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7 Biografia: quando o indivíduo encontra a história Mary Del Priore A ciência histórica nos deixa na incerteza sobre os indivíduos. Ela só nos revela os pontos pelos quais eles se ligaram às ações gerais. Ela nos diz que Napoleão sofria no dia de Waterloo, que é preciso atribuir a excessiva atividade intelectual de Newton à continência absoluta de seu temperamento, que Alexandre estava bêbado quando matou Clitos e que a fístula de Luís XIV pode ser a causa de algumas de suas resoluções. Todos esses fatos individuais só têm valor porque modificaram os acontecimentos ou porque poderiam ter desviado a série. São causas reais ou possíveis. É preciso deixá-las aos sábios. Marcel Schwob, Vidas Imaginárias. A biografia, uma das primeiras formas de história – depois das dos deuses e de homens célebres –, retém cada vez mais a atenção dos historiadores. Todavia, a moda da biografia histórica é recente. Com efeito, até a metade do século XX, sem ser de todo abandonada, ela era vista como um gênero velhusco, convencional e ultrapassado por uma geração devotada a abordagens quantitativas e economicistas. Exemplo disso é um artigo de Marc Ferro, datado de abril de 1989, em que o grande biógrafo e his- toriador francês chama a biografia de “o aleijão” da história – le handicapée de l’Histoire. Ferro debitava esse desinteresse a duas matrizes: a da valorização do papel das massas – sans-culottes, camponeses e ope- rários, e a diminuição do papel dos “heróis” inspirada no determinismo ou no funcionalismo, das aná- lises marxistas e estruturalistas que marcaram a produção europeia dos anos 60. 1 Mas vamos olhar um pouco mais para trás, para entender a genealogia desta que Littré definiu co- mo “uma espécie de história que tem por objeto a vida de uma única pessoa”. A biografia mudou ao longo dos tempos. No início era o verbo e o verbo, a narrativa. E a narrativa era história em Heródo- to, mas, também, retórica, em Tucídides. Em um quanto em outro, a preocupação com o efeito literá- rio era maior do que com a exatidão das informações. Tucídides, por exemplo, recheou de discursos fic- tícios sua história da guerra do Peloponeso, que queria imorredoura, ktêma es aiei. Ele deu a palavra a seus atores a fim de que eles exprimissem análises sobre suas próprias ações. O modelo grego inspirou profundamente os historiadores romanos: Tito Lívio, do seu lado, encheu seus textos com discursos imaginários para destacar a psicologia de personagens evocados. Da mesma forma, Tácito pintou os imperadores do primeiro século, tentando penetrar sua mentalidade. Todos es- ses historiadores pertencem à história das literaturas grega e latina. Por quê? Pois seu esforço de eluci- dação e interpretação dos fatos não obstruiu jamais o desenvolvimento da narrativa. O discurso, nesses casos, não tinha função de prova explicativa. Era, sim, um procedimento retórico ligado a um aconte- cimento histórico mais amplo. A seguir, a hagiografia encarregou-se de demonstrar a exemplaridade humana. A vida dos santos de- veria incentivar modelos aos leitores. As encarnações do sagrado se tornavam modelares no percurso rea- lizado por mártires, doutores e confessores. A partir dos séculos XII e XIII, os santos deixaram o mun- do fechado dos monastérios. A santidade passou a ser imitada no cotidiano e a narrativa sobre a vida de cavaleiros invadiu a Idade Média. Era o início de um período de heróis. Heróis, ao mesmo tempo, ob- jetos de transferência do sagrado, atores de intrigas e portadores de valores positivos. Com o Renascimento emergiu uma nova maneira de viver e de conceber o destino do homem no mundo. O indivíduo começou a se liberar de tutelas tradicionais que pesavam sobre o seu destino. Ele ousou dizer “eu”. Na pintura, sobretudo no Norte da Europa, retratos pintados por Van Eick, Roger van de Vries e Dürer, entre outros, confirmaram a valorização de sua existência. O mundo social mu- dou de núcleo de gravidade. Das leis superiores impostas por Deus, pelo Estado ou a família, tal centro voltou-se para o culto de si. O indivíduo tornou-se meta e norma de todas as coisas. 2 Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009, p. 7-16.

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  • 7Biografia: quando o indivduo encontra a histria

    Mary Del Priore

    A cincia histrica nos deixa na incerteza sobre os indivduos. Ela s nos revela os pontos pelos quais eles se ligaram s aes gerais. Ela nos diz que Napoleo sofria no dia de

    Waterloo, que preciso atribuir a excessiva atividade intelectual de Newton continncia absoluta de seu temperamento, que Alexandre estava bbado quando matou Clitos e que

    a fstula de Lus XIV pode ser a causa de algumas de suas resolues. Todos esses fatos individuais s tm valor porque modificaram os acontecimentos ou porque poderiam ter

    desviado a srie. So causas reais ou possveis. preciso deix-las aos sbios.Marcel Schwob, Vidas Imaginrias.

    A biografia, uma das primeiras formas de histria depois das dos deuses e de homens clebres , retm cada vez mais a ateno dos historiadores. Todavia, a moda da biografia histrica recente. Com efeito, at a metade do sculo XX, sem ser de todo abandonada, ela era vista como um gnero velhusco, convencional e ultrapassado por uma gerao devotada a abordagens quantitativas e economicistas.

