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Livro: Macunaíma Autor: Mário de Andrade Data de publicação: ano de 1928 Escola literária: Modernismo Adaptações: Filme “Macunaíma”, de 1969 Quem é “Macunaíma”: Macunaíma é o nome do índio, o herói sem caráter, personagem título do livro. Sobre o livro Macunaíma, by Wikipedia 1. O livro Macunaíma, obra de 1928, do escritor brasileiro Mário de Andrade, é considerado um dos grandes romances Modernistas do Brasil. A personagem-título, um herói sem nenhum caráter (anti- herói), é um índio que representa o povo brasileiro, mostrando a atração pela cidade grande de São Paulo e pela máquina. A frase característica da personagem é "Ai, que preguiça!". Como no dialeto indígena o som "aique" significa "preguiça", Macunaíma seria duplamente preguiçoso. A parte inicial da obra assim o caracteriza: "No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite." A obra é considerada um indianismo moderno e é escrita sob a ótica cômica. Critica o Romantismo, utiliza os mitos indígenas, as lendas, provérbios do povo brasileiro e registra alguns aspectos do folclore do país até então pouco conhecidos (rapsódia). O livro possui estrutura inovadora, não seguindo uma ordem cronológica (i.e. atemporal) e espacial. É uma obra surrealista, onde se encontra aspectos ilógicos, fantasiosos e lendas. Apresenta críticas implícitas à miscigenação étnica (raças) e religiosa (catolicismo, paganismo, candomblé) e uma critica maior à linguagem. Em Macunaíma, Andrade tenta escrever um romance que represente o multi-culturalismo brasileiro. A obra valoriza as raízes brasileiras e a linguagem dos brasileiros, buscando aproximar a língua escrita ao modo de falar local. Mário de Andrade tinha uma idéia de uma "gramatiquinha"

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Livro: MacunaímaAutor: Mário de AndradeData de publicação: ano de 1928Escola literária: ModernismoAdaptações: Filme “Macunaíma”, de 1969

Quem é “Macunaíma”: Macunaíma é o nome do índio, o herói sem caráter, personagem título do livro.

Sobre o livro Macunaíma, by Wikipedia

1. O livroMacunaíma, obra de 1928, do escritor brasileiro Mário de Andrade, é considerado um dos grandes romances Modernistas do Brasil.A personagem-título, um herói sem nenhum caráter (anti-herói), é um índio que representa o povo brasileiro, mostrando a atração pela cidade grande de São Paulo e pela máquina. A frase característica da personagem é "Ai, que preguiça!". Como no dialeto indígena o som "aique" significa "preguiça", Macunaíma seria duplamente preguiçoso. A parte inicial da obra assim o caracteriza: "No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite."A obra é considerada um indianismo moderno e é escrita sob a ótica cômica. Critica o Romantismo, utiliza os mitos indígenas, as lendas, provérbios do povo brasileiro e registra alguns aspectos do folclore do país até então pouco conhecidos (rapsódia). O livro possui estrutura inovadora, não seguindo uma ordem cronológica (i.e. atemporal) e espacial. É uma obra surrealista, onde se encontra aspectos ilógicos, fantasiosos e lendas. Apresenta críticas implícitas à miscigenação étnica (raças) e religiosa (catolicismo, paganismo, candomblé) e uma critica maior à linguagem.Em Macunaíma, Andrade tenta escrever um romance que represente o multi-culturalismo brasileiro. A obra valoriza as raízes brasileiras e a linguagem dos brasileiros, buscando aproximar a língua escrita ao modo de falar local. Mário de Andrade tinha uma idéia de uma "gramatiquinha" brasileira que desvincularia o português do Brasil do de Portugal, o que, segundo ele, vinha se desenrolando no país desde o Romantismo. Ao longo da obra são comuns as substituições de "se" por "si", "cuspe" por "guspe" entre outras.No episódio "Carta pras Icamiabas", Andrade satiriza ainda mais o modo como a gramática manda escrever e como as pessoas efetivamente se comunicam. Aproveitando-se do artifício de uma carta escrita, Macunaíma escreve conforme a grafia arcaica de Portugal, explicitando a diferença das regras normativas arcaicas e da língua falada: "Ora sabereis que sua riqueza de expressão intelectual e tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra".

2. O filmeO livro foi adaptado para o cinema por Joaquim Pedro de Andrade em 1969. Também foi feita uma premiada peça de teatro, por Antunes Filho, encenada pela primeira vez na década de 1970 e que chegou a ser montada em vários países.

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Sobre o livro Macunaíma

1. Enredo

À semelhança dos relatos épicos ditos populares, Macunaíma é uma longa seqüência de lendas variadas e justapostas e de numerosas ações, quase todas praticadas pelo herói homônimo e não raro apresentadas de forma um tanto desconexa. Dada a grande quantidade de eventos relatados e, mais ainda, dado o fato de quase todos terem, na economia da obra, importância mais ou menos igual se comparados entre si, torna-se praticamente impossível condensar organizadamente o enredo. De toda maneira, parecem ser os seguintes os principais eventos que formam a moldura narrativa da obra:Às margens do Uraricoera, filho de uma índia da tribo dos tapanhumas, nasce Macunaíma, um menino preto retinto e feio. Apenas aos seis anos começa a falar e uma das poucas coisas que repete continuamente é: 'Ai, que preguiça'. Contudo, é muito ativo em seus brinquedos com as mulheres. Tem dois irmãos mais velhos, chamados Maanape e Jiguê, e uma cunhada, Sofará, mulher do segundo. Quando esta o leva a passear, Macunaíma transforma-se em um belo príncipe e brinca com ela, o que irrita Jiguê, que a devolve aos pais e faz de Iriqui sua nova mulher, a qual, por sua vez, também brinca com Macunaíma. Desta vez, porém, Jiguê se conforma.Por artes da cutia, que lhe dá um banho de água envenenada de mandioca, Macunaíma se transforma em homem, mas sua cabeça, a única parte do corpo que não fora molhada, fica pequena. Um dia sai à caça e encontra uma veada com cria e a mata. Fora uma peça que Anhangá lhe pregara, pois ao aproximar-se do animal morto vê que é a própria mãe. Aflito, chama Maanape, Jiguê e Iriqui e todos choram muito. Em seguida partem 'por este mundo'. A certa altura, Macunaíma encontra e, com a ajuda dos irmãos, possui Ci, a Mãe do Mato, rainha das icamiabas [uma tribo de 'mulheres sozinhas', ou amazonas], transformando-se, em virtude disto, em Imperador do Mato-Virgem. A viagem continua e Ci, que os acompanha, ao final de seis meses tem um menino de cor encarnada e cabeça chata. A cobra preta morde o peito de Ci. O menino suga o leite da mãe e morre. Depois do enterro do menino, Ci entrega a Macunaíma uma muiraquitã e sobe aos céus, utilizando-se de um cipó. Ao visitar o túmulo do filho no dia seguinte, Macunaíma vê que sobre ele nascera uma planta: era o guaraná.Continuando a caminhada, Macunaíma e os irmãos enfrentam a boiúna Capei [cobra-grande]. Na fuga, o herói perde o muiraquitã. Os três irmãos a procuram, mas sem resultado. Afinal, o Negrinho do Pastoreio envia a Macunaíma um uirapuru e este revela que a sua pedra-amuleto está nas mãos de Wenceslau Pietro Pietra, um regatão peruano que mora em São Paulo. Infeliz com a perda da muiraquitã, o herói resolve sair à sua procura e parte para a cidade referida. Os irmãos decidem partir com ele. No dia seguinte Macunaíma vai à ilha de Marapatá para ali deixar sua consciência e reunir o maior número possível de bagos de cacau, que têm valor de dinheiro. Ali encontra uma poça de água, que, por ser a marca do pé de São Tomé - o apóstolo que andara pela América -, é encantada. Macunaíma entra nela e fica branco. Jiguê também se banha mas fica de cor vermelha, porque a água estava suja. E Maanape, como a poça ficara quase seca depois do banho de seus irmãos, consegue branquear apenas as palmas das mãos e dos pés.Depois de assim transformados, chegam a São Paulo, se instalam em uma pensão e vão à casa de Wenceslau Pietro Pietra, que na verdade é Piaimã, o gigante comedor de gente. Piaimã mata o herói e dele faz torresmo para comer com polenta. Porém Maanape, com a ajuda de uma formiga e de um carrapato, consegue fazê-lo reviver, salvando-o do gigante. Depois de várias desavenças com os irmãos, durante a

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construção de um rancho - quando inventa uma brincadeira chamada futebol -, Macunaíma telefona a Piaimã, disfarçando sua voz e fazendo-se passar por uma francesa. Marca um encontro com ele e, travestido de mulher, vai à casa do gigante, que começa a namorá-lo e lhe mostra a muiraquitã, comprada, segundo diz, da imperatriz das icamiabas. Macunaíma, assustado com as pretensões do gigante, resolve fugir. Contudo, Piaimã o agarra e o coloca num cesto. O herói consegue fugir de novo e é perseguido por um cachorro do regatão e pelo próprio, até chegar à Ilha do Bananal, onde se esconde em um formigueiro. Em determinado momento, quando o gigante já está fora de si e ameaça colocar uma cobra no formigueiro, Macunaíma põe fora o seu 'sim senhor'[pênis] e Piaimã, sem dar-se conta, o agarra e o joga longe. O herói, é claro, vai junto...E chega a São Paulo novamente.Aborrecido por não ter recuperado a muiraquitã, Macunaíma vai ao Rio de Janeiro pedir proteção a Exu, em um terreiro de macumba, no Mangue, onde Tia Ciata é mãe-de-santo. Uma polaca entra em transe e o herói é consagrado filho de Exu. Um a um os presentes fazem seus pedidos, a que Exu atende ou não. Macunaíma pede vingança contra o gigante Piaimã. Exu promete ajudar o herói e, ato continuo, o gigante sofre, no corpo da polaca, uma série de torturas que Macunaíma vai solicitando. Enquanto isto, em São Paulo, Piaimã vai, paralelamente, sendo massacrado: surra, chifrada de touro, coice de bagual, etc. Depois que a polaca volta a si, os macumbeiros saem pela madrugada. Entre eles estavam Manu Bandeira, Raul Bopp, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira e outros. Em seguida, por vingança da árvore Volomã, da qual fizera cair todos os frutos, Macunaíma é lançado em uma pequena ilha deserta da Baía da Guanabara. Chega então Vei, a Sol, com suas três filhas. Todos juntos entram em uma jangada e aportam ao Rio de Janeiro. A Sol, que deseja casar uma de suas filhas com o herói, recomenda-lhe que se comporte direito, e em seguida parte. Contudo, vendo as mulheres da cidade, ele não agüenta. Grita 'pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são', salta em terra e traz para a jangada uma portuguesa, vendedora de peixe.Vei, a Sol, volta e, encontrando o herói com a varina, diz-lhe que se tivesse se comportado se casaria com uma das suas três filhas e ficaria jovem para sempre. Não o tendo feito, envelhecerá, como todos. Vei, o Sol, vai para a cidade, enquanto Macunaíma fica na jangada, com a portuguesa. À noite dorme em um banco, no Flamengo. Vê uma assombração medonha e foge. No outro dia está novamente em São Paulo, de onde escreve, num estilo que pretende ser clássico, uma carta para as icamiabas, contando sobre os costumes dos habitantes da cidade e pedindo-lhes dinheiro [bagos de cacau], pois gastara todo o que trouxera, principalmente com as donas paulistas, que cobram caríssimo por seus carinhos. Informa ainda que está para recuperar o muiraquitã.Enquanto isto, Piaimã, que ficara doente com a surra, as chifradas e os coices resultantes da macumba, cuida muito bem da muiraquitã, deitado em cima dela. O herói não consegue reaver a pedra-amuleto. Em suas andanças por São Paulo, Macunaíma interrompe a cerimônia do Dia do Cruzeiro, quando conta a lenda indígena do pai do Mutum, que é o verdadeiro Cruzeiro do Sul. Em seguida mete-se em um tumulto de rua, é preso e foge, passeando por todo o Brasil e voltando novamente a São Paulo, onde tenta, mais uma vez, entrar em contato com Piaimã. Pega sarampo e, ao melhorar, vai outra vez à casa do gigante, mas não o encontra, pois este tinha ido passear na Europa. Jiguê propõe ir atrás do gigante, mas a falta de dinheiro impede a realização da idéia. Os três, então, percorrem o Brasil novamente. A certa altura, encontram uma macaco, que está comendo coquinhos. Este diz a Macunaíma que são seus próprios testículos. O herói acredita e, devido à grande fome, pega uma pedra e esmaga os seus, morrendo em seguida. Contudo, ressuscita logo e pede um palpite a Maanape para jogar no bicho.

