esta terceira perfeição divina é explicitamente apresentada em textos
posteriores, como a Monadologia. Vejamos: 48: há em Deus a
Potência, origem de tudo; depois o Conhecimento, contendo a
particularidade das idéias; por fim a Vontade, que provoca as
mudanças ou produções segundo o princípio do melhor. É isto que
corresponde ao que constitui, nas Mônadas criadas, o sujeito ou a
base, a faculdade perceptiva e a faculdade apetitiva. Em Deus, noentanto, estes atributos são absolutamente infinitos ou perfeitos, e,
nas mônadas criadas ou nas enteléquias, não passam de imitações
proporcionais à perfeição nelas contida.13 Ou na Teodicéia: Muitos
creram que havia aí uma relação secreta à santíssima Trindade; que
a potência se liga ao Pai, ou seja, à fonte da divindade; a sabedoria
ao Verbo eterno, que é chamado logos pelo mais sublime dos
evangelistas; e a vontade ou amor ao Espírito santo. Quase todas as
expressões ou comparações tomadas da natureza da substânciainteligente para aí tendem.14 Tanto do ponto de vista da revelação
cristã, que aproximaria os atributos divinos da Santíssima Trindade,
quanto da analogia com as faculdades humanas, a bondade se faria
necessária entre as perfeições divinas. É difícil explicar tal ausência,
no início do Discurso, por um deslize. Leibniz tem suas razões para
trazer a bondade divina apenas nos parágrafos seguintes. Em outras
palavras, se Leibniz esboça uma prova a priori da existência de Deus
a partir das perfeições divinas, não quer contudo que a bondade divinaseja demonstrada a priori. Ele deduz diretamente da onipotência e
onisciência divinas o fato de que Deus age da maneira mais perfeita e
praticamente joga para a criação divina a responsabilidade de fundar a
prova (a posteriori) de que Deus é sumamente bom.
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3966
![Page 67: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/67.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 67/158
67
LUÍS CÉSAR OLIVA
Assim, afasto-me muito da opinião dos que sustentam que
não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na natureza das
coisas ou nas idéias que Deus tem delas, e que as obras divinas são
boas apenas pela razão formal que Deus as fez.15 As obras divinas
devem ser intrinsecamente boas e não boas apenas porque foram feitas
por Deus. A bondade própria do mundo se deixa provar pela própria
revelação bíblica, em que se diz que Deus contemplou o mundo criado
e viu que era bom, o que seria desnecessário se as coisas fossem boassó porque Deus as fez. Além do mais, diz Leibniz, Isto é tanto mais
verdadeiro quanto é pela consideração das obras que se pode
descobrir o operário. Portanto, é preciso que estas obras tragam em
si o caráter de Deus. Confesso que a opinião contrária me parece
extremamente perigosa e bastante semelhante à dos últimos
inovadores, cuja opinião é a beleza do universo e a bondade atribuída
por nós às obras de Deus não passarem de quimeras dos homens que
concebem Deus à sua maneira.16
Se tivéssemos tido no primeiroparágrafo a versão completa da prova ontológica, como no opúsculo
O Ser perfeitíssimo existe17 , o caminho natural seria passar da suprema
bondade, como perfeição divina, à bondade do mundo que resulta de
uma ação perfeita. No entanto, não é isso que ocorre. E o que chama
Leibniz de opinião perigosa dos inovadores? Não apenas que o mundo
não é bom em si, mas que é pela consideração do operário que se
podem descobrir as obras. Por esta via, teríamos que a perfeição do
operário só permite a existência de uma obra perfeita, sem outrapossibilidade, o que tornaria o mundo uma criação necessária.
Havendo mostrado no artigo 2 que as regras de bondade e
perfeição não são fruto de uma vontade arbitrária, Leibniz deve mostrar
noartigo3do Discurso que Deus agiu, segundo estas regras, da melhor
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3967
![Page 68: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/68.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 68/158
68
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
maneira. Como vimos, não fará isso colocando a contradição de uma
ação imperfeita com um Deus sumamente bom por sua própria essência.
Também nãopode simplesmentededuzir suatese a partir da onipotência
e da onisciência divinas como sugerira no artigo 1. Por isso lançará
mão de outra noção: a glória de deus. Esta pode ser compreendida em
dois sentidos (parágrafo 109 da Teodicéia): ou é a satisfação de Deus
com o conhecimento de suas próprias perfeições, e entãoDeus a possui
sempre, ou é o conhecimento dessas perfeições por outros seresinteligentes, e então está vinculada à criação. Para haver glória, neste
segundo sentido, Deus deve ser necessariamente louvável por tudo
que faz. Quando Leibniz disse no fim do artigo 1 quanto mais
estivermos esclarecidos e informados sobre as obras de Deus, tanto
mais dispostos estaremos a achá-las excelentes e inteiramente
satisfatórias em tudo o que possamos desejar 18 , o autor referia-se à
glorificação de deus. Ora, por que louvar Deus se ele não fez o melhor
possível? Afinal, diz Leibniz, assim como um mal menor tem caráterde bem, um bem menor tem caráter de mal. Esta imperfeição atingirá
qualquer ação de Deus, por melhor que seja, se esta não chegar à ação
ótima. Só há um ótimo, ao passo que as imperfeições desdobram-se
infinitamente. Não há nenhum grau de imperfeição que não tenha
infinitos graus de imperfeição acima ou abaixo; o que colocaria Deus
numa situação sempre “inglória” se não escolhesse o melhor possível.
Só o melhor merece a glória, do contrário ela não teria razão de ser e
o princípio de razão suficiente seria novamente infringido, bem comoas Escrituras.
No Discurso, ao que parece, é por visar a glória que Deus
escolhe o melhor. No limite, poderíamos dizer que Deus não é
considerado bom porque isto está necessariamente inscrito na sua
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3968
![Page 69: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/69.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 69/158
69
LUÍS CÉSAR OLIVA
essência, e sim porque obedece seu intelecto, de modo a ser digno de
glória. Mas tal desvio é inútil se não for mostrado que esta obediência
é contingente. Daí a importância, mesmo na Teodicéia, em que a
estratégia é diferente, de deixar claro que o desejo de glória não é
necessário. Não é verdade que Deus ame sua glória necessariamente,
se por isto se entende que ele é levado necessariamente a
proporcionar-se sua glória por meio das criaturas. Pois se assim fosse,
ele se proporcionaria esta glória sempre e em toda parte. O decretode criar é livre.19
O percurso do Discurso parece sorrateiramente tornar
contingente a bondade divina. Mas outros textos põem sérias
dificuldades para este caminho: 67 – Ademais, se Deus não tivesse
escolhido a melhor série do universo (na qual está incluído o pecado),
teria admitido algo pior que todo o pecado das criaturas, pois teria
cerceado suas próprias perfeições e, como conseqüência, também as
alheias; com efeito, a perfeição divina não deve deixar de escolher omais perfeito, já que o menos bom tem algo de mau. E suprimir-se-ia
Deus, suprimir-se-iam todas as coisas, se Deus fosse afetado de
impotência, ou seu entendimento se equivocasse ou sua vontade
falhasse.20 Bertrand Russell também destacou o problema: As boas
ações de Deus são, por conseguinte, contingentes, e verdadeiras
somente dentro do mundo real. Elas são a origem da qual deriva
toda explicação dos fatos contingentes por intermédio da razão
suficiente. Elas próprias, contudo, têm sua razão suficiente nabondade de Deus, que se deve supor metafisicamente necessária.
Leibniz não consegue explicar por que, um vez que as coisas se passam
assim, as boas ações de Deus não são também necessárias. Mas se
elas fossem necessárias, a série total de suas conseqüências também
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3969
![Page 70: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/70.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 70/158
70
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
o seria e sua filosofia cairia assim no espinosismo.21 As colocações
de Russell pautaram amplamente a tradição anglo-americana de
comentário, sobretudo por causa da nota de rodapé apresentada neste
trecho pelo inglês para justificar que a bondade divina seja necessária:
Em parte alguma, pelo que sei, Leibniz afirma claramente que a
bondade de Deus é necessária, mas esta conclusão parece decorrer
de sua filosofia. Porque a bondade divina é uma verdade eterna que,
ao contrário de seus atos, não se refere somente ao mundo real.Dificilmente podemos imaginar que, em outros mundos possíveis,
Deus não tivesse sido bom, ou que seja meramente contingente o fato
de ser bom. Mas se fizéssemos esta suposição, apenas adiaríamos a
dificuldade, uma vez que em seguida precisaríamos de uma razão
suficiente para a bondade de Deus. Se essa razão fosse necessária, a
bondade divina seria também necessária; se contingente, ela própria
exigiria uma razão suficiente, a respeito da qual se repetiria a mesma
dificuldade.22
É a esta nota, mais até do que aos argumentos leibnizianos,
que vários intérpretes tentaram responder. Curley comenta: Esteéum
dilema bem real. Se algo segue de Deus ser um ser soberanamente
perfeito, deveria ser sua bondade. E ainda assim penso ser claro que
Leibniz sustentaria que em alguns mundos possíveis Deus não teria
sido bom – p. ex., em um no qual os inocentes fossem torturados
eternamente no inferno e os vis recompensados no céu.
Se a bondade de Deus é contingente, isto de fato conduz àregressão ao infinito a que Russell se refere. Mas em pelo menos um
lugar Leibniz parece não apenas aceitar esta regressão, mas insistir
nela: “Se alguém me pergunta por que Deus decidiu criar Adão,
digo que é porque decidiu fazer o mais perfeito. Se me perguntam
agora por que ele decidiu fazer o mais perfeito, ou por que ele escolhe
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3970
![Page 71: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/71.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 71/158
![Page 72: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/72.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 72/158
![Page 73: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/73.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 73/158
73
LUÍS CÉSAR OLIVA
Por outro lado, é preciso destacar que esta determinação da
vontade por razões não significa uma identificação pura e simples de
entendimento e vontade, nem uma determinação absolutamente
necessária da segunda pelo primeiro. A separação dos dois é
explicitamente defendida por Leibniz: E quanto ao paralelo entre a
relação do entendimento ao verdadeiro e da vontade ao bem, é preciso
saber que uma percepção clara e distinta de uma verdade contém
nela atualmente a afirmação desta verdade; assim o entendimento é por ela necessitado. Mas no caso de uma percepção que se tenha do
bem, o esforço de agir segundo o juízo, que penso constituir a essência
da vontade, dela se distingue.28 Mesmo que fôssemos perfeitos e só
tivéssemos conhecimentos distintos, não haveria confusão entre
vontade e intelecto porque a volição não é um juízo, e sim uma
tendência determinada por um juízo. A percepção clara e distinta não
se distingue da afirmação da verdade, logo o próprio princípio de
identidade garante o nexoabsolutamente necessário entre entendimentoe juízo. No caso da vontade, o esforço de agir, mesmo decorrendo do
juízo ou percepção distinta, não se identifica com ele. Daí que Leibniz
possa concluir, no fim do parágrafo, que a ligação entre juízo e vontade
não é tão necessária quanto se poderia pensar.
Além disso, e à diferença de Deus, não somos perfeitos, não
temos apenas conhecimentos distintos, nem seguimos sempre o juízo
do entendimento. Mesmo a possibilidade, aventada por Leibniz, de
suspendermos a ação desviando a atenção para motivos diversos dosque mais nos inclinam no momento não garante um predomínio
absoluto do entendimento: não obrigo a vontade a seguir sempre o
juízo do entendimento porque distingo este juízo dos motivos que
vêm das percepções e inclinações insensíveis. Mas considero que a
vontade segue sempre a representaçãomais vantajosa, seja ela distinta
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3973
![Page 74: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/74.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 74/158
74
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
ou confusa, do bem e do mal, a qual resulta das razões, paixões e
inclinações, ainda que ela possa também achar motivos para
suspender seu juízo. Mas é sempre por motivos que ela age.29
Por isso o domínio do voluntário, em Leibniz, vai além do
consciente, de modo que não se constitui apenas de volições, a saber,
tendências que resultam da apercepção do bem e do mal envolvidos
em um objeto, mas também de outras apetições: Há ainda esforços
que resultam das percepções insensíveis, de que não nos apercebemos,os quais prefiro chamar apetições ao invés de volições (embora haja
também apetições aperceptíveis), pois apenas chamamos ações
voluntárias aquelas de que podemos nos aperceber e sobre as quais
nossa reflexão pode recair quando seguem da consideração do bem
e do mal.30 Tais apetições, sendo este o termo mais geral para o
princípio de espontaneidade contido em toda mônada, não são elas
mesmas voluntárias, já que inconscientes, mas podem, somadas entre
si ou associadas a volições, compor um esforço voluntário quando ainclinação resultante é apercebida. Várias percepções e inclinações
concorrem para a volição perfeita, que é o resultado do seu conflito.
Há algumas imperceptíveis isoladamente, cuja soma faz uma
inquietude que nos impulsiona sem que vejamos a razão; há várias
reunidas que levam a um certo objeto, ou que dele se afastam, e
então é desejo ou temor, acompanhado também de uma inquietude,
mas que nem sempre chega ao prazer ou desprazer. Enfim, há impulsos
acompanhados efetivamente de prazer e de dor, e todas estaspercepções são ou sensações novas ou imaginações remanescentes
de alguma sensação passada (acompanhadas ou não de lembrança)
que, renovando os atrativos que estas mesmas imagens tinham nas
sensações precedentes, renovam também os impulsos antigos na
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3974
![Page 75: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/75.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 75/158
75
LUÍS CÉSAR OLIVA
proporção da vivacidade da imaginação. E de todos estes impulsos
resulta enfim o esforço prevalente, que faz a vontade plena.31
Assim, pode-se ver que toda a complexa hierarquia perceptiva
da doutrina leibniziana do conhecimento, indo do conhecimento
puramente obscuro até o adequado, também corresponde a uma
igualmente complexa rede afetiva, composta de inclinações, desejos,
prazeres, inquietude, etc., determinando a vontade; com a diferença
de que a separação vontade-entendimento permite que às vezes aquantidade e a recorrência de inclinações provenientes de pequenas
percepções obscurasas torne tãoou mais efetivas que aquelas oriundas
do conhecimento distinto.
Vejamos agora como tudo isso pode aplicar-se a Deus. Como
dissemos, a bondade divina é a vontade perfeita. E como se dá esta
perfeição? A potência vai ao ser, a sabedoria ou entendimento, ao
verdadeiro, e a vontade, ao bem. E esta causa inteligente [Deus]
deve ser infinita de todas as maneiras e absolutamente perfeita empotência, em sabedoria e em bondade, já que ela vai a tudo o que é
possível.32 Este salto para a perfeição que difere as qualidades divinas
das nossas é caracterizado pela idéia de que em Deus elas se estendem
a todo o possível. Livres da nossafinitude, as perfeições divinas podem
aplicar-se a todos os objetos próprios a elas. No caso da bondade, a
vontade se dirige a todo bem possível. Esta vontade é chamada
antecedente quando é destacada e visa cada bem à parte enquanto
bem. Neste sentido, pode-se dizer que Deus tende a todo bem enquantobem, ad perfectionem simpliciter simplicem, para falar como a
escolástica, e isto por uma vontade antecedente. Ele tem uma séria
inclinação a santificar e salvar todos os homens, a excluir o pecado
e a impedir a danação. Pode-se mesmo dizer que esta vontade é eficaz
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3975
![Page 76: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/76.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 76/158
![Page 77: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/77.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 77/158
![Page 78: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/78.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 78/158
![Page 79: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/79.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 79/158
![Page 80: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/80.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 80/158
![Page 81: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/81.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 81/158
81
LUÍS CÉSAR OLIVA
dissemos, todos são bens e inexiste combate entre eles enquanto está
ausente a perspectiva de criação. Não há muito sentido, portanto, em
falar de contingência, já que não há exclusão de possíveis, sendo todos
igualmente queridos pela bondade divina. Ao contrário, quando a
existência entra em jogo, e só então, a vontade conseqüente seleciona
o melhor, sem contudo tornar impossível aquilo que foi excluído. Daí
não ser descabido pensar que as vontades antecedentes sejam vistas
como necessárias, mantendo a necessidade da bondade divina, e avontade conseqüente, ou seja, o decreto divino, como contingente,
garantindo a contingência da criação. É necessário a Deus ser bom,
porém não lhe é necessário ser criador, pois Deus poderia permanecer
satisfeito apenas com a contemplação de suas próprias perfeições.
