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Instrumentos Musicais Populares Portugueses
1 edio, Lisboa,
Fundao Calouste Gulbenkian, 1964
2 edio, Lisboa,
Fundao Calouste Gulbenkian, 19823 edio, Lisboa,
Fundao Calouste Gulbenkian /
Museu Nacional de Etnologia, 2000
Instrumentos Musicais Populares dos Aores
1 edio, Lisboa,
Fundao Calouste Gulbenkian, 1986
FICHA TCNICA
Direco Editorial
Benjamim Pereira
Coordenao Editorial
Fundao Calouste Gulbenkian /
Museu Nacional de Etnologia
Reviso de Textos
Benjamim Pereira, Joaquim Pais de Brito, Miguel Sobral
Cid, Paulo Maximino
Transcries Musicais
Carlos Guerreiro, Domingos Morais,
JosPedro Caiado, Pedro Caldeira Cabral,
e Rui Vaz
Concepo Grfica
Metropolis - Design e Comunicao
Execuo Grfica Musical
Artur Carneiro - Edies Musicais
Pr-Impresso, Impresso e Acabamento
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SIG - Sociedade Industrial Grfica
Tiragem
2500 exemplares
ISBN
972-666-075-0
Depsito Legal
Ernesto Veiga de Oliveira
e Fundao Calouste Gulbenkian
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Na presente edio pretendemos, tanto quanto possvel,
manter intactas as ideias fundamentais que Ernesto Veiga
de Oliveira teve oportunidade de expressar na preparao
das duas edies anteriores desta obra. Assim, foram
tomadas em considerao as alteraes introduzidas peloautor nos trabalhos de reedio do texto primitivo, o que
inclui a insero de novos textos publicados aquando da
segunda edio da obra, para alm das observaes de
Veiga de Oliveira relativas a esta ltima.
De qualquer forma, e tendo em conta o perodo de quase
duas dcadas que medeia entre a segunda edio e a
presente, foram assumidas opes editoriais que pensmos
to oportunas como enriquecedoras para a leitura desta
obra.
Neste sentido, e no que se refere insero de textos,
decidimos incorporar nesta nova edio a obra
Instrumentos Musicais Populares dos Aores, assinada pelo
mesmo autor e atagora publicada em separado, e, para
alm das notas preambulares da Fundao Calouste
Gulbenkian e do Museu Nacional de Etnologia, um
apontamento de Benjamim Pereira, colaborador prximo de
Ernesto Veiga de Oliveira, acerca da constituio da
Coleco de Instrumentos Musicais Populares Portugueses
que, a partir deste momento, ficarna posse do Museu
Nacional de Etnologia.
Por outro lado, sofreu remodelao o captulo Guitarra
Portuguesa, da autoria de Pedro Caldeira Cabral,
procedendose igualmente alterao das respectivas
fotografias, que receberam numerao individualizada das
restantes (GP1, GP2, GP3, GP4).
Do mesmo modo, as partes referentes a exemplos musicais
(Continente e Aores), que passaram a ser apresentadas em
corpo nico imediatamente a seguir ao texto
correspondente a cada uma das regies.
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Foram actualizados os nomes de museus e outras
instituies referidos no texto das edies anteriores
que actualmente tm outra designao.
No que se refere s reprodues fotogrficas
apresentadas, haver que referir as seguintes opes
encontradas:
- Alterao da ordem das fotografias e consequentemente
da sua numerao, tendo em vista uma relao mais
adequada com o texto;
- Remodelao e actualizao de legendas, incluindo a
referncia s medidas dos instrumentos (em centmetros) e
data das fotografias de campo pertencentes ao arquivo
do Centro de Estudos de Etnologia;
- Supresso das fotografias que na 2. edio receberam
os nmeros 87 (o mesmo pastor que toca flauta na imagem
246 da presente edio) e 110 e 121 (dado o estado actual
de conservao das peas representadas no aconselhar a
sua reproduo);
- Supresso das fotografias nmeros 3 a 8 de Instrumentos
Musicais Populares dos Aores (jpresentes na parte da
obra correspondente regio continental);
- Substituio de todas as reprodues fotogrficas a
preto e branco, excepo das fotografias de terreno e
das que receberam os nmeros 126, 127, 140, 141, 208,
209, 210, 216, e 222, por novas reprodues a cor, onde
se incluem 5 exemplares inditos (20, 37, 90, 185 e 186);
Por ltimo, serde sublinhar que todos os instrumentos
reproduzidos cuja legenda no menciona a sua pertena e
provenincia fazem parte do acervo do Museu Nacional de
Etnologia.
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Dezembro de 2000
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A publicao do presente livro reveste-se, para a
Fundao Calouste Gulbenkian, de um duplo significado. O
primeiro , evidentemente, o que advm da reposio de
uma obra no catlogo de edies do Servio de Msica que,
passados quase 40 anos desde a sua primeira edio,continua hoje a ser uma das fontes mais importantes da
organologia popular portuguesa. A comprov-lo est a
procura que esta obra desde sempre conheceu no que
respeita quer sua primeira edio, de 1964, quer
segunda, j de 1982, assim como o interesse na sua
reedio manifestado constantemente pelos investigadores
e por parte do pblico. E porque desde sempre se
considerou que o livro Instrumentos Musicais Populares
dos Aores, publicado em 1986, seria um complemento deste
primeiro trabalho dedicado ao Continente, optou-se agora
por reunir num slivro os dois estudos do autor sobre os
instrumentos populares portugueses.
Por outro lado, reedio deste livro acresce,
complementarmente, um facto no menos importante: a
oferta ao Museu Nacional de Etnologia da coleco de
instrumentos musicais populares portugueses pertencente,
at aqui, Fundao Calouste Gulbenkian, o que ir
proporcionar o acesso pblico permanente a um esplio de
grande interesse e nico em Portugal. Trata-se de um
conjunto de exemplares recolhido por Ernesto Veiga de
Oliveira a pedido da Fundao, paralelamente ao trabalho
de campo que este investigador realizou no incio da
dcada de sessenta, e de que resultaria a publicao da
primeira edio da presente obra.
Serigualmente de realar a colaborao, neste projecto,
entre a Fundao Calouste Gulbenkian e o Museu Nacional
de Etnologia, tipo de parceria que desejaramos fosse
modelar no desenvolvimento de futuros projectos
envolvendo instituies que tm entre os seus objectivos
prioritrios a difuso da cultura portuguesa.
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, pois, com satisfao que a Fundao Calouste
Gulbenkian v concludo este projecto, que certamente
contribuir para a sedimentao entre a actual
investigao etnomusicolgica e o pblico em geral da
memria de Ernesto Veiga de Oliveira que, de uma formato apaixonada como competente, dedicou a sua vida ao
estudo das tradies musicais do nosso Pas.
Lisboa, Dezembro de 2000
JosBlanco
Administrador
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Os anos de pesquisa que conduziram constituio da
coleco dos instrumentos musicais populares - e ao livro
que os deu a conhecer - so extremamente significativos
para a compreenso da histria da etnologia em Portugal e
do Museu Nacional de Etnologia. A equipa que em tornodeste se constituiu e que, jdesde 1947, percorria o
Pas e procedia a levantamentos de carcter sistemtico
sob a coordenao cientfica de Jorge Dias, definira
metas nas quais a recolha e o estudo dos instrumentos
musicais se vieram a inserir de modo singular. Os
objectivos primeiros haviam sido, para este grupo de
etnlogos, o levantamento e o estudo sistemtico de
tecnologias, tcnicas e instrumentos de trabalho de uma
sociedade rural em transformao e com eles dar conta da
diversidade do pas e da sua histria. Foi esta a
referncia ltima de toda a investigao conduzida ao
longo de dcadas no mbito dos projectos do Centro de
Estudos de Etnologia com a extensa obra que reuniu, numa
equipa coesa, Jorge Dias, Margot Dias, Ernesto Veiga de
Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, para
referir os principais investigadores que, ataos dias de
hoje, conduziram investigao incidindo,
prioritariamente, sobre Portugal.
Vale a pena lembrar o prefcio de Ernesto Veiga de
Oliveira ao seu livro Festividades cclicas em Portugal
(1984) que, diferentemente dos outros estudos
monogrficos publicados, incide sobre um universo de
formas expressivas e ldicas mais caracterizvel pelas
sociabilidades e construo performativa da prpria
sociedade do que pelos artefactos ou documentos da
cultura material que, nos textos que compem esse seu
livro, nunca so o objecto central da pesquisa. Segundo a
evocao do autor aqueles textos tm na origem as pausas
e paragens em hospedarias ou casas particulares, em
noites e encontros de longas conversas depois de um dia
de pesquisa em torno das alfaias agrcolas; das formas
construdas e modos de habitar; das cadeias operatrias
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de um processo de trabalho, etc. Assim se foi
constituindo um corpus de informao muito vasto, depois
organizado nos textos monogrficos sobre as vrias
festividades do calendrio que, entretanto, eram lugar de
observao etnogrfica. A publicao da maioria dosoriginais ali reunidos em volume ocorre entre 1954 e
1960. ento que se inicia a recolha e o estudo dos
instrumentos musicais, por sugesto e proposta do Servio
de Msica da Fundao Calouste Gulbenkian, nos mesmos
anos em que se prefigura e prepara a criao do Museu de
Etnologia.
Na extensa obra dos investigadores do Centro, os
instrumentos musicais, assim como as festividades, podem
pois ser lidos como a erupo de formas que se no
confinam simples materialidade dos objectos, mas antes
permitem revelar dimenses mais complexas, humanizadas e
instveis das prticas de uma sociedade tradicional que
se procurava apreender e restituir a um conhecimento mais
alargado, e onde o papel do indivduo podia ser destacado
dos fenmenos mais gerais e categorias maiores que ajudam
a interpret-la. Torna-se aliciante pensar como este
patamar se desenha entre dois plos que vo da dimenso
mais colectiva e tambm mais recorrente e sistmica, - no
caso das festividades, - interveno individual,
criativa e, em algumas circunstncias, com estatuto de
marginalidade, dos executantes dos instrumentos musicais.
esta ltima dimenso que o texto de Benjamim Pereira
que acompanha a presente edio nos dtambm a conhecer,
junto com o relato das andanas pelo Pas nos anos em que
a pesquisa foi conduzida. Trata-se de um documento que,
pela primeira vez, permite aproximar-nos da dimenso mais
concreta e quotidiana das condies de uma investigao
no terreno, em Portugal, na primeira metade dos anos 60,
e que complementa com particular detalhe o que Ernesto
Veiga de Oliveira jescrevera aquando da segunda edio
deste livro, no seu texto Em busca de um mundo perdido
(1982).