    Exemplo disso um artigo de Marc Ferro, datado de abril de 1989, em que o grande bigrafo e his-toriador francs chama a biografia de o aleijo da histria le handicape de lHistoire. Ferro debitava esse desinteresse a duas matrizes: a da valorizao do papel das massas sans-culottes, camponeses e ope-rrios, e a diminuio do papel dos heris inspirada no determinismo ou no funcionalismo, das an-lises marxistas e estruturalistas que marcaram a produo europeia dos anos 60.1

    Mas vamos olhar um pouco mais para trs, para entender a genealogia desta que Littr definiu co-mo uma espcie de histria que tem por objeto a vida de uma nica pessoa. A biografia mudou ao longo dos tempos. No incio era o verbo e o verbo, a narrativa. E a narrativa era histria em Herdo-to, mas, tambm, retrica, em Tucdides. Em um quanto em outro, a preocupao com o efeito liter-rio era maior do que com a exatido das informaes. Tucdides, por exemplo, recheou de discursos fic-tcios sua histria da guerra do Peloponeso, que queria imorredoura, ktma es aiei. Ele deu a palavra a seus atores a fim de que eles exprimissem anlises sobre suas prprias aes.

    O modelo grego inspirou profundamente os historiadores romanos: Tito Lvio, do seu lado, encheu seus textos com discursos imaginrios para destacar a psicologia de personagens evocados. Da mesma forma, Tcito pintou os imperadores do primeiro sculo, tentando penetrar sua mentalidade. Todos es-ses historiadores pertencem histria das literaturas grega e latina. Por qu? Pois seu esforo de eluci-dao e interpretao dos fatos no obstruiu jamais o desenvolvimento da narrativa. O discurso, nesses casos, no tinha funo de prova explicativa. Era, sim, um procedimento retrico ligado a um aconte-cimento histrico mais amplo.

    A seguir, a hagiografia encarregou-se de demonstrar a exemplaridade humana. A vida dos santos de-veria incentivar modelos aos leitores. As encarnaes do sagrado se tornavam modelares no percurso rea-lizado por mrtires, doutores e confessores. A partir dos sculos XII e XIII, os santos deixaram o mun-do fechado dos monastrios. A santidade passou a ser imitada no cotidiano e a narrativa sobre a vida de cavaleiros invadiu a Idade Mdia. Era o incio de um perodo de heris. Heris, ao mesmo tempo, ob-jetos de transferncia do sagrado, atores de intrigas e portadores de valores positivos.

    Com o Renascimento emergiu uma nova maneira de viver e de conceber o destino do homem no mundo. O indivduo comeou a se liberar de tutelas tradicionais que pesavam sobre o seu destino. Ele ousou dizer eu. Na pintura, sobretudo no Norte da Europa, retratos pintados por Van Eick, Roger van de Vries e Drer, entre outros, confirmaram a valorizao de sua existncia. O mundo social mu-dou de ncleo de gravidade. Das leis superiores impostas por Deus, pelo Estado ou a famlia, tal centro voltou-se para o culto de si. O indivduo tornou-se meta e norma de todas as coisas.2

    Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009, p. 7-16.

  • 8Biografia: quando o indivduo encontra a histria

    Mary Del Priore

    Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009, p. 7-16.

    Nos sculos seguintes, o individualismo no cessou de se afirmar. Por isso mesmo, escrever sua vi-da tornou-se moda: Marguerite de Valois, Commynes, Monluc, Retz, Saint-Simon entre outros me-morialistas do Antigo Regime, construam a memria do mundo e a memria de si.3 No sculo XVIII, o heri medieval foi substitudo pelos grands hommes dos quais Voltaire diria: So aqueles que se desta-caram no til ou no agradvel. Contrariamente ao heri, o grande homem tinha que ter uma funo: ser proveitoso sociedade. Uma das formas de contar seus feitos, ou estud-lo, era a biografia. Biografia, palavra que, dicionarizada em 1721, designava um gnero que tinha por objeto a vida dos indivduos. Antes, as biografias apareciam na forma de memrias, ou seja, relaes escritas nas quais o indivduo narrava fatos dos quais participara ou fora testemunho.

    No sculo XIX, as biografias tiveram importante papel na construo da ideia de nao, imorta-lizando heris e monarcas, ajudando a consolidar um patrimnio de smbolos feito de ancestrais fun-dadores, monumentos, lugares de memria, tradies populares etc. Esta concepo foi retomada pela corrente positivista. A biografia assimilou-se exaltao das glrias nacionais, no cenrio de uma hist-ria que embelezava o acontecimento, o fato. Foi a poca de ouro de historiadores renomados como Tai-ne, Fustel de Coulanges e Michelet, autor de excepcionais retratos de Danton a Napoleo.

    Pouco a pouco, na mesma poca, histria e literatura se divorciaram. A histria tornou-se uma disci-plina e monoplio de acadmicos. Primeiro, sob as bordoadas dos positivistas da Neue Historishe Schule de Leopold Von Ranke, cujas repercusses logo se fizeram sentir entre belgas e franceses. A seguir, e de maneira decisiva sob a influncia irradiadora da Escola dos Annales, animada por Lucien Fbvre e Marc Bloch, no incio do sculo XX. Foi o momento do eclipse da narrativa, enterrado junto com a histria factual. Ao minimizar a histria poltica, diplomtica, militar ou eclesistica que evidenciava o indiv-duo e o fato, a Nova Histria, nascida dos Annales nos anos 60, optou por privilegiar o fato social to-tal em todas as suas dimenses econmicas, sociais, culturais e espirituais.

    Como bem observou Paul Ricoeur, noo de fato, concebido como salto no tempo, eles opuseram aquela de tempo social cujas categorias maiores conjuntura, estrutura, ciclo, crescimento, crise etc. foram emprestadas economia, demografia e sociologia.4 Marx aterrissava em meio aos estudos histricos.

    Vale sublinhar que a Escola dos Annales renovou de alto a baixo os mtodos de trabalho do histo-riador, fazendo desse um especialista escrevendo para outros especialistas. No que deveria ser uma cin-cia, no havia espao para a arte. Menos espao ainda, pois a nova orientao exclua a biografia, que narrativa por excelncia.