Deus não carece de nada que implique criação, não precisa da
glorificação dos seres criados, que em nada aumenta Sua infinita
perfeição.
Por que então decide criar? O princípio de razão suficientenos impõe esta pergunta ou uma versão dela: Assentado este princípio,
a primeira pergunta que temos direito de formular será: por que há
algo em vez de nada? Pois o nada é mais simples e mais fácil que
algo.37 Todavia a pergunta não tem resposta. O primeiro decreto livre
atesta a opção divina pelo ser, pela criação, mas não revela as razões
disso. Talvez os seres criados representem maior variedade, mas quem
negará que o nada é imbatível quanto à simplicidade?
Dado o Deus perfeitíssimo, é necessário que seja bom e queirao melhor; dado o decreto de fazer, toda a criação segue com igual
necessidade. Entretanto, como o decreto em si mesmo não é
metafisicamente necessário, seu vínculo necessário com a criação não
basta para torná-la metafisicamente necessária, mas apenas
hipoteticamente. E mais ainda, a contingência do decreto, decorrente
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3981
![Page 82: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/82.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 82/158
82
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
do fato de não haver razões necessitantes para a criação, derrama-se
também sobre o objeto do verbo fazer, ou seja, o melhor. Se o decreto
não brota necessária e diretamente da essência divina, por que exigir
que o melhor criado brotenecessária e diretamente da bondade divina?
Ele decorre apenas do decreto. Mantém-se assim a possibilidade de
outros mundos piores, necessariamente ligados a decretos possíveis
também piores. É verdade que eles são incompatíveis com o Deus
perfeitíssimo, masjá vimos que confrontá-los comas causas produtorasnão é a maneira adequada de trataras puras possibilidades (pelo menos
na medida em que não há razões para a criação). Como o próprio
primeiro decreto não é necessário, não podemos excluir as outras
alternativas. Elas só são excluídas por necessidade hipotética, dado o
decreto.
Esta parece a resposta que vai mais longe nos porquês da
contingência e é isso que nos fez privilegiá-la. Mas no fundo ela sofre
de uma fragilidade similar à das outras. Qual é, afinal, sua base? É aausência de resposta à pergunta metafísica. Sem o decreto criador,
Deus continuaria querendo o melhor, que neste caso se reduziria ao
Seu próprio ser, o qual abarca todos os possíveis no intelecto, sem as
exclusões decorrentes da existência. Devido a nossa limitação
cognitiva, não podemos ver por que o ser é melhor que o nada. Mas o
fato é que deve haver uma razão para isso, sejamos ou não capazes de
apreendê-la, do contrário a validade do princípio de razão não será
irrestrita, contrariando a letra de Leibniz. Por outro lado, se há umarazão para isso, ela certamente estará em Deus e estabelecerá um
vínculo necessário entre a essência divina (que inclui a bondade) e o
decreto de fazer o bem, o que tornaria toda a criação absolutamente
necessária. Leibniz também não pode aceitar esta opção. Ou seja, a
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3982
![Page 83: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/83.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 83/158
83
LUÍS CÉSAR OLIVA
questão da contingência em Leibniz, aqui tratada do ponto de vista da
bondade divina, parece mesmo condenada ao paradoxo, o qual tem
na irresolução da pergunta metafísica apenas a sua mais primitiva
manifestação.
Notas
1 Carta de Leibniz a Arnauld de 4 de julho de 1686 , in Leibniz, G.W.
Discours de Metaphysique et correspondance avec Arnauld . Paris,
Vrin, 1993, pág. 115.2 Adams, R. M. Leibniz´s Theories of Contingency in Woolhouse, R.
S. (ed.) Gottfried Wilhelm Leibniz: Critical Assessments. Londres e
Nova York, Routledge, 1994, vol I, pág. 141.3
Leibniz, G. W. Textes Inédits, editados por Gaston Grua, Paris, PUF,1948, pág. 493.4 Leibniz, G.W. Sobre a Contingência in Recherches Générales sur
l’Analyse des Notions et des Vérités, 24 thèses métaphysiques et autres
textes logiques et métaphysiques. Introd. et notes par J.-B. Rauzy.
Paris: PUF, 1998, pág. 326.5 Ribeiro de Moura, C.A. Contingência e Infinito in Racionalidade e
Crise: estudos sobre História da Filosofia Moderna e Contemporânea.
São Paulo-Curitiba, Discurso-Ed. UFPR, 2001, pág. 81.6 Leibniz, G. W. Recherches..., pág. 327.7 Leibniz, G. W. Sur la liberté in Recherches..., pág. 333.8 Ribeiro de Moura, C.A. Leibniz, a liberdade e os Possíveis,inVários
autores, O filósofo e sua história. Campinas, CLE, 2003, pág. 283.
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3983
![Page 84: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/84.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 84/158
84
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
9 Além disso, outra conseqüência perigosa para o pensamento
leibniziano segue da desconsideração de que o melhor é único: se o
melhor não for único, recairemos no meio da escala de perfeição dos
mundos, o que impossibilitaria uma escolha divina fundamentada;
caminho este que o princípio de razão não comporta. Neste espírito, o
próprio texto da Teodicéia parece nos indicar que é necessário que
este mundo seja o melhor: E como nas matemáticas, quando não há
maximum nem minimum, nada enfim de distinto, tudo é feitoigualmente; ou, quando isto não é possível, não se faz nada; pode-se
dizer o mesmo em matéria de perfeita sabedoria, que não é menos
regrada que as matemáticas, que se não há melhor (optimum) entre
todos os mundospossíveis, Deus não teria produzidonenhum. Leibniz,
G.W. Essais de Théodicée. Paris, Garnier-Flammarion, 1969, par. 8,
pág. 108.10 Leibniz, G. W. Em torno da liberdade e da necessidade. In Escritos
en torno a la libertad, el azar y el destino. Madrid, Tecnos, 1990,pág. 7.11 Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 230, pág. 256.12 Id., par. 282, pág. 285.13 Leibniz, G. W. Monadologia in Discurso de Metafísica e outros
textos. São Paulo, Martins Fontes, 2004, pág. 139.14 Leibniz, G.W. Essais de Théodicée, par. 150, pág. 201.15 Leibniz, G. W. Discurso de Metafísica, 2, pág. 4.16
Id. Ibid.17 Leibniz, G. W. El Ser perfectísimo existe in Escritos Filosóficos.
Ed. de E. Olaso; notas de E. Olaso y R. Torretti; trad. de R. Torretti,
T. Zwanck, E. Olaso. Buenos Aires: Editorial Charcas, 1982, pág.
148.18 Leibniz, G.W. Discurso de Metafísica, par.1, pág. 3.
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3984
![Page 85: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/85.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 85/158
85
LUÍS CÉSAR OLIVA
19 Leibniz, G.W. Essais de Théodicée, par. 230, pág. 256.20 Leibniz, G.W. Defesa da Causa de Deus, par. 67, in Escritos
Filosoficos, pág. 545.21 Russell, B. Russell, B. A Filosofia de Leibniz (uma exposição
crítica). São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, pág. 40.22 Id. Ibid.23 Curley, E. The Root of Contingency. In Woolhoouse, R. op. cit. ,
pág. 204.24 Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 22, pág. 117.25 Leibniz, G. W. Exame da física de Descartes in Escritos Filosóficos,
pág. 437.26 Leibniz, G. W. Nouveaux Essais sur l´entendement humain. Paris,
Garnier-Flammarion, 1966 II, I, 2, pág.92.27 Leibniz, G. W. Notas sobre o livro Da origem do mal publicado há
pouco na Inglaterra. In Essais de Théodicée, pág. 409.28
Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 311, pág. 302.29 Leibniz, G. W. Notas sobre o livro..., pág. 399.30 Leibniz, G.W. Nouveaux Essais..., II,XXI, 5, pág. 146.31 Id., II, XXI, 39, pág. 16432 Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 7, pág. 108.33 Id., par. 22, pág. 117.34 Leibniz, G.W. Em torno da liberdade e da necessidade in Escritos
en torno a la libertad ..., pág. 8.35
Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 235, pág. 258.36 Id., par. 237, pág. 259.37 Leibniz, G.W. Princípios da Natureza e da Graça fundados em
razão, par. 7 in Escritos Filosóficos, pág.601.
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3985
![Page 86: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/86.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 86/158
86
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Bibliografia
Leibniz,G.W. Discours de Metaphysique et correspondance avec
Arnauld . Paris:Vrin, 1993.
Discurso de Metafísica e outros textos. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
Escritos en torno a la libertad, el azar y el destino. Madrid:
Tecnos, 1990.Escritos Filosóficos. Ed. de E. Olaso; notas de E. Olaso y R.
Torretti; trad. de R. Torretti, T. Zwanck, E. Olaso. Buenos Aires:
Editorial Charcas, 1982.
Essais de Théodicée. Paris: Garnier-Flammarion, 1969.
Nouveaux Essais sur l´entendement humain. Paris, Garnier-
Flammarion, 1966
Recherches Générales sur l’Analyse des Notions et des Vérités,
24 thèses métaphysiques et autres textes logiques et métaphysiques. Introd. et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF,
1998.
Textes Inédits, editados por Gaston Grua, Paris: PUF, 1948.
Adams, R. M. Leibniz´s Theories of Contingency in Woolhouse, R.
S. (ed.) Gottfried Wilhelm Leibniz: Critical Assessments. 2 vol.
Londres e Nova York: Routledge, 1994.
Russell, B. A Filosofia de Leibniz (uma exposição crítica). São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1968.
Ribeiro de Moura, C.A. Racionalidade e Crise: estudos sobre História
da Filosofia Moderna e Contemporânea. São Paulo-Curitiba:
Discurso-Ed. UFPR, 2001.
Vários autores, O filósofo e sua história. Campinas: CLE, 2003.
3_LuisCesar_59_86.PMD 5/10/2007, 11:3986
![Page 87: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/87.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 87/158
87
TESSA MOURA LACERDA
Leibniz:
Expressão e Característica Universal*
TESSA MOURA LACERDA**
* Este texto foi originalmente apresentado no XII Encontro daAssociação Nacionalde Pós-Graduação em Filosofia, ANPOF, realizado em Salvador, em outubro de2006 e é parte de uma pesquisa financiada pela Fapesp.** Pós-doutoranda em Filosofia no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.
Resumo:
A crítica de Leibniz à prova a priori da existência de Deus,
retomada de Anselmo por Descartes, resume-se à observação de que,antes de admitir a existência de um ser perfeitíssimo, é preciso provara possibilidade da noção de um tal ser; e, para isso, é preciso mostrara compatibilidade entre as perfeições divinas. A prova é correta, masincompleta.
Leibniz jamaiscompletou essa prova, com exceção de um textoescrito em 1676, porque, para isso, precisaria lançar mão de suaCaracterística universal, cujos elementos seriam os pensamentossimples que exprimiriam as formas simples ou perfeições divinas.
O projeto de criação de uma língua formal ou Característica
universal, embora tenha permanecido inacabado, jamais foiabandonadopor Leibniz. Todavia, ao delinear o projeto, Leibniz esclarece que aCaracterística explicaria com exatidão as verdades necessárias, masnão as verdades contingentes (as quais poderiam ser admitidas comalta probabilidade, mas não com exatidão).
Ora, se fosse possível provar a compatibilidade entre asperfeições divinas, seria também necessário explicar como aincompatibilidade entre os mundos possíveis se origina dessacompatibilidade primordial; seria preciso explicar como o contingentenasce do interior do necessário.
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3987
![Page 88: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/88.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 88/158
![Page 89: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/89.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 89/158
89
TESSA MOURA LACERDA
Em uma carta de 1678, à rainha Elisabeth, discorrendo sobre a
prova cartesiana da existência de Deus, Leibniz afirma:
“... no momento me basta observar que o que é o
fundamento de minha característica é também da
demonstração da existência de Deus. Porque os
pensamentos simples são os elementos da característica
e as formas simples são a fonte das coisas. Ora, sustento
que todas as formas simples são compatíveis entre si. É uma proposição de que não poderia dar a demonstração
sem explicar longamente os fundamentos de minha
característica. Mas, estando acordada, segue-se que a
natureza de Deus, que envolve todas as formas simples
tomadas absolutamente, é possível. Provamos acima que
Deus é, uma vez que seja possível. Logo existe. O que era
a demonstrar.”1
Para completar a prova imperfeita da existência de Deus dada
por Descartes, Leibniz pretendia lançar mão de sua Característica,
ainda um projeto. Menos de uma década separam esta carta e as
“Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”, texto em
que Leibniz desconfia da possibilidade humana de chegar ao
conhecimento dos primeiros possíveis ou atributo absolutos de Deus.
Reflete Leibniz, “certamente não me atreveria a determinar agora se
é possível levar a cabo em algum momento uma análise perfeita das
noções ou se é possível reduzir os pensamentos aos primeiros possíveise noções não suscetíveis de decomposição ou (o que é o mesmo) aos
próprios atributos absolutos de Deus”2 . Anos antes, provavelmente
em 1676, o filósofo ensaiaraem um pequeno opúsculo intitulado Quod
Ens Perfectissimum existit , estabelecer essa prova com argumentos
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3989
![Page 90: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/90.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 90/158
90
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
in forma. Mas, de acordo com a carta a Elisabeth, sabemos agora que
a Característica seria o instrumento de aperfeiçoamento da prova, seria
pela Característica que o filósofo demonstraria, através do
conhecimentodasformas simples, a compatibilidadeentre elas (e, logo,
a possibilidade da noção de ser perfeitíssimo) que, sema Característica,
parece se reduzir a uma prova apenas “formal” — no mal sentido da
palavra.
Qual é a crítica que Leibniz faz à prova cartesiana da existênciade Deus?