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Maanape acerta e a partir de então os irmãos vivem de habilidade dele, e ficam morando sempre na pensão.Macunaíma não abandona seu gosto pelas estripulias, roubando Suzi, a nova mulher que Jiguê arrumara. Certo dia, porém, Maanape lê nos jornais uma extraordinária notícia: Wenceslau Pietro Pietra, o gigante, voltara da Europa. A partir daí Macunaíma fica observando de longe a casa dele. O gigante, porém, agarra o chofer do carro em que Macunaíma chegara. O chofer cai em um tacho de macarrão fervendo.Percebendo que seu destino seria o mesmo, o herói entra em luta com o gigante, o engana e faz com que o próprio caia no tacho. Macunaíma recupera a muiraquitã, retorna para a pensão e, logo em seguida, parte com os irmãos para a região do Uraricoera. Quase ao final da viagem, cheia de eventos de vários tipos, Maanape e Jiguê morrem. Macunaíma consegue chegar à antiga tapera. Contudo, atacado de impaludismo, vive triste e só, tendo como companheiro apenas um papagaio, um aruaí falador, ao qual o herói, ao passar dos dias, vai contando suas aventuras. Certo dia de janeiro, sofrendo intensamente com o calor, Macunaíma não resiste e se atira em uma lagoa, sendo atacado por um cardume de piranhas. Estas lhe comem os lábios - onde sempre trazia pendente a muiraquitã - e a pedra desaparece novamente.Desgostoso com o fato, planta um cipó, sobe ao céu e se transforma na constelação da Ursa Maior.A terra do Uraricoera ficara deserta. Certa ocasião, um homem chega até lá e ouve uma voz. Era o aruaí falador, velho companheiro de Macunaíma. O papagaio conta ao homem toda a saga do herói e em seguida voa para Lisboa. E o homem era o autor do livro, Mário de Andrade.

2. Personagens principais

Macunaíma, o herói sem nenhum caráterNem mesmo forçando os conceitos literários correntes se poderia falar em personagens em Macunaíma. Estes, na obra, não possuem qualquer parentesco com os heróis dos romances ou novelas de tradição narrativa realista/naturalista - no contexto da qual é utilizado o termo -, surgindo antes como representações de funções, idéias ou comportamentos, à semelhança do que ocorre nas fábulas, lendas ou mitos, como se pode perceber claramente naquelas partes em que é mais marcante a presença das lendas indígenas nas quais Mário de Andrade buscou inspiração. Isto posto, é impossível - seja porque esta era a intenção explícita do autor, seja porque a obra foi assim depois interpretada - deixar de observar que o 'personagem'/protagonista Macunaíma tem sido e continua sendo visto como símbolo do homem brasileiro, que teria sua natureza psicológico-cultural identificada no subtítulo: 'sem nenhum caráter'. Mas seria isto verdade? E em que sentido? A expressão significaria apenas 'sem características próprias, sem identidade definida, como, ao que parece, era a idéia de Mário de Andrade? Ou - numa visão pessimista que revelaria baixo nível de autoestima - seria sinônimo de 'canalha', 'safado' e 'mau-caráter'? Ou, ainda - numa visão otimista -, significaria 'matreiro', 'manhoso' e 'aproveitador'? Por outro lado, tais estereótipos - tanto um quanto outro - teriam alguma base na realidade ou não passariam de generalizações superficiais, levianas e sem qualquer fundamento histórico, principalmente se se levar em conta a extrema heterogeneidade social e cultural da população brasileira? Finalmente, aceitar tais interpretações não seria a expressão de uma atitude equivocada por levar a sério demais uma brincadeira, não desprovida de sentido, é claro, mas que exatamente por ser uma brincadeira não pode ser tomada ao pé da letra?

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Seja como for, obras literárias e personagens não raro extrapolam os limites do tempo, do texto e das intenções do autor e, com ou sem respaldo na realidade, transformam-se em símbolos ou referências de uma coletividade ou de parte dela. E, assim, é inegável que para todo o brasileiro possuidor de certa cultura - e, portanto, de certo status sócio-econômico - Macunaíma, o herói criado por Mário de Andrade, é a personificação de um comportamento amoral, desabusado e carnavalesco, aproveitador e furiosamente individualista. Um estereótipo que, transcendendo o plano literário e extrapolando o texto, está, sem dúvida, em íntima relação com a auto-imagem que de si têm os grupos dominantes da civilização urbano-industrial do Brasil da segunda de do século XX. O que não deixa de ser fato interessante e, talvez, mais um paradoxo diante do qual, provavelmente, Mário de Andrade se surpreenderia.

3. Estrutura narrativa

Um homem - o próprio autor Mário de Andrade, por suposto - chega às margens do Uraricoera, já desertas, e encontra apenas um papagaio falador, que, antes de voar para Lisboa, lhe conta a saga de Macunaíma, a qual, por sua vez, lhe fora por este contada. Esta saga é, também supostamente, o livro composto de 17 capítulos de tamanho diverso e um pequeno epílogo. Quanto ao espaço e ao tempo, a ação se desenvolve no Brasil - principalmente em São Paulo –, com algumas incursões pelas regiões fronteiriças do continente, nas primeiras décadas do século XX.Isto, porém, apenas em princípio e numa visão extremamente superficial, pois, à maneira do que ocorre nas fábulas e lendas, tanto o espaço como o tempo são conceitos completamente fluidos na estrutura narrativa, não estando, em absoluto, submetidos às normas resultantes da noção de verossimilhança, quer dizer, não existe atrelamento ao modelo realista/naturalista [a não ser no fato de a narrativa estruturar-se, com exceção do epílogo, segundo o molde do narrador onisciente em terceira pessoa]. Pelo contrário, os fatos narrados não raro assumem um caráter fantástico, mágico, mítico-sacral ou como se quiser qualificá-lo. Além disto, o capítulo IX [ a 'Carta prás icamiabas'], com seu caráter de sátira/paródia, destaca-se radicalmente do restante do enredo e do núcleo temático, impedindo enquadrar a obra num gênero ou numa forma qualquer.

Sobre o livro Macunaíma e a cultura brasileira

1. Macunaíma e a formação de uma cultura brasileira“A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. (...) Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. (...) Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.”(Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil)

2. Introdução

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O movimento modernista da década de 20 ambicionava tornar o Brasil uma nação com forma própria, conquistando nossa individualidade cultural e um lugar no “concerto das nações”, como dizia Mário de Andrade. Nessa tarefa, o autor modernista, baseando-se em certas teorias históricas e filosóficas, empenhou-se em produzir um trabalho que afirmasse a entidade nacional e assim criou o seu Macunaíma.

Neste trabalho, discutiremos questões nacionais levantadas por Macunaíma e as influências e analogias entre a obra de Mário de Andrade e algumas das grandes teorias históricas, particularmente as de Herder, Spengler e Keyserling. Além disso, transportaremos as imagens macunaímicas para nossa realidade atual “globalizada”, fazendo um pequeno paralelo entre Macunaíma e o Brasil dos anos 90 do século XX.

3. As intenções com o livroComo o próprio Mário declarou, ele teve muitas intenções ao escrever Macunaíma, tratando de diversos problemas brasileiros: a falta de definição de um caráter nacional, a cultura submissa e dividida do Brasil, o descaso para com as nossas tradições, a importação de modelos socioculturais e econômicos, a discriminação lingüística, etc. Mas a principal preocupação de Mário de Andrade foi buscar uma identidade cultural brasileira. O Brasil na época (e também hoje) não tinha “competência” para desenvolver uma cultura autônoma e toma emprestado modelos europeus, que não se adaptam ao nosso clima quente. A nossa cultura, então, deveria ser distinta das outras e possuir, por outro lado, uma totalidade racial; deveria provir das raízes que aqui haviam, das culturas populares existentes nos recantos do país. O Brasil, como entidade cultural, seria construído pela mistura de todas essas culturas (orais) de cada região brasileira. É justamente o que o escritor faz em Macunaíma: compõe a sua rapsódia reunindo lendas, folclores, crendices, costumes, comidas, falares, bichos e plantas de todas as regiões, não se referindo a nenhuma delas, misturando inclusive as diversas manifestações culturais e religiosas, dando assim um aspecto de unidade nacional, que não condiz com a realidade dividida de nossa cultura. Referindo-se a essa “desgeografização”, Mário de Andrade anota num de seus prefácios inéditos: “Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea = um conceito étnico nacional e geográfico.”

Comentando esse esforço de juntar os elementos constitutivos do ser nacional, Eduardo Jardim de Moraes (In: Berriel, 1990) nota que:

“Na composição de Macunaíma e em seus escritos críticos da época nota-se o cuidado rigoroso de efetuar o levantamento do material que torna possível traçar o perfil do Brasil. Era intenção de Mário de Andrade, em sua perspectiva analítica, ao justapor os variados elementos culturais presentes na esfera nacional, chegar à definição de um elemento comum que qualificasse todos como pertencentes ao mesmo patrimônio cultural.”Para Mário de Andrade, a modernização brasileira, isto é, a conquista de uma identidade cultural só seria possível se tomássemos consciência de nossas tradições. Em entrevista concedida em 1925, o escritor afirma que “ toda tentativa de modernização implica a passadização da coisa que a gente quer modernizar”. Vai mais além: “nós só seremos de deveras uma Raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de

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cultura”. Macunaíma é, portanto, uma tentativa de modernizar o Brasil através do passado, de nossas tradições; é também a tentativa de fundar a raça brasileira, estreitamente ligada ao seu ambiente geográfico, ao seu clima.Todas essas intenções macunaímicas tomam por base conceitos de raça e cultura construídos pela filosofia européia, particularmente a alemã. Ele como que tomou emprestado certos conceitos, mas adaptando-os ao nosso clima quente. Passemos então, a analisar os pontos de convergência entre sua obra e as teorias históricas.