    Talvez no tenha sido um acaso o fato de, na primeira metade do sculo, escritores como Stefan Zweig investirem com entusiasmo nas biografias histricas Maria-Antonieta, Fouch, Erasmo usando os mesmos princpios do historiador romntico Michelet, ou seja, a preocupao em recuperar a vida total, o drama da vida.5 O ficcionista to desprezado em sua poca pelos especialistas escreveu um pequeno livro sobre os bastidores da histria chamado de Sternstunden der Menschheit. Suas minia-turas iluminaram a histria documental com pthos humano. E ainda, deve-se sua intuio ( nome feio?), pelo menos em parte, o ressurgimento do poeta Hlderlin, depois de uma longa noite em que foi ignorado pelos especialistas. E quem seria Nietzsche sem Hlderlin?

    Enquanto os historiadores preferiram rejeitar os dolos individuais e os recortes cronolgicos da-dos pelo tempo de uma existncia, escritores se tornaram, ento, os grandes bigrafos: Guy de Pourta-ls. Gide, Michel de Leiris, Andr Maurois, no mundo literrio francs. Lytton Strachey e Antonia Fra-ser, no anglo-saxo, entre outros. Convite viagem artificial no passado, fortemente ligada aos fatos, a maior parte das biografias era acrtica e lanava suas razes no terreno das paixes coletivas. Elas corres-pondiam a um pblico vido de fatos histricos, de acontecimentos sensacionais ou de enigmas inso-lveis: na Frana, por exemplo, o caso do Colar da Rainha ou a desapario do tesouro dos templrios. A paixo pela biografia crescia e fez nascer o romance genealgico de Claude Simon e Georges Perec. Ou ainda a autobiografia psquica de um Hermann Broch.6 Havia sede desse gnero, notadamente no mundo europeu e anglo-saxo.

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    Historiadores comearam, contudo, a operar um discreto retorno biografia. Lucien Febvre, um dos fundadores da revista Annales, foi pioneiro em colocar as bases de uma biografia histrica renovada: Os homens, nicos objetos da histria [...] sempre capturados no quadro das sociedades a que perten-cem. Instaurava-se uma biografia modal que, debruada sobre o indivduo, informava sobre a cole-tividade. Ao fazer as biografias de Lutero7 e Rabelais,8 Lucien Febvre deu vida a personagens tributrios de uma utensilagem mental que os ultrapassava e os permitia se situar numa dada poca e sociedade. Estavam lanadas as pistas que levariam do indivduo ao ator ou atores da histria.9

    Consequncia da emergncia da nova Histria Social e da influncia marxista, os meados do sculo XX continuaram a manter a histria biogrfica em segundo plano. Esta abordagem era marcada pelo di-logo estreito com outras Cincias Humanas e pela nfase de Fernand Braudel na histria total. Coube a ele sublinhar as relaes entre o homem, a geografia (no livro o mar Mediterrneo, e no o rei Felipe IV, o protagonista principal) e as condies materiais de vida, numa viso totalizante e socioeconmica da histria. A abordagem conhecida como Nova Histria recusava as anlises que s retinham um nico fa-tor em detrimento da multiplicidade de componentes particulares, das circunstncias que levavam a uma conjuntura. Mas junto com os documentos, Braudel no conseguiu ignorar o pthos: Nesse livro, os barcos navegam; as ondas repetem sua cano; os vinhateiros descem das colinas. [...]. No poesia?

    Foi, contudo, preciso esperar os anos 70 e 80 para assistir ao fim da rejeio biografia histrica. O epistemlogo Franois Dosse anunciou, ento, a chegada de uma idade hermenutica na qual o ob-jetivo seria capturar a unidade pelo singular. At que enfim, o indivduo encontrava a histria. O fe-necimento das anlises marxistas e deterministas, que engessaram por dcadas a produo historiogr-fica, permitiu dar espao aos atores e suas contingncias novamente. Foi uma verdadeira mudana de paradigmas. A explicao histrica cessava de se interessar pelas estruturas, para centrar suas anlises so-bre os indivduos, suas paixes, constrangimentos e representaes que pesavam sobre suas condutas. O indivduo e suas aes situavam-se em sua relao com o ambiente social ou psicolgico, sua educa-o, experincia profissional etc. O historiador deveria focar naquilo que os condicionava a fim de fa-zer reviver um mundo perdido e longnquo. Esta histria vista de baixo dava as costas histria dos grandes homens, motores das decises, analisadas de acordo com suas consequncias e resultados, co-mo a que se fazia no sculo XIX.10

    Mas a possibilidade de colocar a biografia em questo ganhou espao com um amplo debate entre historiadores e socilogos, no meio dos 1980. O polmico texto Lillusion biographique, de Pierre Bourdieu, criticava a subjetividade de biografias histricas, segundo ele, capazes exclusivamente de re-construir a vida de forma artificial, mesmo absurda:11 A histria de vida uma dessas noes do sen-so comum que entraram, de contrabando, no universo erudito,12 fustigava o famoso socilogo.

    A crtica da biografia por este que era considerado um dos maiores intelectuais do mundo, longe de afastar o interesse de historiadores, os desafiou. Convidou-os a pensar a biografia de um ngulo novo. Assistiu-se, assim, a uma volta do gnero, mas de uma biografia que nada tinha a ver com um retorno histria heroica e literria dos grandes homens. Enterrava-se a biografia positivista dos tempos de an-tanho, descrita por Jacques Le Goff como tradicional, superficial, anedtica, cronolgica, sacrificada a uma psicologia ultrapassada e incapaz.