A prova ontológica da existência de Deus, que Descartes
retoma de Anselmo, “é muito bela e engenhosa na verdade, mas há
um vazio a ser preenchido”3 , afirma Leibniz. A prova não é um
paralogismo, como sugeriu São Tomás, e não é semrazão queAnselmo
se felicita por ter encontrado um meio de provar a existência de Deus
por sua própria noção, sem ter que recorrer aos efeitos, mas é uma
prova imperfeita, incompleta. Eis como Leibniz a resume: Deus é omaior ou, na linguagem de Descartes, o mais perfeito dos seres — o
que, para Leibniz, significa dizer que Deus é um ser que envolve todos
os graus de ser, tem uma grandeza ou perfeição suprema. Ora, existir
é mais que não existir, ou seja, a existência acrescenta um grau à
grandeza ou perfeição, ou, segundo Descartes, a existência é uma
perfeição; portanto, segundo a definição ou a noção de Deus, Ele
existe, senão careceria desse grau de perfeição ou dessa perfeição que
é a existência. O problema dessa prova está na suposição tácita de queessa noção de Deus, como ser totalmente perfeito, é possível. Por
isso, a partir dessa prova podemos apenas ter uma conclusão moral e
uma suposição de que, se Deus é possível, então necessariamente Ele
existe, o que é um privilégio da noção de Deus. E como podemos
presumir a possibilidade de qualquer ser até que se prove o contrário,
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3990
![Page 91: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/91.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 91/158
91
TESSA MOURA LACERDA
a prova cartesiana nos leva a uma conclusão moral de importância
para a vida prática — devemos agir conforme a suposição de que
Deus existe —, mas não fornece uma certeza matemática.
A argumentação dessa prova pressupõe que tudo o que se pode
predicar de uma noção deve ser atribuído à coisa definida. Antes de
atribuir a existência a Deus, porém, é preciso provar que a noção de
um ser que possui todas as perfeições e, portanto, dessa essência se
segue a existência, é possível. Com efeito, não basta considerar queDeus tem uma grandeza ou uma perfeição suprema, isto é, que envolve
todososgrausdeperfeiçãoouéomaiordetodososseres,poistambém
podemos pensar em um número de todos os números, ou em um
movimento mais veloz que qualquer outro, e, no entanto, essas são
noções contraditórias — Leibniz recorre freqüentemente a esse
exemplo para mostrar a insuficiência da prova cartesiana: supondo-se
que uma roda gira com o movimento mais veloz, o que impede que se
prolongue o raio dessa roda e que, então, o ponto que tinha omovimento mais veloz caia alguns graus em relação àquele que agora
está no extremo da roda? Eis por que também a prova cartesiana da
existência de Deus pela idéia que temos dele é criticada por Leibniz.
Segundo Descartes, há em nós a idéia de Deus porque pensamos nele
e não o faríamos se não tivéssemos a idéia de Deus; se essa idéia é a
idéia de um ser infinito e é verdadeira não poderia ser causada por
qualquer coisa menor que um ser infinito, portanto Deus é sua causa
e, logo, Ele existe. Naturalmente está em jogo a teoria de conhecimentodesses filósofos. Enquanto Descartes considera que não podemos
pensar em nada de que não tenhamos uma idéia, e nem mesmo falar
de algo sem essa condição4 , Leibniz afirma que a idéia é uma noção
possível: não temos a idéia do movimento mais veloz, porque se trata
de uma noção contraditória, e no entanto falamos e pensamos nele,
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3991
![Page 92: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/92.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 92/158
92
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
“freqüentemente pensamos apenas confusamente naquilo de que
falamos, e não temos consciência da idéia que existe em nossa mente
a menos que entendamos a coisa e a decomponhamos em seus
elementos de maneira suficiente”5 . Daí a exigência de que se mostre
a possibilidade de uma essência que envolva existência ou da noção
de um ser que possui todas as perfeições em grau supremo. É claro
que a noção de Deus não é como todas as demais, porque dela
necessariamente se segue a existência, se for possível, enquantoqualquer outra noção de que provemos a possibilidade não
necessariamente existe, tem uma existência possível. Mas não por isso
podemos nos privar de demonstrar a possibilidade da noção de Deus.
Se pensarmos a crítica do ponto de vista da teoria do
conhecimento podemos dizer, em resumo, que, para Leibniz, Descartes
se contenta com uma definição nominal de Deus, na medida em que
não mostra a possibilidade dessa noção e não chega, pois, a uma
definição real. Descartes deixaria o interlocutor no meio do caminho,sem mostrar como ele pode dar os passos da premissa à conclusão do
argumento, “não basta que Descartes tenha invocado a experiência
e alegado o que sentia clara e distintamente nele mesmo, pois põe
um fim à demonstração sem acabá-la, a menos que mostre por que
meio outros podem chegar a uma experiência desse gênero”6 . Este é
o problema da experiência: sempre que se recorre à experiência no
curso de uma demonstração, afirma Leibniz, deve-se indicaraos outros
a maneira de fazer essa experiência se não quisermos convencê-lospela autoridade. Mas para um filósofo preocupado com a forma lógica,
como Leibniz, o melhor mesmo é fornecer os argumentos in forma:
“Toda demonstração rigorosa que não omite nada que seja necessário
à força do raciocínio é desse tipo (...), uma vez que a forma ou a
disposição de todo esse raciocínio é causa da evidência”7. Diante
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3992
![Page 93: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/93.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 93/158
93
TESSA MOURA LACERDA
dessa afirmação podemos supor que é possível estabelecer as prova
da existência de Deus com argumentos in forma e chegar, assim, a
uma definição real da noção do ser perfeitíssimo. Não deixa de ser
curioso que Leibniz se aplique em tantos textos a mostrar a insuficiência
do argumento cartesiano sem, no entanto, preencher explicitamente o
vazio que vê nessa argumentação. Talvez isso se explique ainda pela
teoria do conhecimento. Uma definição real, diz o filósofo8 , deve
provar a possibilidade do definido de maneira a priori, ou seja, quandodecompomos a noção em seus requisitos ou em outras noções de
possibilidade conhecida; se a análise foi levada a cabo e não surgiu
nenhuma contradição, então a noção é absolutamente possível. Eis o
papel da Característica no aperfeiçoamento da prova: os pensamentos
simples ou os números característicos exprimiriam os requisitos da
noção de Deus, ou seja, as formas simples que exprimem a essência
divina e são a fonte de tudo o que existe. As formas simples são os
elementos das coisas, os pensamentos simples, os elementos daCaracterística.Nossas idéias convêm comas idéiasde Deus nas mesmas
relações. Nossas idéias exprimem as idéias de Deus. Isso significa
que, se determinarmos o alfabeto dos pensamentos humanos, ou seja,
se forjarmos signos característicos que exprimam os termos simples
de nossos pensamentos, então, analogicamente poderemos, pelarelação
entre esses termos, conhecer de que maneira as formas simples,
positivas e absolutas, que exprimem a essência divina, se relacionam
dando origem a uma variedade de idéias.Mas qual é exatamente o projeto da Característica universal?
Em um dos esboços desse projeto 9 , Leibniz define sua
Característica universal estabelecendo uma distância entre seu projeto
e o misticismo de uma língua adâmica e da crença de que os números
escondem grandes mistérios. A Característica seria a atribuição a todas
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3993
![Page 94: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/94.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 94/158
![Page 95: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/95.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 95/158
95
TESSA MOURA LACERDA
as formas simples, explicaríamos não só o real, mas também o possível?
Conheceríamos inteiramente a contingência e os possíveis
contingentes? O ser seria transparente, límpido? Nada haveria de
obscuro para nosso entendimento?
Se fosse esse o projeto que fracassou, podemos perguntar em
que medida houve efetivamente um fracasso. Porque, até que ponto
Leibniz acreditava que o entendimento humano pudesse, mesmo com
as limitações impostas pela nossa forma de conhecer, ou seja, pornosso entendimento simbólico e incapaz de intuição, se igualar ao
entendimento divino? Não se tratava de um projeto destinado por
princípio ao fracasso? Era esse mesmo o projeto da Característica
universal? Leibniz o abandonou?
Textualmente Leibniz jamais afirmou que, por meio da arte
característica, o entendimento humano se igualaria ao entendimento
divino. Com efeito, ao elencar as vantagens que a Característica traria
para o conhecimento humano, Leibniz apresenta basicamente duasaquisiçõesdecorrentes da construção dessa línguauniversal. Aprimeira
é acabar com as disputas entre os filósofos e a quem perguntasse “ o
que faz vossa razão mais correta que a minha, que critério de verdade
vós possuís?”, responder simplesmente “Calculemos!”12 . Mas a
segunda é empregar a Característica para tudo o que depende de
conjecturas — as pesquisas dehistória civil e natural, a arte de examinar
os corpos naturais ou as pessoas sábias, o direito, a medicina, o
governo, etc. Nesse caso teríamos a escolhade, partindo de conjecturas,determinar demonstrativamente o “grau de probabilidade” a partir dos
dados, ou, estabelecer uma “aproximação ao infinito”, e poderíamos,
então, “colocar na balança” prós e contras de cada decisão para escolher
“como o perfeito campeão nos jogos que misturam razão e sorte”13.
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3995
![Page 96: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/96.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 96/158
96
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Dois anos antesde sua morte, em 10 de janeiro de 1714, Leibniz
escreve a Rémond:
“Se eu tivesse sido menos disperso, ou se fosse
mais jovem ou assistido por pessoas jovens e bem
dispostas, teria esperanças de apresentar um tipo de
Espécime Geral, na qual todas as verdades de razão
seriam reduzidas a uma maneira de cálculo. Isso poderia
ser ao mesmo tempo uma espécie de língua ou escriturauniversal, mas infinitamente diferente de todas aquelas
que foram projetadas até hoje, pois os caracteres e as
próprias palavras dirigiriam a razão, e os erros (com
exceção dos erros de fato) seriam apenas erros de cálculo.
Seria muito difícil formar ou inventar esta Língua ou
Característica, mas muito fácil aprendê-la sem qualquer
Dicionário. Ela serviria também para estimar os graus
de verossimilhança (quando não tivéssemos dadossuficientes para chegar a verdades certas) e para ver o
que é preciso para completar [as verdades]. E essa
estimativa seria das mais importantes para o uso da vida
e para as deliberações da prática, nas quais, estimando
as probabilidades, erramos o cálculo na maioria delas.”14
De acordo com essa carta podemos afirmar que, embora
Leibniz tenha de fatoabandonado o projetoda Característica universal,
esse abandono se deu não por razões teóricas, mas por impedimentoscontingentes. O que a missiva deixa claro também é que Leibniz não
pretendia reduzir as verdades contingentes ou verdades de fato a
verdades de razão, mas apenas oferecer um meio de determinar com a
máxima probabilidade possível verdades sobre as quais jamais
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3996
![Page 97: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/97.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 97/158
![Page 98: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/98.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 98/158
98
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
dessa essência, todas exprimem o mesmo e, juntas, constituem a própria
essência de Deus. Ora, os indivíduos ou as essências individuais
resultam da relação entre essas formas simples, compatíveis entre si,
mas as essências individuais distinguem-se umas das outras por uma
distinção real. E as essências individuais possíveis não são todas
compatíveis entre si, dão origem a universos incompossíveis uns em
relação aos outros. Como explicar que a contradição nasça daquela
compatibilidade original de perfeições? E é preciso explicar isso paradar a razão da contingência. Ou, afirmar que se trata de algo
incompreensível e, então, silenciar sobre a maneira de mostrar a
compatibilidade das formas simples, para não ser levado a afirmar
com Deleuze15 que, para Leibniz, em algum lugar do entendimento
divino, o Um se combina ao zero, ou o ser ao nada, para dar origem à
variedade de mundos possíveis. Leibniz escolhe o silêncio:
“Quando Locke declara não compreender como
a variedade das idéias é compatível com a simplicidadede Deus, parece-me que não deve deduzir daí uma objeção
contra o padre Malebranche; pois não há sistema que
possa fazer compreender uma tal coisa. Nós não podemos
compreender o incomensurável e mil outras coisas, cuja
verdade não deixa de nos ser conhecida, e temos o direito
de empregá-las para dar a razão de outras, que dependem
delas. Algo de próximo tem lugar em todas as substâncias
simples, em que há uma variedade de afecções na unidadeda substância.”16
Não podemos explicar como a variedade nasce da simplicidade
divina, como formas simples, absolutas e afirmativas, que são
compatíveis entre si, dão origem à incompatibilidade de mundos
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:3998
![Page 99: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/99.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 99/158
![Page 100: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/100.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 100/158
100
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
visão analítica de todos os elementose conexões existentes na realidade
e de que dependem a determinação necessária do indivíduo e sua
inserção na totalidade; tampouco é capaz de conhecer as leis
universalíssimas que dão a razão de ser do mundo, pois para isso
precisaria ter uma visão da estrutura analítica da realidade. Mas se o
homem não pode conhecer nem a singularidade do particular, nem o
universal, nada se furta à onisciência divina, e o racionalismo integral
da realidade permanece intacto.Se for assim, a Característica universal poderia ser considerada
uma espécie de “paliativo”, diante da impossibilidade de um
conhecimento humano enciclopédico,ou seja, a arte característica teria
lugar de um conhecimento adequado, embora seja a expressão
simbólica de verdades. Mas se a Característica é um “paliativo” é
porque jamais se pretendeu que o entendimento humano se igualasse
ao entendimento divino, ou seja, jamais se pretendeu que os homens
chegassem a conhecimentos plenamente adequados, a não ser quandorestritos a verdades de razão ou verdades matemáticas. O contingente
continuaria com sua sombra, qualquer que fosse o ângulo da
iluminação, a obscuridade jamais deixaria de ter lugar para o
conhecimento humano.
Lebniz sempre desconfiou do conhecimentointuitivo. Se jamais
negou definitivamente a possibilidade de um conhecimento adequado,
não acreditava que esse conhecimento poderia se dar por intuição.
Conhecemos, raciocinamos, descobrimos, provamos por símbolos, emsuma, o pensamento opera com símbolos. Não pensamos
expressamente, ou explicitamente,em todas as marcasque caracterizam
uma noção. Nem poderíamos. Cada pensamento envolve o infinito, as
idéias simples “são simples apenas em aparência, são acompanhadas
de circunstâncias que têm ligação com elas, ainda que essa ligação
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39100
![Page 101: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/101.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 101/158
101
TESSA MOURA LACERDA
não seja entendida por nós, e essas circunstâncias oferecem alguma
coisa explicável e suscetível de análise”18 . Uma idéia verdadeiramente
adequada pressupõea multiplicidade infinita de substâncias e a intuição
da totalidade desse múltiplo que se exprime em toda idéia. Talvez por
isso, sem jamais abandonar a idéia de uma Característica universal,
Leibniz abandona o projeto de um alfabeto dos pensamentos humanos
acreditando que os nomes primitivos, a partir dos quais se daria a
combinatória para a expressão e a descoberta de verdades, podem serpostulados para a comodidade do cálculo, sem que sejam pensados
como termos últimos, atômicos “Não existe átomo (...). Segue daí
que em cada partícula do universo está contido um mundo de infinitas
criaturas (...). Não há nenhuma figura determinada nas coisas, porque
nenhuma figura pode satisfazer às infinitas impressões”19 .
Por outro lado, a Característica universal, como instrumento
de comunicação universal — que remete à preocupação de Leibniz
com a questão irênica —, não é jamais pensada como uma línguauniversal isenta de ambigüidade ou uma língua filosóficaque elimine a
confusio linguarum da linguagem natural celebrada como um fato
positivo por quem, como afirma Umberto Eco, “ficara sempre
fascinado pela riqueza e pluralidade das línguas naturais, a cujas
gerações e filiações dedicara tantas pesquisas”20 . Admitindo a
impossibilidade de fato de descoberta da língua adâmica e o absurdo
da hipótese de voltar a praticá-la, Leibniz pensa a Característica como
a criação de uma linguagem científica, um instrumento de descobertada verdade, não como um substituto formal, artificial, da primitiva
língua dos homens.