4. Macunaíma e as teorias históricasComecemos analisando as relações entre a obra andradiana e o pensador alemão Johann Gottfried Herder (1744-1803). Para Herder, a característica mais importante da história é a pluralidade e a individualidade das nações, justamente o que buscavam nossos modernistas.Apesar de não haver material comprovando que Mário de Andrade leu Herder – conforme aponta C. E. Berriel (1987), as idéias deste pensador são claramente notadas na obra do escritor (que podem ter vindo através de Spengler ou do Romantismo brasileiro, ambos influenciados por Herder). O filósofo acreditava que “a literatura de uma nação deve ser verdadeira para com as tradições e o caráter íntimo da mesma nação, e a sua atitude para com a natureza” (Gardiner, 1995). Ora, Macunaíma é esta literatura: busca resgatar as tradições folclóricas brasileiras e afirmar um caráter nacional (que, para Mário, supostamente não há). O pensamento herdiano enfatiza os conceitos de caráter nacional e de meio ambiente, em que há uma unidade entre geografia, cultura e raça. Lendo atentamente Macunaíma, percebemos que Mário de Andrade utiliza todos esses conceitos em seu livro: nosso herói adquire características adequadas ao meio em que vive, ao seu espaço geográfico (que depois abandonará como sabemos), ele é a tentativa de fundar a raça brasileira a partir das “três raças tristes” que dão origem ao brasileiro e, mais ainda, é a possibilidade da criação de uma cultura nacional autêntica.O escritor modernista partilhava da mesma idéia de que a paisagem está dentro do ser humano, como experiência coletiva ou individual de estar em um determinado lugar, a natureza captada pelos sentidos. Na concepção de Herder, o homem se origina a partir e dentro de uma raça, que está intrinsecamente ligada à paisagem, como ele ilustra em uma metáfora:“Tal como a água de uma nascente recebe do solo donde brota a sua composição, as suas qualidades atuantes e o seu sabor, assim o antigo caráter dos povos proveio de traços raciais, do clima, do tipo de vida e da educação, das ocupações primitivas e das ações peculiares a cada um desses povos.”Neste sentido, Mário traduz literariamente a filosofia de Herder. Ele acreditava que deveríamos construir uma cultura, em sentido amplo, adaptada ao nosso clima, à nossa paisagem. Em resposta a um questionário da Editora Macaulay, em 1933, Mário declarou: “Tanto o meu físico como as minhas disposições de espírito exigem as terras do Equador. Meu desejo é ir viver longe da civilização, na beira de algum rio pequeno da Amazônia...” Ele acreditava que a preguiça era uma necessidade para os povos de clima quente como o Brasil, já que o “trabalho semanal e de tantas horas diárias” era coisa de civilizações cristãs de clima frio.Mário de Andrade problematiza em Macunaíma as idéias de Herder segundo as quais o destino de um povo “depende primordialmente do tempo e do lugar em que nasce, das partes que o compõem e das circunstâncias exteriores que o rodearam”. Para a formação da entidade nacional é necessário superar todos esses obstáculos que se impõem diante

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do herói: primeiramente ele não tem caráter, não é ligado ao seu meio geográfico (que, inclusive, renega ao final do livro), as partes (raças) que o compõem são conflitantes com a opressão do componente europeu, o tempo em que o Brasil vive passa por um período de transição, início da industrialização nacional. Verificamos vários outros obstáculos que nosso herói encontra e que tem relação com a teoria herdiana. Herder acreditava que os povos incultos adquirem conhecimentos pela prática ou pelo intercâmbio com outros, mas Macunaíma (o Brasil, na verdade) só importa conhecimento, não troca, ou quando o faz troca “borboletas” por “idéias”, isto é troca o “exótico” pelo “civilizado”. Ainda para ele, os povos permanecem ligados entre si, influenciando uns aos outros, de acordo com a relação de maior ou menor poder, em que o país submisso é subjugado pelo opressor; o Brasil, nessa relação é quase totalmente submetido à cultura cristã européia e não tem forças para influenciar esse continente. Enfim, o Brasil só se consolidaria como entidade cultural se crescesse das próprias raízes, como preconizava o filósofo alemão. Macunaíma, ao invés disso, abandona suas raízes e se rende ao clima frio europeu, desprezando suas tradições e renegando sua paisagem tropical.Para Herder a história de um povo é orgânica (como também para Spengler, como veremos mais adiante): “uma nação, tal qual o homem, crescerá e morrerá, inevitavelmente”. Mário de Andrade descreve literariamente a nossa história orgânica, desde o nascimento da possível cultura brasileira até seu quase desenvolvimento e enfim sua morte, ou seja, a vida de Macunaíma.A influência de Oswald Spengler (1880-1936), outro pensador alemão, na obra de Mário de Andrade é patente e reconhecida. Mário leu e se inspirou na obra “A decadência do Ocidente” e em diversas passagens de Macunaíma reconhecemos imagens spenglerianas.Segundo P. Gardiner (1995), Spengler dá preferência “ao instinto, em oposição ao entendimento, à vida no campo em oposição à vda na cidade, a fé e o respeito pela tradição em oposição ao cálculo racional e ao interesse próprio, à intuição e à imaginação em oposição à análise e ao método científico”. Ainda para Spengler, “uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma forma surgir em meio do informe; quando algo limitado, transitório, originar-se no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente restrita, à qual se apega, qual planta”. Isto é, com algumas modificações, a descrição de Macunaíma. Vejamos: Macunaíma é essa alma adormecida que nasce do ilimitado (o “silêncio tão grande”) no “fundo do mato virgem”, portanto, muito longe da cidade; ele usa sua mágica (intuição) para agir e prever as coisas. Mas nosso herói ficará para sempre “carinha enjoativa de piá”, pois enganara as tradições folclóricas, que ora defende ora se afasta delas (defende o Pai do Mutum mas foge de Capei); age sempre por interesse próprio, não tem caráter; e não se apega “qual planta” à sua paisagem.Percebemos no livro as diversas oposições levantadas por Spengler: destino x causalidade, cultura x civilização, história x natureza, crescimento e vida x decadência e morte. Aliás, a oposição principal de Macunaíma não é a do herói com o gigante Venceslau Pietro Pietra, mas sim a oposição entre a mata tropical e a cidade temperada, ou seja, a oposição entre cultura (tradição) e civilização, que é oposição básica de Spengler.No percurso do “herói de nossa gente”, Mário tenta construir a cultura brasileira, segundo os conceitos de Spengler, para quem “as massas de seres humanos fluem numa corrente sem obstáculos, da qual surge de vez em quando a Kultur autoconsciente”; porém, a falta de caráter do herói não possibilita o surgimento da cultura brasileira.

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Além disso, o herói de nossa gente encontra obstáculos na sua vida, quando está se desenvolvendo: ele se depara com o roubo da muiraquitã (cultura brasileira) pelo gigante Piaimã – o Brasil ao tentar construir sua unidade cultural encontra a Europa no meio do percurso.Assim como para Herder, Spengler acredita que a força da cultura depende das raízes, da adaptação à terra, à afinidade com a natureza e a consolidação da raça. Para ele, “a História Mundial é a história da ascensão e queda de nações e raças”. E a raça é uma questão de um “sentimento comum” que une gerações sucessivas num todo. Spengler, como já dito, construiu uma concepção orgânica de história e foi além de Herder, supostamente prevendo o destino de todas as civilizações. Outro ponto de concordância entre os dois filósofos era a afirmação de que cada cultura tem o seu caráter específico ou “alma”. Na visão spengleriana “cada cultura tem as suas possibilidades de expressão, que surgem, amadurecem, decaem e não voltam a se repetir”. Já vimos que Mário utiliza essas idéias em seu livro, contando a vida do herói brasileiro, na verdade a vida da cultura brasileira.Mário também crê na concepção spengleriana de que a indústria (o estágio mais avançado da civilização) é o grande inimigo da Natureza. Ela destrói as nações, as culturas nacionais. A máquina altera a relação do homem com a Natureza, interpondo-se entre eles. Macunaíma se vende às máquinas, quase se tornando uma, e assim frustra-se a tentativa de se estabelecer uma cultura nacional. O herói, como não tem caráter, é facilmente comprado pelas atrações da máquina, esquece a natureza, renega as tradições. Na cidade não há espaço para o sagrado, pois “isso de deuses era gorda mentira antiga” como diz uma “filha da mandioca” para o herói. A máquina não era deus e ninguém podia brincar com ela, pois ela matava. Ao refletir sobre máquinas e homens, Macunaíma chega à conclusão de que “os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens”. Nesse momento, nosso herói começa a maquinar, ele absorve a civilização, pois não tem caráter.Na cidade não há povo, mas uma massa. A cidade-máquina devora os homens e Macunaíma também é devorado por São Paulo. Ele não consegue mais viver e, outro solo que não esse, petrificado; a mata já lhe é estranha e monótona, ele não compreende mais o silêncio que o originou. Assim, Macunaíma, nas palavras de Spengler, “leva a cidade constantemente comsigo (...) perdeu o campo em seu interior e nunca mais o encontrará no mundo de fora”.A gênese das culturas, na teoria spengleriana, é representada pelo mundo rural, o urbano é a corporificação da decadência das civilizações; a civilização “é um epílogo, a morte seguindo-se à vida, a rigidez seguindo-se à expansão (...) o mundo-cidade petrificante seguindo-se à mãe-terra.”. Macunaíma, rendendo-se à civilização, entra em decadência, petrifica-se e vê São Paulo se petrificar. Mário constrói uma imagem magnífica: para ele, São Paulo deveria se preocupar com o exercício da preguiça, mas como não tem caráter, ela se transforma em um imenso bicho preguiça de pedra.Mas a cultura brasileira não morre de todo. Mário, de certa forma, acredita no Brasil e deixa, no final do livro, a possibilidade de construirmos a nossa cultura: Macunaíma, na verdade, não morre, sobe para o campo vasto do céu, vira tradição, que poderá ser resgatada e transmitida (como aliás, é transmitida ao próprio Mário no Epílogo). Essa visão otimista com relação à formação de uma nação brasileira, Mário deve a Keyserling, único pensador que teve sua influência creditada explicitamente, num dos prefácios inéditos. Na concepção de Keyserling, o homem é uma entidade real que se manifesta através de criações culturais. A teoria dele, assim como a de Herder, afirma o particularismo das culturas e ao mesmo tempo seu lugar universal. O conceito de cultura keyserlinguiano

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está relacionado a um passado vivo e a cultura “é a forma da vida, como imediata expressão do espírito (...) é obrigação com relação a um passado vivo, (...) é exclusiva e, portanto, estritamente limitada no exterior; é essencialmente unitária, pelo que cada coisa particular nela pressupõe e alude à totalidade” (que, enfatizamos, é o conceito utilizado pelos modernistas de 20). Mas, diferentemente de Spengler, para ele “todas as culturas tradicionais do planeta estão em decadência”, não só a civilização ocidental. Mas se Keyserling considera que todas as culturas tradicionais estão em decadência, porque centradas “no irracional, no impulsivo” – que é intransferível e, assim, não dando continuidade à cultura, por outro lado, a cultura pode ser perpetuada através de tradições vivas.Mário compartilhava do otimismo de Keyserling, que acreditava que a tradição viva era a via de transmissão da cultura, a despeito da decadência inevitável das civilizações. Por isso Macunaíma, apesar de ter perdido a muiraquitã (a cultura brasileira) vira constelação (tradição). Ou seja, agora ele se transformou em instrumento de transmissão do que poderia vir a ser a entidade brasileira. O projeto andradiano, portanto, pode ser resgatado pelas gerações futuras.Para Keyserling uma nova cultura se desenvolve “quando da mescla se origina o equivalente a uma nova raça definida”. Esse postulado permite Mário de Andrade conceber a gênese da Raça brasileira, criando seu herói a partir da mescla das três raças tristes (índio, branco e negro). Nosso herói, infelizmente como sabemos, deixa que sua porção branca oprima as outras e se vende à civilização decadente, não definindo uma nova Raça. Cabe ressaltar aqui que a porção branca de Macunaíma – vinda dos portugueses – já era mestiça e não se constituía como Raça; citando Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil: os portugueses apresentavam “ausência completa, ou praticamente completa de qualquer orgulho de raça (...) Essa modalidade de seu caráter explica-se muito pelo fato de serem os portugueses um povo de mestiços”. Mário de Andrade encontra outro ponto de apoio em Keyserling, com relação à aversão à industrialização nascente, ao capitalismo verdadeiro, como nota C.Berriel (1987): “Keyserling oferece uma alternativa “não-burguesa” de leitura da realidade histórica, ao rejeitar a economia e a materialidade como formas explicativas. Assim, a crise da sociedade contemporânea pôde ser vista, tanto por Spengler e Keyserling, como por Mário de Andrade, como uma crise da cultura pura e simplesmente”.Todas essas postulações keyserlinguianas deram base para que Mário criasse seu “poema fundador” da raça brasileira ligada à paisagem tropical, e, por conseqüência, desenvolver a cultura brasileira. Ao pessimismo de Spengler, Mário prefere a possibilidade keyserlinguiana de manter a tradição brasileira viva, na esperança de que ela venha a se despertar novamente; por isso mesmo é que escuta do papagaio a vida do herói de nossa gente e nos transmite.

