comunicação_xii_semana_filosofia

Upload: joelton-nascimento

Post on 03-Apr-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/28/2019 Comunicao_XII_Semana_Filosofia

    1/5

    Antes de entrar propriamente no assunto desta comunicao, a saber, a questo

    da teologia crist e de sua relao com o materialismo histrico na obra do filsofo

    esloveno Slavoj Zizek, sinto-me impelido a discorrer um pouco sobre este filsofo,

    que comea a ser conhecido e reconhecido nos ltimos anos em nosso pas.

    A biografia de Zizek, como nos mostrou Christian Dunker - a meu ver um dos

    mais importantes intrpretes de Zizek no Brasil - uma srie improvvel de

    encontros e circunstncias (DUNKER, 2005, p. 47). Formou-se na capital Liublinia,

    com uma tese sobre o estruturalismo francs em 1975; foi reprovado em sua tentativa

    de ingressar no sistema universitrio esloveno como professor de filosofia e amargou

    a experincia to dura do desemprego. Depois se empregou na estrutura burocrtica

    da ento burocracia do governo iugoslavo.

    Quando foi estudar em Paris, deu ao mesmo tempo um passo em direo a

    Hegel como modo de revigorar o marxismo, quanto de Lacan, como um modo de

    reler Hegel. Todo o pensamento de Zizek coerente com esses passos tericos por ele

    dados no anos 80.

    Embora notemos nele um assombroso vigor e disposio para enfrentar o

    pensamento contemporneo (por exemplo, em trabalhos sobre autores como Deleuze,

    Negri, Sloterdijk, Badiou, Agamben, Butler, Rancire, Postone e muitos outros) bem

    como as artes (especialmente a msica e o cinema) e a cultura popular, assim como os

    temas mais candentes do momento, ele o faz sempre na perspectiva dessa trplice

    experincia: a filosofia de Hegel, a psicanlise lacaniana e a vivncia do fim do

    sorex no leste europeu.

    Quase ao mesmo tempo em que tem seu primeiro livro de grande repercusso

    publicado em ingls candidata-se a presidente da repblica da recm independente

    Eslovnia. Suas posies no debate intelectual e poltico so sempre polmicas e

    irnicas. capaz de colocar no mesmo argumento o idealismo alemo, a

    neurocincia, uma piada suja e um filme blockbuster. de um modo muito peculiar,

    um intelectual engajado.

    Aps a publicao de alguns de seus livros inaugurais, como O Sublime Objeto

    da Ideologia e O Mais Sublime dos Histricos ambos com os primeiros marcos de seu

    programa de estudos, pesquisas e intervenes ancoradas em Hegel e Lacan, Zizek

    quase no aparece nos crculos intelectuais brasileiros com exceo de alguns

    psicanalistas, embora se tornasse mais e mais conhecido na Europa e nos EstadosUnidos.

  • 7/28/2019 Comunicao_XII_Semana_Filosofia

    2/5

    Somente no sculo XXI, especialmente com a publicao de Bem Vindo ao

    Deserto do Realque Zizek se torna mais popular e, por intermdio, sobretudo de seus

    leitores de influncia marxista. Diversas de suas obras passam ento a ser publicadas,

    em especial pela editora Boitempo.

    ***

    Com isso, vemos que os psicanalistas e os marxistas, de modo no-coetneo, j

    patrocinaram a traduo de Zizek para o portugus, e isto implica evidentemente em

    palestras, em debates, artigos, comunicaes, etc. e nenhum destes crculos se

    preocupou em traduzir e debater seriamente os aspectos teolgicos do pensamento de

    Zizek.

    Para prov-lo bastaria assinalar que de todos os livros do filsofo esloveno

    dedicados ao assuntos levantados na ocasio desta comunicao nenhum traduzido e

    publicado no Brasil. So todos em ingls, em espanhol e em portugus de Portugal. O

    Zizek telogo, por assim dizer - um telogo ateu sui generis - ainda no foi recebido

    no Brasil.

    Espero ter com isso justificado a presente comunicao.

    Evidentemente no poderemos neste breve espao seguir a argumentaozizekiana, extremamente rica, prolfera e dispersiva. Pretendo apenas assinalar dois

    pontos-chave de sua argumentao e que servem para que os interessados possam

    melhor enfrentar os textos de Zizek sobre este tema. Depois quero falar um pouco

    sobre a importncia das idias e teses zizekianas no debate e nas prticas

    emancipatrias da contemporaneidade. Tambm apenas a ttulo de ilustrao.

    ***

    A primeira obra na qual Zizek defende uma tese na direo da teologia O

    Frgil Absoluto e o subttulo sugestivo: porque ainda vale a pena lutar pelo legado

    cristo? Apesar deste subttulo bem sugestivo, salvo melhor juzo, neste livro Zizek

    de modo algum responde esta pergunta. Parece que ali ele faz um estudo preparatrio,

    em que outros assuntos ganham mais relevncia, como por exemplo, uma anlise

    lacaniana da figura do Esprito Santo, uma crtica do pseudo-espiritualismo ocultista

    new age da ps-modernidade e por a vai.