ÉprecisolevaremcontaduascoisasemrelaçãoàCaracterística
universal. Em primeiro lugar, o que fundamenta a idéia de uma
linguagem científica como essa são os pensamentos cegos, isto é,
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39101
![Page 102: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/102.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 102/158
![Page 103: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/103.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 103/158
103
TESSA MOURA LACERDA
erguido sobre o fundamento dos pensamentos cegos, Leibniz jamais
pretendeu que o conhecimentohumano alcançasse a clareza da intuição
— cartesiana ou espinosana. Jamais pensou que fosse humanamente
possível esclarecer a obscuridade, iluminar com clareza meridiana o
fundo obscuro subjacente em cada pensamento distinto. Por melhor
elaborados quefossem os caracteres dessa linguagem universal, seriam
ainda e sempre caracteres, símbolos, expressivos, mas símbolos.
Todavia, e em segundo lugar, como mostra Lebrun, quandoLeibniz pensa uma homogeneidade de direito entre os sentidos e o
entendimento — pelo que é criticado por não preservar a diferença de
natureza do sensível em relação ao inteligível, relegando aquele à
função de deformar as representações do entendimento — “é porque
nenhum signo, no limite, é signo de instituição; ou melhor, é porque
desaparece a fronteira entre signos naturais e signos de instituição,
substitutos que mostram e substitutos que dissimulam a razão de sua
relação com a coisa.”23
É por isso que o símbolo para Leibniz nãopode nunca ser totalmente equívoco, porque, na medida em que
exprime uma coisa, uma idéia, um símbolo não traduz a coisa, nem
substitui a idéia, ele é a coisa ou a idéia sob uma determinada
perspectiva. O símbolo não é um índice, sugere Lebrun, mas um perfil
da coisa: Leibniz não distingue a apresentação da coisa de uma
indicação dela por substituição e, por isso, todo conhecimento pode
ser pensado como representação, ou apresentação, porque estar
representado não é mais pensado a partir da metáfora da visão. Serexprimido não é nunca ser expresso ou explícito, não é jamais ser uma
cópia de um original. Se o símbolo oculta algo da coisa ou da idéia
não se trata de uma relação visível, de uma semelhança em sentido
visual, mas da lei correspondência, que exprime a coisa ou a idéia,
que a apresenta, mas de maneira analógica. Há um jogo entre o que o
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39103
![Page 104: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/104.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 104/158
104
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
símbolo apresenta e o que esconde, ou melhor, envolve, implica, de
maneira não explícita. É isso que caracteriza a expressão leibniziana.
O que um símbolo “oculta” é precisamente a lei de correspondência, a
harmonia que mantém a analogia entre o que exprime e o exprimido;
mas é assim que ele é a expressão de alguma coisa. O símbolo é a
coisa sob determinada perspectiva. Não há como anular a sombra que
permanece sob o que é distintamente percebido, mas isso não é uma
carência do símbolo, é constitutivo dele; mais que isso, se não hácomo anular as diferenças ontológicas de pontos de vista, ainda menos
poderíamos pretender anulá-las formalmente, e essa é a riqueza do
mundo leibniziano, é isso que faz a variedade do mundo. Leibniz não
rejeita o adequado, de alguma maneira a adequação permanece como
um ideal possível e o termo “adequado” nunca deixou de fazer parte
da classificação leibniziana dos tipos de conhecimento, mas é Leibniz
quemdiz:“não sei se os homens podem oferecer um exemplo perfeito
deste [conhecimento adequado], embora a noção dos números seaproxime bastante dele”24 . Imaginar que podemos emergir do fundo
obscuro e, desprezando a perspectiva inerente a cada indivíduo, chegar
a uma expressão plenamente unívoca, seria o mesmo que pensar os
homens como deuses, ou espíritos sem corpos, seria desprezar a
singularidade de cada ser individual. Mas a sabedoria, diz Leibniz,
está em variar: “Multiplicar unicamente a mesma coisa, por mais
nobre queela seja, seria supérfluo, seria uma pobreza: ter mil Virgílios
bem encadernados na biblioteca, cantar sempre as árias da Óperade Cadmus e de Hermione, quebrar todas as porcelanas para não ter
senão xícaras de ouro, ter botões somente de diamante, comer apenas
perdiz, beber somente vinho da Hungria ou de Shiras; isso poderia
ser chamado de razão?” 25
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39104
![Page 105: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/105.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 105/158
105
TESSA MOURA LACERDA
A filosofia expressiva de Leibniz, porque inclui na concepção
de expressãoa analogia e a harmonia, é uma filosofiasimbólica, Leibniz
jamais separa a expressão dos signos e das variações que eles trazem
— em cada expressão, o distinto e o confuso variam. Mas o símbolo
para Leibniz não é mistificador, como para Espinosa. E o obscuro é
precisamente o que faz a riqueza de um universo em que cada ponto
de vista é como um mundo inteiro, e o mundo é multiplicado por cada
uma das várias perspectivas individuais, por cada expressão singulardo todo.
Se a gênese da teoria da expressão leibniziana está em suas
reflexões sobre a Característica universal, como sugere Lamarra26 ,
então o que poderia ser visto como um fracasso (o fato do projeto da
Característica ter permanecido inacabado) é na verdade a origem de
uma complexa rede explicativa capaz de dar conta dos principais temas
da filosofia de Leibniz. A teoria da expressão, definida pela primeira
vez em 1678, no opúsculo Oqueéidéia, permite articular as reflexõesde Leibniz sobre as matemáticas, a teologia, a ontologia e a
epistemologia. E, certamente, o silêncio de Leibniz sobre a prova da
existência de Deus a partir do fim da década de 70 diz muito sobre a
maneira como o filósofo vai conceber a expressão e sobre o papel que
vai reservar, no interior da idéia de expressão, ao obscuro, ao confuso,
ao invisível.
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39105
![Page 106: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/106.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 106/158
![Page 107: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/107.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 107/158
107
TESSA MOURA LACERDA
Notas
1 Leibniz – “Carta a Elisabeth, 1678”, in Die philosophischen Schriften.
Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão
Hildesheim, 1962 (doravante citado PS, seguido do volume e da
página) – IV, p.296.2 Leibniz – “Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”,
PS, IV, p.425.Tradução argentina in Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de
Olaso, Buenos Aires, Charcas, 1982. – p.275.3 Leibniz – Novos Ensaios, IV, x, §7. Paris: GF- Flammarion, 1990
(citado NE, seguido de livro e artigo) – p.345.4 Cf. Descartes – A Mersenne. Oeuvres de Descartes. Publiées par C.
Adams e P. Tannery. 11 volumes. Paris: Vrin, 1971 – III, p.393.5 Leibniz – “Observações sobre parte geral dos Princípios de
Descartes”, §18. PS, IV, p. 360.Tradução argentina in Escritos Filosoficos, Buenos Aires: Editorial
Charcas, 1982 – p.422.6 Leibniz – Quod Ens Perfectissimum existit . Sämtliche Schriften und
Briefe, herausgegebenvon der deutschenAkademiederWissenschaften
zu Berlin, VI, iii, p.578-579.
Tradução francesa in Recherches générales su l’analyse des notions
et des vérités. Introduction et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF, 1998.
– p. 28.7 Leibniz – “Carta a Elisabeth, 1978”, PS, IV, p.295.8 Leibniz – “Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”,
PS, IV, p.425.
Tradução argentina in Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de
Olaso, Ed. cit. – p.275.
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39107
![Page 108: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/108.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 108/158
108
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
9 Sem título, PS, VII – p.184-189 (tradução francesa in Recherches
générales sur l’analyse des notions et des vérités. Paris: PUF, 1998 –
p.63-70).10 “eu ignorava que os geômetras, quando colocam as proposições
segundo a ordem que permite demonstrá-las umas a partir das outras,
fazem exatamente o que eu desejava.” PS, VII – p.185 (tradução
francesa in Recherches générales sur l’analyse des notions et des
vérités. Ed. cit. – p.65).11 “Assiduamente dedicado a essa tarefa, era inevitável que eu
chegasse a estaconsideraçãoadmirável, a saber, quese pode elaborar
um alfabeto dos pensamentos humanos e que a combinação das letras
desse alfabeto, juntamente com a análise das palavras feitas com
elas, permitiriam encontrar e discernir todas as coisas.” PS, VII –
p.185 (tradução francesa in Recherches générales sur l’analyse des
notions et des vérités. Ed. cit. – p.66).12
PS, VII – p.200 (tradução francesa in Recherches générales sur l’analyse des notions et des vérités. Ed. cit. – p.163). Cf. também PS,
VII – p.188 (tradução francesa in Recherches générales sur l’analyse
des notions et des vérités. Ed. cit. – p.69).13 PS, VII – p.201 (tradução francesa in Recherches générales sur
l’analyse des notions et des vérités. Ed. cit. – p.163).14 PS, VII, Einleitung.15 Deleuze, G. – Spinoza et le probleme de l’expression. Paris: Minuit,
1968 – p.306.16 [Zu Lockes Urteil über Malebranche], PS, VI – p.576.17 Cf. Leopoldo e Silva, F. – “Universalidade e simbolização em
Leibniz”, publicado neste número dos Cadernos espinosanos –p.49.18 Leibniz – NE, III, iv, §16. Ed. cit. – p.232-233.
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39108
![Page 109: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/109.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 109/158
109
TESSA MOURA LACERDA
19 Leibniz – Opuscules et fragments inédits (ed. par L. Couturat).
Paris: Alcan, 1903 – pp. 518-23.20 Eco, U. – A busca da língua perfeita. Bauru: Edusc, 2001 – p.327.21 Leibniz citado por Eco, U. – A busca da língua perfeita. Ed. cit. –
p. 338.22 Leibniz citado por Eco, U. – A busca da língua perfeita. Ed. cit. –
p. 338.
23 Lebrun, G. – “A noção de ‘semelhança’ de Descartes a Leibniz” inDascal, M. (org.) – Conhecimento, linguagem, ideologia. São Paulo:
Perspectiva, 1989 – p.53-54.24 Leibniz – PS, IV, p.423.25 Leibniz – Teodicéia, II, §124. Paris: Flammarion, 1969 – p.181.26 Lamarra, A. – “Sur l’origine de la theorie de l’expression dans la
philosophie de Leibniz” in Recherches sur le XVIIe siècle,número5–
p. 78-83.
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39109
![Page 110: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/110.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 110/158
110
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
4_Tessa_87_110.PMD 5/10/2007, 11:39110
![Page 111: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/111.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 111/158
111
ERICKA MARIE ITOKAZU
A filosofia espinosana para além do corpo-
máquina: o paralelismo em questão*
ERICKA MARIE ITOKAZU**
* A redação deste artigo muito se deve à contribuição feita por outros pesquisadoresno XII Encontro daANPOF, realizadoem Salvador Bahia em 2006.A compreensãodo que seria o mecanicismo em Espinosa tornou-se fundamental, o que nos levou
a discuti-lo oportunamente no III Congresso Spinoza realizado na UnivesidadNacional de Córdoba, e que resultou na publicação do resumo da comunicaçãocomo “Spinoza y el mecanicismo en el siglo XVII: ¿una herencia cartesiana?”Desde então, as articulações internas sobre o mecanicismo foram sopesadas ereelaboradas, alguns argumentos acrescidos,e a recusa à interpretação doparalelismo em Espinosa acabou recebendo a ênfase e destaque queora procuramosanalisar neste artigo.** Doutoranda em História da Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP.
Resumo: Pretendemos analisar alguns trechos da Ética para buscarcompreender uma célebre indagação espinosana: o que pode um corpo?
Tradicionalmente, é a mente que governa o corpo. Tudo o que surgecomo criação ou inovação segue-se de uma ação da mente sobre ocorpo. Não sendo este mais do que o lugar das relações necessárias,mecânicas ou, ainda pior, o lugar dos pecados, a liberdade não viriasenão da sujeição do corpo pela mente. Esta não seria ativa senão namedida em que aquele fosse passivo. Com Espinosa, esse tradicionalponto de vista é inteiramente invertido e é esta inversão que acaba pordar sentido à questão “o que pode um corpo?” Com Espinosa, corpoe mente deverão ser ativos juntos ou passivos juntos. O corpo ocupaum lugar proeminente. Será ele também capaz de criação. Será ele um
dos fulcros da liberdade. Eis o trabalho que procuramos empreenderneste artigo. E, se muito já se escreveu sobre como, no século XVII,o corpo deixa de ser o lugar das doenças e pecados para tornar-se olugar das relações necessárias e mecânicas, a inovação espinosanaestá justamente em ir para além do corpo-máquina. Contudo, o alcancedesta empreita está estreitamente vinculado a certa tradição de
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39111
![Page 112: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/112.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 112/158
112
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
comentadores que defendem o paralelismo na relação corpo e mente.A reflexão acerca do paralelismo faz-se portanto necessária paracompreender como o sentido desta indagação espinosana suscita odesvelamento de todo um horizonte que se abre, finalmente, para ocorpo e a liberdade.
Palavras-chave: corpo, corpo-máquina, mecanicismo, relação corpo/ mente, singularidade.
Abstract: We intend to analyze some passages from Ethics in orderto understand a renowned Spinozian quote: what’s a body capable of?Traditionally, the mind has dominion over the body. Everything whichbecomes real through creation or innovation comes from an action of the mind over the body. The body being nothing more than the field of necessary and mechanical relations, or worse, the place of sins, free-dom would come by the subjection of the body by the mind. The mindcould not be active unless the body were passive. For Spinoza, thistraditional point of view is completely inverted, and, based on thisinversion, we can figure out the meaning of the quote: “what’s a bodycapable of?” According to Spinoza, body and mind must be active orpassive together. The body has a prominent role. It’s also capable of creating. It is one of the fulcrums of freedom as well. That is what weintend to discuss in the present article. And, if much has been writtenon how, in the XVII century, the body ceases to be the place of sick-ness and of sins to become the place of necessary and mechanicalrelations, the innovation in Spinoza consists precisely in going beyondthe body-machine concept. However, the reach of this undertaking isclosely linked to a certain tradition of commentators who defend par-allelism in the relation between body and mind. The reflection upon
parallelism is, therefore, necessary for the understanding of how themeaning of the Spinozan quote brings forth the unfolding of a wholenew horizon, which lays open, at long last, for both body and free-dom.
Key-words: body, body-machine, mechanicism, body/mind relation,
singularity.
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39112
![Page 113: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/113.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 113/158
113
ERICKA MARIE ITOKAZU
I – A geometrização do movimento e o mecanicismo
Os céus e a Terra. Infinita parece ser a distância que os separa.
E a incomensurabilidade de tal distância não se encontra em nenhuma
grandeza.OqueseparaoscéuseaTerranãoépassíveldesermedido.
Pelo contrário. O Cosmo, na sua concepção clássica e medieval, era
uma unidade fechada de um Todo. Um todo finito, qualitativamente
determinado em esferas concêntricas de realidades distintas cuja
estrutura espacial revelava uma hierarquia de valor e perfeição: a
incorruptibilidade e luminosidade dos céus, a opacidade surda da
corrupção presente nos movimentos percebidos na Terra. A distância
que separa o que contemplamos nos céus do que percebemos na Terra
é incomensurável porque não há medida comum entre desiguais, entre
heterogêneos que, como tais, são legislados por leis distintas.