5. As imagens “macunaímicas” e o Brasil atualÀ luz das idéias e conceitos expressos em Macunaíma, transportaremos algumas de suas imagens para o Brasil da era globalizada. A intenção aqui não é aplicar uma teoria histórica (ou sua releitura literária) à atualidade brasileira, nem fazer uma crítica aprofundada sobre a cultura brasileira nos dias de hoje; para isso, seriam necessárias pesquisa e análise mais aprofundadas. A intenção é mostrar pontos de contato entre obra de Mário de Andrade e nosso atual contexto cultural e econômico, é também mostrar que a tradição macunaímica se faz sentir em nossos dias, com as mesmas questões que preocupou os modernistas na década de 20. A Globalização implica na anulação da identidade nacional dos povos. Ela supostamente unificaria todas as nações o que, na verdade, levaria à perda da identidade

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cultural de cada nação. Neste sentido, a nova caminha para um objetivo contrário ao das teorias de Herder, Keyserling e da proposta modernista, em que a cultura se afirma como nação pela sua particularidade. O mundo globalizado não admite tradições e particularidades, num momento em que a palavra de ordem é “comunicação”. Comunicação virtual, a informação em alta velocidade através da máquina computador. Uma tribo africana sem e-mail ou home page ficará obsoleta, entrará em decadência, muito mais rapidamente que as civilizações preconizadas por Spengler. A civilização conquistou de tal forma uma técnica apurada – as novas tecnologias, que aceleram desenfreadamente o desaparecimento da cultura tradicional, como dizia Keyserling.A cultura brasileira, seduzida por essa Uiara, está cada vez mais enxertada de estrangeirismos, que passaram a ser considerados como agregados culturais que contribuiriam para o enriquecimento de nossa “cultura”. O povo (quer dizer, a massa) não se dá conta muitas vezes de que essas “contribuições” na verdade fazem parte de um processo de “lavagem cerebral” das nossas tradições, que a influência cultural e econômica continua sendo unilateral. Não há fluxo de troca entre Brasil e a nova civilização ocidental hegemônica, os Estados Unidos, por exemplo; exportamos “futebol” e importamos “tecnologia”. Cada vez mais nossa realidade é afetada pela bolsa de Nova Iorque, de Tóquio, de Hong Kong, etc... Cada vez mais a nossa cultura se rende a enlatados norte-americanos, mexicanos, argentinos... pois a produção nacional (quer seja cultural, social, econômica) não tem valor.O atual herói se vendeu muito mais facilmente à civilização que o Macunaíma. O novo herói de nossa gente é o Sr. Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC) que, assim como Macunaíma, não tem caráter: lutou contra a ditadura militar mas entrega agora o país ao capital estrangeiro; diz estar ao lado do povo, mas no capítulo seguinte declara que os aposentados são vagabundos e aprova um plano de previdência que prejudica os trabalhadores; diz defender os pobres para depois salvar bancos privados da falência, despendendo cifras milionárias e cobra mais impostos dos cidadãos. Ele esquece nossas “tradições” e vende nosso petróleo, nossa energia, nossas telecomunicações para os civilizados europeus e norte-americanos. Os gigantes Piaimãs ACM, Tio Sam, FMI querem devorar nosso herói que, para se salvar (entenda-se: salvar a si próprio, não a nação) se transforma em Superman ou Tio Patinhas usando sua “mágica”. A Uiara Globalização seduziu nosso herói por completo, sem a hesitação de Macunaíma.Percebemos que há várias semelhanças entre as aventuras macunaímas e as aventuras de FHC. Talvez Mário de Andrade, Spengler e Keyserling tenham razão e a depender do novo herói, nosso quadro confirmará as teorias aqui comentadas, reiterando o que Sérgio Buarque de Holanda declarou em seu Raízes do Brasil: “somos uns desterrados em nossa terra”.

PequenaSinopse

1. SinopseUma índia Tapanhuma tem um filho, o herói Macunaíma, às margens do Uraricoera. O herói tem dois irmãos, Maanape e Jiguê, aos quais ele engana em relação ao trabalho: "Ai que preguiça".A mãe abandona o herói sem caráter, que se encontra com Curupira, depois com a cotia e muitas coisas mágicas acontecem, inclusive seu crescimento...

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Macunaíma e seus irmãos partem em busca de aventuras. Encontra Ci, Mãe do Mato, com quem "brinca", e dessa brincadeira surge uma criança, a qual morre e em seu túmulo nasce a planta curandeira, o guaraná, e Ci deixa o mundo tornando-se estrela; mas antes entrega ao herói um amuleto: a muiraquitã. É por esse amuleto que o herói passa por difíceis e mágicas situações,... pois o mesmo cai nas mãos do gigante comedor de gente, Piaimã, Venceslau Pietro Pietra.Macunaíma é prometido a uma das filhas de Vei, a deusa-sol, porém trai sua confiança, "brincando" com uma portuguesa, que acaba devorada.O herói enfrenta diversos embates entremeados pela sátira e pela fantasia deliciosa de aspectos de vida brasileiros e paulistanos, recuperando a muiraquitã, eliminando Piaimã...Retorna a sua terra natal, junto aos irmãos e recebe uma vingança de Vei, e excitado mergulha nas águas em busca da visão de uma cunhã, porém é uma Uiara que o devora e desaparece com a muiraquitã; e através de seu grito, encurta o tamanho do dia.O herói é transformado em ursa Maior, por Pai do Mutum: "Não vim ao mundo para ser pedra".Agora, caro leitor (a), descubra você mesmo porque Macunaíma é um herói sem caráter...

2. O autor da obra, Mário de AndradeMario Raul de Moraes Andrade nasceu no dia 9 de Outubro de 1893, em São Paulo, filho de Carlos Augusto de Moraes Andrade e dona Maria Luísa Leite de Moraes Andrade. Estudou Piano, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde a partir de 1922 passou a lecionar História da Musica . Esteve sempre a serviço da Arte em seu país.Era um homem moreno, alto, cerca de dois metros, calvo, tinha olhos pequenos, usava óculos. Fumava muito, os fumos fortes de seu país, odiava fumos europeus e tomava café forte à maneira paulista, enquanto escrevia suas grandes obras. Não possuía nenhum cacoete a não ser, a curiosa mania de encostar a testa na máquina de escrever para sentir o frio do metal . Considerava sua Remington como uma grande amiga, que o acompanhava nas suas horas de maior prazer, deu até o nome a ela de Manuela, pois a comparava a seu melhor amigo chamado Manuel. Apesar de velha e ruidosa ele, a considerava como uma amante que tinha qualidades, defeitos, vícios ; dedicou àquela máquina de escrever um de seus poemas.Começou a escrever ainda criança, versinhos que caçoavam de amigos e parentes, que ele cantava ao piano, junto com melodias populares. Ele define estes primeiros trabalhos como: cantiguinhas "Surrealiste" que guardou em sua memória durante toda a sua vida, porém afirma que nunca tiveram sentido algum, até para sua mãe que ao ouvi-las disse-lhe que elas eram uma bobagem.Em 1917, inspirado na guerra de 1914, escreveu seu primeiro livro: Há uma gota de sangue em cada poema, seu primeiro trabalho já na fase adulta, com ele recebeu várias críticas sobre a forma que o poema foi escrito, um exagero para a época.Viveu pessimamente em São Paulo pois detestava climas moderados, não apreciava a civilização, muito menos acreditava nela.Seu maior desejo era viver longe da civilização , à beira de algum rio da Amazônia ou em uma praia do Norte brasileiro, entre pessoas incultas, do povo. Era espirituoso, e odiava o trabalho, no sentido de cumprimento de horário e regras. Disse ele: “Gosto de comer e beber bem. Exerço a preguiça sistematicamente por que a considero como uma necessidade para os povos de climas quentes, sente que suas obras são mais marcadas pelo tropicalismo que pelo nacionalismo. (Vamos ler, Entrevista com Mário de Andrade, a.4,nº144.RJ,1939) ."O

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exercício de preguiça que eu cantei em Macunaíma , é uma das minhas maiores preocupações". (Resposta ao inquérito sobre mim para Macaulay,1933) . Foi poeta, contista, romancista, crítico, musicólogo, folclorista, mostrando principalmente como poeta, seu amor pelo país, que conheceu profundamente em viagens e pesquisas nacionais. Nunca viajou para o estrangeiro, nem mesmo a convite de um grande amigo.Mario de Andrade preferia viver momentos de solidão, enquanto não escrevia; fazia longas caminhadas, quando colhia informações, puxando conversa com pessoas desconhecidas como: operários, vagabundos, etc. Dentre essas pessoas ele tirou vários de seus personagens e afirma que nenhum de seus personagens fora inventado por ele, todos existiram. Até alguns personagens alemães o boicotaram por terem se reconhecido em uma de suas obras (Amar: Verbo Intransitivo). Escreveu sobre tudo, e nunca foi medíocre, detestava que o chamassem de culto apenas por que lia muito. Das críticas sobre suas obras lia apenas as que o elogiavam, as que o atacavam e as cartas anônimas, ele ignorava.Participou da Semana de Arte Moderna em São Paulo de 13 a 18 de Fevereiro de 1922, fazendo parte do "grupo dos cinco", Anita Malfati, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia e Graça Aranha. Mais tarde adere ao movimento a pintora Tarsila do Amaral.Inicialmente chamado de Movimento "futurista", o que incomodava profundamente Mário de Andrade que detestava dar entrevistas a jornalistas, pois dizia que estes, à noite, logo após a entrevista mudariam todo o seu vocabulário, então, respondia a todas as questões dos entrevistadores à máquina, e depois da matéria pronta ele guardava todos os artigos dos jornais, tomando o cuidado de grifar e "corrigir", as palavras que teriam sido mudadas. Dono de uma gramática mais ágil e perfeita e de um estilo sutil, foi considerado o "Papa" do modernismo.O movimento modernista no Brasil representou a libertação dos padrões rígidos a caminho de uma criação mais livre, surgida inicialmente no século XIX e início do século XX. Ë uma reação às escolas artísticas do passado, rejeitando influências estrangeiras do passado, mas sim podendo assimilá-las e mesclá-las com a cultura nacional originando uma arte vinculada a realidade brasileira.Neste mesmo ano faz parte do grupo Klaxon, onde publicou poemas e fez críticas de literatura, artes plásticas, cinema e música. Utilizou-se dos Pseudônimos J. H.de A., G. de N.. Conheceu quem seria seu grande amigo e companheiro por toda sua vida, Manuel Bandeira.Publica: "Paulicéia Desvairada", livro de poemas que foi a primeira obra modernista e o romance "Amar: verbo intransitivo"Em 1926, passando suas férias em Araraquara, interior de São Paulo, escreveu "Macunaíma", que chamou de rapsódia, e que foi alvo de muitas críticas maldosas antes de se tornar uma das principais obras do Modernismo.Macunaíma foi uma das obras que marcou o início do modernismo no Brasil, uma obra muito complexa, que só um gênio poderia ter escrito aquilo tudo em apenas uma semana, de 16 a 23 de Dezembro, numa rede, entre um cigarro e outro. Esta obra se aproxima demais das epopéias medievais por ter em comum com aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso. Podendo realizar façanhas, que só a magia poderia explicar, estando a cada hora em um local diferente do Brasil. Ele não tem preconceitos, mas concentra nele todas as virtudes e defeitos que uma pessoa pode ter, por isso é excepcional. É uma contradição de si mesmo, o caráter que demonstra num capítulo se

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desfaz no outro, porém está fora do bem e do mal, é um herói verdadeiro, às vezes contraditório."O que existe em Macunaíma, é uma sátira à imoralidade. O próprio herói termina vítima de seus ímpetos sexuais e acaba morrendo sem glórias, os amores esquecidos, exceto o que não teve companheiro por ter sido amor primeiro. Mário exagera no ridículo, carrega nas tintas, num feitio inteligente de quem não acredita que moralistas de cara fechada ou lamentosos profetas possam arranjar leitores hoje em dia. (M.C. Proença, em roteiro de Macunaíma, 1974, p.17.)Em Macunaíma poderemos encontrar um traço bem definido que é a preocupação com a autenticidade. Nele a fantasia é dirigida, tem certa liberdade mas não se afasta da realidade folclórica brasileira. Macunaíma é uma condensação de todas as características brasileiras, todos nós somos um pouco Macunaímas. Mesmo os que detestaram a obra vão lembrar de algum trecho de livro que tenha lhe causado atração.Mario de Andrade confessou um dia que desejaria ser Macunaíma:"Macunaíma, Maria era como eu brasileiro."