    A reabilitao da biografia histrica integrou as aquisies da histria social e cultural, oferecendo aos diferentes atores histricos uma importncia diferenciada, distinta, individual. Mas no se tratava mais de fazer, simplesmente, a histria dos grandes nomes, em formato hagiogrfico quase uma vida de santo , sem problemas, nem mculas. Mas de examinar os atores (ou o ator) clebres ou no, como testemunhas, como reflexos, como reveladores de uma poca. A biografia no era mais a de um indiv-duo isolado, mas, a histria de uma poca vista atravs de um indivduo ou de um grupo de indivduos. Ele ou eles no eram mais apresentados como heris, na encruzilhada de fatos, mas como uma espcie de receptculo de correntes de pensamento e de movimentos que a narrativa de suas vidas torna mais palpveis, deixando mais tangvel a significao histrica geral de uma vida individual.13

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    Segundo Marc Ferro, a biografia deve ainda aos estudos sobre a vida privada dos indivduos, estu-dos que permitiram dessacralizar, segundo ele, os papis estritamente pblicos que esses exerceram, re-velando as complexas relaes entre vida privada e vida pblica.

    Segundo Le Goff, a introduo do gnero biogrfico na histria atual um instrumento til e suple-mentar usado pela Histria Cultural. uma maneira de continuar a fazer histria por outros meios, como explicou o historiador reiteradas vezes quando interpelado sobre suas pesquisas para os estudos de So Francisco de Assis e depois, de So Luiz Rei de Frana.14 No primeiro, o medievalista relacionou a vida do poverello com a urbanizao e o enriquecimento das cidades-Estado italianas. No segundo, pro-blematizou a narrativa, perguntando-se So Luiz existiu?. A resposta foi original: trabalhando com as vrias imagens que se sobrepem a um mesmo indivduo, demonstrou que uma biografia pode conter vrias outras. Enfim, uma vida pode contar outras tantas.

    Le Goff o melhor exemplo do que propunham os historiadores franceses ao reinventar a biografia. Na tradio do esprito dos Annales, ela deve se instaurar por uma questo e se formular como um caso de histria-problema. Como toda narrativa de vida, ela precisa se submeter a uma cronologia de fatos, mas, contrariamente, vida ao destino , uma construo feita de acasos, hesitaes e escolhas que permitem ao bigrafo, segundo Le Goff, escapar tal iluso biogrfica fustigada por Bourdieu.

    Enquanto, algumas dcadas antes, Fernand Braudel preconizava a existncia da longa durao em toda a anlise histrica, Le Goff rompeu com esta tradio, insistindo sobre a vida individual como durao significativa para a histria. Ele convidou mais geralmente a buscar duraes pertinentes em histria, que permitiram, no s a observar um fenmeno, mas tambm ver uma grande parte da evoluo histrica. Segundo ele, a vida humana um excelente exemplo em histria de vida e a de So Luiz, em particular, permitia medir uma srie de fenmenos. Esta abordagem apresentou o interesse de ultrapassar a oposio entre histria narrativa e histria estruturalista, ou seja, incentivou a encontrar as estruturas por outro recorte. Segundo o mesmo autor, quase em ao e em encarnao, longe das frias estruturas propostas por Braudel.

    A biografia desfez tambm a falsa oposio entre indivduo e sociedade. O indivduo no existe s. Ele s existe numa rede de relaes sociais diversificadas. Na vida de um indivduo, convergem fa-tos e foras sociais, assim como o indivduo, suas ideias, representaes e imaginrio convergem para o contexto social ao qual ele pertence. No seu estudo sobre os marranos no Nordeste do Brasil, Nathan Wachtel, por exemplo, demonstrou por meio de uma enquete de micro-histria, que cada indivduo estudado situado numa trajetria dada, assim como na sua relao com os outros no seio de uma so-ciedade global. Os indivduos diz representam mais do que eles mesmos e cada qual, a seu modo, exprime algo do coletivo do qual no podem se abstrair.

    A biografia permitiu ento a abordagem histrica pelo foco num indivduo que no necessariamen-te ilustre ou conhecido, exatamente porque ele no ilustre ou conhecido. Wachtel que maneira de seus colegas reitera que isto possvel, pois os destinos individuais esto situados em diversas redes que se cru-zam: a casa e a famlia, o espao regional, o universo espiritual, a utensilagem mental de uma poca. O singular se abre para o geral, na medida em que recuperado em sua inesgotvel riqueza.15 Obras que tambm marcaram este debate foram: Moi, Pierre Rivire, histria do matricida francs que tambm ma-tou os irmos, sob a pena de Michel Foucault16 ou o estudo de Georges Duby sobre Joana DArc.17

    A discusso historiogrfica entre os herdeiros ou a segunda gerao dos Annales abriu outra frente de trabalho. Desta vez, influenciado pela produo italiana dos anos 80. Nascia, nesta poca, uma cole-o da editora Einaudi, dirigida por Carlo Guinzburg e Giovanni Levi intitulada Microestorie. Ao lon-go da dcada, a editora e as obras a publicadas ajudaram a consolidar os conceitos desta que passou a ser uma abordagem: a Micro-Histria. Assumindo a legitimidade do fatiamento da histria posto em cena pela Nova Histria, porm preocupada com a problematizao mais ntida do objeto de investiga-o, especialmente quanto s hierarquias e conflitos sociais, a Micro-Histria trouxe luz importantes biografias extradas desta nova prtica historiogrfica.

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    Alguns enredos ilustrativos deste tipo de narrativa seriam o clssico O queijo e os vermes, de Carlo Guinzburg, cujo personagem um moleiro friulano, Domenico Scandella, conhecido por Mennochio; a histria de O retorno de Martin Guerre, de Natalie Davis, a trajetria de um impostor que se faz passar por marido de uma camponesa do sul da Frana; Benedetta, a visonria lsbica do livro de Judith Brown, Atos Impuros, ou o exorcista Giovan Battista Chiesa, ator de A herana Imaterial, escrita por Giovanni Levi.