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Quando o livro publicado (1964), a sua importncia ,
de imediato, realada pelo campo mais restrito de
especialistas que, simultaneamente, seguia as recolhas e
a primeira divulgao dos trabalhos de pesquisa de MichelGiacometti e Fernando Lopes Graa. Ambos vo ser, depois
da Revoluo de 25 de Abril de 1974, objecto e
instrumento de trabalho e de intensa projeco afectiva
da parte dos grupos de recolha que ento se constituem,
revelando as vozes e o canto de um pas em
redescobrimento. Assim foi com o Grupo de Aco Cultural
(1974), Almanaque, Brigada Victor Jara (ambos de 1975),
ou Terra a Terra (1977), entre os primeiros que surgiram.
este o contexto que ajuda a explicar como o presente
livro se torna a obra de referncia para todos aqueles
que fizeram e fazem o percurso de aproximao s formas
musicais, e s qualidades performativas em que estas se
produzem e so frudas. E tambm isso que faz com que
calorosas relaes pessoais se estabeleam entre o seu
autor, Ernesto Veiga de Oliveira, e os msicos,
colectores e animadores culturais que vm dar a sua
colaborao segunda edio dos Instrumentos ou a contar
com o seu apoio em edies discogrficas, como aconteceu
com o primeiro disco de Jlio Pereira, Cavaquinho (1981).
assim que o espao social que esta obra veio ocupar
demarca um territrio frequentado por etnlogos,
etnomusiclogos e por todos aqueles que, de algum modo,
enquanto msicos, divulgadores ou simples amadores se
debruam sobre os instrumentos e as formas musicais
tradicionais.
Um facto de grande importncia acompanha esta reedio
dos Instrumentos musicais populares portugueses, para
alm daqueles que decorrem de aspectos tcnicos e
editoriais traduzidos na incluso do livro Instrumentos
musicais populares dos Aores, no relato de Benjamim
Pereira, ou na reproduo a cor das imagens dos
instrumentos. Com ela a Fundao Calouste Gulbenkian fez
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a oferta ao Museu Nacional de Etnologia de todos os
instrumentos recolhidos e que eram, at ao momento,
propriedade sua em depsito no Museu. Assim se adensam os
sentidos de um percurso na histria desta instituio, da
prpria coleco e dos etnlogos que lhe estoassociados, fazendo convergir, no Museu que ajudaram a
criar e que os reuniu em torno dos mesmos projectos, toda
a documentao que resultou desses anos de pesquisa e de
toda a actividade que entretanto foi desenvolvida em
torno desta coleco. Ela tem sido objecto de inmeras
exposies, desde as primeiras na Fundao Calouste
Gulbenkian, em 1962 e 1964, a todas aquelas que se seguem
segunda edio do livro, entre 1983 e 1986, no Museu
Nacional de Etnologia e em vrias instituies e locais
do pas, ou, posteriormente, outras exposies em
Portugal e no estrangeiro onde alguns dos instrumentos
estiveram presentes.
Com esta nova situao ficaram criadas condies para o
estabelecimento de um programa de inventrio, que
acompanhou a mudana de estatuto que a doao trouxe, e
permitiu ja sua informatizao. Por outro lado tambm,
esta doao ocorre num momento de ampliao e
requalificao das reas de reserva e dos servios do
Museu e quando neste se esta dar particular importncia
aos estgios de investigao para jovens antroplogos.
Foi um deles, Paulo Maximino, quem agora se ocupou do
estudo dos instrumentos e do tratamento informtico do
seu inventrio, ao mesmo tempo que participou na recolha
de informao flmica que ajuda a documentar novas
situaes em que estes instrumentos continuam a ser
protagonistas. , pois, um privilgio fazer parte deste
projecto. Ernesto Veiga de Oliveira, com a terceira
edio deste livro, traz para o Museu os instrumentos
que, com Benjamim Pereira, recolheu exactamente quando o
prprio Museu tambm por eles estava a ser pensado. Por
isso, expressamos o mais forte agradecimento Fundao
Calouste Gulbenkian.
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Joaquim Pais de Brito
Director
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Em carta datada de 29/1/60 Jorge Dias comunicava a
Ernesto Veiga de Oliveira o seguinte:
My dear old boy!
Propus Gulbenkian fazer um estudo dos instrumentos
musicais populares em Portugal, mas disse que so podia
fazer com a tua colaborao e a da Margot. O estudo
envolve excurses e aquisio de instrumentos que tenham
interesse sob o ponto de vista meramente etnogrfico e os
que valham pela sua raridade ou ornamentao. Eu vi como
tu tens jeito para adquirir objectos no campo.
Disse que tu podias dedicar 4 meses em 1960 em trabalho
de campo, com a colaborao do Benjamim. Eu sfarei um
ms de excurses. Tu tens 4 contos mensais e o Benjamim
2. Fora disso tero 100$00 dirios por cabea como ajudas
de custo.
Temos 30 contos para aquisio de instrumentos!!
Temos a bibliografia estrangeira necessria adquirida
pela Gulbenkian, para fazermos depois o estudo terico. O
estudo ser feito em 1961 e teremos retribuio pelo
trabalho de gabinete.
As fotografias sero pagas pela Fundao!
Os trabalhos devem ser precedidos de um inqurito, feito
aos padres, professores primrios e informantes
conhecidos. Devemos pensar a srio a maneira de fazer o
inqurito. Convm faze-lo impresso, talvez com figuras e
de maneira que eles possam responder no prprio impresso.
Devemos mandar juntamente um envelope com a direco do
Centro jimpressa e respectivo selo, para no afugentar
respostas. A Fundao duns 3 contos para o inqurito.
A Margot e eu ajudamos nos trabalhos de gabinete e eu
farei um ms de trabalho de campo. Se fizermos isto bem,
o que julgo ser possvel, eles publicam um trabalho bem
ilustrado e isto pode ser o princpio de muitas outras
coisas que nos do prazer e nos do umas massas.
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Agora temos de pensar muito a srio na bibliografia dos
instrumentos: dicionrios estrangeiros de msica,
tratados e tudo que estiver escrito em portugus e
espanhol, no Brasil, sobre instrumentos musicais,
populares ou no.Tambm nos interessa iconografia, obras com esculturas de
igrejas que representam msicos, livros de trajos com
msicos, louas, azulejos, pinturas, etc., etc. Vamos
agarrar-nos a isto a srio...
Comea ja recolher bibliografia e manda-me que eu fao
o mesmo. Convm escrever a amigos a perguntar, ce no
estrangeiro.
Como isto este ano quase que sdtrabalho material, de
idas ao campo e organizar temos de fazer um ficheiro
especial e dossiers das respostas organizadas
geograficamente e por instrumentos para estabelecer
reas. Convm fazer quanto antes para iniciar as
excurses depois de termos informaes e informantes com
quem contactar.
Tu vais receber em breve um ofcio da Gulbenkian, pedindo
bibliografia sobre etno-musicologia portuguesa. V nos
ficheiros tudo que tenhamos que diga respeito msica,
canto, dana, instrumentos musicais, etc., de coisas
portuguesas. Infelizmente no sermuito, e possvel
que tenhamos lacunas graves, mas, Santo Antnio.
Vai fazendo um esquema que eu fao outro. Depois
encontramo-nos para conferenciar e tomar resolues
definitivas.
Bem meu velho, atbreve. Vamos meter os ombros empresa
e levar a coisa vitria.
Um grande abrao do teu Antnio.
P.S.: De resto combinou-se que vocs levaro um aparelho
de gravar o som, que ainda h-de vir a ser adquirido.1
O trabalho escrito ficou-me confiado, mas eu penso
associar-te assim como a Margot, sobretudo se ele fizer o
estudo dos timbres dos instrumentos e da difuso de
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alguns. De contrrio seremos ns dois. O trabalho de
redaco serpara o ano. Creio que pudemos fazer uma
coisa catita2
Dando corpo a este programa foram redigidas as perguntas
constantes do Inqurito e este enviado, de 26 de Maro
a 11 de Abril de 1960, a mais de 3.700 entidades
procos, professores primrios, pessoas conhecidas e
outras julgadas qualificadas, recobrindo praticamente
todas as freguesias do pas incluindo as ilhas da Madeira
e Aores.
Foram recebidas cerca de 1.500 respostas, submetidas de
imediato a uma sistematizao regional e tipolgica. Em
simultneo, desenvolvia-se um ficheiro bibliogrfico,
musical e iconogrfico sobre esta temtica.
Os resultados deste primeiro passo no constituram, de
facto, um contributo vlido, e, na sua quase totalidade,
foi praticamente nulo, tendo-nos obrigado a deslocaes
repetidas e totalmente improfcuas. Como refere Ernesto
Veiga de Oliveira
(...) com essa metodologia, o panorama msico-
instrumental do Pas, alm de viciado por informaes
descriminadas, apresentava-se como uma floresta profusa e
desordenada: por toda a parte se encontravam praticamente
todas as espcies de instrumentos; no vamos como
definir o fio condutor que tivesse um significado
expressivo, e o nosso trabalho no conduzia a nenhures.
Foi ento que, ao mesmo tempo que pusemos totalmente de
lado aqueles questionrios e passmos a praticar o
inqurito directo por contacto, convvio e participao
com as pessoas implicadas no fenmeno musical das
diferentes terras, formulmos a regra que permitiu
iniciar as nossas actividades de pesquisa e recolha, e
que nos orientou seguidamente todo o tempo: procurar
determinar no propriamente os instrumentos que existiam
e se usavam em cada terra, mas sim aqueles que
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integravam, tinham significado ou se relacionavam com as
formas e ocasies musicais caractersticas das diversas
reas. Essa nova orientao que decidimos dar ao nosso
trabalho, iniciou-se numa povoao dos arredores de Viana
do Castelo, quando, em boa-hora, samos, beira dodesnimo definitivo e da desistncia de poder levar a
cabo a tarefa que gizramos, da casa de mais um proco
que respondera ao nosso inqurito sem qualquer
preocupao de exactido, indicando que ali se usavam
tambores, e resolvemos ir loja do vendeiro da terra
falar com as gentes, entre dois copos, e saber o que eram
esses tambores e demos de chofre com a revelao do
reino dos Z-Pereiras da Ribeira Lima, anunciando a
riqueza fabulosa que iramos seguidamente encontrar pelo
Pas fora.
A partir da, formas musicais, tocadores, instrumentos,
muitas vezes ainda por desvendar, foram o nosso
quotidiano, a nossa luta, os nossos amigos, a nossa
alegria, o nosso rumo3
Precisando melhor, em Fevereiro de 1960, realizaram-se
trs viagens prospectivas com a participao de Ernesto
Veiga de Oliveira e de mim prprio, a primeira, de 2 a 3,
do Porto a Terras de Basto; a segunda, de 8 a 14 (a nica
em que fomos acompanhados por Jorge Dias), do
Porto/Lisboa/Alentejo/Algarve; e a terceira, a 20, do
Porto regio de Viana do Castelo, num total de 1.620
quilmetros.