(tempo de Maria, p. 158)

Mario de Andrade, morreu em 25 de fevereiro de 1945, de enfarte do miocárdio, em sua casa da Rua Lopes Chaves, 546. E foi enterrado no Cemitério da consolação.Após sua morte, ocorreu a publicação de Lira Paulistana e Poesias Completas.

3. Análise críticaMário de Andrade, antes de escrever Macunaíma, fez pesquisas e consultas detalhadas de elementos que apresentassem valores ou características nacionais, como a fauna, flora, instrumentos musicais, cachaça, negro, práticas medicinais, mitos, lendas, expressões indígenas, etc; enfim, procurava acima de tudo documentar a psicologia do brasileiro.Ele fez também um minucioso trabalho de pesquisa entre diversos autores que fizeram estudos sobre os costumes e a cultura indígena, e o folclore, como por exemplo, Capristano de Abreu, Couto Magalhães, Caminha, entre outros, mas principalmente o etnógrafo alemão Theodor Koch-Grumberg.Em 5 volumes, Koch-Grunberg, divulga seus estudos sobre a cultura indígena realizados entre tribos do extremo norte do Brasil, Guianas e Venezuela.Além de suas pesquisas bibliográficas, enquanto escrevia Macunaíma, Mário de Andrade fez sua 1ª viagem etnográfica em Maio de 1927, ele foi até o norte do país, Amazonas e Pará.Mário de Andrade retirou seu herói de seu livro de um dos 5 volumes de Koch-Grunberg. É no volume que trata de mitos e lendas que aparece Macunaíma; ele é um deus e herói civilizador, contraditório, irreverente, preguiçoso e sensual. Assim, Mário de Andrade, identifica-o com o comportamento do povo brasileiro.Simbolicamente, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, representa o brasileiro, um povo que ainda estava em busca de uma verdadeira identidade, pois como houve uma mistura de raças (branco, negro e índio), o povo do Brasil ainda não havia encontrado sua identidade nacional.Como Macunaíma, o herói – índio sem caráter, Mário de Andrade caracterizava o povo brasileiro que eticamente não possuía um caráter, pois ainda é uma raça em formação. Macunaíma é a representação do povo brasileiro em busca de sua identidade, e o muiraquitã que é o objeto de desejo do personagem, é a representação dessa tão procurada identidade.

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Para o autor a cultura nacional não existe num país incaracterístico, de um povo incaracterístico, precisa-se formá-la, e o folclore é uma fonte de conhecimento do povo. Assim no decorrer do livro, Mário de Andrade busca, nas lendas e mitos característicos que se encaixem com essa cultura em formação.Um dos objetivos de Mário de Andrade e dos modernistas em geral (pesquisa nacional, descoberta da criação e da temática popular), já se alongava na busca da compreensão do comportamento e das necessidades brasileiras, além das especulações estéticas. O que propunha era o conhecimento do povo brasileiro em profundidade, ligando-o a um dever ser social e mesmo político, mas tendo como base do conhecimento o folclore. Mário de Andrade desejava a nacionalização da Literatura Brasileira.Macunaíma surgiu para retirar do passado todos os elementos nacionais, através da mitologia e do folclore, e do presente, os principais problemas sociais e a linguagem popular. Dentro da Literatura Brasileira, esta obra tem um grande peso estético, pois é a sua intenção de rapsódia, que busca uma raiz legítima para o brasileiro em sua própria cultura. Essa raiz é a integração dos valores que compuseram e dos que compõem o povo brasileiro, através da transformação de passado em presente e de lendas e mitos em episódios do século XX.Desta forma, Mário de Andrade evidenciou, em Macunaíma, pontos fundamentais para uma literatura nacional. O primeiro foi marcar o lendário e a literatura popular como fontes de inspiração para a literatura erudita. Eles podem oferecer, através da tradição, o comportamento social e a psicologia do brasileiro através do tempo.A rapsódia de Mário de Andrade não nega moralmente os componentes da personalidade brasileira, como a preguiça e a mentira; mas faz a compreensão como realidade e valorização dentro das reações primitivas. Através do livro, o autor procurou desregionalizar os acontecimentos, procurando quebrar o regionalismo; o que consegue com a mistura e a inversão de elementos do norte e do sul, como por exemplo na macumba carioca. O autor transplanta lendas indígenas para uma área metropolitana. A lição do livro é: com síntese crítica, não com regionalismos, é possível encontrar os valores e as necessidades que irão apontar um caminho cultural de independência para o Brasil.Mário de Andrade satirizou a mentalidade do povo brasileiro através de seu livro, mas o próprio autor reconhece que é uma sátira amarga, incapaz de corrigir os costumes.

4. LinguagemMacunaíma foi uma obra revolucionária ao desafiar o sistema cultural vigente com uma nova linguagem literária. Encontramos no texto traços do Dadaísmo, Futurismo, Expressionismo e Surrealismo, sobrepostos às raízes da cultura brasileira.Utiliza a linguagem popular de várias regiões do Brasil. Mas também há uso de palavras que quebram o regionalismo. Alterna sílabas longas e breves e há um ritmo procurado, porque o autor não usa vírgulas.É freqüente o uso de frases feitas e provérbios, recurso que dá uma força ao estilo. As frases feitas e provérbios são propriedade coletiva. E os provérbios são um dos mais terríveis meios de estagnação da humanidade e por isso vive na boca do povo.A linguagem é convencional, pois o autor estabeleceu a fusão dos regionalismos em um todo.Encontramos erros de português, como por exemplo: "si" no lugar de "se", "milhor" no lugar de "melhor", "pra mim entrar" no lugar de "para eu entrar", etc. Macunaíma empresta a linguagem rebuscada de um Rui Barbosa ou de um Coelho Neto. A paródia torna-se hilariante por conta dos erros cometidos por Macunaíma, que escreve asneiras como "testículos da Bíblia" no lugar de "versículos".

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O livro trata de temas mitológicos indígenas e folclóricos com a linguagem literária nova e brasileira, utilizando o humor e a criatividade narrativa e lingüística.Possui um discurso selvagem, rico de metáforas, símbolos e alegorias.A linguagem transforma-se muito e nela encontramos pelo menos três estilos diferentes de narrar: um estilo de lenda, épico-lírico, um estilo de crônica, cômico e despachado, e, um estilo paródico.

5. EspaçoAs travessuras de Macunaíma são vividas num espaço mágico, próprio da atmosfera fantástica e maravilhosa em que a narrativa se desenvolve.A maior parte da ação se passa em São Paulo, mas há fugas espetaculares e assombrosas, porque da capital de São Paulo ele foge para o Ponta do Calabouço, no Rio, e depois para Guarujá–Mirim, nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas para, em seguida estar em Itamaracá de Pernambuco, depois em Barbacena, Minas Gerais, logo em seguida vai para Serra do Espírito Santo e finalmente na Ilha do Bananal, em Goiás.Há uma desgeografização do espaço, que acontece conscientemente.

6. TempoNa realidade a época exata não diz, mas há um trecho que diz: "Chegando em São Paulo, Macunaíma espanta-se com as máquinas".Tempo cronológico: a história dura anos, desde quando Macunaíma nasce, cresce e morre.Tempo psicológico: coincide com o tempo cronológico, pois há uma seqüência lógica em torno de Macunaíma.A obra apresenta os fatos na ordem em que aconteceram, logo no começo mostra uma índia que tem um filho na floresta e este filho é Macunaíma.Há presença de ação fragmentada, ou seja, pequenos trechos são acompanhados em uma seqüência lógica, se baseando na presença do personagem principal: só começa a falar com seis anos de idade.O tempo é mágico devido às fugas que há, porque uma hora ele está num lugar e logo em seguida está em outro.Macunaíma entra em contato com figuras do passado, estabelecendo um diálogo com os mortos.Ele ziguezagueia no tempo em avanço e recuos que só um herói pode ter.

7. NarradorÉ onisciente, narrado em terceira pessoa, ele não participa da história, mas dá pequenos cortes.Exemplo: "A gente enxergava os conhecidos..." (página 71).É uma narrativa linear, no momento em que observamos o desenvolvimento de sua ação dramática.É revelada na construção da narrativa a consciência da exploração do maravilhoso e do mágico, através das peripécias do herói, vividas num tempo e num espaço mágico, que engloba o mito do índio e os mitos do povo contra a mitologia da sociedade tecnizada e desenvolvida perante eles.É um narrador culto, porém se faz de rapsodo, a ele somente interessa "cantar" os "casos", ou seja, os acontecimentos que estão presos aos feitos e as ações.Ele faz com que a psicologia a julgue tipicamente brasileira para que possa ser deduzida a partes da trama.

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8. Personagem principalMacunaíma: nascera preto, filho do medo da noite. Era uma criança muito feia, mas menino bem aplicado nos costumes indígenas, porém peralta e inteligente. Não conseguia ficar apenas com uma cunhã e sim com todas. Era traiçoeiro, querendo sempre tirar proveito de tudo e de todos. Ao mesmo tempo em que era trabalhador e preguiçoso, também era brigão e covarde. Era irritado e nervoso, e também era falso com a maioria dos personagens e era muito vingativo. É um herói, muito malandro e sem nenhum caráter.

9. Personagens secundáriosJiguê: irmão de Macunaíma, era uma pessoa muito calma e boba, somente irritava-se com Macunaíma, gostava de dormir e era muito valente.Maanape: irmão de Macunaíma, era velhinho, feiticeiro, gostava de café e assim como Jiguê, irritava-se apenas com Macunaíma.Mãe de Macunaíma: Era prestativa para com os filhos como qualquer mãe, sempre queria ajudar aos outros. Era calma e foi morta pelo próprio filho.Iriqui: Companheira de Jiguê, era muito linda, mas agia com má-fé, pois traía Jiguê com Macunaíma.Ci: Era mãe do mato, fazia parte da tribo das mulheres sozinhas nas praias da lagoa Espelho da Lua, a cunhã era linda com o corpo chupado pelos vícios. Tornou-se companheira de Macunaíma, teve um filho dele que morrera. É dona da muiraquitã e era malvada. Ela tornou-se inesquecível para Macunaíma.Venceslau Pietro Pietra: tornou-se o dono do talismã, pois o roubou, enriquecera e ficou fazendeiro em São Paulo, era o gigante Paiamã comedor de gente e uma pessoa traiçoeira.Boiúna Capei: um monstro que morava num covão em companhia das saúvas, escolheu Naipi para brincar e resolveu ser Lua.Izaló: feiticeiro, de uma perna só.Princesa: brincava com Macunaíma e provocava ciúme em Iriqui.Uiara: Não era moça não, era uma boniteza, morena e coradinha, era traiçoeira, tirou várias partes do corpo de Macunaíma.Uruau: Monstro que engoliu a Muiraquitã.Papagaio: É um pássaro que pousou na cabeça de um homem e falava numa fala mansa, muito nova. E somente o papagaio preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só ele conservava no silêncio as frases e feitos do herói. Narrador: Era o homem que era acompanhado pelo papagaio, que ficou para contar a história. Contou as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente.

10. Características específicasMario de Andrade é um dos principais responsáveis pela Semana da Arte Moderna. Traz em suas obras, principalmente em "Macunaína", grandes características modernistas, por exemplo:Busca a originalidade, a qualquer preço; Mario de Andrade, mistura termos de origem indígena, africana, gírias populares, arcadismo e regionalismos: cunhatã- mulher cabocla, piá- menino em tupi, brincar- relação sexual, petum- nome tupi dado ao tabaco, e outros.Faz juízo de valores sobre a realidade brasileira; Macunaíma era individualista, destituído de qualquer espírito coletivo, sem conseqüência política, malandro, sofredor, debochado, anticristão, devorador, autofágico, mentiroso.