Um Cosmo finito e hierárquico. Eis o lugar abandonado com a
revolução científica do século XVII. Isento de diferenças, ageometrização do espaço tornou o campo da extensão homogêneo e
uniforme para todo domínio da matéria, seja a de corpos celestes ou
terrestres, abrindo-lhes um campo isonômico de uma natureza que
até então nenhum homem percebera e jamais concebera: Du monde
clos à l’univers infini, nos dirá Alexandre Koyré. E se este universo
infinito está escrito em caracteres matemáticos, é porque nele não há
hierarquias, nem há lugar para as diferenças qualitativas. Contudo, se
abandonamos um Cosmo todo ele organizado e ordenado, como nãonos sentirmos abandonados neste universo homogêneo e infinito?
Como não nos perdermos em seus tantos labirintos indiferenciáveis,
um universo cujo centro está em toda parte, e no qual navegamos
num mar infinito sem quaisquer referências?
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39113
![Page 114: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/114.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 114/158
114
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Enveredar pelos meandros da infinitude exigia uma tomada de
atitude, uma nova postura frente a uma nova natureza. Exatamente
por este motivo,Alexandre Koyré afirma que esta revolução científica
realiza uma conversão: da scientia contemplativa para scientia activa,
da teoria para a práxis. Deixamos de ser espectadores para tornarmo-
nos senhores e mestres da natureza. Ler este grande livro
continuamente aberto, navegar por este universo infinito, exige
portanto a construção de instrumentos intelectuais sem os quaisvagaríamos errantes sem bússola a nos nortear na terra, sem astrolábio
a nos guiar no mar. Eis como configuram-se dois projetos inovadores
característicos do seiscentos: a geometrização do movimento e o
mecanicismo.
“o abandono da concepção clássica e medieval
do Cosmo (...) e sua substituição pela do Universo, isto
é, de um conjunto aberto e indefinidamente extenso do
Ser, unido pela identidade das leis fundamentais que ogoverna, determina a fusão da física celeste com a física
terrestre, e permite a esta última utilizar e aplicar a seus
problemas os métodos matemáticos hipotético-dedutivos
desenvolvidos pela primeira; implica também a
impossibilidade de estabelecer e de elaborar uma física
terrestre ou, pelo menos, uma mecânica terrestre, sem
desenvolver simultaneamente uma mecânica celeste”1
Mecanicismo e geometrização do movimento não são projetosidênticos: que Galileu tenha aberto a senda para a geometrização do
movimento, tão fortemente defendida por Descartes em seu grande
sonho pela reductione scientiae ad geometriam, a identificação da
extensão à matéria na filosofia cartesiana muito o distancia da física-
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39114
![Page 115: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/115.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 115/158
115
ERICKA MARIE ITOKAZU
matemática galileana2 . Que o atomista Gassendi seja considerado
mecanicista tanto quanto Descartes, que justamente recusava a
existência dos átomos e para quem o vazio não tinha lugar; que a
física de Pascal seja defendida como mecanicista que, por sua vez,
admite o vazio... Como coadunar tantas dessemelhanças sob nomes
tais como “mecanicismo” ou “geometrização do movimento”?
O que há de comum na ousada empreita? Uma nova postura
que colapsou a tradição escolástico-aristotélica e sua autoridade noconhecimento dos domínio da matéria. O mecanicismo, mais que um
sistema filosófico preciso, é um conjunto de novas atitudes no estudo
da natureza, uma recusa a toda finalidade e a toda diferença qualitativa,
e o seu desafio será, portanto, o de explicá-la de um ponto de vista
quantitativo, restringindo a explicação dos fenômenos corporais
somente à relação entre corpos. Sem apelo a nada que seja externo ao
domínio da matéria, o mecanicismo acaba, finalmente, por conferir
certa autonomia ao conhecimento na esfera dos corpos. Não é poracaso que a geometrização do movimento ergueu-se como o seu mais
excelente instrumento, porquanto torna possível “reconstruir os
fenômenos do movimento no interior do domínio de uma
inteligibilidade geométrica de tal sorte que os fenômenos, submetidos
à razão geométrica, sejam objetos passíveis de serem deduzidos sob o
modelo dos Elementos de Euclides.”3
Nesta revolução científica, segundo Koyré, encontramos o
nascedouro da física moderna que tem na lei da inércia a sua leifundamental (seja implicitamente articulada, como na mecânica de
Galileu, seja explicitamente enunciada, como no caso da de Descartes)
que permite avançar e seguir adiante na formulação de uma mecânica
celeste em perfeita concordância com uma mecânica terrestre. E
Descartes parece ser o primeiro a perceber o alcance destes
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39115
![Page 116: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/116.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 116/158
116
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
instrumentos intelectuais. O completo domínio e autonomia do
conhecimento dos corpos deve abarcar, além dos céus e da Terra, um
corpo de outro gênero: o corpo humano. Tanto o mecanicismo quanto
a geometrização do movimento parecem poder tornar cognoscível a
dinâmica e a estrutura do corpo humano sob as mesmas leis pelas
quais se explicam quaisquer outros fenômenos da natureza4 .
II – O corpo humano em Espinosa e Descartes: o mecanicismo
em questão
Distanciando-se da perspectiva qualitativa e do finalismo, o
corpo humano, outrora visto como antro inóspito de moléstias e
pestilências, mestre dos vícios e prisão da alma, porque compartilha
da mesma natureza de qualquer outro corpo físico, pode agora tornar-
se objeto do conhecimento a ser iluminado pela racionalidade
geométrica, assim como explicado pela dinâmica própria aos corpospelo seu mecanicismo. Não é por outro motivo que René Guénon5
associa a autonomia dos estudos dos corpos onde a reina a quantidade
como parte do mesmo movimento moderno de desligamento da esfera
profana do sagrado.
Charles Ramond reconhece no projeto seiscentista a cuidadosa
construção mecanicista do corpo humano que afasta o finalismo,
extingue as almas vegetativa e sensitiva, porém, pergunta ele, a que
preço? A crítica de Charles Ramond vai mesmo nesta direção: apóster mostrado “tão claramente quanto possível a separação, no homem,
de domínios distintos do corpo e do pensamento, os filósofos do XVII
[no qual estão incluídos Descartes, Espinosa, Pascal e Leibniz] só
puderam encontrar sua união, no homem, bastante obscura – todo
progresso no conhecimento do corpo humano parecendo dever ser
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39116
![Page 117: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/117.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 117/158
117
ERICKA MARIE ITOKAZU
pago por um recuo no conhecimento do corpo humano6 . É nesta toada
que segue Chantal Jaquet ao analisar o emblemático homem-máquina
cartesiano, tal qual fora apresentado no Tratado do Homem:
Desejo quese considere que estas funções seguem,
naturalmente nesta máquina, somente da disposição de
seus órgãos, nem mais nem menos que os movimentos de
um relógio ou de outro autômato que se movimenta pelo
contrapeso de suas rodas; de tal maneira que não é
necessário, neste caso, conceber nesta máquina nenhuma
outra alma vegetativa, nem sensitiva, nem outro princípio
de movimento e de vida senão seu sangue e seus espíritos
agitados pelo calor do fogo que arde continuamente em
seu coração, e que não é de modo algum de outra natureza
que todos os fogos que são nos corpos inanimados7
Criticando o mecanicismo cartesiano, Jaquet denuncia a
redução do corpo humano à máquina que, negando-lhe toda
especificidade, torna impossível à primeira vista distinguir o corpo
de um homem do de um autômato. O animal-máquina é submetido
ao princípio de inércia como os outros corpos inanimados, de sorte
que ele não possui leis próprias. “Em suma”, conclui Chantal acerca
do mecanicismo, “Descartes e seus herdeiros explicam a vida
suprimindo-a”8.
Sem dúvida nenhuma, Espinosa é herdeiro de Descartes em
diversos aspectos, contudo, em que medida e atéaonde segue a herançacartesiana para compreender o corpo humano? Diferentemente da
maioria dos comentadores que iniciam a análise comparativa entre
Espinosa e Descartes tendo por base o Tratado do Homem cartesiano
emdiálogocomaparteIIdaÉtica espinosana, Martial Guéroult parece
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39117
![Page 118: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/118.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 118/158
![Page 119: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/119.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 119/158
119
ERICKA MARIE ITOKAZU
Guéroult pergunta-se sobre esta definição espinosana e suas
derivações na parte que se consagrou como sua “pequena física”:
“Quais idéias científicas inspiram a teoria espinosana dos corpos
compostos? O que entender por esta proporção de movimento e
repouso entre as partes que compõem o corpo? (...) Para responder
esta questão é necessário referirmo-nos às pesquisas dos
contemporâneosacerca da dinâmica dos sólidos, especialmente àquelas
que concernem ao problema dos centros de oscilação, bastante célebrena segunda metade do XVII”10.
As considerações acerca das descobertas de Huygens,
acompanhadas de perto por Espinosa, levam Guéroult a concluir que
o modelo é o centro de oscilação em pêndulos compostos tal como
fora calculado por Huygens, e que torna possível não somente pensar
um movimento composto por vários outros movimentos simultâneos
com variações de grandeza e massa, mas também, a partir de todas
estas variantes calcular e extrair uma proporção constante. ConcluiGuéroult: “Considerando não a quantidade imutável de movimento,
mas a proporção imutável de movimento e repouso imposta às suas
partes, o conjunto do universo é comparável a um gigantesco pêndulo,
cujo ritmo eterno é absolutamente invariável pelo fato de que ele não
pode sersubmetido a nenhuma ação perturbadora que venha de fora.”11
Tal conclusão parece, à primeira vista, bastante razoável para
compreender, num recorte bastante preciso, a parte final da pequena
física espinosana:Concebemos um Indivíduo que não é composto
senão de corpos que se distinguem entre si apenas pelo
movimento e repouso. (...) Se, além disso, concebermos
um terceiro gênero de Indivíduos, compostos de Indivíduos
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39119
![Page 120: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/120.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 120/158
120
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
deste segundo gênero, da mesma maneira descobriremos
que podem ser afetados de muitas outras maneiras, sem
nenhuma mutação de sua forma. E se continuarmos assim
ao infinito, conceberemos facilmente que a natureza
inteira é um Indivíduo, cujas partes, isto é, todos os
corpos, variam de infinitas maneiras, sem nenhuma
mutação do Indivíduo inteiro.12
Qual a diferença entre as concepções de corpo em Espinosa e
Descartes? Diferença técnica, afirma-nos Guéroult: “porque Espinosa
substitui o modelo mecânicodo turbilhão pelo do pêndulo”, e diferença
de espírito: “porque ampliando sem limites o campo das idéias claras
e distintas, e eliminando de fato a união substancial da mente e do
corpo, Espinosa dá conta da estrutura do corpo humano pelo
mecanicismo somente, o queDescartes reservavaà explicação de todos
os outros corpos”15 . O corpo humano, tal qual definido por Espinosa
como um indivíduo composto por outros indivíduos compostos, e
que juntamente a outros, forma indivíduos de segundo e terceiro
gênero, compondo assim sucessivamente ao infinito,parece finalmente
poder ser inserido na mesma malha mecanicista dos outros corpos.
Eis que se atingiria a tão desejada autonomia à totalidade do domínio
da extensão. E se o projeto seiscentista gabava-se por construir uma
mecânica celeste e umamecânica terrestresobas mesmasleis, Espinosa
parece ir além, inserindo, nesta mesma cadeia explicativa, também
uma mecânica humana. E a passagem do âmbito macroscópico aomicroscópico de corpos, sejam eles animados ou não, fora possível de
ser deduzida pela noção de “proporção” de movimento e repouso:
para todas as mecânicas, seu fundamento é construído por uma
racionalidade puramente geométrica.
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39120
![Page 121: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/121.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 121/158
121
ERICKA MARIE ITOKAZU
O mecanicismo em Espinosa, poderia reforçar a sua extrema
fidelidade ao legado cartesiano? Teria ele finalmente concretizado o
sonho de reductione scientiae ad geometriam, justamente onde
Descartes falhara? Expliquemo-nos: se o fundamento da identidade
do corpo cartesiano depende da manutenção da quantidade de
movimento determinada por certo turbilhão, assim como da
manutenção da massa deste corpona persistênciade um mesmo volume
soba diversidade cambiantede suas figuras, como explicar a identidadedo homemdesdeinfânciaà vida adulta? Para responder a este problema,
Descartes tem que lançar mão da alma ou espírito que ao informar o
corpo humano garante-lhe a identidade e a unidade. O modelo
mecanicista do corpo humano em Descartes é, portanto, “válido apenas
para o corpo humano, por não se tratar de uma substância material,
mas de uma substância composta de matéria e espírito”14.
A geometria cartesiana e o modelo dos turbilhões não parecem
portanto ter sido capazes de explicar a identidade do homem, deixandoo corpo humano escapar ao modelo geométrico defendido nos
Princípios da Filosofia, contudo, a resposta espinosana, encontrada
na manutenção da proporção de movimento e repouso, parece levar
adiante e mais coerentemente o projeto mecanicista em conformidade
com a geometrização do movimento, tal é o que a análise de Guéroult
nos leva a concluir dado que, afirma ele, “não há nada no corpo humano
que não seja da jurisdição das idéias claras e distintas, e o mecanicismo,
liberado dos limites onde Descartes o encerrou, põe fim ao escândaloda união substancial”. “Espinosa destrói o privilégio do corpo humano
submetendo-o à norma comum de todos os corpos” 15.
Teria este rigor mecanicista de Espinosa e a denúcia ao
escândalo da união substancial, “hipótese mais oculta que todas as
qualidades ocultas”, tornado-o vítima da crítica de Chantal Jaquet
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39121
![Page 122: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/122.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 122/158
122
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
direcionada aos “herdeiros de Descartes”? Teria Espinosa retirado a
vida do corpo humano e com ela toda a sua especificidade, ou ainda,
pagando o altíssimo preço, teria Espinosa incorrido na paradoxal
conclusão de Charles Ramond: impulsionar o progresso do
conhecimento do corpo humano às custas do recuo do conhecimento
do corpo humano?
III – O corpo em Espinosa: o paralelismo em questão.
Que Espinosa tenha sido rigorosamente mecanicista na dedução
do corpo humano, porquanto este é unicamente explicado pela relação
entre os corpos, disso não temos dúvida. Que tenha se inspirado nas
descobertas de Huygens, também consideramos inquestionável. Porém,
perguntamos, o mecanicismo espinosano estaria restrito às conclusões
de Guéroult? E, em segundo lugar, tais conclusões não restrigem o
mecanismo do corpo humano a uma atividade cega, autorregulada einexpressiva? A identidade dos corpos mantida por um equilíbrio
dinâmico, tal parece ser o máximo a ser extraído do modelo do pêndulo
composto. Tornando o corpo ausente de quaisquer especificidades de
corpo humano, finalmente, perguntamos se tais questões nãodependem
de um prejuízo anterior sobre o qual este mecanicismo fora concebido,
a saber, o paralelismo entre os atributos Extensão e Pensamento.
De certo modo, o termo “paralelismo” nos auxilia a não
misturar aquilo que nos é interditado mesclar, a Extensão e oPensamento, permitindo criar uma imagem explicativa na qual a ordem
e a conexão de ambos os atributos são como desdobramentos que
seguem paralelamente, e que como tais não se entrecruzam, embora
mantenham seus pontos, num e noutro, sempre correspondentes.