  • 7/28/2019 Comunicao_XII_Semana_Filosofia

    3/5

    apenas no livro seguinte que um programa terico mais claro comea a

    aparecer. Em A Marioneta e o Ano encontramos a clareza e a argcia que no

    encontramos em toda a obra em curso deste filsofo a respeito da teologia crist e de

    sua relao com o materialismo histrico.

    A tese de Zizek uma inverso e uma radicalizao da tese do crtico literrio

    e pensador alemo Walter Benjamin, de suas clebres Teses sobre o Conceito de

    Histria.

    Como alguns daqui se recordam, na Tese I Benjamin constri uma imagem

    curiosa para ilustrar a relao entre a teologia e o materialismo histrico. Ele dizia que

    havia um dispositivo construdo de tal modo que um boneco parecia ganhar de todos

    os desafiantes as partidas de xadrez que disputasse. Uma iluso de tica fazia o

    observador ver um boneco, uma marionete, ganhar, jogada a jogada, todas as partidas.

    Em verdade, porm, havia por baixo da mesa um ano mestre enxadrista. A Benjamin

    dizia hoje funciona assim, sendo o materialismo histrico a marionete e a teologia o

    ano. E a teologia era uma ano que deveria - em um mundo racionalista - ficar

    sempre escondido, pois era feio no muito apresentvel.

    E o Zizek inverte a imagem e as premissas da primeira Tese Benjaminiana: o

    materialismo histrico que hoje uma ano feio e nada apresentvel, e a teologia

    quem se prolonga e penetra em uma sociedade apenas aparentemente racionalizada.

    Ento, hoje o materialismo histrico quem precisa entrar na mquina e fazer mover

    o boneco, a marionete chamada teologia.

    (...)

    No teramos tempo para seguir a argumentao zizekiana em busca de suas

    qualidades e eventuais obscuridades. S quero assinalar sua peculiaridade aqui, sepossvel.

    Em uma obra que fez bastante sucesso e repercutiu muito nos crculos marxistas

    brasileiros h um prefcio especialmente escrito pelo filsofo esloveno para a edio

    brasileira. H um fragmento deste prefcio que, a meu ver, um instantneo do modo

    como Slavoj Zizek defende e busca se apropriar do legado cristo em seu programa

    terico-filosfico de emancipao. Vamos a ele:

    A partir de minha limitada tica europia, a primeira

  • 7/28/2019 Comunicao_XII_Semana_Filosofia

    4/5

    coisa que me lembro em relao ao Brasil Canudos, a

    comunidade fora-da-lei nas profundezas do serto nordestino,

    que no final do sculo XIX foi lar de prostitutas, aleijados,

    mendigos e bandidos; enfim, dos mais desgraados entre os

    pobres. Canudos, liderado por um profeta apocalptico, era

    um espao utpico sem dinheiro, propriedade, impostos ou

    casamento; em 1897 foi destrudo pelas foras militares do

    governo brasileiro. Os ecos de Canudos so claramente

    identificveis nos bairros miserveis das megalpoles latino-

    americanas da atualidade: no seriam eles, de certo modo, os

    primeiros territrios liberados, as clulas de futuras

    sociedades auto-organizadas? O territrio libertado de

    Canudos, na Bahia, permanecer para sempre como o modelo

    de espao libertado, de uma comunidade alternativa que

    rejeita completamente o espao do Estado em vigor. Tudo

    deve ser defendido neste caso, at mesmo o fanatismo

    religioso

    Este um texto absolutamente constrangedor primeira vista. Como muitos no

    leste europeu, Zizek mostra ter lido a Guerra do Fim do Mundo de Mario Vargas

    Llosa. Mas ao contrrio do que seria intuitivo, ele no afirma, ao gosto do tempo, que

    os interessantes aspectos autonomistas da Guerra de Canudos precisam ser separados

    dos aspectos messinicos e at mesmo fanticos dos seguidores de Conselheiro. No.

    Ele afirma que mesmo o fanatismo e o messianismo tambm devem ser defendidos.

    Ele no um libertrio pragmtico, que simplesmente avalia as ideias pelas suas

    conseqncias eventualmente mais ou menos emancipatrias. No. Ele maisinteligente e conseqente. Sabe que as ideias, valores e crenas tm fora material e a

    co materialmente conseqente no pode se realizar sem que mobilize valores, ideias

    e crenas. Isso materialismo histrico bem entendido.

    H naquele fanatismo algo de emancipador, ou do contrrio ele no teria dado

    estofo scio-simblico para os territrios liberados abertos e mantidos pelos prias

    em Canudos. H um legado emancipador no fanatismo de Conselheiro e deus

    seguidores, o que nos sugere Zizek.Eu diria que seu programa filosfico est em buscar no cristianismo seu ncleo

  • 7/28/2019 Comunicao_XII_Semana_Filosofia

    5/5

    emancipador, tal como ele o encontra no messianismo de Canudos. No de um modo

    pragmtico, nem no modo de um dilogo, como foi a tentativa dos anos 60 e 70,

    bom que se diga, pois o dilogo pressupe uma externalidade intransponvel. Mas por

    intermdio da filosofia e da psicanlise lacaniana Zizek busca capturar o sentido, os

    vetores e coordenadas scio-simblicas do gesto emancipador da f e das prticas

    crists. Ir para dentro destes gestos, buscando suas nuances e dilemas internos.

    ***