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Inspirando-se no folclore indígena da Amazônia, mesclando lendas e tradições das mais variadas regiões do Brasil. Da capital de São Paulo foge para a Ponta do Calabouço, no Rio de Janeiro e logo já está em Guarará - Mirim, nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas para em seguida, chupar manga – jasmim em Itamaracá de Pernambuco; tomar leite de vaca – zebu em Barbacena, Minas Gerais; decifrar litóglifos na serra do Espírito Santo e; finalmente se esconder no oco de um formigueiro, na ilha de Bananal, em Goiás.O nacionalismo e a revelação dos arquétipos brasileiros era brigão, covarde, sincero, mentiroso, trabalhador, preguiçoso, malandro e otário Macunaína, o "herói da gente", Macunaína tinha aspectos positivos, era incapaz de ajuntar-se a uma sociedade de parâmetros mentirosos e esquisofrênicos. Colocava-se muito à vontade para criticar a desumanização e a avidez de riqueza que caracterizavam os "civilizados" habitantes de uma metrópole como São Paulo.Mostra um movimento contra a invasão cultural estrangeira: "Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes!" Em breve seremos novamente colônia da Inglaterra ou da América do Norte!"Valoriza o cotidiano, Macunaína era, católico e espírita ao mesmo tempo, além de freqüentar macumba; traía os próprios irmãos; jogava no bicho, o lirismo da mitologia se funde a cada passo com a piada, a brincadeira, a malandragem nacional que Macunaína encarna, é o "herói sem caráter", ou seja, sem característica própria.

Sobre o livro Macunaíma, by site do Sesc, em agosto de 1998

O irreverente Macunaíma - quem diria! - está completando 70 anos. Criado por Mário de Andrade e imortalizado no cinema, ele resiste ao tempo e permanece como uma esfinge a desafiar leitores e críticos literários. Suas diversas facetas, como símbolo da nacionalidade, paródia modelar e texto de estilo barroco, se avolumam, levando muitos a esquecer o contexto em que a obra foi gerada. Tudo começou em dezembro de 1926. Foram necessários apenas seis dias de férias passados numa chácara, em Araraquara, para que o escritor paulistano Mário de Andrade, "por brincadeira... entre rede, cigarros e cigarras", como declarou, escrevesse Macunaíma o herói sem nenhum caráter (assim mesmo, sem vírgula separando o aposto), um dos livros mais importantes da literatura nacional. Nos dois anos seguintes, a obra seria reescrita três vezes, até ser publicada em 1928. A crítica ficou perplexa. Oswald de Andrade e Alcântara Machado mostraram-se entusiasmados. Tristão de Athayde considerou a obra um "coquetel", misto de romance, poema e epopéia; Augusto Meyer a qualificou, elogiosamente, como "livro que não cabe em nenhuma classificação". Com maior distanciamento, nos anos 70, Gilda de Mello e Sousa definiu a obra como "uma meditação extremamente complexa sobre o Brasil, efetuada através de um discurso selvagem, rico de metáforas, símbolos e alegorias". Sete décadas após a publicação, a avaliação permanece de pé, e, nesse ínterim, surgiram análises críticas indispensáveis, como as de Haroldo de Campos, que destacam o alto nível de trabalho com a linguagem realizado por Mário de Andrade no livro. Logo após terminar a primeira versão do livro, o escritor paulistano explicou que, em sua obra, "caráter" devia ser entendido como "uma realidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, no sentimento, tanto no bem como no mal". Em síntese, o brasileiro não teria caráter por não ter uma civilização

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própria nem consciência tradicional, mas não por ter má índole. É importante lembrar que, escrito logo após a Semana de Arte Moderna de 1922, Macunaíma apresenta uma narrativa de estrutura inovadora do ponto de vista do enredo, da caracterização dos personagens e do estilo. O caráter de Macunaíma seria tão maleável e polifônico quanto a própria escrita do livro, mescla de poema, romance e narrativa épica. Além da ausência de caráter, a célebre frase de Macunaíma "Ai, que preguiça!...", geralmente associada ao calor e à indolência, costuma ser muito usada para definir o temperamento do brasileiro. Afinal, ao contrário dos heróicos Ajax e Hércules, que se diferenciam dos simples mortais pelas ações guerreiras em que revelam valor e temperamento magnânimo, o "herói sem caráter" ama ficar à toa, de papo para o ar. Sabe-se que a fonte em que bebeu Mário de Andrade foi o personagem homônimo do livro Vom Roraima zum Orinoco, do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg, que, entre 1911 e 1913, andou coletando lendas e heróis de mitos indígenas do Brasil. Porém, entender a atualidade dos símbolos que permeiam Macunaíma significa também perceber como Mário de Andrade realizou a mediação entre o material folclórico e o tratamento literário moderno ao usar a chamada "fala brasileira", mesclada com uma linguagem culta. Macunaíma somente atingiu o grande público quando a obra foi filmada, em 1969, sob uma ótica tropicalista, por Joaquim Pedro de Andrade. As platéias e os críticos adoraram o Macunaíma preto genialmente interpretado por Grande Otelo, que mais tarde se transformaria no jovem branco vivido por Paulo José. O livro também ganhou uma versão no palco, dirigida por Antunes Filho, em 1978. Nas três versões, a do livro, a fílmica e a teatral, acentua-se uma visão mítica, que pode ser comprovada quando se acompanha o percurso do protagonista. No começo do livro, ele mora às margens do rio Urariqüera com os dois irmãos e a mãe. Quando esta morre, os três partem em busca de aventuras e acabam em São Paulo, onde procuram um amuleto perdido, o muiraquitã, pedra verde em forma de sapo ou jacaré. Ao final do livro, Macunaíma, "capenga de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva", se transforma em estrela solitária. Não parece a imagem de um vencedor, como alguns postulam, mas a de alguém que sempre desistiu de lutar neste mundo. Do alto, de forma ambivalente, com um riso sarcástico, mas também com melancolia. A obra não pode ser analisada apenas como uma alegoria do brasileiro. Essa concepção é uma simplificação perigosa. Mário de Andrade, como folclorista que era, sabia que a cultura popular era parte primordial da identidade nacional e a incorporou no livro. Porém, há nele mitos de todo tipo, o que dá à narrativa um tom épico, que, no cinema, ganhou uma conotação antropofágica. Setenta anos após sua criação por Mário de Andrade, Macunaíma permanece um personagem ímpar. Imperador do Mato e egoísta, sedutor sem limites e defensor do Cruzeiro do Sul, desmedido e sofredor.Contraditório como todos nós, o personagem sintetiza o destino da espécie humana: ter qualidades heróicas e divinas, mas sem perder as pequenas vilezas cotidianas. Afinal, o ser humano é exatamente um ambulante e complexo microcosmos de contradições que apenas pode ser sublimado pela arte e pelos arquétipos nela contidos, universos que Mário de Andrade dominava como poucos.

2.1. O Brasil na década de 20A sociedade brasileira, no tempo em que surgiu Macunaíma, parecia bastante mudada. Já não tinha aquele ar de fazenda que respiramos durante 4 séculos. Havia muitas

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fábricas (principalmente em São Paulo), grandes aglomerados urbanos, com populações de quase 1 milhão de habitantes. O comércio e a indústria prosperavam rapidamente, graças ao mercado consumidor formado pelos moradores das cidades e pelos colonos de origem estrangeira. As mulheres fumavam, iam sozinhas ao cinema, exibiam as pernas.Algo impressionava bastante os brasileiros daquele tempo: a velocidade dos meios de comunicação e transporte! Eram carros, bondes, trens, telégrafos, rádios, telefone… Empresas, bancos, bolsas de valores…Desde 1922, o país parecia estar em ebulição: além da Semana de Arte Moderna, foi criado o Partido Comunista e iniciado o movimento tenentista, que, durante toda a década de 20, desafiou o governo federal. O clímax deste movimento foi a Coluna Prestes que percorreu 33 mil quilômetros do interior do Brasil, travando mais de 100 combates, em dois anos e meio (1924-1927). Arthur Bernardes e Washington Luís usaram todos os meios para combatê-la, lançando até o cangaceiro Lampião no seu encalço. A Coluna, porém, não teve força para derrubar o governo central, nem conseguiu rebelar o povo contra o regime. Esgotada, embora invicta, internou-se na Bolívia. No entanto, a imagem de Luís Carlos Prestes, com seus prodígios de técnica militar e de bravura pessoal, constituiu um mito que exerceu sobre os intelectuais de esquerda (entre os quais se incluíam Mário de Andrade, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade) uma grande fascinação. O tenentismo (com seus levantes ao longo da década) aliado à crise desencadeada pelo estouro da Bolsa de Nova Iorque em 1929, são fatos que se somam para derrubar a República Velha na triunfante Revolução de outubro de 1930.

2.2. A Semana da Arte Moderna (1922)A semana na realidade durou três dias. Mas nunca três dias abalaram tanto o mundo da arte brasileira. Nos dia 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, sob o apadrinhamento do romancista pré-modernista Graça Aranha, os jovens paulistanos empenhados em revolucionar a arte apresentaram, pela primeira vez em conjunto, suas idéias de vanguarda.A Semana, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, foi aberta com a conferência A emoção estética na arte, de Graça Aranha, em que atacava o conservadorismo e o academicismo da arte brasileira. Seguiram-se leituras de poemas de, entre outros, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, que não pôde comparecer e cujo poema Os Sapos foi lido por Ronald de Carvalho sob um coro de coaxos e apupos.Mário de Andrade leu seu ensaio “A escrava que não é Isaura” nas escadarias do teatro. Obras de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret e outros artistas plásticos e arquitetos foram expostas. Por fim, apresentaram-se a pianista Guiomar Novaes e o maestro e compositor Heitor Vila-Lobos, que não foi poupado das vaias. Como se vê, a recepção da Semana não foi tranqüila. As ousadias modernistas inquietavam e irritavam o público.

2.3. Mário de Andrade e o ModernismoForam a Semana de 22 e seus desdobramentos que projetaram Mário de Andrade como figura decisiva do movimento modernista. No processo de implantação da nova mentalidade cultural, Mário destacou-se como teorizador e ativista cultural. Com a determinação própria dos líderes que pretendem injetar uma nova consciência, multiplicou-se em músico, pesquisador de etnografia e folclore, poeta, contista, romancista, crítico de todas as artes, correspondente cultural que troca cartas com artistas novos consagrados, além de ter ocupado vários cargos na burocracia estatal, relacionados com o desenvolvimento da cultura em suas várias manifestações.

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Era um sujeito muito sério, católico fervoroso, dotado de uma capacidade extraordinária de estudo e ação. Com carisma e afeto, conseguiu colocar a renovação modernista no trilho de um presente e de um futuro culturais marcados por um nacionalismo arejado e lúcido.

3. A síntese do romance – rapsódia

3.1. Capítulo I – MacunaímaMacunaíma, “herói de nossa gente” nasceu à margem do Uraricoera, em plena floresta amazônica. Descendia da tribo dos Tapanhumas e, desde a primeira infância, revelava-se como um sujeito “preguiçoso”. Ainda menino, busca prazeres amorosos com Sofará, mulher de seu irmão Jiguê, que só lhe havia dado pra comer as tripas de uma anta, caçada por Macunaíma numa armadilha esperta. Nas várias transas (“brincadeiras”) com Sofará, Macunaíma transforma-se num príncipe lindo, iniciando um processo constante de metamorfoses que irão ocorrer ao longo da narrativa: índio negro, vira branco, inseto, peixe e até mesmo um pato, dependendo das circunstâncias.

3.2. Capítulo II – MaioridadeDe tanto aprontar, foi abandonado pela mãe no meio do mato. Tremelicando, com as perninhas em arco, Macunaíma botou o pé na estrada até que topou com o Curupira e perguntou-lhe como faria para voltar pra casa. Maliciosamente, o Curupira ensina-lhe um caminho errado que Macunaíma, por preguiça, não seguiu. Escapando do monstro, o herói topou com uma voz que cantava uma toada lenta: era a cotia, que depois de ouvir o piá contar como enganara o Curupira, jogou-lhe em cima calda envenenada de mandioca. Isto fez Macunaíma crescer, atingindo o “tamanho dum homem taludo”.

3.3. Capítulo III – Ci, Mãe do MatoEncontra Ci, a Mãe do Mato e inventa com ela lindas e novas maneiras de gozos de amor. O resultado desse idílio é o nascimento de um curumi, que morreu prematuramente depois de mamar no único peito de Ci, envenenado pela Cobra Preta. Enterrado o filho, Ci também resolveu deixar este mundo. Deu ao herói sua muiraquitã famosa e subiu pro céu por um cipó, transformando-se numa estrela.