Determinadas afecções do corpo portanto corresponderiam a
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39122
![Page 123: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/123.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 123/158
123
ERICKA MARIE ITOKAZU
determinados afetos da mente, sem nenhum apelo à união substancial,
e mais ainda, sem incorrer no governo da mente sobre o corpo,
culminando por finalmente extinguir o império da vontade ou a
misteriosa ação da glândula pineal na ação recíproca entre corpo e
mente.
De certo modo, porque correspondentes, o atributo
Pensamento tornaria inteligível a ordem do atributo Extensão, ou seja,
em nome da racionalidade, estaríamos ao fim e ao cabo subordinandoos fenômenos de um atributo à inteligibilidade do outro. Em geral,
porque o paralelismo é uma boa imagem para seus estudos, os
comentadores de Espinosa acomodam-se com este termo leibniziano,
chegando Charles Ramond a declarar: “Espinosa proíbe pensar uma
tal união [corpo e mente], ou mesmo uma tal interação: eis porque o
termo paralelismo convém tão bem à sua filosofia, ainda que não
faça parte de seu vocabulário.”16 De certo modo, como dissemos, o
paralelismo nos auxilia a imaginar que nem a mente determina umcorpo a agir, nem o corpo determina a mente a padecer ou pensar,
porém, nós agora perguntamos, a que custo?
Linhas que correm paralelamente e que somente se
encontrariam num hipotético ponto localizado no infinito (em Deus,
substância infinitamente infinita), contudo, paranós, seusmodos finitos,
construiriam uma imagem clandestina: a de que corpo e mente seriam
duas coisas quase absolutamente separadas, tal a impossível interação,
tamanha a incompreensível união. Uma vez apartados, nosso corpo emente parecem ter de carregar consigo o fardo de jamais poderem se
reencontrar. Não estaria este “paralelismo” travestindo o dualismo
substancial cartesiano em nova roupagem, quando, de fato, o esforço
de Espinosa encontra-se em nos fazer compreender que “mente e corpo
são uma só e mesma coisa, ora concebido sob atributo do Pensamento,
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39123
![Page 124: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/124.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 124/158
124
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
ora sob o atributo da Extensão”? Afirma-nos Espinosa: “a ordem e a
conexão das idéias é a mesma (idem est )queaordemeaconexãodas
coisas”. Por que tomar este “idem est ” como uma correlação entre
paralelos, quando precisamente toda a argumentação é para reforçar
que são um só e o mesmo? “Uma só e mesma conexão de causas”17,
acrescenta Espinosa. Por que não aceitar que a ordem e conexão dos
atributos possam ser a mesma, e que isso não fere a diferença real
entre ambos? Por que não poderíamos compreender este “idem est ”como uma simultaneidade entre os atributosquecertamente nãopodem
ser reduzidos um ao outro?
O custo parece consistir nisso: ao apartá-los indelevelmente
em duas dimensões, e não havendo nenhum apelo a qualquer ação
recíproca entre corpo e mente, só nos resta seguir forjando uma outra
ficção e, desesperadamente, procurar tecer liames que reatem tais
pontos paralelos correspondentes de coisas para as quais se decretou
nunca mais poderem se encontrar. E dissemos desesperadamenteporque há no paralelismo o risco de incorrermos num custo ainda
maior:assim separadosos atributos, a ordem da Extensão é abandonada
à si mesma, não restando ao domínio da matéria senão o de ser
explicada por uma prototípica causalidade, a necessidade bruta e cega.
E muito precisaremos tentar escapar da armadilha e não abandonar o
corpo humano a esta ordem e funcionamento inexoráveis, em que
vitorioso retornaria o mecanicismo para o qual, sem nenhuma
possibilidade de refúgio numa mente legisladora, o homem seria aindamais máquina do que o animal-máquina cartesiano.
Apresentados alguns dos problemas do paralelismo, cumpre-
nos então primeiramente reivindicar a recusa de sua utilização como
instrumento interpretativo da filosofia espinosana, o que nos convida
a nos debruçar mais acuradamente sobre este âmbito da Extensão
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39124
![Page 125: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/125.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 125/158
125
ERICKA MARIE ITOKAZU
espinosana no qual está inserido corpo humano. Numa breve carta de
Espinosa, poderemos encontrar uma centelha de luz para as nossas
inquietações:
a partir da extensão tal como a concebe Descartes,
a saber, como uma massa em repouso, não só é difícil,
como dizeis, senão totalmente impossível demonstrar a
existência dos corpos. Pois a matéria em repouso
permanecerá, ao que lhe respeita, em seu repouso e não
se colocará em movimento, a não ser por uma causa
externa mais poderosa. Por este motivo, não duvidei em
dizer há tempos que os princípios cartesianos sobre as
coisas naturais são inúteis, para não dizer absurdos.18
Outras heranças à parte, Espinosa justamente recusa os
princípios sobre os quais se fundam uma física e uma medicina
cartesianas. Ora, a diferença entre Descartes e Espinosa não depende
unicamente da diversidade de modelos físicos (o pêndulo ou o
turbilhão) que inspiraram os filósofos. Muito mais profunda e
intrincada, a diferença está na definição mesma da Extensão. O que é
então conceber uma extensão confundida com a matéria inerte que, a
despeito de ser uma substância, tem como princípio primeiro do
movimento uma causa externa e transcendente? Esta concepção não
é demasiadamente diversa da Extensãode Espinosa,um atributoinfinito
da única substância e cujo princípio de movimento não lhe é externo,
pelo contrário, sendo ele mesmo a coincidência da causalidade eficientecom a imanente?
Outra questão parece ter escapado a Guéroult: analisamos a
importância da “quantidade de movimento” na física cartesiana em
contraposição à tese de Espinosa concernente à “proporção de
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39125
![Page 126: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/126.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 126/158
126
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
movimento e repouso”, destacando-lhes a importância dos termos
“quantidade” e “proporção” como indicadores das diferenças entre os
autores. Contudo, o que significa colocar na definição do indivíduo
não somente o movimento, mas também o repouso? Se destes dois
termos é possível extrair uma proporção comum que mui precisamente
determina a identidade de algo existente, isto não significaria que,
diferentemente do que pensara Descartes, movimento e repouso não
são opostos que se anulam? Como compreender que o Movimento eo Repouso não são “estados” da Extensão, mas que são ambos um
mesmo modo infinito da Substância? Aliás, como afirmar algo sobre
movimento ou repouso de substância única, para a qual não há nada
externo que possa servir de fora como referência para determinar seja
o movimento, seja o repouso? Ao percorrer a obra espinosana, pouco
alento encontramos para as nossas inquietações, como o próprio autor
indica em uma de suas últimas cartas:
a matéria é mal definida por Descartes por meio
da Extensão, e que, pelo contrário, deve ser explicada
necessariamente por meio de um atributo que expresse
uma essência eterna e infinita. Talvez um dia, se tiver
vida suficiente, trate mais claramente destas coisas
convosco já que até o momento não tive a oportunidade
de ordenar nada a respeito19
OtempodevidanãopermitiuaEspinosanosdeixarumaFísica.
E, ainda que por ora nossas interrogações fiquem sem respostas, pelo
menos indicam a ruptura com a herança cartesiana, que não se localiza
no tronco da árvore do saber (a Física), porquanto a crítica dirige-se
ao seu fundamento, às suas mais profundas raízes: a metafísica. Tal
ruptura permite avançar na compreensão do corpo humano para além
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39126
![Page 127: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/127.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 127/158
127
ERICKA MARIE ITOKAZU
do corpo máquina, numa leitura despida dos prejuízos do paralelismo.
E Espinosa não se perguntará mais sobre “o que é o corpo”. Num
célebre trecho da Ética III a questão será: o que pode um corpo?
IV – Para além do corpo-máquina
Acreditamos que Guéroult, ao explicitar o rigoroso
mecanicismo espinosano deixou à margem duas questões principaispresentes na parte II da Ética e que gostaríamos de retomar muito
brevemente. Ao deduzir o corpo e o indivíduo, na parte conhecida
por muitos como sua “pequena física”, percebemos que não se trata
somentedeexplicarcomosedáa proporção de movimento e repouso,
mas de compreender o corpo constituído por uma complexidade
intercorporal marcadamente relacional. O corpo humano é um
indivíduo composto, um complexo de relações internas e externas
com outros tantos corpos complexos. Ele é portanto definido poruma intra-corporeidade na relação estabelecida entre os corpos
complexos que o compõem, mas também por uma extra-corporeidade,
isto é, a definição de um corpo próprio depende de sua relação com
os outros corpos.
Há porém, um segundo ponto: desta definição de indivíduo
Espinosa acresce sucessivamente composições de indivíduos de
segundo, terceiro gênero e assim até o infinito, sendo a Natureza inteira
um só indivíduo. Por esta dedução Espinosa garante não somente arelação intercorpórea entre modos finitos, mas também a relação entre
a parte finita e o todo da Natureza. Ora, o que marca então a
individualidade? Espinosa não fala em individualidades, mas em
indivíduos que se compõem ao infinito, sendo os corpos compostos
diferenciados entre si pela proporção de movimento e repouso. Qual
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39127
![Page 128: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/128.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 128/158
![Page 129: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/129.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 129/158
129
ERICKA MARIE ITOKAZU
suas relações coma exterioridade. Distanciando-seda lógicada finitude
imposta pela causalidade transitiva, é possívelnisso percebera presença
da causalidade eficiente e imanente que orquestra a Natureza inteira
na potência do corpo quando nele todas as partes são como
instrumentos que em uníssono constituem a causa completa de um
efeito. O corpo é agente porque é corpo singular.
Dada a unicidade substancial, de fato, nãoseria preciso iluminar
os desdobramentos da Extensão por “modelos físicos”, nem torná-losinteligíveis porque correlacionados ao atributo Pensamento: a
causalidade eficiente imanente presente em ambos os atributos e o
princípio espinosano de causa sive ratio por si só já garantem total
inteligibilidade a quaisquer dos infinitosatributos. Espinosa nãoprecisa
defender um mecanicismo associado à geometrização do movimento,
porquanto sua ontologia é geométrica. Contudo, na ausência de uma
Física espinosana, e dados os infortúnios e riscos nas leituras acerca
da extensão em Espinosa, não poderíamos abdicar do termo“mecanicismo”? Desta feita, não conseguiríamos ao menos afastar a
imagem do corpo humano como um autômato pêndulo autorregulável
e seguir por um caminho muito mais profícuo, ou seja, como uma
expressão singular da Natureza que se autoproduz geometricamente?
Por esta senda, muitas outras se abririam. E nosso filósofo
permanece ao lado a nos acompanhar por este caminho: o que deduz
Espinosa imediatamente após a pequena física?A aptidão ao múltiplo
simultâneo no corpo e na mente. O que significa este “e”? A aptidãoda mente, idéia do corpo singular existente em ato, não é deduzida de
um corpo destacado do mundo, porque sua própria definição depende
de um complexo de relações internas e externas por ele estabelecidas.
A mente portanto não é a forma, nem o princípio de unidade do corpo,
pelo contrário, ela é tão complexa quanto o corpo, e sua superioridade
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39129
![Page 130: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/130.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 130/158
![Page 131: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/131.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 131/158
131
ERICKA MARIE ITOKAZU
enquanto considerada apenas corpórea, e o que não pode
fazer senão determinado pela Mente. Pois até aqui
ninguém conheceu a estrutura do Corpo tão
acuradamente que pudesse explicar todas as suas funções,
para não mencionar o fato de que nos Animais são
observadas muitas coisas que de longe superam a
sagacidade humana, e que os sonâmbulos fazem no sono
muitíssimas coisas que não ousariam na vigília; o quemostra suficientemente que o próprio Corpo, só pelas
leis de sua natureza, pode fazer muitas coisas que deixam
sua Mente admirada.20
Espinosa inverte a perspectiva da análise propondo numa
filosofia racionalista um posicionamento sobre certa supremacia da
mente e lança, para a sua época e para o futuro, um desafio: “ninguém,
até o presente, determinou o que o corpo pode”. Em geral, o escólio
é analisado como consolidação da crítica ao preconceito cartesiano
de que o corpo está sob o domínio da mente e da vontade, porém,
seria esta a força do argumento deste escólio? E são mesmo os
defensores do paralelismo que, ao restringir a análise deste escólio à
denúncia da vontade, constrangem-se em explicar quais afetos
corresponderiam às afecções de um corpo sonâmbulo. Afinal, com o
quê responderíamos ao desafio proposto, tendo como instrumentos o
mecanicismo e o paralelismo? Eis porque acreditamos que este escólio
não se apresenta somente como mais uma crítica à ação segundo avontade, afinal, já não foram poucas as críticas feitas ao seu império
em inúmeras passagens e para o qual é dedicado todo o final da parte
II da Ética. Qual então a novidade argumentativa? Afirma-nos
Espinosa: é-nos tão desconhecida a estrutura do corpo, que ultrapassa
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39131
![Page 132: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/132.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 132/158
132
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
de longe a sagacidade humana, e, desta feita, quase nada se sabe sobre
o quê esta estrutura é capaz de produzir. O desafio funda-se portanto
sobre a potência do corpo.
Uma outra pergunta poderia nos advir ainda aqui: já que se
trata da potência do corpo humano, por que motivo Espinosa não
introduziu este escólio após à demonstração da sua pequena física?
Ao que respondemos: na parte II encontramos a definição da coisa
singular, ponto que já destacamos a importância, porém, é somente naparte III que Espinosa introduz duas noções capitais: as de causa
adequada/inadequada e de atividade/passividade.Ora,énasrelações
com o universo do qual o corpo é uma parte que ele constrói para si
um universo de imagens, e é nestas relações que ele participa também
de uma trama de causas e efeitos originadas neste corpo agente. É
nesta dinâmica que a potência do corpo aumenta ou diminui nas
muitíssimas relações queestabelece consigo mesmo e com a alteridade,
e, simultaneamente, aumentando ou diminuindo a potência da mente.O corpo não é, portanto, um projeto mecânico para a manutenção de
sua proporção de movimento e repouso, tal qual o pêndulo composto,
pelo qual suas relações se estabeleceriam neste solo em que a
“quantidade é rainha”.As interações corporais aumentam ou diminuem
a potência, o reino da quantidade acaba finalmente por revelar uma
dinâmica qualitativa. Afinal, como entenderíamos o aumento ou
diminuição de sua aptidão corporal e mental como passagem para
uma maior ou menor perfeição e realidade?Lembremo-nos que corpo e mente são uma só e mesma coisa,
ora sob o atributo pensamento, ora sob o atributo extensão, e se não
se reduzem ou se identificam um ao outro, são ainda ativos juntos ou
passivos juntos. Seja enquanto causa adequada, seja enquanto causa
inadequada, produzem conjuntamente um efeito que não devemos
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39132
![Page 133: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/133.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 133/158
133
ERICKA MARIE ITOKAZU
traduzir por uma ação e uma idéia correspondente, mas uma ação-
idéia nascida e produzida na ricaexperiência vivida pela complexidade
relacional simultânea experenciada pelo corpo e pela mente. “Se a
mente não tivesse aptidão para excogitar, o corpo seria inerte”, mas
também “se o corpo fosse inerte, a mente seria simultaneamente inepta
para pensar”21. Além de denunciar o império da vontade, Espinosa
está, em primeiro lugar, defendendo a potência do corpo que “apenas
pelas leis da Natureza considerada como corporal” é capaz de“construir edifícios, pinturas, edificar um templo”, o que surpreende a
sagacidade humana. Porém, e em segundo lugar, é destacando os
grandes feitos do corpo agente, somente enquanto considerada a sua
potência,que Espinosa parece mesmo repelir que se possadar qualquer
superioridade de um âmbito racional despido de um corpo imerso no
mundo e em suas construções, em nós ou fora de nós.