A partir do ms de Agosto os trabalhos conhecem uma
orientao mais segura, visando sobretudo surpreender os
tocadores nos espaos festivos. Assim, de 13 a 15 desse
ms estivemos no terreiro de S. Bento da Porta Aberta, em
Terras de Bouro; de 22 a 26 no Soajo e Peneda; de 4 a 9
de Setembro, novamente na Senhora da Peneda e Terras de
Basto; de 16 a 17, em Vila Nova de Cerveira e Feiras
Novas de Ponte de Lima; e de 22 a 29 do mesmo ms em
Terras de Basto e Amarante por motivo da Feira de S.
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Miguel, em Cabeceiras de Basto, e do conjunto
instrumental da chula.
Devido importncia de que se revestia essa forma
musico-instrumental volvemos a essa regio de Basto e
Amarante nos dias 6 e 12/17 de Outubro e finalmente, a 13de Novembro, de novo a S. Simo de Amarante por causa da
aquisio de uma rara rabeca chuleira, num total de 3.900
quilmetros.
Estas experincias de campo permitiram-nos ajuizar das
dificuldades que um trabalho desta natureza representava.
Por um lado, a escassez e mesmo raridade das espcies
ainda existentes; por outro, a incerteza e deficincia de
informes teis sobre o seu paradeiro, o seu contexto e
sentido etnogrfico.
De acordo com princpios estabelecidos procurou-se
determinar, e em seguida adquirir, os exemplares mais
representativos. E, de um modo geral, esse objectivo
comeou a ser atingido e, no final desse primeiro ano,
obtiveram-se 40 instrumentos, que custaram 11.160$00.
A ttulo de exemplo refira-se a aquisio de uma velha
harmnica que encontrmos nas mos de um tocador na
romaria da Senhora do Viso, em Celorico de Basto, que
mostrava, na sacristia da capela, um amontoado de
varapaus dos romeiros, cujo uso era interditado pela GNR
durante o perodo festivo. Um conjunto instrumental dos
Z-Pereiras composto de gaita-de-foles, bombo e caixa, de
fustes profusamente decorados, com medalhes e legendas
pintadas, da regio de Paredes de Coura, que havamos
seleccionado de entre cerca de 100 tocadores que actuaram
nas Feiras Novas de Ponte de Lima. Um cavaquinho e uma
viola chuleira feitas por um fabricante no
especializado, da regio de Basto, que com pouco mais do
que as suas mos privilegiadas, conseguia fazer
instrumentos de excepcional qualidade.
Importa referir o caso de uma rabeca rabela de Amarante,
que constitua uma inestimvel pea de artesanato da
regio, perdida ento para a coleco aps os mais
porfiados esforos e delicadas diligncias pela nossa
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parte, devido ao modo lamentvel como a questo foi
assumida e encaminhada por pessoas que nela eram parte e
cuja resoluo final sfoi alcanada em 1962.
A rabeca pertencia ento a Eduardo Monteiro Guedes que a
havia cedido ao Abade de Lufrei, por ocasio da actuaodo Rancho Folclrico da Reguenga naquela aldeia, tendo em
vista uma possvel incluso deste instrumento no conjunto
musical daquele grupo.
A oferta de 500$00 que fizemos ao Sr. Eduardo complicou a
situao. Foram certamente tomadas decises unilaterais
que a diferena do status social das duas personagens
envolvidas favoreceu. As diligncias junto do Abade no
lograram o menor esclarecimento e, pelo contrrio,
conduziram exaltao de uma postura farisaica a que
este se remeteu, de humlimo servo e paladino
indesmentvel da palavra e compromissos assumidos. A
nossa persistncia, conjugada com o facto daquela rabeca
se ajustar mal ao repertrio musical daquele grupo
permitiu, graas tambm interveno do Eng. Henrique
Nogueira de Oliveira, Tio de Ernesto Veiga de Oliveira, a
incorporao desse magnfico exemplar na coleco.
No decurso da investigao, nesse primeiro ano, tivemos
ocasio de conhecer, visitar e dialogar com alguns
violeiros e fabricantes locais que nos forneceram dados
de interesse sobre a sua arte, tipos e particularidades
das espcies tradicionais da regio e costumes a elas
ligados.
Resumindo, no ano de 1960 gastmos 37 dias em trabalhos
de campo e 38 na elaborao e organizao do inqurito e
respectivas respostas, recolha de elementos
bibliogrficos, iconogrficos e trabalhos acessrios.
As prospeces e busca de instrumentos em 1961 assentaram
num plano que estabeleceu uma diviso do pas em
correspondncia com um determinado nmero de regies
msico-instrumentais, de acordo com as formas e
manifestaes musicais caractersticas de cada uma, e o
instrumento ou conjunto instrumental com que estas eram
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realizadas. Assim, definimos, no Noroeste, o conjunto dos
Z-pereiras e das rusgas minhotas; no Baixo Douro e
Tmega, a chula rabela; no leste de Trs-os-Montes, em
Terras de Miranda e Vinhais, os gaiteiros e
tamborileiros; na regio de Coimbra, os gaiteiros e ofado; na Beira Baixa, os Bombos de Lavacolhos e
Silvares; no Baixo Alentejo, o tamborileiro e a viola
campania; em todo o leste do Pas, o pandeiro
quadrangular e a flauta; em Lisboa, o fado; como
instrumentos de uso geral e menos caractersticamente
populares, os cordofones de tuna.
Dentro do mesmo esprito, estabelecemos tambm sries de
outros tipos de instrumentos, que respeitam no
propriamente msica, mas a determinadas celebraes,
constitudas na sua maior parte por pequenas espcies
idiofnicas, feitas pelos prprios ou por amadores
locais, de grande variedade regional, mas que pudemos
ordenar de modo coerente e compreensvel, agrupando-as,
conforme as suas funes, em instrumentos da Semana
Santa, do Carnaval, Serrao da Velha, Assuadas e Troas,
e instrumentos profissionais.
Foi a partir deste plano que orientmos as nossas
exploraes sistemticas. Constatmos a iminncia do fim
da nossa tradio musical popular e, com ele, do total
desaparecimento de todo o variado e pitoresco
instrumental em que ela se apoiava, que, em muitos casos,
foi j extremamente difcil de encontrar. O grande
problema, que sobrelevou todas as demais consideraes,
continuou a ser o da raridade dos instrumentos; por isso,
perante as espcies que buscvamos envidmos todos os
esforos, j por esclarecimento e persuaso, j
oferecendo um preo convincente, exagerado mesmo por
vezes, quando tal foi o nico meio, para as tentarmos
obter. E na verdade, conseguimos, muitas vezes custa de
um verdadeiro trabalho de deteco, de diligncias
repetidas, insistentes e delicadas, que sabandonmos
perante o objecto ou a certeza da sua destruio,
adquirir todas as peas cuja existncia nos foi
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assinalada e que podiam interessar constituio da
coleco.
Na execuo deste plano, os trabalhos de campo, no
decurso de 1961 constaram sobretudo de cinco grandes
sadas no Pas, em busca dos instrumentos que peloprocesso descrito, havamos identificado nas vrias
regies que amos percorrer, procurando delimitar as suas
reas respectivas; e tambm, simultaneamente, recolher
todos os elementos que lhes dissessem respeito. De 28 de
Fevereiro a 5 de Maro, regio do Douro e Trs-os-
Montes, numa primeira prospeco e tomada de contacto,
para conhecimento dos instrumentos ali usados ou
existentes, de que logo adquirimos algumas espcies,
nomeadamente vrias flautas e uma gaita-de-foles feita
pelo gaiteiro-filsofo de Travanca, Mogadouro, que nos
revelou o segredo esotrico da gaita-de-foles: Eles
dizem que sou meio maluco e meio bbado; mas eu sei que
para tocar bem a gaita no bastam os dedos como os outros
pensam: necessrio alegria e amor do prximo; e tambm
lcool do esprito. De 9 a 17 de Maro, Beira Baixa e
novamente a Trs-os-Montes donde jtrouxemos um grande
nmero de espcies adufes, flautas, sarroncas e
instrumental dos Bombos beires, pfaros, pandeiros, o
instrumento do tamborileiro transmontano e parte do dos
gaiteiros e pauliteiros da regio, em especial a
magnfica gaita-de-foles de feitura pastoril local, que
pertencia ao gaiteiro JosJoo da Igreja, de Ifanes, e o
tamboril e flauta, do Virglio Cristal, de Constantim, em
Terras de Miranda. Lembro o primeiro encontro com o
Virglio Cristal, em sua casa, quando se ocupava na
feitura de uma capa de honras mirandesa. Na altura, a
prtica musical cara em desuso e valeu a nossa
insistncia para ele se esforar na busca do tamboril,
escondido num recanto junto da chaminda cozinha. Como
em tantas outras situaes o acto de cedncia no foi
fcil. Os argumentos culturais que defendamos criaram-
lhe um certo embarao e, para encurtar razes, pediu
250$00 por ele. Quando, de imediato se deu conta que
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aceitvamos essa proposta ficou aflito e recusou-se a
receber essa importncia alegando que o instrumento no
tinha esse valor. Fizera-o para se livrar da nossa
solicitao. Esse primeiro contacto selou uma amizade de
toda a vida. Quando o importunmos para vir a Lisboa,participar num concerto de tocadores, realizado na
Fundao Gulbenkian no dia 20 de Outubro de 1962,
confrontado com a premncia dos trabalhos do calendrio
agrcola, declarou-nos: Eu vou! Eu pelos senhores dava o
sangue das minhas veias!. Ainda em Terras mirandesas
conhecemos o tocador de pfaro Manuel Incio Joo, que
vivia com a mulher, em Gensio. Encontrmo-lo pela
primeira vez, numa manh, onde nos recebeu, na cozinha.
Antes de responder s nossas solicitaes musicais foi
buscar um chourio e uma caneca de vinho, ps uma sert
na trempe, sobre o fogo da lareira e fritou o chourio s
rodelas. A mulher, de negro, modos reservados
contrastando com a exuberncia do marido, advertiu-o de
que era Quaresma e no se podia comer carne. A esta
observao ele respondeu cravando uma das rodelas com o
garfo e oferecendo-a ao Ernesto dizendo: Toma la
hostia. S depois de comermos e bebermos que foi
buscar a flauta e nos surpreendeu com a sua musicalidade
e vitalidade. Combinmos novo encontro e uma gravao em
Miranda do Douro, dado que, nessa altura, no havia ainda
rede elctrica na aldeia. Foi tambm nesta viagem que
obtivemos o pfaro do Jacob Fernandes, de Duas Igrejas.