3.4. Capítulo IV – Boiúna LunaTomado de tristeza, Macunaíma despediu-se das Icamiabas e partiu rumo às matas misteriosas. No caminho, encontra Capei, monstro fantástico que abre a goela e solta uma nuvem de marimbondos. Nas lutas contra o monstro, Macunaíma perde seu talismã e fica sabendo, através de um uirapuru, que a tartaruga que engolira sua pedra tinha sido apanhada por um mariscador. Este vendera a muiraquitã a um rico fazendeiro chamado Venceslau Pietro Pietra, proprietário de uma mansão na rua Maranhão, em São Paulo. Macunaíma resolve, então, vir para a capital paulista recuperar sua muiraquitã.

3.5. Capítulo V – PiaimãO herói junta seus irmãos e desce o Araguaia, com sua esquadra de igarités cheias de cacau. Em São Paulo, fica sabendo que Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã, comedor de gente, companheiro de uma caapora velha chamada Ceiuci, também antropófaga e muito gulosa. Esse capítulo apresenta uma das passagens mais saborosas do romance: a chegada de Macunaíma e seus irmãos à cidade de São Paulo. Nesse momento, Mário de Andrade inverte os relatos quinhentistas da Literatura Informativa.

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Aqui é o índio que se depara com a dita “civilização” e procura assimilá-la, digerindo-a com suas próprias enzimas culturais.

3.6. Capítulo VI – A francesa e o giganteDepois de uma tentativa de aproximação frustrada, Macunaíma resolve se vestir de francesa para conquistar Venceslau Pietro Pietra e reconquistar sua muiraquitã. O regatão não emprestou a pedra nem quis vendê-la. Mas deixou claro que poderia dá-la se a francesa resolvesse “brincar” com ele… Muito inquieto, Macunaíma foge, percorrendo, em louca correria, grande parte do território brasileiro.

3.7. Capítulo VII – MacumbaComo não tivesse força suficiente pra matar o gigante, Macunaíma vem para o Rio de Janeiro procurar o terreiro de macumba da tia Ciata. Pediu à macumbeira vários castigos pro gigante Piaimã que, além de receber a chifrada de um touro selvagem, é ferroado por quarenta mil formigas-de-fogo.

3.8. Capítulo VIII – Vei, a SolÉ também no Rio de Janeiro que Macunaíma reencontra a Vei, a deusa-sol que pretendia casar uma de suas três filhas com o herói. Embora tivesse prometido, Macunaíma não cumpriu a palavra empenhada: logo que anoiteceu, convidou uma portuguesa e brincou com ela na jangada. Depois foram descansar num banco da avenida Beira-mar, no Flamengo, quando surgiu Mianiquê-Teibê, monstro de garras enormes com olhos no lugar dos peitos e duas bocarras nos pés, de dentes aguçados. Macunaíma saiu correndo pela praia; o monstro comeu a portuga e desapareceu.

3.9. Capítulo IX – Carta pras IcamiabasO herói retorna a São Paulo e, saudoso, resolve escrever uma “carta pras icamiabas”, relatando como era sua vida em São Paulo. Faz, num satírico estilo beletrista, uma descrição da agitada vida paulistana, com seus arranha-céus, ruas “habilmente estreitas” cheias de gente, cinemas, casas de moda, ônibus, estátuas e jardim. Nesta pernóstica missiva, o corrupto Imperador faz questão de detalhar para as amazonas a prática constante de amores pecaminosos, tanto que ele até pensa em tirar proveito da exploração do lenocínio. Critica o capitalismo selvagem dos paulistas locomotivas e dos italianos arrivistas, destacando, horrorizado, ao final, uma curiosidade original deste povo: “falam numa língua e escrevem noutra”. Depois de abençoar as suas súditas, termina a carta, com a maior desfaçatez, pedindo mais uma “gaita” pras suas fiéis icamiabas.

3.10. Capítulo X – Pauí-pódoleA surra que Venceslau Pietro Pietra recebeu de Exu foi tão violenta que ele ficou meses numa rede, travado pelos suplícios a que foi submetido. Sem poder readquirir a muiraquitã, Macunaíma ocupou-se então do complicado estudo das duas línguas da terra, “o brasileiro falado e o português escrito”. Interrompe um mulato pedante que fazia um verborrágico discurso sobre o Cruzeiro do Sul, falando que aquelas quatro estrelas que brilham no vasto campo do céu são, na verdade, o Pai do Mutum, figura zoocosmológica que teve seu corpo de ave metamorfoseado numa constelação.

3.11. Capítulo XI – A velha CeiuciDepois de ter passado a noite brincando com a patroa da pensão, Macunaíma falou pros seus irmãos Maanape e Jiguê que tinha achado “rasto fresco de tapir”, em pleno asfalto

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paulistano, junto à Bolsa de Mercadorias. Induziu seus irmãos a caçarem o animal e estes quase acabam sendo linchados pela multidão que se aglomerou pra assistir à caçada. Um estudante subiu na capota de um automóvel e discursou contra Maanape e Jiguê. Foi interrompido por Macunaíma que, tomado por um efêmero acesso de fraternidade, resolveu defender os irmãos entrando no meio da multidão e distribuindo rasteiras e cabeçadas até ser preso por um “grilo”, soldado da antiga guarda-civil de São Paulo. No meio da confusão, o herói conseguiu fugir e foi ver como passava o gigante Venceslau Pietro Pietra, ainda “convalescendo da sova apanhada na macumba”. Faz uma aposta com o curumi Chuvisco pra ver quem conseguia assustar o gigante e sua família. Perde a aposta e resolve fazer uma pescaria. Como não tivesse anzol, o herói se transforma numa “piranha feroz” pra cortar a linha de um inglês que pescava a seu lado. Acontece que a velha feiticeira Ceiuci, mulher do gigante, também costumava pescar no igarapé Tietê e prende o herói. Ao ser pescado pela tarrafa da feiticeira, Macunaíma vira um pato que devia ser logo comido. Além de brincar com a filha mais moça de Ceiuci, ludibria-a e foge, montado “num cavalo castanho-pedrez que pra carreira Deus o fez”. É uma fuga espetacularmente surrealista: num momento está em Manaus e noutro em Mendoza, na Argentina.

3.12. Capítulo XII – Tequeteque, chupinzão, e a injustiça dos homensDesesperado porque ainda não conseguira reaver a muiraquitã, Macunaíma se disfarça de pianista e tenta, junto ao governo, uma bolsa de estudos na Europa, para onde Venceslau Pietro Pietra havia viajado. Não conseguindo a bolsa, sai a viajar com os manos pelo Brasil pra ver se acha “alguma panela com dinheiro enterrado”. Nestas andanças, encontra um macaco comendo coquinho baguaçu. Como estava com fome, o herói pergunta ao macaco o que estava comendo e ouve a seguinte resposta cínica: “-- Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer.” Macunaíma resolveu imitá-lo, agarrou um “paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto.” Só conseguiu ressuscitar graças à feitiçaria de Maanape, que colocou no lugar do órgão destruído dois cocos-da-baía. Depois “assoprou fumaça de cachimbo no defunto-herói” e este reanimou-se, tomando guaraná e uma dose de pinga.

3.13. Capítulo XIII – A piolhenta de JiguêJiguê resolveu se amulherar com Suzi, cunhatã muito velhaca que passava todo o tempo namorando Macunaíma. Jiguê descobre, fica furioso, dá uma baita surra no herói e expulsa Suzi com uma porretada. Levada por seus piolhos, Suzi vai “pro céu virada na estrela que pula”.

3.14. Capítulo XIV – MuiraquitãMaanape comunica ao herói a volta de Venceslau Pietro Pietra. Macunaíma enche-se de coragem e decide matar o gigante. Come cobra e, com muita esperteza, coloca Piaimã balançando num cipó de japecanga, embala-o com força e o gigante acaba caindo dentro de um buraco onde Ceiuci, a velha caapora, preparava uma imensa macarronada. O gigante cai na água fervente e o cheiro de seu couro cozido, além de matar todos os ticoticos da cidade, provoca o desmaio de Macunaíma. Quando se recupera, o herói apanha a muiraquitã e volta pra pensão.

3.15. Capítulo XV – A pacuera de OibêMorto Piaimã e reconquistada sua muiraquitã, Macunaíma, Maanape e Jiguê são novamente índios e resolvem voltar para o distante Uraricoera. O herói levava no peito “uma satisfação imensa”, mas não deixa de ter saudade de São Paulo. Tanto que levava

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consigo todas as coisas que mais o haviam entusiasmado na “civilização paulista”: um casal de legornes, um revólver Smith-Wesson e um relógio Patek. Um bando de aves forma uma grande tenda de asas coloridas que protegem o Imperador do Mato-Virgem. Nesta viagem de volta feliz, o herói teve novas aventuras amorosas, lembrando-se com saudade da vida dissoluta que levara em São Paulo: encontra-se com Iriqui (antiga companheira de Jiguê) e com uma linda princesa que tinha sido transformada num pé de carambola. Com sua muiraquitã, o herói faz uma mandinga e o caramboleiro vira “uma princesa muito chique”, com quem tem vontade de brincar, mas não pode, pois são perseguidos pelo Minhocão Oibê. Graças a uma nova mandinga, o herói transforma Oibê num cachorro-do-mato, de rabo cabeludo e goela escancarada. Como Macunaíma agora só queria brincar com a princesa, Iriqui fica tristíssima e sobe “pro céu, chorando luz, virada numa estrela”.

3.16. Capítulo XVI – UraricoeraFinalmente, chega ao Uraricoera natal e, ao passar por um lugar chamado Pai da Tocandeira, reconhece suas raízes e chora: a maloca da tribo era agora uma tapera arruinada. Uma sombra leprosa devora seus irmãos e a princesa, e o herói fica “defunto sem choro, no abandono completo”, empaludado e sem forças para construir uma oca. Ata sua rede em dois cajueiros no alto da barranca junto do rio e assim passa seus dias “caceteado e comendo cajus”. Todas as aves também o abandonam, ficando somente um papagaio pra quem o herói conta todos os casos que lhe tinham acontecido. Graças a este papagaio é que se salvou do esquecimento a história do herói, parido por uma índia tapanhumas.

3.17. Capítulo XVII – Ursa MaiorNum dia de janeiro de muito calor, o herói acorda sentindo umas “cosquinhas”, que até lhe parecem feitas “por mãos de moça”. Era a última vingança de Vei, a Sol, tramando para liquidá-lo de vez. Macunaíma lembra-se de que há muito não brincava e vai tomar banho num lagoão, pensando que a água fria viria amortecer seus desejos de amor. O herói, encaminhando-se para a água, enxerga lá no fundo “uma cunhã lindíssima”, ora branca de cabelos louros, ora morena de cabelos negros, que começa a tentá-lo com danças e meneios. Macunaíma hesita, temeroso, mas acaba mergulhando na lagoa, desvairado pelos encantos irresistíveis da uiara. Esta o mutila, devorando-lhe uma perna, os brincos, os cocos-da-baía, as orelhas, os dedões, o nariz e os beiços. Desaparece também com sua muiraquitã: o herói pula e dá “um grito que encurtou o tamanho do dia”. Tem ainda força para lançar plantas venenosas no lagoão, matando peixes, piranhas e botos que lá estavam. No afã de recuperar seus tesouros, Macunaíma abre-lhe as barrigas e o que encontra reprega no corpo mutilado, com sapé e cola de peixe. Não consegue, todavia, reconquistar a perna nem a muiraquitã, “engolidas pelo monstro Ururau”. E assim tudo se acaba. Macunaíma, mutilado, vai bater na casa do Pai Mutum, que, com dó dele, faz uma feitiçaria e transforma-o na constelação da Ursa Maior. “Ia pro céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação.” Neste balanço que Macunaíma faz de sua existência, ele dialoga com sua consciência e deixa sua mensagem para a posteridade: “Não vim no mundo para ser pedra”. A pedra simboliza disciplina rígida, método, lapidação de caráter, traços que Macunaíma, a própria encarnação da esperteza e da improvisação, nunca quis assumir.3.18. Epílogo“Acabou-se a história e morreu a vitória”. Os filhos da tribo dos Tapanhumas “se acabaram de um em um”. “Uma feita um homem foi lá” e, rompendo o “silêncio enorme” que “dormia à beira-rio do Uraricoera”, ouve-se:

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-- “Curr-pac, papac! curr-pac, papac!…”Era o papagaio ao qual Macunaíma havia contado toda a sua história. “Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova, muito!” “Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toques rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente”. Era o próprio Mário de Andrade. “Tem mais não”.