Para explicitar o que pretendemos apontar, gostaríamos de
tomar de empréstimo as palavras de outro pensador contemporâneo,e perguntarse não haveria, no escólio analisado, o repúdio ao “monstro
no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair
pensamentos de nossos atos em vez de identificar nossos atos com
nossos pensamentos”22 ?
O corpo em Espinosa é portanto, juntamente com a mente,
parte que expressa a potência da Natureza inteira. Ora, não poderíamos
reconhecer que é pelas complexas relações com os outros homens,
com o mundo e as coisas que desvelamos na potência própria do corpoa produção de feitos surpreendentes, não somente por sua beleza e
engenhosidade, mas porque tais feitos seriam a recriação das formas
mesmas de relação com este mesmo mundo, estes mesmos homens,
estas mesmascoisas? Nãopoderíamos reconhecer nisto que a expressão
é, inseparavelmente, mental e corpórea? Se assim fosse, Espinosa não
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39133
![Page 134: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/134.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 134/158
134
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
devolveria somente a vida ao corpo, mas permitiria abrir para ele a
potência de recriação do próprio mundo a partir do qual ele mesmo se
constituiu.
Notas
1 Koyré, A. Estudos de História do Pensamento Científico, Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1991, p. 182. Os grifos são de Koyré
(1a. edição francesa pela Éditions Gallimard, 1973)
2 Christiane Vilain faz uma interessante análise sobre as divergentes
concepções da geometrização do movimento no século XVII, tendo
como ponto de partida a comparação das definições de espaço,
extensão e movimento em Galileu e Descartes. Vilain, C. “Espaces
et Mondes au XVIIe siècle” in épistémologiques – philosophie,
sciences, histoire, (Cosmologie et philosophie – hommage àJacques Merleau-Ponty), vol. I (1-2), janvier-juin 2000, Paris- São
Paulo: Université Paris 7/Denis Diderot - Discurso Editorial.
3 Blay, M. “Infini, géometrie et mouvement au XVIIe siècle” in
épistémologiques – philosophie, sciences, histoire. Cosmologie et
philosophie – hommage à Jacques Merleau-Ponty, vol. I (1-2),
janvier-juin 2000, Université Paris 7/Discurso Editorial, Paris/São
Paulo, p. 163
4 Cf. Ramond, C. Spinoza et la pensée moderne. Constitutions de
l’objectivité, Paris: Éditions Harmattan, 1998,p. 112 e segs.
5 Cf. Guénon, R. Le Règne de la Quantité et les signes des temps,
Paris: Gallimard, 1945
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39134
![Page 135: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/135.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 135/158
135
ERICKA MARIE ITOKAZU
6 Ramond, C. Spinoza et la pensée moderne, Paris: L’Harmattan,
1998, p. 113. Os grifos são de Charles Ramond.
7 Traité de l’homme, A.T. VI, p. 202. Para este trecho, utilizamos a
tradução feita por Jordino Marques, em Descartes e sua concepção
de homem, São Paulo: Ed. Loyola, 1993.
8 Jaquet, C. Le corps, Paris: PUF, 2001, p. 102.
9 EII P13, grifos nossos. Para todos os trechos citados da Ética, atradução utilizada foi realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos,
ainda não publicada.
10 Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 171.
11 Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 175.
12 E2 P13 L7 e S.
13 Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 178.
14 Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 182
15 Martial, G. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 185
16 Ramond, C. Spinoza et la pensée moderne, Paris: L’Harmattan,
1998, p. 123.
17 EII P7 S
18 Ep.81, escrita a Tschirnhaus em 05 de maio 1676, p. 409
19
Ep. 83, escrita a Tschirnhaus em 15 de julho de 1676. p. 41220 EIII P2 S
21 EIII P2 S
22 A expressão é de Antonin Artaud em sua obra O teatro e seu
duplo.
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39135
![Page 136: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/136.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 136/158
136
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
Bibliografia
1. BLAY, M.: “Infini, géometrie et mouvement au XVIIe siècle” in
épistémologiques – philosophie, sciences, histoire. Cosmologie et
philosophie – hommage à Jacques Merleau-Ponty, vol. I (1-2), janvier-
juin 2000, Université Paris 7/Discurso Editorial, Paris/São Paulo, p.
1632. ESPINOSA, B.:Correspondencia, Madrid:Alianza Editorial, 1988
3. ____________ : Ética demonstrada em ordem geométrica, Partes
I a III, tradução em andamento realizada pelo Grupo de Estudos
Espinosanos, FFLCH-USP.
4. GUÉNON, R.: Le Règne de la Quantité et les signes des temps,
Paris: Gallimard, 1945
5. GUÉROULT, M.: Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974
6. JAQUET, C. : Le corps, Paris: PUF, 2001, p. 102.
7. KOYRÉ, A.: Du monde clos à l’univers infini, Paris: Gallimard,
1973.
8. _________ .: Estudos de História do Pensamento Científico, Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 182. Os grifos são de Koyré
(1a. edição francesa pela Éditions Gallimard, 1973)
9. MARQUES, J.: Descartes e sua concepção de homem, São Paulo:
Ed. Loyola, 1993.
10. RAMOND, C.: Spinoza et la pensée moderne. Constitutions de
l’objectivité, Paris: Éditions Harmattan, 1998.
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39136
![Page 137: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/137.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 137/158
137
ERICKA MARIE ITOKAZU
11. VILAIN, C.: “Espaces et Mondes au XVIIe siècle” in
épistémologiques – philosophie, sciences, histoire, (Cosmologie et
philosophie – hommage à Jacques Merleau-Ponty), vol. I (1-2),
janvier-juin 2000, Paris- São Paulo: Université Paris 7/Denis Diderot
- Discurso Editorial.
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39137
![Page 138: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/138.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 138/158
138
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
5_Ericka_111_138.PMD 5/10/2007, 11:39138
![Page 139: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/139.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 139/158
139
SILVANA DE SOUZA RAMOS
Descartes e a “reflexão espessa”:
Uma leitura merleau-pontiana do
dualismo cartesiano
SILVANA DE SOUZA RAMOS*
* Doutoranda do Departamento de Filosofia da FFLCH – USP.
Resumo: O artigo investiga os impasses do dualismo cartesiano apartir das reflexões de Merleau-Ponty acerca do papel do corpo naexperiência.
Palavras-chave: Descartes, Merleau-Ponty, corpo, consciência,experiência.
Abstract: The article investigates the impasses of cartesian dualismregarding Merleau-Ponty’s reflections on the role of the body in theexperience.
Key-words: Descartes, Merleau-Ponty, body, conscience, experience.
* * *
Em sua biografia intelectual de Descartes, Stephen Gaukroger
narra ironicamente uma anedota que circulou a partir do século XVIII
a respeito do filósofo (Gaukroger, 1999, p. 21):
Dizemque,nofimdavida,elesefaziaacompanhar
em suas viagens por uma boneca mecânica em tamanho
natural, a qual... ele mesmo havia construído, “para mostrarque os animais são apenas máquinas e não têm alma”.
Descartes e a boneca seriam inseparáveis, e há quem diga
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39139
![Page 140: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/140.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 140/158
140
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
que dormia com ela a seu lado, guardada num baú. Um
dia, durante uma travessia do mar da Holanda no começo
da década de 1640, enquanto Descartes dormia, conta-se
que o capitão do navio, desconfiado do conteúdo do baú,
entrou furtivamente na cabine e o abriu. Horrorizado,
descobriu a monstruosidade mecânica, retirou-a do baú,
arrastou-a pelo convés e, finalmente, conseguiu atirá-la
na água. Não nos informam se ela terá lutado para sedefender.
A anedota testemunha uma das interpretações do dualismo
cartesiano, cujo expoente máximo é o materialismo do philosophe
iluminista La Mettrie. Segundo o autor, Descartes admitia
secretamente o materialismo ao supor que a vida do corpo pode ser
explicada unicamente por mecanismos naturais, independentemente
da intervenção da alma. Tal interpretação visava estender a idéia
cartesiana de que os animais não passam de autômatos, afirmando
que ela poderia ser aplicada aos humanos de modo a produzir uma
visão materialista da mente. Ora, no contexto do século XVIII, quando
lutava-se contra o materialismo, Descartes era alvo de críticas
sarcásticas, como a que transparece na anedota acima. Resta saber se
uma leitura atenta às preocupações e aos impasses enfrentados pelo
filósofo permite sustentar uma interpretação diversa. Neste sentido,
longe de reduzir a visão de Descartes ao materialismo, cabe mostrar
que os estudos cartesianos sobre o corpo e a consciência colocam emxeque e até mesmo ultrapassam o dualismo. Quer dizer, o filósofo não
argumenta no sentido de privilegiar o corpo reduzindo a mente a uma
espécie de produção da matéria extensa.Ao contrário, as reflexões de
Merleau-Ponty — um dos maiores interlocutores contemporâneos de
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39140
![Page 141: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/141.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 141/158
141
SILVANA DE SOUZA RAMOS
Descartes — podem mostrar que para Descartes o corpo humano é
mais do que um objeto na medida em que sua unidade se dá através da
união com a alma, sem que esta encerre sua expressividade.
Ora, isto permite questionar uma outra leitura recorrente de
Descartes. Trata-se da interpretação segundo a qual a subjetividade
cartesiana estaria reduzida ao isolamento do cogito, a tal ponto que
não se poderia explicar como a alma se comunica com o corpo. É
certo que Merleau-Ponty admitiu esta posição em vários momentos, edirigiu a Descartes severas críticas em relação à impossibilidade de se
pensar, a partir do dualismo substancial, uma subjetividade encarnada.
Entretanto, como pretendemos mostrar adiante, os impasses do
pensamento cartesianonão deixaram de inquietarMerleau-Ponty. Neste
sentido, o filósofo procurou apontar, no interior do próprio pensamento
cartesiano, uma solução para os problemas que Descartes vislumbrara
ao tentar explicar a experiência de sermos simultaneamente corpo e
pensamento.* * *
Como mostra Marilena Chaui, nas investigações merleau-
pontianas d’O Visível e o invisível, o privilégio do corpo é uma ruptura
com a tradição metafísica que lhe dera a função de suporte da
consciência, o que permitia, ao mesmo tempo, denegá-lo e dar-lhe o
estatuto de objeto da ciência. Entretanto, “Merleau-Ponty redescobre
no empreendimento filosófico passado linhas de pensamento sobre ocorpo que não ‘cabiam’ no discurso solene da metafísica, levando uma
vida clandestina nos poros do discurso explícito” (Chaui, 2002, p. 141,
nota). Neste sentido, as notas de trabalho d’O visível e o invisível
mostram seu interesse pelo Descartes anterior e posterior ao cogito,
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39141
![Page 142: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/142.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 142/158
142
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
ou seja, pelo Descartes que se vê diante dos impasses do logos do
mundo sensível que insistem em extrapolar o dualismo substancial
para dar cidadania filosófica à reflexão espessa que Merleau-Ponty
chamou de carne. Nestes termos, numa nota de trabalho d’O Visível e
o Invisível, o filósofo afirma (Merleau-Ponty, 2000, p. 214):
A idéia cartesiana do corpo humano enquanto
humano não encerrado, aberto enquanto governado pelo
pensamento, é, talvez, a mais profunda idéia da união da
alma com o corpo. É a alma intervindo num corpo que
não pertence ao em si (se fosse em si, seria fechado como
um corpo animal), que só pode ser corpo e vivente —
humano concluindo-se numa “visão de si” que é o
pensamento.
Ora, pode soar um tanto estranho este elogio a Descartes no
terreno mesmo em que por tantas vezes Merleau-Ponty o acusou de
impossibilitar-nos de compreender o corpo e de conseqüentemente
explicar o fenômeno que nos insere no mundo e na experiência. Estaria
Merleau-Ponty renegando o que defendera na Fenomenologia da
Percepção? Lá, o filósofo argumentava contra o mecanicismo: “Só
posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e
na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo”
(Merleau-Ponty, 1999, p. 114). Em outros termos, porque sou sujeito
encarnado, por meio do corpo me abro ao mundo, me reconheço nele
e o reconheço a partir de minha encarnação. Quer dizer, é a partir desua própria espessura que o sujeito adentra a espessura do mundo. O
sujeito não é, portanto, um cogito que se distingue substancialmente
do corpo, e, enquanto sujeito cognoscente, sobrevoa o mundo. Ora,
mas o dualismo cartesiano não nos condena exatamente a este passeio
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39142
![Page 143: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/143.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 143/158
143
SILVANA DE SOUZA RAMOS
aéreo do pensamento e, neste sentido, não é completamente alheio à
espessura corpórea do sujeito? Como explicar então o inesperado
elogio de Merleau-Ponty a Descartes n’O visível e o invisível?
Vejamos o problema mais de perto. É significativo que em “As
relações entre a alma e o corpo”, último capítulo de sua primeira obra,
A estrutura do comportamento, e no último ensaio publicado em vida,
O olho e o espírito, Merleau-Ponty marque incisivamente a ruptura
de sua filosofia com a epistemologia e a mecânica de Descartes. Aolongo de suas demais obras, é constante a retomada crítica do que
denomina a “herança cartesiana”, ou o racionalismo intelectualista (o
predomínio da consciência sobre o corpo), cuja contrapartida é o
empirismo (o predomínio das coisas sobre a consciência), ambos
rejeitados por ele. Sendo assim, na Fenomenologia da percepção,
onde se lê que somente por uma visão “pré-objetiva do mundo” pode-
se distinguir o ser no mundo “de toda modalidade da res extensa,
assim como de toda cogitatio” (Idem, 2000, p. 77), o resultado dainvestigação fenomenológica dá ao corpo o estatuto de veículo do ser
no mundo, o que abre uma perspectiva para a compreensão da
subjetividade para além do dualismo cartesiano. Posteriormente, n’O
visível e o invisível, a reflexão sobre o corpo se adensa de modo a
corroborar no esboço de uma ontologia: “É preciso pensar a carne,
não a partir das substâncias, corpo e espírito, mas (...) como elemento,
emblema concreto de uma maneira de ser em geral” (Merleau-Ponty,
2000, p. 62). Através destas indicações, notamos o alcance anti-cartesiano da unificação merleau-pontiana do sujeito na experiência
corpórea.A reconciliação com Descartes parece impossível. Mas será
que a crítica ao dualismo esgota o pensamento de Descartes? Não
haveria um impensado recalcado em sua filosofia? Dito de outro modo,
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39143
![Page 144: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/144.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 144/158
![Page 145: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/145.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 145/158
145
SILVANA DE SOUZA RAMOS
as seguintes questões: afinal, qual a diferença, no contexto cartesiano,
entre um corpo humano e um corpo animal? Essa questão se liga a
uma outra: por que os homens que vejo atrás da janela não são
marionetesmovidas pormolas, ou seja, não são autômatosdesprovidos
de alma?
Comecemos pela primeira questão. O corpo animal, afirma
Merleau-Ponty acerca de Descartes, é um puro em si. Quer dizer, ele
participa apenas do mundo dos objetos, ou seja, da extensão. Enquantotal, o mecanicismo dá conta de decifrar os operadores de seu corpo.