Numa primeira visita esse objectivo gorou-se pela infeliz
interferncia do Pe. Antnio Mourinho que, na qualidade
de director do Rancho dos Pauliteiros daquela aldeia,
exerceu uma manifesta coaco sobre aquele elemento do
grupo. Tratava-se, na verdade, de uma pea notvel que
testemunhava certas caractersticas da esttica regional
e por isso oferecemos uma soma excessiva. Mas ento, as
razes alimentadas por um certo folclorismo e mais uma
vez a diferena de status dos interventores jogou em
nosso desfavor. O desfecho favorvel resultou da
interveno aguerrida da esposa do Jacob que no teve
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contemplaes com o Padre. Foi tambm nesta viagem que
conhecemos o Tio Rebanda, de Mazouco, pastor solitrio
conhecido pela profunda paixo que mantinha com a sua
flauta, companheira de todos os instantes livres. Para
maior comodidade de a transportar no bolso construiu umexemplar desmontvel em trs partes. Fomos encontr-lo,
velho e apagado, sentado num degrau de escada, na sua
recente condio de homem casado com uma jovem mulher,
que certamente cobiou as courelas que uma vida de grande
parcimnia permitiu obter. A mulher, quando percebeu que
a flauta nos podia interessar, trouxe-a com a maior
solicitude e p-la nas mos do marido. Este, quase cego,
teve a maior dificuldade em montar os trs elementos e,
levando-a boca, no conseguiu retirar dela o menor som.
A flauta estava ressequida e pediu um copo de aguardente,
que partilhou com ela, derramando uma parte na flauta e
bebendo o resto. Os dedos, hesitantemente, reencontraram
algum domnio sobre o fio musical e, pela ltima vez,
atravs desse instrumento, o velho mundo do silncio
pastoril acordou e iluminou esse dramtico momento.
De 3 a 14 de Abril, volvemos ao Alentejo e Beira Baixa,
numa sada particularmente frutfera, em que, entre
outros instrumentos sarroncas, flautas, etc. -,
encontrmos, adquirimos, estudmos a actuao e gravmos
a msica da viola campania e do tamborileiro alentejano,
dois casos praticamente ignorados pela investigao,
extremamente raros e em vias de total desaparecimento,
que conseguimos documentar completamente. A nossa visita
coincidiu com a festa de Nossa Senhora das Pazes, a 9 de
Abril, em Vila Verde de Ficalho, onde figura esse
elemento. Recordo a visita casa do tamborileiro Antnio
Maria Cuco, de Santo Aleixo da Restaurao, a sua extrema
modstia e esmero, de uma sdiviso, com cho de xisto
lmpido e paredes contrastantes na brancura da cal, a
cozinha na superao rara dos sinais do fogo, a um dos
lados e, no oposto, a cama num arranjo de dia festivo.
Neste cenrio da maior simplicidade destacava-se uma
pequena arca de pinho que o Antnio Maria abriu pondo a
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descoberto a dignidade da sua pobreza, o cheiro das ervas
que perfumavam as roupas e, num escaninho, como um bem
precioso, o pfaro que agora integra esta coleco. Foi
tambm nessa altura que tivemos ocasio de ver o pfaro
do tamborileiro das festas de Santa Maria de Barrancos eque encetmos as delicadas diligncias que conduziram
sua ulterior oferta pelo povo dessa vila. Foi ainda nesta
viagem, a 6 desse ms, que tivemos a ventura de conhecer
o saudoso amigo Jorge Montes Caranova, de Peroguarda,
Beja, um dos ltimos exmios tocadores de viola
campania, que encontrmos pela primeira vez numa fbrica
de moagem em Santa Vitria, onde trabalhava.
Acerca de um programa televisivo que teve lugar em
27/6/1961 nos estdios da Serra do Pilar, em Vila Nova de
Gaia, sobre instrumentos musicais populares, realizado
por Jorge Listopad com a participao de Ernesto Veiga de
Oliveira, transcrevemos a seguinte carta:
Santa Vitria, 30 de Junho de 1961
Exm. Senhor
Ernesto Veiga de Oliveira
Estimo que esteja bem de sade assim como todos de sua
famlia, que eu ao escrever-lhe fico bem graas a Deus e
minha famlia.
Vou escrever-lhe o que jdevia ter feito hmuito tempo,
para lhe agradecer a sua lembrana o que no me passava
pela ideia, primeiro recebi o retracto, com a viola
campania. Todos de casa ficaram muito contentes, pois
mandei logo no outro dia para Lisboa para trs filhas que
tenho lo verem. Ficaram muito satisfeitas em ver o
retracto assim naquelas condies porque quando eram
pequeninas ouviram aquele instrumento eu a tocar e elas
ao p, agora jso homens e mulheres recordam o passado.
Senhor Ernesto um dia estava aqui a trabalhar chegou aqui
um amigo nosso com o bocadinho de jornal e a fotografia
falando da viola campania4. Eu disse-lhe o que havia
passado e ele conheceu antes tanto que veio trazer.
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Depois ao fim de tempo recebo o vosso postal dizendo que
ia eu aparecer na televiso s 20 horas e 10 minutos.
Contei aos patres eles ficaram outra vez de volta da
farinha e eu fui a Ervidel. s 20 horas e 30 minutos
comearam a falar no Porto. Logo vi o senhor a falar,fiquei muito contente. Eu dizia, aquele senhor que
representa todas estas coisas que esto aparecendo no
Porto. Depois apareceram violas campanias, uma delas
dava ares de uma como a minha, estava muita, muita gente
para ver, como eu dizia que eu ia aparecer, todos
satisfeitos, uns chamaram outros que vinham j perto.
Depois acabou, ficaram com pena de no ver. Mas de tudo o
que vi, ouvi o senhor a falar desempenadamente sem a
lngua se enrolar nem se embaraar em nada dizer, tantas
palavras tudo muito bem conversado. Gostei mais de ouvir
do que eu aparecer. Pessoas que estavam a trabalhar nos
altos fornos, que estavam a ver a televiso ouviram falar
no meu nome e viram, mandaram dizer s famlias.
Se fizer alguma exposio em Lisboa faa favor mande
dizer para os meus irem ouvir.
A descrio que vinha no Jornal mesmo assim, esttudo
muito bem dito.
Esta tarde se tivesse uma viola ia com outros
companheiros entreter um bocado que domingo. Por favor
recomende por mim muito ao senhor Benjamim.
Termino a minha carta pedindo-lhe desculpa e agradecendo
a vossa lembrana.
Receba muitas saudades e aperto de mo deste muito amigo
Jorge Montes Caranova, natural de Peroguarda.
De 2 a 14 de Maio fomos pela terceira vez a Trs-os-
Montes e Beira Baixa, e pela segunda ao Alentejo a fim de
recolher vrias espcies negociadas nas visitas
anteriores, adquirir outras ento identificadas,
estimular ou insistir nas diligncias combinadas e fazer
fotografias e gravaes. A data desta excurso fora
fixada de acordo com as festas de Santo Antnio, em Santo
Aleixo da Restaurao, no primeiro domingo de Maio, e
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aproveitmos para ir a Barrancos buscar o pfaro que,
aps delicadas negociaes, nos fora oferecido. Como
exemplo da cuidada metodologia que utilizmos na
organizao deste trabalho, transcrevemos a carta que
ento dirigimos Comisso da Festa de Santa Maria deBarrancos, expedida do Porto em 18 de Abril de 1961:
Tendo ponderado devidamente certas razes que no nos
ocorreram na ocasio em que nos foi comunicado o parecer
de alguns dos membros dessa Exm. Comisso acerca do
nosso pedido de cedncia do pfaro que faz parte do
tamborileiro que compete a essa festa, vimos novamente
perante a mesma Exm. Comisso, pedindo vnia para
comentar alguns dos motivos alegados naquela ocasio, e
expor as referidas razes.
Como a tivemos ocasio de dizer, o instrumento em
questo constitui uma pea de considervel interesse
etnogrfico, tanto como um exemplo notvel de arte
pastoril, como e foi esse aspecto que justificou as
nossas diligncias um espcimen excepcionalmente
formoso do instrumental musical popular dessa rea. o
Alentejo uma terra de pastores, onde era corrente a
flauta pastoril, ornamentada segundo a arte da madeira
lavrada, ou bordada como ase diz, caracterstica das
regies de pastoreio em geral. Mas todas as formas
tradicionais vo acabando, e hoje, dessa arte to
significativa, jpouco mais resta do que a lembrana;
particularmente no campo da nossa investigao, em toda a
Provncia j no conseguimos recolher seno dois
exemplares pobrssimos, lisos e sem qualquer ornato, que,
com nosso profundo desgosto, iro representar, aos olhos
de toda a gente, a justamente famosa arte pastoril
alentejana, no campo dos instrumentos de msica.
Mas o pfaro de Santa Maria de Barrancos tem, sob o ponto
de vista etnogrfico, ainda um outro interesse: ele ,
com efeito, o testemunho de um elemento cultural da maior
importncia na nossa musicologia popular o Tamborileiro
alentejano, que nos parece constituir uma das formas mais
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arcaicas da msica, com a sua escala reduzida segundo as
possibilidades rudimentares do pfaro, e com a
reminiscncia muito sensvel do seu carcter ritual,
adstrito festa principal da Vila. Quer dizer, o pfaro
de Barrancos no s uma lindssima pea de artepastoril alentejana, mas o testemunho mais perfeito e
significativo de uma forma primordial da nossa msica
popular.