    Nestas quatro obras salta aos olhos algumas das caractersticas que, de fato, distinguem a Micro-His-tria da Histria da Cultura ou das Mentalidades: a nfase nos conflitos de classe, a despreocupao com os contextos amplos e a longa durao, a renncia histria totalizante, cara aos franceses contempor-neos de Braudel, nos anos sessenta. No mais, como em outras biografias sob o guarda-chuva dos Anna-les, todos os temas cabem nestas monografias, sobretudo, pois ambas as abordagens A Histria Cultu-ral e a Micro-Histria se preocupam com os annimos da histria, o popular, os de baixo. Ambas as abordagens diminuem o foco da histria, concentrando-se no tempo significativo de fatos, aes e re-presentaes que cercam o indivduo. A diferena? Oriundos da tradio marxista, os autores ligados Micro-Histria se preocupam com conflitos de classe sub-reptcios aos fatos e personagens histricos.

    O que vale sublinhar que as biografias caram como uma luva para resolver alguns problemas pr-ticos dos historiadores. Tomemos, por exemplo, a contradio entre ideias, representaes e prticas so-ciais que fizeram historiadores americanos criarem a histria das ideias, distinta, daquela das prticas. Os autores franceses e italianos demonstraram que as primeiras no so mais um fato em si, motivo ou causa de eventos histricos, mas modos de representao de um momento histrico. Trata-se, portan-to, de achar um equilbrio entre o indivduo ou o personagem, seu livre-arbtrio, suas intenes pessoais e a escala mais ampla de convenes culturais e mentalidades coletivas nas quais ele est imerso.18

    Abordagem perfeita se perguntariam alguns? A princpio, no. Pois que, por definio, a biografia centrada num indivduo, ela coloca o problema da representatividade deste mesmo ator histrico. Mas com o desenvolvimento da histria cultural, as abordagens se concentraram nos laos que ligavam o indivduo cultura, no sentido mais amplo do termo. Num artigo que fez a volta ao mundo David Brion Davies se perguntava, justamente, como achar os pontos de interseco entre um indivduo e o quadro social, cultural e poltico do qual participa. Segundo o historiador americano, bem como o fran-cs Le Goff, a biografia individual ou coletiva (no caso de estudos de famlia ou prosopografias) ofere-ce uma soluo metodolgica a esta pergunta, pois ela implica o estudo de um indivduo ou de grupo de indivduos que representam uma classe social, uma profisso, uma f ou crena, desde que se defina, previamente, a estrutura social a que pertencem. Pode-se igualmente examinar a maneira pela quais as crises pessoais de um indivduo complexo refletem as tenses de uma poca, e como as solues pesso-ais do conflito fazem eco, se apropriam ou se impregnam s transformaes de uma cultura.

    Assim, o indivduo , ao mesmo tempo, ator crtico e produto de sua poca, seu percurso iluminan-do a histria por dois ngulos distintos. Um explcito, pela iniciativa voluntria do observador que pro-pe uma anlise da sociedade na qual o personagem est inscrito. O outro, implcito, avaliado no per-curso do personagem que ilustra, por sua vez, as tenses, conflitos e contradies de um tempo, todos essenciais para a compreenso do perodo. Neste caso, o indivduo encarna, ele mesmo, tais tenses.19

    E quanto escrita das biografias? Graas ao gnero, o historiador se tornou um escritor que se diri-ge a um pblico que aguarda uma narrativa de acontecimentos encadeados e uma intriga codificada por fatos reais, interpretados. Ao fim das contas, a estrutura da biografia se distingue daquela do romance por uma caracterstica essencial: os eventos contados pela narrativa do historiador so impostos por do-cumentos e no nascidos da imaginao. A histria, afirmou peremptoriamente Paul Veyne, nada mais do que uma narrativa verdica.20

    De fato, o historiador reconstitui a palavra significativa as coisas do passado. Mas ao faz-lo, ele tenta imagin-las como se as tivesse visto. H a um cruzamento perigoso, mas real, com a imagina-o literria. Por outro lado, muitas vezes o romancista no se esquiva de misturar personagens histri-

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    cos e fatos com data reconhecida aos personagens fictcios e eventos idealizados. Um caso emblemtico o de Marguerite Youcenar com sua Obra em negro ou Memrias de Adriano.21

    O discurso exposto pelo bigrafo ou pelo romancista tem em comum a mise em intrigue da narrati-va. Todavia, a intriga do bigrafo deve se conformar a determinadas leis de encadeamento e aos cnones da disciplina, s quais escapa o romancista. Na narrativa de fico todas as distores so permitidas. O tempo pode ser desdobrado entre o tempo das coisas contadas e o tempo que se leva para cont-las. Es-sa uma via que o historiador no pode jamais trilhar.

    lgico que o historiador, seja ele bigrafo ou no, se confronta mais do que o romancista com duas questes que tomam a forma do por que e do como. E precisamente neste momento que o histo-riador deve integrar em sua narrativa a anlise das realidades de ordem coletiva, tais como as foras so-ciais, a situao econmica, as pulses culturais e religiosas, as mentalidades e at o clima. As preocupa-es mais emblemticas da Escola dos Annales seguem presentes ainda hoje.22

    Voltando escrita da biografia, no se tornou frequente dizer que um bom livro de histria co-mo os que escreve, por exemplo, o jornalista Eduardo Bueno se l como romance, escapando ao tdio que inspiram os livros universitrios? E nesta frmula elogiosa, o como sublinhe-se fundamental. O livro , ento, recomendado. Trata-se de histria garantida. De fatos acontecidos, de um fenmeno histrico explicado, de arquivos e documentos inditos que foram examinados, de conhecimentos no-vos descobertos. No obstante, o livro se l: a montagem, a intriga, a escrita fazem com que os leitores o penetrem como numa obra de fico. Ou seja, o livro convida o leitor a se deixar arrastar pelo prazer da leitura; ele instrui enquanto diverte. Embora tudo faa para parecer um romance, o livro em questo no um romance histrico gnero no qual o essencial se subordina ao acessrio. E, por fim, graas a este como que o leitor ganha nas duas frentes: a da histria e a da literatura.