Desprovido de linguagem e de pensamento, o corpo animal é fechado,
quer dizer, seus comportamentos são regidos pelo paradigma da
máquina: reduzido ao corpo, ele é uma figura do autômato, é como
um artefato, e assim se dispõe ao nosso conhecimento. Carente de
pensamento, o animal não pode reverter seu olhar em direção a uma
visão de si. Seu fechamento é sua incapacidade de ver-se.
De fato, no universo cartesiano, o mecanicismo deve serinterpretado como critério capaz de explicar com clareza e distinção
os fenômenos do mundo natural. Segundo Koyré, Descartes não
pergunta pelo modo de ação que a natureza segue, mas pelo que ela
deve seguir, já que o filósofo parte de leis determinadas segundo as
quais o substrato da realidade pode ser explicado pelo espaço e pelo
movimento. Quando Descartes investiga a constituição dos corpos,
animais ou humanos, não há diferença essencial entre as máquinas,
obra dos artesãos, e os corpos vivos. Isto significa que o filósofosubmete os conhecimentos fisiológicos ao esquema mecanicista, já
que a fisiologia é uma parte da física.
De acordo com a fisiologia cartesiana, a máquina corporal é
explicada pela mudança de figura no interior da matéria extensa. Por
esta razão, a noção de espíritos animais é privilegiada dentro da
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39145
![Page 146: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/146.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 146/158
146
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
fisiologiamecanicista.Os espíritos animaiseramelementos do vitalismo
anterior a Descartes. Introduzidos no mecanicismo cartesiano, eles
são esvaziados de seus atributos tradicionais, que os tornavam seres
misteriosos em meio a uma natureza indeterminada, e assumem, com
exceção do pensamento, todas as funções anteriormente imputadas às
partes da alma. É por isso que os espíritos animais atuam de forma
decisiva na explicação do movimento corporal. A física cartesiana não
admite o vazio. Esta regra, quando aplicada à fisiologia, faz com queos possíveis espaços sejam por assim dizer ocupados pelos espíritos
animais, espécie de matéria sutil dotada de grande agilidade. Assim,
as funções do corpo podem ser compreendidas sem que se necessite
apelar para a alma. O corpo é um autômato que se movimenta por
conta própria, como um relógio ou um moinho (Descartes in Marques,
1993, p. 200):
que se movimenta pelo contrapeso de suas molas,
de modo que não é necessário, neste caso, conceber nestamáquina uma alma vegetativa ou sensitiva, nem outro
princípio de movimento e de vida, senão seu sangue e
seus espíritos agitados pelo calor do fogo que queima
continuamente em seu coração e que não é de natureza
diversa dos outros fogos que estão nos corpos inanimados.
Entretanto, um corpo humano não pode ser apenas isso. Um
animal, sim.Aunidade da máquina corpórea animal residenela própria,
daí que o modelo do autômato baste para explicá-la. Mas a unidadedo corpo humano se dá por sua integração à alma. Que isto quer
dizer?
Chegamos, assim, à segunda questão. O corpo humano não é
também uma máquina, espécie de marionete movida por molas? Não
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39146
![Page 147: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/147.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 147/158
147
SILVANA DE SOUZA RAMOS
funciona como um autômato ou um animal na medida em que seus
movimentos nãodependem dos comandos anímicos,e seguemsomente
as leis da extensão? Sim, todavia, um corpo humano vivente só existe
na medida em que está unido a uma alma. E é nisto que reside a sua
abertura, segundo Merleau-Ponty. É isto que o faz um para si, uma
visão de si. Visão de si, quer dizer, consciência que é ao mesmo tempo
abertura? Estranho paradoxo. O voltar-se para si é experiência de
abertura para o mundo. O que isto significa? Certamente, essa visão
de si não pode ser reflexividade acabada, coincidência consigo,
fechamento sobre si. Então, essa visão de si não pode ser o cogito,
não é nele portanto que encontraremos o impensado de Descartes.
Retomemos o problema: o corpo é, pela união com a alma, visão de si
que se abre para o mundo. Toda a questão se resume pois em explicar
que relação há entre a alma e o corpo. Estamos diante de um velho
problema: o que acontece quando Descartes é obrigado a superar o
dualismo?A questão célebre sobre a possibilidade da unidade e da
interação entre o corpo e a alma foi colocada a Descartes pela princesa
Elisabeth, numa carta de 16 de maio de 1643. A cisão do homem em
duas substâncias realmente distintas, a extensão e o pensamento,
parecia inviabilizar a interação entre o corpo e o espírito.
Conseqüentemente, Descartes encontrava dificuldades para explicar
a experiência imediata que nos dá a certeza de nossa unidade (o que é
um homem vivo?), o que implicava dificuldades para explicarfenômenos ulteriores como os que se referem às paixões. Descartes é
constrangido pela pergunta: o que afinal é um corpo unido a uma
alma? Sabia que não bastava restringir a certeza da união à experiência
imediata da mistura de movimentos anímicos e corporais pois explicá-
la exigia superar o dualismo e adentrar o terreno confuso da
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39147
![Page 148: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/148.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 148/158
148
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
imaginação, da percepção e das paixões. O fato é que Descartes
investigou o problema e as formulações presentes no tratado sobre As
paixões da alma dão o testemunho de seu esforço para responder às
inquietações da princesa. Nele, o filósofo define a paixão como uma
realidade psicofísica. Sendo assim, o conceito de paixão pode nos
ajudar a encontrar um caminho para explicar os impasses do dualismo.
Descartes não despreza, lamenta ou ri das paixões humanas;
ao contrário, quer compreendê-las. Vale dizer, o filósofo anseiaencontrar as “primeiras causas” das paixões e mostrar como o espírito
pode ter um “império absoluto” sobre elas. O estudo das paixões da
alma deve seguir um método rigoroso: Descartes as estuda como um
“físico”. Nos Princípios da filosofia ofilósofoanunciaqueafísicaéa
ciência da natureza inteira por determinar os verdadeiros princípios
das coisas materiais. Ela comporta três aspectos: “o exame geral da
maneira pela qual o universo é composto, o estudo particular da terra
e de todos os corpos, e, enfim, a conhecimento da natureza das plantas,dos animais e dos homens” (Jaquet, 2004, p. 31). A física pode obter
um conhecimento das paixões na medida em que elas são paixões na
alma mas não provém dela: elas têm uma causa física que é o corpo.
Deixando de lado a discussão sobre as paixões, como a admiração,
por exemplo, que nascem na própria alma, podemos dizer que, no
sentido estrito do termo, a paixão tem por causa, em Descartes, uma
ação docorpo. “No sentido mais preciso e mais determinado, as paixões
da alma são causadas pelo movimento dos espíritos animais (...) quese deslocam muito rapidamente e prosseguem mecanicamente sua
agitação em circuito fechado” (Idem, p. 35). Esta formulação aparece
mais claramente no artigo 27 d’As paixões da alma, quando Descartes
afirma que “podemos defini-las por percepções, ou sentimentos, ou
emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39148
![Page 149: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/149.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 149/158
149
SILVANA DE SOUZA RAMOS
causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos”
(Descartes, 2005, p. 47).
Neste contexto, que poder a alma pode ter sobre as paixões?
Ora, a alma, porque dotada de livre arbítrio e de vontade infinita,
possui um poder absoluto e direto sobre suas ações, e um poder indireto
sobre suas paixões. Sendo assim, pela vontade e pelo hábito, ela pode
adquirir um poder de governar o corpo para dissipar ou controlar os
movimentos passionais que nascem no corpo pela agitação dosespíritos. Noutros termos, o império sobre as paixões é um império
da alma sobre o corpo: por intermédio de seu posicionamento na
glândula pineal,a alma pode reverter os processos passionais. Sabemos
que o objetivo da medicina cartesiana é o de combater a doença de
modo a prolongar a vida. A realização deste empreendimento se
reduziria ao estudo mecânico do corpo se a união não implicasse o
poder das paixões para molestá-lo. A medicina cartesiana terá então
de irmanar-se à moral já que o bem estar do corpo não depende apenasdele. Sendo assim, a insuficiência da explicação mecanicista exige
considerar o homem do ponto de vista da encarnação, o que leva
Descartes a misturar o homem às coisas, o que pode ser explicitado se
nos ativermos a uma passagem do artigo 52 d’As paixões da alma
(Descartes, 2005, p. 68):
(...) os objetos que movem os sentidos não excitam
em nós paixões diversasna medidade todasas diversidades
que existem neles, mas somente na medida das diversasmaneiras como eles podem prejudicar ou beneficiar, ou
em geral nos ser importantes.
Apenas sua união com uma alma confere ao corpo humano
uma verdadeira unidade, capaz de perpetuar-se no tempo, mesmo
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39149
![Page 150: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/150.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 150/158
150
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
quando ele não conserva mais qualquer parte da matéria que o
constituía inicialmente. Paralelamente, julgar que é um bem a
conservação do corpo, ou o que contribui para ela, só tem sentido
para a alma. Portanto, é unicamente através de sua união com uma
alma que o corpo adquire uma integridade que é importante conservar,
e que aquilo que o ameaça constitui um mal. Neste sentido, para
associar um determinado movimento dos espíritos animais a uma
determinada paixão, é preciso partir da união entre a alma e o corpo,do interesse que temos em conservá-lo como um todo e
conseqüentemente do fato de que o que é um bem para ele deve ser
também um bem para nós. Portanto, apenas a experiência, sensível e
anímica simultaneamente, impossível de se reconstruir a priori, está
apta a superar a dualidade entre alma e corpo e a concretizar, para
nós, a união, a integridade e a felicidade de ambos.
Voltemos então ao problema da visão de si colocado por
Merleau-Ponty. Vimos que o centro da crítica de Merleau-Ponty aDescartes é a insuficiência da explicação dualista: o cogito não dá
conta de meu ser no mundo, já que ele é reflexão acabada (que garante
a objetividade do mundo através da representação) e isolamento do
sujeito no cogito. A união com o corpo complexifica a investigação:
insere o homem no mundo e o sujeita à promiscuidade com os objetos
exteriores. Daí a necessidade de se colocar, a partir do próprio
Descartes, a possibilidade de se compreender o sujeito através da
encarnação. Desse modo, contrariando diversas interpretações dopensamento cartesiano, o pensamento é visão de si, mas não somente
no modo do cogito ou da intuição; ele é também reflexividade
inacabada apenas compreensível pela interação com o corpo, já que a
encarnação do sujeito subverte o dualismo e faz da visão de si uma
abertura para o mundo e para a experiência.
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39150
![Page 151: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/151.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 151/158
151
SILVANA DE SOUZA RAMOS
Bibliografia
Alquié, F. La Découverte Méthaphysique de l’Homme chez Descartes.
Paris: Presses Universitaires de France, 1950.
Brunschvicg, L. Descartes. Paris: Rieder, 1937.
Chaui, M. Experiência de pensamento. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
Descartes, R. Obra escolhida. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
__________. As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Gaukroger, S. Descartes. Uma biografia intelectual. Rio de janeiro:
EdUERJ: Contraponto, 1999.
Guéroult, M. Descartes selon l’Ordre des Raisons (2 vol.). Paris:
Aubier, 1953.
Jaquet, C. L’unité du corps e de l’esprit. Affects, actions et passions
chez Spinoza. Paris: PUF, 2004.
Marques, J. Descartes e sua concepção de homem. São Paulo: Edições
Loyola, 1993.
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
_______________. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva,
2000.
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39151
![Page 152: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/152.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 152/158
152
CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006
6_Silvana_139_152.PMD 5/10/2007, 11:39152
![Page 153: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/153.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 153/158
153
NNNNNOTÍCIASOTÍCIASOTÍCIASOTÍCIASOTÍCIASNNNNNOTÍCIASOTÍCIASOTÍCIASOTÍCIASOTÍCIAS
EVENTOS
XII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF
Realizado em Salvador, de 23 a 26 de outubro de 2006.
Tercer Coloquio Internacional Spinoza
Realizado no Complejo Vaquerías, Valle Hermoso, Córdoba,
Argentina, nos dias 2,3 e 4 de Novembro de 2006. Organizado pelo
Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades de
la Universidad Nacional de Córdoba.
Chantal Jacquet
A professora da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne)
apresentou, a convite do Grupo de Estudos Espinosanos e do GT
Pensamento do Século XVII, uma conferência: Bacon e o problema do
conhecimento, nodia 21de novembrode 2006; e umciclo deseminários:
As relações entrecorpoe mente em Espinosa e suas implicações atuais,
entre 14 e 22 de novembro de 2006.
7_noticias_153_158.PMD 5/10/2007, 11:39153
![Page 154: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/154.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 154/158
![Page 155: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/155.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 155/158
155
IIIIINSTRUÇÕESNSTRUÇÕESNSTRUÇÕESNSTRUÇÕESNSTRUÇÕES PPPPPARAARAARAARAARA OSOSOSOSOSAAAAAUTORESUTORESUTORESUTORESUTORES
IIIIINSTRUÇÕESNSTRUÇÕESNSTRUÇÕESNSTRUÇÕESNSTRUÇÕES PPPPPARAARAARAARAARA OSOSOSOSOSAAAAAUTORESUTORESUTORESUTORESUTORES
• Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas
(30 linhas de 70 toques).
• O arquivo, que deve ser enviado por e-mail ou por correio, deve
conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o
endereço eletrônico ou o telefone.
• Os artigos devem vir acompanhados de umresumoe um abstract
de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.
• As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo,
utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapédos programas de edição.
• As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as
normas técnicas daABNT; podendo-se incluir, a critério do autor,
as referências estabelecidas de textos clássicos, por exemplo, para
a Ética de Espinosa (EI, P2), oupara os Novos ensaios de Leibniz
(II, xxi, §25).
• As referências bibliográficas devem serlistadas no final do texto,
em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.
7_noticias_153_158.PMD 5/10/2007, 11:39155
![Page 156: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/156.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 156/158
156
7_noticias_153_158.PMD 5/10/2007, 11:39156
![Page 157: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/157.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 157/158
157
CCCCCONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSCCCCCONTENTSONTENTSONTENTSONTENTSONTENTS
1. THE FINAL METAPHYSICS OF LEIBNIZ AND THE QUESTION OF THE
IDEALISM
Michel Fichant 09
2. UNIVERSALITY AND SYMBOLIZATION IN LEIBNIZ
Franklin Leopoldo e Silva 41
3. DIVINE GOODNESS AND CONTINGENCY ON LEIBNIZ
Luís César Oliva 59
4. LEIBNIZ: EXPRESSION AND UNIVERSAL CHARACTERISTIC
Tessa Moura Lacerda 87
5. SPINOZA’S PHILOSOPHY BEYOND THE BODY-MACHINE: THE PARALLELISM
IN QUESTION
Ericka Marie Itokazu 111
6. DESCARTES AND THE “DENSE REFLECTION ”: A MERLEAU-PONTYAN READING
OF CARTESIAN DUALISM.
Silvana de Souza Ramos 139
7. NEWS 153
7_noticias_153_158.PMD 5/10/2007, 11:39157
![Page 158: cadernos_15_ok](https://reader031.vdocuments.pub/reader031/viewer/2022021214/577d2c4e1a28ab4e1eabdbf5/html5/thumbnails/158.jpg)
8/7/2019 cadernos_15_ok
http://slidepdf.com/reader/full/cadernos15ok 158/158