Foram estas duas razes, que, assim que nos foi dado
observar o referido instrumento, nos levaram a ousar
propor a sua aquisio, e que justificam agora a nossa
insistncia.
fora de dvida que uma tal pea, pelo seu interesse e
significado, tem a sua verdadeira projeco e o seu lugar
mais representativo, devidamente enquadrada num Museu de
Lisboa, onde pode ser visto por todos aqueles, estudiosos
ou amadores, nacionais e estrangeiros, que se interessam
por assuntos desta espcie. De resto, como ativemos
ocasio de acentuar, a cedncia do objecto, por parte do
povo de Barrancos, para a coleco que fomos encarregados
de organizar, no o privaria, de certo modo, desse mesmo
objecto: ele apenas se transferiria para onde pode ser
mais amplamente apreciado, sem deixar de, a, atestar
expressamente a sua terra de origem e os seus valores
regionais. Onde e no estado em que ele se encontra
presentemente na linda mas distante vila de Barrancos,
onde sai luz do dia uma vez por ano o
interessantssimo pfaro das festas de Santa Maria
completamente desconhecido da grande maioria para no
dizer a quase totalidade dos portugueses e ainda mais dos
estrangeiros. A nossa diligncia visava pois, uma vez
mais, neste caso particular, o interesse nacional e ato
interesse geral da cincia; e mesmo sob o aspecto
regionalstico, a valorizao justificada e exaltada de
uma modesta obra barranquenha.
com grande satisfao que consigno aqui o meu
reconhecimento pela compreenso que encontrei em todos os
membros dessa Exm. Comisso, que em relao ao que neste
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sentido lhe expus, espontaneamente me deixaram entender
que, a no atenderem a outras razes, gostosamente
concordariam em ceder a pea em questo para a coleco
que temos em vista. Por isso so essas razes que agora
passo a analisar.a msica popular um captulo de primordial importncia
no conjunto dos estudos da vida e cultura nacionais. No
que se refere ao seu instrumental respectivo, a maioria
dos pases j realizou devidamente a sua recolha e
arquivo; mas entre ns, segundo a lei dos tempos, as
coisas esto em vias de completo desaparecimento, sem
que, at hoje, se tenha feito nada no sentido de
conservar os seus tipos fundamentais, em vista da
investigao futura. Por isso, e conforme se diz na
circular que no incio do nosso empreendimento, foi
enviada, em nome da Fundao Calouste Gulbenkian a todas
as pessoas e entidades a quem houvemos por bem solicitar
informes sobre o assunto, por meio de um questionrio e
do qual juntamos, para conhecimento de V. Ex.as um
exemplar a iniciativa daquela Fundao reveste-se de
inegvel interesse nacional, tendo, por essa razo,
merecido a aprovao e o apoio moral do Ministrio da
Educao Nacional e do Patriarcado de Lisboa. Por isso
tambm o nosso empreendimento s possvel com a
compreenso, boa vontade, sentido patritico e
colaborao efectiva de todos aqueles que, nas diferentes
terras, possuam ou saibam da existncia de espcies que
interessam. Sem isso, como bvio, o nosso esforo
totalmente intil e impossvel. E -nos grato reconhecer
que, salvo muito raras excepes, encontramos por toda a
parte esse esprito de compreenso e colaborao que nos
permitem, no limiar das possibilidades, reunir ainda uma
coleco que, sem falsa modstia, reputamos excelente, em
quantidade, qualidade e significado etno-musical.
Verdadeiramente, entre as poucas peas representativas
que nos faltam, conta-se precisamente uma bonita flauta
ou pfaro pastoris alentejanos bordados como de
jus...
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Fomos encontr-lo em Barrancos; mas, segundo o que anos
disseram, a dificuldade em o obter reside no facto de os
seus detentores responsveis no puderem dispor dele,
porque ele lhes no pertence, mas sim a uma entidade
vaga, o Povo de Barrancos, que as pessoas com quemfalei foram incapazes de definir. Eu reconheci
imediatamente estas razes, mas de momento no me
ocorreram outras em seu seguimento: evidente que, no
pertencendo o pfaro Exm. Comisso, que apenas
depositria, ela no pode dispor dele, e nunca eu
solicitaria a ningum uma irregularidade dessas. Mas
totalmente fora de dvida que o pfaro tem de pertencer a
algum, pessoa individual ou colectiva, entidade definida
ou indefinida, particular ou pblica. A recusa foi fcil,
embora justa; mas ns agora pedimos alguma coisa mais:
que a Exm. Comisso procure, ainda que talvez
trabalhosamente a Fundao Calouste Gulbenkian tem
feito muita coisa boa pelos povos, merecendo por isso que
os povos tambm faam alguma coisa por ela, quando em
nome dela alguma coisa lhes solicitada definir quem
essa entidade que pode dispor do pfaro, e que lhes
apresente a nossa pretenso, por forma que ele possa
legitima e legalmente ser cedido para a coleco que em
tudo honra o pas.
Para o fim prtico a que ele se destina, o instrumento
francamente insatisfatrio; o prprio tamborileiro no-lo
disse, e pudemos comprov-lo quando agravmos os toques
da Alvorada e da Procisso. O pfaro estrachado e
excessivamente gasto, com fugas por onde o sopro se
escapa no sustentando o tom, e desafinando, e o tocador
cansa-se rapidamente e no aguenta a linha contnua da
frase musical; segundo o mesmo Senhor, dentro de muito
pouco tempo ele no poderser utilizado, e serposto de
parte. Por isso mesmo, e, de acordo com o que a
prometramos, na previso de uma deciso que gostaramos
de esperar nos fosse favorvel, enviamos agora mesmo um
pfaro que nos foi cedido pelo grupo dos Pauliteiro de
Crcio (Miranda do Douro), que escolhemos pela sua
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excelente qualidade sonora, experimentada na nossa frente
pelo seu autor, e que pedimos para desde jser entregue
ao tamborileiro de Barrancos, Senhor Antnio Torrado
Rodrigues para que este Senhor veja se se entende com a
sua afinao, de modo a que, caso o assunto se venha aresolver a nosso contento, as coisas estejam devidamente
previstas e solucionadas para a prxima festa. evidente
que isto no pretende compensar a eventual cedncia, por
parte de V. Exas., do interessantssimo instrumento
barranquenho, mas apenas obviar s dificuldades prticas
que ela poderia acarretar organizao das festas deste
ano. Repetindo o que adissemos, a nossa inteno era
entregar a V. Exas., alm disso, a importncia que
entendessem que o objecto poderia valer.
O sucesso desta pretenso determinou uma nova ida ao
Alentejo, de 14 a 16 de Agosto, para assistirmos, em
Barrancos, ao peditrio das festas de Santa Maria, para
as quais nos tinham convidado, e onde o tamborileiro tem
uma das suas intervenes mais importantes, que foi
amplamente documentada.
Fizemos tambm duas sadas do mesmo gnero mas de menor
mbito, ambas regio de Coimbra, de 7 a 9 de Junho e de
3 a 4 de Julho primordialmente para busca e estudo do
instrumental dos gaiteiros daquela zona, que adquirimos
uma gaita-de-foles de fabrico local, bombo e caixa. Os
gaiteiros de Barreira, Condeixa, aps haverem terminado a
sua prestao musical no complexo festivo da Queima das
Fitas, em Coimbra, regressaram pela madrugada sua
terra. Trouxeram consigo uns foguetes e um garrafo de
vinho e, vista da aldeia, num pequeno olival, fizeram a
sua prpria festa: atiraram os foguetes, beberam e
tocaram at ao paroxismo da embriaguez do vinho e da
msica, em que corpos e instrumentos se confundiam, nas
posturas mais incrveis, rebolando-se no solo numa
espcie de dana fantasmtica.
E tivemos ainda um grande nmero de pequenas sadas para
resoluo de casos concretos, esclarecimento de dvidas,
assistncia a determinadas manifestaes em que aparecem
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formas caractersticas. Em 2 de Fevereiro, a Amarante,
buscar um belo violo de tipo francs, com embutidos, que
nos fora prometido; em 8 do mesmo ms regio de Braga,
em visita aos violeiros e construtores da cidade e da
rea; a 19 do mesmo ms, ao Santurio da Peneda, paraestudo da sanfona que descobrimos na capela da Adorao
dos Pastores, quando ali estivemos na festa do ano de
1960; em 21 de Maro, aos arredores de Braga buscar
variado instrumental de rusgas e desafios; em 18 de Maio
e 11 de Junho a Guimares para busca e em seguida compra
de outros instrumentos de rusgas, designadamente os
reque-reques e zuca-trucas caractersticos dessa regio
minhota; em 16 de Junho, a Darque para aquisio de um
par de gigantones e de cabeudos; em 1 de Julho rea de
Barcelos em busca de reque-reques da regio; de 18 a 20
de Agosto, a Viana do Castelo s festas da Agonia, para
estudo, fotografia e gravao da msica dos Z-Pereiras
minhotos, que tem a a sua maior concentrao; e
finalmente, em 22 de Outubro, de novo mesma regio,
para compra de um bombo interessante que adescobrimos,
e de uma ocarina antiga de barro, de Barcelos, de um
modelo que desapareceu, e que pertencia a um famoso
tocador, JosGonalves Dias que, antes de se despedir
dela, gravou para ns algumas modas. Alm disso, fomos
por duas vezes Galiza, em busca da sanfona, que, to
corrente entre ns ainda no sculo XVIII como instrumento
de cegos e mendicantes, e to insistentemente documentada
nas figuras de prespio dos nossos barristas, desapareceu
completamente do Pas, e que soubramos ser ainda
cultivada naquela provncia espanhola: a primeira, de 22
a 26 de Fevereiro, a Santiago de Compostela e da, como
consequncia das nossas diligncias, a Lugo, onde nos
indicaram a escola-ofcina artesanal adstrita
Diputacion Provincial; a segunda, de 28 de Novembro a 2
de Dezembro, a esta ltima cidade, por Pontevedra e
regresso novamente por Santiago de Compostela (cujos
Museus respectivos possuem o instrumento em questo e
documentao interessante) para seu estudo, e para
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transporte, a final, do exemplar que encomendramos. No
decurso destas excurses investigmos da existncia e
adquirimos grande nmero de outros pequenos instrumentos.
Alm disso, no Porto e, de modo semelhante, em Lisboa,
Coimbra, Braga e outras cidades e vilas, todas as vezesque a passmos, visitmos os violeiros locais,
antiqurios e atcasas de penhores, em busca de espcies
que interessassem.
Resumindo, nesse segundo ano de trabalhos foram
adquiridos 276 instrumentos importando em 30.147$00 e
percorridos 13.360 quilmetros em 70 dias teis de
trabalho.
Os trabalhos de campo, em 1962, desenvolveram-se a um
ritmo mais lento, cedendo o passo a outros afazeres
profissionais. Em Abril, tivemos praticamente uma sada,
em 7 e 8, Serra da Peneda, para esclarecimento da
questo da sanfona existente naquele santurio, que
verificmos no ser um instrumento real, mas que
constitui um excelente elemento iconogrfico, que
fotografmos. Em Maio, de 6 a 10, corremos a regio de
Torres Vedras, para um primeiro contacto com os gaiteiros
estremenhos. No adquirimos anenhum instrumento, porque
constatmos que todos eles eram j de provenincia
galega. No dia 11 de Junho, fomos a Amarante, a fim de
vermos a concentrao de Z-Pereiras da regio nas festas
de S. Gonalo. E em Julho, encontrando-nos em Lisboa,
consagrmos os dias 11 a 13 para realizarmos as primeiras
diligncias no sentido de identificarmos o proprietrio e
paradeiro da guitarra da Severa. A partir de fins de
Julho, perante a deciso de se realizar uma exposio dos
instrumentos musicais populares, quando da reunio em
Lisboa do ICOM, prevista de 12 a 18 de Novembro, tornou-
se necessrio apressar o mais possvel o ritmo dos nossos
trabalhos, marcados ento por duas finalidades: por um
lado, a obteno das espcies principais que nos
faltavam; concomitantemente, a audio, escolha e
finalmente convite dos tocadores populares, dos
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diferentes instrumentos e regies, que deviam apresentar-
se naquela ocasio, conforme fora decidido. Assim,
percorremos, de 31 de Julho a 10 de Agosto, toda a regio
do Alto de Trs-os-Montes, as zonas de Vinhais, Bragana
e Miranda do Douro, onde adquirimos a gaita-de-foles e otamboril, ao extraordinrio gaiteiro Juan de Rio de Onor,
que acedeu a acompanhar-nos a Bragana para podermos
fazer algumas gravaes do seu excelente repertrio; e um
pandeiro da tocadora Maria do Carmo Garcia, de Moimenta
(Vinhais). Nesta aldeia, tivemos ensejo de contar com a
disponibilidade de um dos melhores gaiteiros que
conhecemos desta regio: O Carlos Gonalves, que
juntamente com a Maria do Carmo, secundados por outros
elementos, nos permitiram recolher, ao longo de vrias
horas, um repertrio musical da maior importncia. Dada a
excelncia desse conjunto musical decidimos convid-los
para participar nesse concerto em Lisboa gaita-de-
foles, bombo, caixa, pandeiro e ferranholas. Solicitmos,
do mesmo modo, a presena nesse acontecimento, do amigo
Virglio Cristal. Visitmos, mais uma vez, o Francisco
Domingues, de Paradela, que apesar de ser um repositrio
do velho patrimnio musical mirands, gostava de fado e
havia construdo uma guitarra usando como caixa de
ressonncia uma lata de caf. Dado o interesse para a
coleco desse espcime, combinmos a sua troca por uma
guitarra normal sua escolha. Transcrevemos uma das
cartas da correspondncia trocada que d conta do
resultado final dessa proposta:
Paradela, 24 de Outubro de 1962
Exm. Senhor
Ernesto Veiga de Oliveira
Os nossos afectuosos comprimentos e votos da melhor
sade quanto lhes deseja o seu Amigo Francisco
Domingues.