    Mas, afinal, a histria conta uma histria? H 40 anos atrs a resposta seria: no! Os historiadores profissionais invocariam o compromisso que assumiram no sculo XIX de fazer valer a cincia contra a arte. E cincia de observao, cincia de anlise, cincia leitora e intrprete de documentos que um dia desembocariam em snteses, por que no, em leis, ou, ainda na suprema verdade? A narrativa? Uma ingenuidade. A coisa, contudo, mudou. Em 1979, um historiador ingls, Lawrence Stone, levantou a lebre tomando suas distncias da histria cientfica, ou da velha histria como ele a denominou, at ento, prevalente.23 Muito se tentou fazer uma histria no ritmada pela narrativa, mas, pela interpre-tao de sries, ciclos, repeties. O grande Fernand Braudel chegou a dizer que os historiadores no contavam. Eles apenas explicavam. Na realidade, por meio de hipteses, eles observavam continuidades a partir das quais construam fatos.24

    Mas seria isto possvel? No seu mais importante livro, O Mediterrneo e o mundo mediterrneo no tempo de Felipe II, o prprio Braudel no teria transformado o declnio deste mar intenso e fechado nu-ma espcie de heri coletivo na cena mundial?25 O certo que no h como fazer diferente. No pos-svel relatar e analisar uma situao social e econmica de um perodo passado sem a ajuda da narrati-va. Ou seja, sem colocar em relao ( o que os franceses chamam de mse em intrigue) os elementos de natureza diferente, sem fazer intervir diferentes personagens, os chamados atores histricos, notrios ou annimos. Qualquer que seja a vontade do autor de fazer uma escrita impessoal, com a no utilizao deliberada do eu, com a recusa de colocar em primeiro plano tal batalha ou tal nome clebre, o fato que para que as obras sejam legveis e coerentes, no se pode eliminar a estrutura narrativa.

    E a propsito da importncia da narrativa, bem disse Paul Veyne, especialista em epistemologia quando lanou: A histria a narrativa de fatos, o resto decorre dela.26 Ele denominou intriga a pos-sibilidade do mtodo de reconstituio do historiador assemelhar-se ao do romancista ou do autor de romances policiais. Observe-se, alis, que o gosto pela escritura e mesmo pelo estilo marcou a produ-o da historiografia francesa nos ltimos 30 anos.

    No cu dos historiadores, os anos 80 se fecharam sob o signo do tempo das incertezas, para reto-mar a expresso usada no editorial da revista Annales.27 A natureza do discurso histrico era, ento, ob-

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    jeto de trabalhos que detonavam as posies tradicionais entre os profissionais da Nouvelle histoire. Na esteira da crtica feita por Michel Foucault,28 Michel de Certeau,29 e, sobretudo, Paul Ricoeur os histo-riadores foram obrigados a reconhecer que o discurso sempre narrativa no sentido de colocar em ao as aes representadas. A histria, na sua escrita, no pode se subtrair aos procedimentos literrios. E isto no um simples caso de retrica, mas, ao contrrio, trata-se da validade e da legitimidade do dis-curso histrico. Redigir etapa crucial do trabalho cientfico e maneira eficiente de avaliar as ambies da disciplina. Paul Ricoeur demonstrou impiedosamente que toda a histria, inclusive a serial e quan-titativa, ainda que revelia, sempre construda pelas formas que governam a narrativa.

    O que fazer, ento, da pretenso cientfica e do sonho de objetividade, se a produo do historiador se assemelha a uma narrativa de fico? Os americanos responderam primeiro. O movimento conhecido co-mo Linguistic Turn marcou uma radicalizao nas reflexes em andamento na Europa. Agrupando vrias escolas de historiadores e de especialistas em cincias sociais, este movimento, que, alis, no possui uni-dade terica, proclama que toda realidade social, passada ou presente, se reduz a um jogo de linguagem, a uma construo discursiva. Ao fim e ao cabo, a histria no passaria de um simples gnero literrio, perdendo toda a ambio de ser um discurso de verdade.30 Deste ponto de vista, a histria no poderia ser mais do que a form of fiction-making operation, incapaz de estabelecer um conhecimento cientfico do passado, incapaz, tambm, de reconhecer falsificaes e falsrios. bvio que a Europa, teatro das maio-res atrocidades do sculo XX, reagiu. Este relativismo absoluto leva a vias perigosas. E elas foram rapida-mente usadas por historiadores revisionistas e negacionistas, quando se tratou de dizer, por exemplo, que no houve Holocausto de judeus, ciganos e homossexuais durante a Segunda Grande Guerra.

    E na direo de Paul Ricoeur que nos voltamos para aprender as delicadas relaes entre histria e verdade.

    O historiador no um simples narrador: ele d razes para explicar sua escolha de tal e qual fator em de-trimento de outro, quando se trata de um fato histrico. O poeta cria uma intriga que se basta por seu es-queleto causal. Mas ele no feito de argumentao.