4. Análise da obra

4.1. Macunaíma e a renovação da linguagem literáriaPublicado em 1928, numa tiragem de apenas oitocentos exemplares (Mário de Andrade não conseguira editor), Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é uma das obras pilares da cultura brasileira.Numa narrativa fantástica e picaresca, ou, melhor dizendo, “malandra”, herdeira direta das Memórias de um Sargento de Milícias (1852) de Manuel Antônio de Almeida, Mário de Andrade reelabora literariamente temas de mitologia indígena e visões folclóricas da Amazônia e do resto do país, fundando uma nova linguagem literária, saborosamente brasileira.acunaíma - bem como Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade - foram obras revolucionárias na medida em que desafiaram o sistema cultural vigente, propondo, através de uma nova organização da linguagem literária, o lançamento de outras informações culturais, diferentes em tudo das posições mantidas por uma sociedade dominada até então pelo reacionarismo e o atraso cultural generalizado.Nacionalista crítico, sem xenofobia, Macunaíma é a obra que melhor concretiza as propostas do movimento da Antropofagia (1928), criado por Oswald de Andrade, que buscava uma relação de igualdade real da cultura brasileira com as demais. Não a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas consumir aquilo que há de bom na arte estrangeira. Não evitá-la, mas, como um antropófago, comer o que mereça ser comido.O tom bem humorado e a inventividade narrativa e lingüística fazem de Macunaíma uma das obras modernistas brasileiras mais afinadas com a literatura de vanguarda no mundo, na sua época. Nesse romance encontram-se dadaísmo, futurismo, expressionismo e surrealismo aplicados a um vasto conhecimento das raízes da cultura brasileira.

4.2. A rapsódiaMário de Andrade nos conta que escreveu Macunaíma em seis dias, deitado, bem à maneira de seu herói, em uma rede na “Chácara de Sapucaia”, em Araraquara, SP. Diz ainda: “Gastei muito pouca invenção neste poema fácil de escrever (…). Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro.” A obra, composta em apenas seis dias, é fruto de anos de pesquisa das lendas e mitos indígenas e folclóricos que o autor reúne utilizando a linguagem popular e oral de várias regiões do Brasil.Trata-se, por isso mesmo, de uma rapsódia. Assim os gregos designavam obras como a Ilíada ou a Odisséia de Homero, que reúnem séculos de narrativas poéticas orais, resumindo as tradições folclóricas de todo um povo. Para o musicólogo Mário de Andrade, o termo certamente remete às fantasias instrumentais que utilizam temas e processos de composição improvisada, tirados de cantos tradicionais ou populares, como as rapsódias húngaras de Liszt.

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Segundo Oswald de Andrade, “Mário escreveu nossa Odisséia e criou duma tacapada o herói cíclico e por cinqüenta anos o idioma poético nacional”. importante notar que, além de relatar inúmeros mitos recolhidos e diversas fontes populares, Mário de Andrade também inventa, de maneira irônica, vários mitos da modernidade. Apresenta, entre outros, os mitos da criação do futebol, do truco, do gesto da “banana” ou do termo “Vá tomar banho!” Há, em Macunaíma, portanto, além da imensa pesquisa, muita invenção.

4.3. As fontesMário de Andrade nunca escondeu que tomou como fonte principal para a redação de Macunaíma a obra Vom Roroima zum Orinoco (Do Roraima ao Orenoco) de Theodor Koch-Grünberg, publicada, em cinco volumes, entre 1916 e 1924. Graças ao monumental trabalho de Manuel Cavalcanti Proença, Roteiro de Macunaíma, podemos acompanhar como o escritor paulista foi reelaborando as narrativas colhidas na obra do alemão, mesclando-a a outras fontes, como livros de Capistrano de Abreu, Couto Magalhães, Pereira da Costa ou mesmo relatos orais, como o que o grande compositor Pixinguinha lhe fez de uma cerimônia de macumba, para ir tecendo sua rapsódia.Nas lendas de heróis taulipang e arecuná, apresentadas por Koch-Grünberg, Mário de Andrade encontrou o herói Macunaíma, que, segundo o estudioso alemão, “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros irmãos.” Nas palavras do poeta-crítico Haroldo de Campos: O próprio Koch-Grünberg, em sua “Introdução” ao volume, ressalta a ambigüidade do herói, dotado de poderes de criação e transformação, nutridor por excelência, ao mesmo tempo, todavia, malicioso e pérfido. Segundo o etnógrafo alemão, o nome do supremo herói tribal parece conter como parte essencial a palavra MAKU, que significa “mau” e o sufixo IMA, “grande”. Assim, Macunaíma significaria “O Grande Mau”, nome – observa Grünberg – “que calha perfeitamente com o caráter intrigante e funesto do herói”. Por outro lado, os poderes criativos de Macunaíma levaram os missionários ingleses em suas traduções da Bíblia para a língua indígena a denominar o Deus cristão pelo nome do contraditório herói tribal, decisão que Koch-Grünberg comenta criticamente”.

4.4. O herói sem nenhum caráterFoi, portanto, na obra do etnólogo alemão que Mário de Andrade, paradoxal e muito antropofagicamente, encontrou a essência do brasileiro. O próprio autor de Macunaíma, em prefácio que nunca chegou a publicar com o livro, nos conta como ocorreu a descoberta: “O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. […] Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de

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Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei)” As metamorfoses pelas quais passa a personagem, de sabor surrealista, podem muito bem ser associadas à sua “falta de caráter”, assim como o fascínio que revela pela “língua de Camões”, na Carta pras Icamiabas.

4.5. Foco narrativoEmbora predomine o foco da 3ª pessoa, Mário de Andrade inova utilizando a técnica cinematográfica de cortes bruscos no discurso do narrador, interrompendo-o para dar vez à fala dos personagens, principalmente Macunaíma. Esta técnica imprime velocidade, simultaneidade e continuidade à narrativa. Exemplo:“Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhãs datilógrafos estudantes empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todos esses vizinhos e contou pra eles que tinha ido caçar na feira do Arouche e matara dois… -- …mateiros, não eram viados mateiros, não, dois viados catingueiros que comi com os manos. Até vinha trazendo um naco pra vocês mas porém escorreguei na esquina, caí derrubei o embrulho e o cachorro comeu tudo.” (Cap. XI – A Velha Ceiuci)

4.6. Espaço e tempoAs estripulias sucessivas de Macunaíma são vividas num espaço mágico, próprio da atmosfera fantástica e maravilhosa em que se desenvolve a narrativa. Em seu Roteiro de Macunaíma, mestre Cavalcanti Proença afirma que Macunaíma se aproxima da epopéia medieval, pois “tem de comum com aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso. Está fora do espaço e do tempo. Por esse motivo pode realizar aquelas fugas espetaculares e assombrosas em que, da capital de São Paulo foge para a Ponta do Calabouço, no Rio, e logo já está em Guarajá-Mirim, nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas para, em seguida, chupar manga-jasmim em Itamaracá de Pernambuco, tomar leite de vaca zebu em Barbacena, Minas Gerais, decifrar litóglifos na Serra do Espírito Santo e finalmente se esconder no oco de um formigueiro, na Ilha do Bananal, em Goiás”. Macunaíma é um personagem outsider, enquanto marginal, anti-herói, fora-da-lei, na medida em que se contrapõe a uma sociedade moderna, organizada em um sistema racional, frio e tecnológico. Assim, o tempo é totalmente subvertido na narrativa. O herói do presente entra em contato com figuras do passado, estabelecendo-se um curioso “diálogo com os mortos”: Macunaíma fala com João Ramalho (séc. XVI), com os holandeses (séc. XVII), com Hércules Florence (séc. XIX) e com Delmiro Gouveia (pioneiro da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e industrial nordestino que criou a primeira fábrica nacional de linhas de costura).

4.7. Enumerações e desregionalizaçãoChama a atenção do leitor atento, em Macunaíma, a abundância de enumerações.Já na primeira página do romance encontramos a enumeração das danças tribais: “freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.”Tais listas colocam em evidência o trabalho de pesquisa de Mário de Andrade, que nelas freqüentemente mistura elementos de diversas regiões do país, ao buscar desregionalizar sua obra, procurando “conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea – um conceito étnico nacional e geográfico”. A grande estudiosa da obra de Mário, Telê Porto Ancona Lopez, resume bem o problema:

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Mário de Andrade realizava em suas leituras, pesquisa de palavras, termos e expressões características dos diversos recantos do Brasil. Grifava e recolhia. Depois os empregava, nos conjuntos os mais heterogêneos, procurando anular as especificações do regional, e dar uma visão geral de Brasil (…). É pois, graças à coleta de palavras que Mário de Andrade desenvolve, que Macunaíma pode apresentar tão freqüentes enumerações de aves, peixes, insetos ou frutas. Essas enumerações, além de válidas para a quebra do regionalismo, contribuem para a criação de ritmo de embolada, alternando sílabas longas e breves, no trecho em que se inserem. Ritmo procurado, aliás, porque o autor não usa vírgulas.”É importante ressaltar que tais listagens não devem afastar o leitor, que muitas vezes se assusta com tantos nomes “estranhos”. Eles precedem sempre uma definição generalizadora como “todas essas danças religiosas da tribo”. Assim, o leitor não deve se apavorar com a nomenclatura desconhecida e pode deixar a leitura fluir, sem necessariamente recorrer ao dicionário para verificar todos os termos – mesmo porque não vai encontrar a maioria deles.

4.8. A carta pras icamiabasPrecisamente no meio da narrativa, no Capítulo IX da obra, encontramos um “Intermezzo”, como o chamava o autor. Trata-se da “Carta pras Icamiabas”, sátira feroz ao beletrismo parnasiano da época. Macunaíma escreve a suas súditas para descrever-lhes a cidade de “São Paulo construída sobre sete colinas, à feição tradicional de Roma, a cidade cesárea, “capita” da Latinidade de que provimos". Mário de Andrade inverte, aqui, portanto, os relatos dos cronistas quinhentistas, como Pero Vaz de Caminha, Gabriel Soares de Sousa ou Pero de Magalhães Gandavo. Agora é o índio que descreve a terra desconhecida para seus pares distantes. Sem caráter, Macunaíma o faz tomando emprestada a linguagem rebuscada de um Rui Barbosa ou de um Coelho Neto. A paródia torna-se hilariante devido aos erros grosseiros cometidos pelo falso erudito , que escreve asneiras como “testículos da Bíblia” por “versículos”ou “ciência fescenina” por “feminina”.Com seu estilo pomposo, Macunaíma enuncia, na Carta pras Icamiabas, o slogan que irá adotar para definir os problemas do Brasil:“Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça: "POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO."Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita a este estabelecimento famoso na Europa. O slogan recupera conhecido poema de Gregório de Matos (1636-1695), em que o poeta satírico baiano enumera as vilezas do país, terminando cada estrofe com o irônico refrão: “Milagres do Brasil são.” Remete, também, à frase do cronista Saint-Hilaire: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.

Livro Macunaíma, by Yahoo! Respostas

1. Qual a importância de “Macunaíma” na primeira fase do Modernismo brasileiro?

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Resposta: A obra é importante para o Modernismo porque apresenta o Brasil onde todas as culturas se misturam e se interpenetram; o personagem parece assimilar e sintetizar desde a cultura indígena até as impregnações urbanas de São Paulo e suas tradições ainda europeizadas.Além disso, sintetiza as idéias modernistas no sentido de uma formação de uma cultura e do saber brasileiros. Mário de Andrade, deixando além de sua obra de criação um legado crítico, como seus ensaios e estudos didáticos, foi sem dúvida o grande renovador dos conceitos de literatura e estética de caráter originalmente nacional.