Senhor Ernesto crecebi a vossa carta a qual shoje
respondo para dizer lhe que a lhe envio a guitarra
juntamente com uma flauta e um par de castanholas que so
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as nicas que havia j nesta povoao e como so
instrumentos j muito raros nesta povoao nem mos
queriam vender porque os tm como uma recordao. Julgam
les que enquanto tm estes instrumentos em casa que os
donos ainda stm os mesmos 20 anos que tinham quandofaziam uso deles e por isso no mos queriam vender. Com
respeito aos dois pares de castanholas custaram 32.50 e a
flauta 15.00. Com respeito ao preo da guitarra esta que
eu tenho custou no Porto 400.00.
Eu creio que aos senhores parecer demais visto a
guitarra que eu derramei estar ainda a meio uso como ns
dizemos e hoje tive tambm de gastar o dia inteiro para
vir propositadamente a mete-la no correio a Miranda e
como os senhores sabem fica longe e no h meios de
transporte e tem a gente que vir a pou numa besta e
gasta-se um dia inteiro para ir a Miranda e voltar. No
sei se as castanholas lhe parecero caras mas no mas
quizeram dar menos, caso no lhes interessem o dono diz
que voltava a aceita-las.
E nada mais por momento desejando sempre as melhores
felicidades aos senhores subscreve-se com a maior
considerao pelos senhores o seu sempre amigo Francisco
dos Reis Domingues.
Quando abrimos o pequeno caixote em que vinha a guitarra,
no interior da tampa, escrita a lpis, vinha a seguinte
quadra de despedida:
Guitarra vais pelo mundo
Correr Portugal inteiro
Mas em Paradela fica
O teu velho companheiro
Francisco Domingues aproveitra ainda umas pequena placas
de madeira, usadas ento como etiquetas das mercadorias
que circulavam nos Caminhos de Ferro, que aplicou no
tampo dessa guitarra, para nelas escrever vrias quadras.
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Uma delas, extremamente expressiva, faz mesmo a sua
histria:
Guitarras em Paradela
Nascente tu a primeiraPor isso levas o nome
Linda Estrela da Beira
Estrela da Beira era a marca do cafcontido nessa
embalagem.
No dia 23 desse mesmo ms, fomos a Braga e arredores, a
fim de ouvirmos tocadores de viola braguesa e cavaquinho,
que no nos pareceram satisfatrios. De 24 de Agosto a 1
de Setembro, demos uma volta pelo Alentejo e Beira Baixa,
durante a qual adquirimos pandeiros e castanholas de
excelente qualidade, nomeadamente os espcimes de Santa
Eullia (Elvas). Passmos em Santa Vitria e convidmos o
Jorge Caranova, que acedeu com a maior satisfao a
participar no concerto em Lisboa. Da Beira, como tocadora
de adufe, convidmos a Maria Gertrudes Nabais, da Pvoa
de Atalaia (Fundo). De 6 a 9 e 13 a 17 desse mesmo ms,
deslocmo-nos regio estremenha, de Torres Vedras e
Nazar, para assistirmos a diversos crios, tendo
aproveitado para estudarmos e adquirirmos, em Almeirim,
alguns idiofones originais que ali se usavam. Em 23, 27 e
30 de Setembro, e 7 e 21 de Outubro, fomos a Celorico de
Basto, e a partir daa vrias povoaes dos concelhos
limtrofes para documentarmos a Chula e escolhermos o
conjunto da Chulada a apresentar em Lisboa, tendo
finalmente, aps audio dos grupos de Tabuado, Carvalho
de Rei, S. Bartolomeu, Arnoia e S. Simo, escolhido o de
Tabuado (Marco de Canavezes) que tinha como figuras
solistas o Fernando Cunha Major, na rabeca e a Maria da
Glria Vieira como cantadeira, alm dos acompanhantes, um
violo surdinado, uma viola, bombo e ferrinhos.
Jem Novembro, em 4 e 14, fomos a Braga convidar os
tocadores de viola braguesa e cavaquinho, Manuel e
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Bernardino da Silva; e contactar mais uma vez os
construtores, pai e filho, Domingos Manuel Machado, de
Aveleda e Domingos Martins Machado, da Tebosa, que nos
prestaram uma colaborao preciosa, ajudando-nos alm do
mais a encontrar alguns espcimes de viola braguesa deboca oval e redonda, ento muito raras.
Nesse primeiro concerto, que teve lugar a 24 de Novembro
de 1962, estiveram presentes esse conjunto de Moimenta
(Vinhais), o tamborileiro de Constantim (Miranda do
Douro), a Chulada de Tabuado (Marco de Canavezes), os
tocadores de viola braguesa e cavaquinho de Braga, a
tocadora de adufe, da Pvoa de Atalaia (Fundo) e o
tocador de viola campania, de Santa Vitria, Beja.
Lamentavelmente dessa excepcional actuao a Fundao
Gulbenkian no preservou o registo gravado que na altura
foi feito.
Neste ano a coleco foi enriquecida com mais 65
instrumentos, que importaram em 16.094$00, tendo ns
dispendido 61 dias de trabalho de campo e percorrido
10.047 quilmetros.
Os nossos trabalhos relativos a este tema, durante o ano
de 1963 e anteriormente prospeco que efectumos nas
Ilhas da Madeira e Porto Santo e dos Aores, de 10 de
Outubro a 5 de Dezembro, tiveram como objectivo quase
exclusivo o estudo dos instrumentos fundamentais da Beira
Baixa, nas suas funes principais, nomeadamente: 1) o
adufe e o seu papel nas grandes romarias regionais, das
Senhoras do Almurto e da Pvoa, em 29 de Abril e 3 de
Junho respectivamente, e nas festas de Monsanto, em 3 de
Maio; e 2) o instrumental das danas da Lousa (Castelo
Branco), integradas nas festas que deviam realizar-se a
19 de Maio, mas que foram adiadas para Junho: a viola
beiroa, as genebres e os trinchos.
Nas excurses s festas da Senhora do Almurto, de
Monsanto e da Pvoa, aonde acorriam gentes de toda a
provncia e das quais trouxemos uma profusa documentao
fotogrfica, e vrios adufes adquiridos aos construtores
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da regio nas prprias tendas do arraial, pudemos
observar a natureza cerimonial do adufe, usado sempre
pelas mulheres, em ocasies de grande solenidade, como um
verdadeiro instrumento da liturgia popular. ao som do
adufe que os ranchos de cada povoao cantam asalvssaras Senhora volta e seguidamente porta do
templo, sob o alpendre, chegada e, no dia seguinte,
acompanhando o guio, atrs do sacerdote, na Senhora do
Almurto e da Pvoa, sendo de lamentar que uma
incompreensvel proibio tenha acabado, nesta ltima
festa, com uma das mais impressionantes manifestaes
musicais do Pas.
As festas e danas da Lousa constituem um espectculo
notvel, sob todos os pontos de vista. O seu instrumental
taxativo, parte do qual se pode sem dvida considerar de
natureza ritual, compe-se da genebres, que caso nico
em Portugal e que usada pela figura sobressaliente da
dana, dos trinchos, pequenos pandeiros redondos sem
peles e apenas com soalhas no aro, que funcionam como
sacuditivos, e das violas em nmero de cinco, de um tipo
especial, usadas pelos restantes cinco tocadores.
Alm dos adufes que comprmos nas festas do Almurto e da
Pvoa, adquirimos ainda, em Monsanto, duas palhetas,
essas dulainas beiroas que jsali se encontram; elas
so da autoria de um pastor, Josdos Reis, que pudemos
ainda fotografar a tocar o seu instrumento, nas festas da
Pvoa.
Resumindo, pois: adquirimos durante o ano de 1963, antes
da prospeco nas Ilhas, 20 instrumentos, de natureza e
valor muito diferentes, que, com outros objectos afins,
importaram em 4.555$00. Para estas aquisies, e estudos
sobre o assunto, percorremos, naquele perodo, 2.787
quilmetros e gastmos 13 dias teis de trabalho de
campo.
A nossa actividade nas ilhas da Madeira e dos Aores
alargou-se abordagem de diversos temas, para alm do
estudo e recolha dos instrumentos musicais, com
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particular relevncia da temtica dos moinhos de vento,
actividades agrcolas e sistemas de secagem e armazenagem
do milho5; e ainda a uma recolha de material etnogrfico
para o Museu de Etnologia, que desse conta dos traos
mais expressivos da cultura rural dessas diferentesilhas.
Esses trabalhos de investigao e recolha tiveram incio
nas ilhas da Madeira e Porto Santo e decorreram de 11 a
28 de Outubro de 1963.
A pesquisa baseou-se fundamentalmente no dilogo com os
diversos violeiros que identificmos na cidade do Funchal
Agostinho de Freitas Menezes, que embora filho de
violeiro de certa fama pouco sabia de formas antigas; o
mestre Camb, um filsofo, que nos falou do uso da viola
pelos viles, que ficavam horas interminveis a tocar, e
para quem aqueles acordes pobres do charamba era a melhor
msica; o JosM. da Silveira, ou JosGuitarrista, que
foi aprendiz em casa do Manuel Pereira e trabalhou com o
Antnio Victor Vieira em Lisboa; o Csar Gomes Vieira, de
setenta e tal anos, que nos confirmou a existncia de
braguinhas com o brao raso e trastos satcaixa, e
violas do mesmo modo mas, por vezes, com alguns meios
trastos sobre o tampo para as cordas agudas e sempre com
9 cordas. Lembrava-se, contudo, que havia tambm violas
do tipo de brao alto e 17 ou 18 trastos. Este construtor
foi premiado com medalha de ouro na Exposio de Sevilha
de 1928/30, onde apresentou um rajo ou machete e uma
guitarra.