    E Roger Chartier crava:

    preciso lembrar que o foco do conhecimento constitutivo da intencionalidade histrica. Ele funda estas operaes especficas da disciplina: construo e tratamento de dados, critrios de verificao de resultados, validao da adequao entre o discurso do saber e seu objeto.31

    Mas enquanto na Frana, Alemanha e Estados Unidos o discurso do historiador e seus paradigmas esto no corao das polmicas,32 abaixo do Equador, no s o discurso, mas, tambm, o papel do his-toriador ainda est em discusso. Sim. Porque a histria, antes de ser uma disciplina, uma prtica so-cial. O que quer dizer que homens e mulheres que se dizem historiadores fazem histria para um p-blico que os l ou escuta. Seu reconhecimento social, assim como seus salrios, dependem da sociedade que lhe acorda um status e lhe assegura uma remunerao. O duplo reconhecimento, o dos pares e o do pblico, consagra o historiador como tal. E mais, a histria no uma disciplina, monoltica; mas ela composta por diferentes grupos que rivalizam na tarefa de, mediante um programa, prescrever o objeto da pesquisa e a maneira correta de apresent-la, portanto, de narr-la.

    O que curioso que, contrariamente ao que lhes acontece na Europa, aqui os historiadores tm pouca visibilidade em comparao com os jornalistas. Mas a histria vem se tornando uma mania. Ela est em toda a parte. De repente, tudo histria, parodiando o grito do consagrado Jacques Le Goff quando ampliou a constelao de documentos que pode usar o historiador. Tudo tem histria. No Bra-sil vimos surgir, nos ltimos dez anos, um pblico que l e gosta de histria. Revistas de divulgao se multiplicaram, algumas delas atingindo um total aproximado de 300.000 leitores por ms.33 Outros produtores culturais tais como documentaristas, cineastas, produtores de contedos para sites, procu-ram, cada vez, mais desenvolver projetos nos quais a informao tenha razes histricas. Um domnio

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    inteiramente novo, o da educao patrimonial associado ao turismo cultural, potencializou, ilimitada-mente, o papel de historiadores regionais e dos institutos de histria, antes invisveis porque s margens dos grandes circuitos. Os museus regionais tambm se multiplicaram, valorizando a autoestima de po-pulaes antes nas sombras da metrpole mais prxima. Os movimentos afirmativos deram valor, tam-bm, no s a cultura indgena ou afrodescendente como um todo, mas seus desdobramentos locali-zados nas mltiplas manifestaes de cultura material e imaterial quilombos, festas e tradies que variam de regio a regio. Isto quer dizer que, muito alm dos jardins da universidade, existem, hoje, centenas de dezenas de consumidores de histria. Consumidores, contudo, a quem a discusso sobre se a histria est entre fico ou cincia pouco importa.

    Para estes consumidores de histria, o discurso histrico no difere muito do literrio. As relaes entre as duas disciplinas no so nem hierrquicas, nem diretas. Ou seja, no seu significante o texto de histria um produto, submetido s condies sociais, culturais e econmicas de sua produo. O au-tor, por sua vez, lhe d o sopro gerador enquanto o leitor o ressignifica.34 Com a diferena que o so-pro gerador que lhe insufla o historiador passa por uma srie de regras do ofcio: a pesquisa documen-tal, a crtica interna e externa da documentao, a interpretao das informaes trazidas pelas fontes, o dilogo com os especialistas do assunto, a incluso de notas e referncias, e, finalmente, o preenchi-mento de uma lacuna. Ou seja, como a literatura, a histria , tambm, um processo vivo de produo, circulao e consumo de discursos.35 Como o romance, a histria conta. E contando, ela explica. Como o romance, a histria escolhe, seleciona, simplifica, organiza, reduz um sculo a uma pgina. A diferen-a, sublinharia Paul Veyne, que a histria um romance; mas um romance de verdade [...] e os his-toriadores contam eventos verdadeiros que tm o homem por ator.36

    A partir desta constatao, historiadores brasileiros tero que repensar que tipos de texto produziro e entre eles, qual seria o papel da biografia histrica, to eficiente para dar a conhecer o passado. Agora, no mais para atender exclusivamente s exigncias hermticas da Academia, mas, tambm para responder a uma exigncia ou demanda social. H milhares de leitores para um tal produto cultural. No h nada de anedtico nesta iniciativa, se ela for realizada no cumprimento das exigncias da profisso. Se ningum contesta o talento de tantos romancistas e jornalistas que se aventuraram a escrever biografias histricas, por que recusar a pertena ao domnio literrio aos bigrafos que so historiadores de formao?

    J ensinava Pierre Goubert, ao escrever uma das obras mais importantes da historiografia francesa: Quero escrever um livro para meus amigos e netos lerem sem irritao, nem tdio. E o antdoto con-tra o tdio seria a capacidade de produzir textos que do a ver. Textos que reencontrem o tempo per-dido, que chamem cena os fantasmas da histria, que tenham capacidade de conversar com os mortos. Que permitam a magia de entrar na vida de outrem e que faam dos historiadores, caadores de almas capazes de encantar os leitores graas s biografias histricas.

    Notas

    1 La biographie, cette handicape delhistoire, in Magazine Litteraire, no 264, avril, 1987, p. 85-86.2 Vrios autores trataram deste momento charneira na histria ocidental. Vejam-se, por exemplo, Norbert Elias, La socit des individus, Paris, Fayard, 1991, Michel Foucault, Le souci de soi, terceiro volume de Histoire de la Sexualit, Paris Galli-mard, 1987, Charles Taylor, Sources du moi. La formation de lidentit moderne, Paris, Cerf, 1979, Tzvetan Todorov, loge de lindividu Essai sur la peinture flamande de la Rennaissance, Bruxelas, Adam Biro, 2001, Jean-Claude Kaufmann, Ego. Pour une sociologie de lindividu, Paris, Nathan, 2001.3 Sobre o tema ver Frdric Briot, Usage du monde, usage de soi Enqutes sur les mmorialistes dAncien Regime, Paris, Seuil, 1994. Marc Fumaroli, Les Mmoires du XVIIe sicle au Carrefour desGenres en Prose, XVII Sicle, 1971, nos 94-95. Georges Gusdorf, Lignes de vie 1 Les critues du moi e Lignes de vie 2, Auto-bio-graphie, Paris Odile Jacob, 1991. 4 Paul Ricoeur, Temps et Rcit, t. I, Paris, 1983, p. 147.5 Em entrevista revista Nouvelles Litteraires, Zweig dizia que, para ele, a literatura era um meio de exaltao da existncia, um meio de tornar mais claro e inteligvel o drama da vida.