O Padre Eduardo Pereira, com quem mantivemos uma longa e
encantada conversa, pouco nos pde dizer de instrumentos
musicais.
Ainda no Funchal, encontrmo-nos com Bartolomeu Pedro de
Abreu, sobrinho por afinidade e genro de Joo Nunes
Diabinho, filho de Octaviano Joo Nunes, ambos muito
hbeis na arte de construo de instrumentos de corda.
O Octaviano fez um braguinha, que ofereceu Imperatriz
D. Isabel da ustria. Bartolomeu Abreu possua um
braguinha da autoria do Octaviano, datado de 1901, e
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outro da autoria do filho, seu tio e sogro. Eram duas
peas de excepcional categoria que, a despeito das nossas
maiores diligncias, recusou ceder, tendo mesmo hesitado
em deixar fotograf-los. Vendeu-nos um violo da autoria
do Octaviano Joo Nunes. Em Agosto de 1964 este senhorvisitou-nos em Lisboa e apresentou uma proposta de venda
daqueles dois instrumentos pela importncia de 50.000$00
que foi ento considerada excessiva pela Fundao
Gulbenkian; e esses braguinhas perderam-se para a
coleco. Por um acaso feliz viemos a encontrar, uns anos
mais tarde, num estabelecimento do Porto, um braguinha da
autoria do Octaviano Joo Nunes, que adquirimos por um
preo idntico ao dos comuns cavaquinhos dos fabricantes
minhotos.
Nas deambulaes pela Ilha procurmos, alm dos
construtores, os tocadores, sobretudo de instrumentos de
corda. Mas a raridade destes e a grande dificuldade de
acesso aos lugares onde alguns viviam concorreram para um
resultado pouco interessante. No lugar de Marouce,
Machico, por exemplo, aps demorado e arriscado percurso
por carreiros no raro cavados em degraus ngremes,
atingimos o alto onde morava o violeiro Manuel Moniz, que
aprendera o ofcio com seu pai. Fabricava especialmente
rabecas, violas de arame, rajes e braguinhas. Nunca
construiu instrumentos com a escala rasa com o tampo; mas
lembrava-se de quando novo ter visto instrumentos sem
escala. No seu entender, para o Brinco deve haver
sempre tocadores de rabeca, viola, rajo e braguinha.
Estes mesmos instrumentos integravam a Folia do Esprito
Santo.
O musiclogo Padre Roque Dantas falou-nos das castanholas
que se tocam e usam na Ribeira Brava, na Missa do
Parto, no Natal, volta da povoao, desde a madrugada,
e dos tocadores de viola, rabeca, braguinha e rajo,
impossveis de abordar. Por seu turno, o vigrio de
Tabua, que a terra donde vm as gentes com castanholas
para aquela festa, falou-nos largamente dessa costumeira
e referiu-se feitura de castanholas de vrios tamanhos,
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por vezes com 30 cm de comprimento e com sonoridades mais
graves ou agudas. Havia verdadeiros despiques de
castanholas que, por vezes, depois da missa, degeneravam
em rixas.
Assistimos a alguns ensaios do Rancho da Camacha efalmos longamente com os tocadores, gente simptica e
sabedora. O seu director, Alfredo Ferreira da Nbrega,
ofereceu-nos uma viola, um rajo e um braguinha, que
foram construdos segundo indicaes do estudioso Carlos
M. Santos.
Vimos tambm algumas exibies do Rancho do Canio. O
tocador do brinquinho, verso madeirense do Zuca-
truca das rusgas do Baixo Minho, especialmente de
Guimares, era tambm o seu construtor e foi ele quem fez
o que trouxemos dessa Ilha. Segundo ele, para se tocar
bem, o brao esquerdo deve apoiar contra o quadril, para
no cansar; o direito que abana, com movimentos secos e
rpidos.
Em Porto Santo participmos num bailinho na Serra de
Fora, com gente jmadura, algumas jvelhotas, muito
alegres, confiantes, simpticas, com uma vontade
inextinguvel de cantar e danar.
Na meia-volta (a mais notvel de todas as danas, com
aspectos que lembram coisas norte africanas) andam em
roda aos pares, o rajo e a viola na roda, a rabeca no
meio, sozinha. Era um baile mandado. O rajo usava sas
4 cordas (faltava-lhe o r) e mais conhecido por
machete. A viola usa 9 cordas. A rabeca o nico
cantante, e tem grande importncia. O rajo afina pela
rabeca (l).
Adquirimos, por compra, 13 instrumentos num total de
2.605$00; e mais 4, por oferta.
A viagem do Funchal para Ponta Delgada foi feita de
barco. Permanecemos nos Aores de 29 de Outubro a 5 de
Dezembro. A ilha onde realizmos as nossas primeiras
prospeces foi por isso S. Miguel, onde ficmos atao
dia 11 de Novembro.
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O contacto inicial com construtores de instrumentos teve
lugar em Vila Franca do Campo, onde falmos com o
violeiro Miguel Jacinto de Melo, que nos informou dos
processos de fabrico e tipos de instrumentos mais
correntes. Por seu intermdio obtivemos duas violasusadas, uma que havia sido construda por ele e a outra
pelo seu pai.
Em gua de Alto conhecemos o clebre folio Alfredo
Sousa, que nos cedeu um pandeiro (trinchos) e um tambor,
tendo ento gravado vrios cantares das Folias do
Esprito Santo. Nas Furnas assistimos a ensaios dos
grupos locais, folclrico e de tocadores e cantadores, e
gravmos algumas das suas msicas.
No Faial da Terra gravmos cantigas dos folies e da
Alembrao das Almas, prprias da Quaresma. Na Ribeira
Grande conhecemos o violeiro Alfredo de Medeiros Ventura,
a quem comprmos duas velhas guitarras de cravelhas. No
Pilar da Bretanha obtivemos de Manuel Virgneo da Ponte
um pandeiro da folia, metlico e gravmos alguns dos seus
cantares. Na Covoada encontrmos uma rabeca feita por um
construtor rural, que nos foi cedida.
Antes de partirmos de S. Miguel encontrmo-nos com os
investigadores locais, nomeadamente Dr. Cortes-Rodrigues,
Dr. Carreiro da Costa, Eng. lvares Cabral e D. Maria
Luisa Costa Gomes, e jornalistas, aos quais expusemos os
objectivos e resultados da nossa misso.
De S. Miguel para a Terceira fomos num pequeno avio,
tendo permanecido nesta ilha de 11 a 14 de Novembro.
Entrmos em contacto com o violeiro Paulo, genro do
afamado construtor Serafim do Canto j falecido. Mas
aquele senhor jhmuito que deixara a arte. Lembrou-se,
contudo, que vendera htempos uma bela viola feita pelo
sogro para a Casa de Sade de S. Rafael (Hospital de
doenas mentais) e acompanhou-nos a esse estabelecimento.
Falmos com o seu director que, com grande compreenso,
nos cedeu aquela viola por troca de outra. Explicou-nos
que esse instrumento foi adquirido com as economias que
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os doentes fizeram para esse efeito privando-se do
tabaco.
Perto da Praia da Vitria contactmos o violeiro Ernesto
Costa, a quem comprmos vrias violas da sua autoria e de
seu pai, que tambm fora violeiro, e um cavaquinho, feitosegundo instrues de um madeirense, destinado a um
soldado americano do Aerdromo das Lages.
A viagem da Terceira para a Graciosa (onde permanecemos
de 15 a 17) foi feita no barco Ponta Delgada.
Logo que chegmos fomos falar com JosGil dvila, nico
fabricante de violas da ilha. Um outro, Cirino da Cunha
Santos, estava em Ponta Delgada aguardando passagem para
a Amrica.
Num dos diversos moinhos que observmos, em Guadalupe, o
moleiro ofereceu-nos o bzio que usava para chamar os
fregueses.
Na Luz visitmos o Imprio e fomos a casa dos mordomos
que guardavam naquele ano as insgnias. A coroa velha,
com o basto e a salva, estava numa casa aonde chegara
naquela manh, vindo de mais de dois anos de frica, o
filho soldado. O pai, mordomo por promessa para que o
Senhor Esprito Santo lhe trouxesse o filho a
salvamento; o filho veio e, por isso, em cima da mesa l
estava a coroa entre jarras de flores, velas acesas,
imagens e o retracto do filho fardado. Servia-se massa
sovada ou bolo da noite, espcie de regueifa, prpria
desta solenidade, bolos, vinho e anglica. Parentes e
visitas e os pais tontos de comoo e alegria. Fizeram-
nos entrar, comer e beber, participar da festa. A gente
boa quando vive momentos de alegria no se fecha e os
estranhos no so importunos.
Na Praia, encontrmo-nos com o JosGil dvila, tocador
afamado de viola, o Orlando Pereira Machado, com o
violo, e o Alfredo Bettencourt, cantador. Tocaram e
cantaram diversas modas da ilha, sem valor nem interesse
especial. O Josdvila era um tocador exmio, que fazia
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ponteados como se tratasse duma guitarra, usando
sobretudo o polegar nas duas primeiras cordas agudas.
Da Graciosa para S. Jorge tommos o barco Carvalho
Arajo.Nesta ilha, onde ficmos de 18 a 21, avistmo-nos com o
violeiro Augusto Silveira Madruga, natural do Pico,
reputado o melhor e quase nico violeiro de S. Jorge.
Numa das noites fomos aos Rosais ver o instrumental dos
balhos da ilha e gravmos vrias modas tocadas e
cantadas. Usaram a viola (do tipo micaelense), o violo,
o banjolim, cantadores e cantadeiras.
A viagem entre S. Jorge e o Pico, onde permanecemos de 21
a 24, fizemo-la numa lancha baleeira, que mandmos vir
desta ilha para nos levar, dado que as carreiras normais
estavam interrompidas devido ao estado do mar. Pela
primeira vez, a viagem foi uma coisa verdadeiramente
maravilhosa. Duas horas de absoluta comunho com o mar.
Em frente de ns, o Pico erguia-se majestoso, envolto num
manto tnue de nuvens brancas que, de quando em quando, o
abafavam.