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    6 Sobre as autobiografias do sculo XX, ver Claire de Ribaupierre, Le roman gnalogique Claude Simon et Georges Perec, Bruxelles, Editions de la Part de loeil, 2002 e Dominique Viard (org.), Paradoxes du biographique, Revue des Sciences Hu-maines, no 263, 2002. O clssico livro de Jean Starobinski, La transparence et lobstacle, analisa do ponto de vista da histria da literatura as relaes entre Rousseau e suas memrias como uma autobiografia. 7 Un destin, Martin Luther, Paris, PUF, 1928, reedio 1988.8 Le problme de lincroyance au XVIIe sicle. La religion de Rabelais, Paris, Albin Michel, 1942.9 Ver seu Combats pour lHistoire, Paris, Armand Collin, 1953.10 Ver seu excelente Le pari biographique. crire une vie, Paris, La Dcouverte, 2005.11 Pierre Bourdieu, in Lillusion biographique, Actes de la Recherche en Sciences sociales, 62-63, juin 1986, investe con-tra a subjetividade das biografias e em favor das vrias histrias possveis de vida para cada agente social. Mas o autor igno-ra a crtica de excessiva objetividade.12 In Actes RSS, no 62/63, LIlusion Biographique, p. 69-72. 13 Le Goff, Jacques Comment crire une biographie historique aujourdhui, Le Dbat 54 (1989) 48-53.14 Le Goff, Jacques, Saint Louis, Paris, Gallimard, 1996.15 Wachtel, Nathan, La foi du souvenir: labyrinthes marranes, Paris, Seuil, 2001.16 Foucault Michel, Moi, Pierre Rivire ayant gorge ma mre...Galimard/Julliard, 1973.17 Duby, Georges, Les proces de Jeanne DArc, Paris, Galiimard, 1973. 18 Davis, David Brion, Some recent directions in American Cultural History, AHR 73, fevereiro 1968, 696 et passim.19 Ver sobre o assunto Esprit 184 (aout-septembre 1992). Dossier Quand lhistorien se fait biographe: 25-59.20 Comment on crit lhistoire, Essai depistemologie, Paris, Seuil, 1971.21 Ambas traduzidas no Brasil pela Editora Nova Fronteira e publicadas respectivamente em 1951 e 1968.22 Sobre o tema ver Andre Lvesque Rflexion sur la biographie historique em lan 2000, Revue dhistoire de lAmrique franaise, vol. 54, no1, 2000, p. 95-102.23 L. Stone, Retour au rcit ou reflxions sur une nouvelle vieille histoire, Le Dbat, no40, 1980, p. 118-142.24 Sobre Braudel e as referncias marxistas e estruturalistas ver E.Le Roy Ladurie, Le territoire de lhistoiren, Paris, Gallimard, 1983.25 Quem discute o assunto o filsofo Paul Ricoeur em seu Temps et Rcit, tomo 1, Paris, Seuil 1983.26 P. Veyne, Comment on crit lhistoire Essay depistmologie, Paris, Seuil, 1971. 27 Nmero de maro/abril de 1988.28 M. Foucault, LArcheologie du savoir, Paris, Galiimard, 1969.29 M. de Certeau, LEcriture de lHistoire, Paris, Gallimard, 1975.30 Ver sobre o assunto Hayden White, Metahistory. The historical imagination in Nineteenth Century Europe, J. Hoopkins University Press, 1975. Narrative discourse and historical representation, J. Hopkins University Press, 1987.31 Ver de R. Chartier, Au bord de la falaise, Paris, Albin Michel, 1998.32 Recentemente Franois Hartog lanou seu Lvidence de lhistoire Ce que voient ls historiens, Paris, ditions de lcole des Hautes tudes, 2005 e Nikolay Koposov, De limagination historique, Paris, ditions de lcole des Hautes tudes, 2009.33 Caso da revista mensal Nossa Histria publicada pela Editora Vera Cruz.34 Empresto de Luis Felipe Barreto a expresso extrada de seu Literatura e histria, uma relao muito suspeita, in Geome-trias do Imaginrio, Rio de Janeiro, RBL, 2001, p. 197-210.35 Idem, p. 204.36 P. Veyne, Comment on crit lhistoire Essay depistmologie, Paris, Seuil, 1971.

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    Resumo

    A biografia, uma das primeiras formas de histria depois das dos deuses e de homens clebres , retm cada vez mais a ateno dos historiadores. Todavia, a moda da biografia histrica recente. Com efeito, at a metade do sculo XX, sem ser de todo abandonada, ela era vista como um gnero avelhantado, convencional e ultrapassado por uma gerao devotada a abordagens quantitativas e economicistas.Palavras-chave: biografia, histria, narrativa, romance histrico, indivduo.

    Abstract

    Biographies of mythological characters and heroes or simply of renown persons were primary forms of history. They are drawing nowadays a renewed interest from historians. The new fashion of biographies perceived as an approach to his-tory is though very recent. Indeed, up to the mid fifties, even if not totally set aside, historical biographies were consi-dered by the new breed of historians, quantitatively and econometrically oriented, as being old fashioned, conventio-nal and depassees.Keywords: biography, history, narrative, historical romance, individual.