Procurmos o Padre Joaquim Rosa, Proco de S. Mateus, que
na resposta que envira ao Inqurito mencionra,
naquela localidade, o cavaquinho e o machete. Esclareceu-
nos que o cavaquinho era um instrumento com a forma do
seu homnimo minhoto, que ele conhecera em pequeno, na
sua freguesia da Prainha do Norte, e que o machete era
uma viola pequena que ele prprio tocra.
No Cais do Pico obtivemos dum moleiro um bzio que fra
usado pelos baleeiros.
Na Candelria assistimos exibio do grupo local que
interpretou vrias chamarritas, pezinhos, etc., ao som da
viola, violo, violo baixo, banjolim, rabeca e
cantadoras. Foi nesta ocasio que conhecemos o Francisco
de Matos Bettencourt, com quem viemos a manter uma
correspondncia especial, publicada por Joo Leal na
Revista Etnogrfica (Vol.1, N. 1), e da qual adiante
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transcreveremos uma parte respeitante a uma rabeca que
ele construiu e ofereceu para a coleco.
Durante a curta permanncia nesta Ilha tivemos ensejo de
assistir a uma Coroao de Imperador do Esprito Santo,
por promessa. A abrir o cortejo vinham os folies, emnmero de dois, tocando tambor e cantando versos, que
gravmos, caminhando ao seu lado, discretamente.
No final desta cerimnia fotografmos o Senhor Alfredo,
reputado tocador de viola, que gravmos ainda.
Apesar das pssimas condies meteorolgicas e do estado
do mar a velha lancha Velas apareceu entre as ondas que
por vezes a encobriam e, aproveitando uma breve acalmia,
avanou e atracou em plena agitao das vagas e da
ressaca. O desembarque e embarque de passageiros e carga
foi rpido e a lancha, miraculosamente, deu a volta sobre
si mesma no minsculo porto e, noutra breve acalmia, ps-
se em marcha. A travessia, a despeito das ondas
alterosas, fez-se muito bem e meia hora depois entrvamos
nas guas sossegadas da baa da Horta.
Permanecemos no Faial de 25 a 27.
Procurmos o violeiro Pedro Miguel, de quem tivramos
notcia no Pico. Este falou-nos do violeiro Manuel
Teixeira de Sousa, com quem nos avistmos. Referiu-nos a
decadncia da viola no Faial e descreveu-nos a tcnica de
construo e nomenclatura. A viola aqui do tipo
micaelense, mas fazem de facto algumas com trs coraes.
Ele constri como tambm vramos no Pico violes com
trs cordas de harpa, que parecem ter certa voga aqui.
No tinha nenhum disponvel de resto sconstri para
satisfazer encomendas mas indicou-nos um fregus a quem
vendera hpouco um desses instrumentos; e acompanhou-nos
casa deste que acabou por nos ceder esse violo.
Por volta das 11 horas, sob uma chuva impenitente,
embarcmos no Funchal com destino de novo Terceira,
onde chegmos por volta das 5 horas da tarde.
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Aquando da primeira estada nesta ilha havamos feito
diligncias em vista obteno do tambor da folia das
Lages. Mas o facto deste ser propriedade da comunidade
levantou dificuldades que ento no puderam ser
superadas. Falmos de novo com a Comisso dos Mordomos,que foram muito compreensivos e simpticos; mas, apesar
da vontade de satisfazer o nosso desejo, no sendo os
donos do instrumento e cientes da sua natureza ritual,
receavam incorrer na censura do povo e no se sentiam com
poderes nem direito de decidir. Mas, perante as nossas
razes e esclarecimentos acabaram por ceder o tambor, que
foi condicionalmente oferecido em troca de um donativo de
700$00 para o Imprio, e sob o compromisso, pela nossa
parte, de o devolvermos de Lisboa caso o assunto
suscitasse desinteligncias.
Num fim de tarde que se prolongou atcerca das 11 horas,
reunimo-nos em casa do senhor Henrique Borba, com o Jos
Martins Pereira o Zda Lata -, o Laureano Correia dos
Reis e mais um rapaz e uma rapariga, irmos, cantadores
da Rdio Angra. O Z da Lata estava constipado, mas
sempre cantou algumas coisas, e assim ouvimos um pouco
desse folclore terceirense, dolente, romntico, de um
italianismo afadistado de interesse reduzido. Em todo o
caso as pessoas foram gentilssimas e o Zda Lata uma
personalidade rica, pitoresca, transfigurado quando
canta, que o seu meio natural.
Tommos o avio para S. Miguel e dapara Santa Maria
onde permanecemos de 31 de Novembro a 5 de Dezembro.
O faroleiro do farol da Maia era tambm um construtor de
violas, do tipo micaelense. Por seu intermdio obtivemos
um instrumento do seu fabrico, vendido hanos a uma
pessoa que o cedeu pelo preo de uma viola nova.
Na freguesia de Santo Esprito gravmos os cantares
diversos dos trs folies do Esprito Santo Antnio de
Sousa Chaves, de 84 anos, com tambor, Josde Moira, com
os textos e Jos de Sousa um poeta. Cantaram os
cnticos das diversas cerimnias, e depois vrios
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falsetes ou sejam duetos, prprios das iluminaes em
casa dos imperadores.
Comprmos o tambor, com perto de 100 anos, que pertencera
ao pai do Senhor Amncio, folio daquela localidade.
Resumindo, as passagens de ida e regresso a Lisboa e
inter-ilhas custaram 16.322$00.
As deslocaes nas ilhas da Madeira e Porto Santo e S.
Miguel, Terceira, Graciosa, S. Jorge, Pico, Faial e Santa
Maria, em txi ou automvel sem condutor importaram em
9.303$00.
O valor das despesas de alimentao e dormidas foi de
12.713$00.
Nos Aores comprmos 38 instrumentos musicais num
montante de 11.057$00.
Em 1964, por ocasio do I Congresso Nacional de Turismo,
a Fundao Gulbenkian levou a efeito, com a nossa
colaborao, mais uma exposio sobre os Instrumentos
Musicais, que contou tambm com um concerto de tocadores
e cantadores populares. A Regio da Beira Baixa esteve
representada pela tocadora de adufe, Catarina Chitas, que
nessa altura nos falou do Manuel Moreira como sendo o
ltimo tocador de viola daqueles stios. Ele vivia no
flanco da serra do Ramiro oposto ao de Penha Garcia, o
que nos obrigou a contornar essa serra. O percurso
alongou-se, fez-se noite, a estrada deu lugar a uma
vereda que o velho citron 2 cv a custo vencia, com
coelhos bravos a saltar nossa frente, e a toda a volta
o silncio e o negrume total. No momento da desistncia
lobrigmos uma luzinha sado carro e gritei por ajuda
para encontrar o Tio Manuel Moreira. Como por encanto, l
do alto uma voz respondeu: aqui! Subimos a encosta e
fomos ao seu encontro. Foi como se jnos conhecssemos
de h longos anos. Apesar de nunca ter sado desse
pequeno mundo rural, de no conhecer sequer Castelo
Branco, prontificou-se de imediato a ir a Lisboa, dado ir
na companhia da Catarina Chitas. Evoco a sua entrada no
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palco, de calas de bombazina e faixa preta, um sorriso
confiante e sereno, a sua belssima execuo musical.
Depois de terminar despediu-se do pblico com um gesto
profundamente natural e afectivo, secundado pela saudao
Deus vos abenoe.Neste ano, os trabalhos por ns efectuados neste domnio
foram muito reduzidos, visto que a coleco se achava
praticamente concluda nas suas linhas mais gerais.
Continumos atentos e na busca de certas espcies raras
ou extintas, de modo a completar sries e preencher
lacunas. Conseguimos obter alguns exemplares da rarssima
viola beiroa, e uma sanfona de grande valor a despeito do
estado de runa em que se encontrava.
Resumindo, adquirimos durante o ano de 1964, 15
instrumentos de vrios tipos e valores que importaram em
5.690$00; e percorridos 1.304 quilmetros em 4 dias teis
de trabalho.
Em 1965 no realizmos prospeces especiais de recolha
de instrumentos; mas aproveitmos todas as sadas e
trabalhos de campo que levmos a efeito por conta do
Centro de Estudos de Etnologia para completarmos, nas
zonas percorridas, aquele objectivo.
De passagem por terras de Coimbra, em Abril, tivemos a
inesperada sorte de encontrar, finalmente, a viola
toeira, o nico dos grandes instrumentos que faltava na
coleco. O seu possuidor, Raul Simes, antigo construtor
e exmio tocador, no se queria desfazer do instrumento,
mas acabou por ceder s nossas instncias.
Nas buscas que regularmente fazamos a violeiros das
vrias cidades adquirimos uma guitarra de duas bocas do
famoso Antnio Victor Vieira; um cavaquinho da autoria do
Manuel Pereira, construtor lisboeta (1840-1889) do qual
existem instrumentos nos Museus de Bruxelas, Milo, etc.,
entre outros.
O total dos 9 instrumentos custaram 5.820$00.
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Para terminar referiremos a oferta da rabeca construda
por Francisco de Matos Bettencourt, da ilha do Pico, a
que atrs fizemos referncia.
Transcrevemos uma passagem da carta que nos escreveu em
28 de Maro de 1966:
(...) Tambm vi na sua carta que jrecebeu o violino, e
que julga em bom estado, que me desperanas de poder
ser admitido no lugar a que tinha sido destinado; se
assim for (...) Quem fica agradecido sou eu, e no como o
senhor na sua carta me agradece. O senhor Ernesto e o
senhor Benjamim andaram aqui ali por todo o Pas
procura de objectos para construir criar um Museu para
Portugal. Para quem esse Museu? No para mim
tambm? Embora eu aoriano, sque nos separa o mar. Os
meus (ou melhor) os nossos ideais aorianos so iguais a
todos os portugueses que se orgulham de o ser. Portanto,
torno a dizer, agradecido fico eu, porque fez mais quem
constri a obra, do que aquele que duma simples pea
para essa grande obra, que nos havemos orgulhar todos de
possuirmos; e mais lhe digo (...) Agradeo-lhe em nome da
Ilha do Pico, se o senhor conseguir em que esse violino
entre nesse Museu, no por julg-lo uma obra prima, no
senhor (...) Eu bem sei que ele de pouco valor
material, porque bem se v, que posto ao p de um
instrumento como aqui aparecem, que davm, feitos por
profissionais, o meu no passa de uma simples cartla;
mas que nesse objecto, que pouco val(or) tem encerra uma
grande vontade, de uma pessoa que tem muito prazer em
ajudar todo(s) aquele(s) que se esforam por fazer de
isto um Portugal novo. Senhor Ernesto (...) no preciso
nomear o meu nome como construtor do violino; porque o
meu nome pouco ou nada vale, ao tanto gostava se podesse
ser que o violino entrasse para o Museu, fosse em nome da
Ilha do Pico; se assim for ser para mim grande
satisfao.
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Este senhor, era um modesto agricultor que tinha uma
profunda conscincia dos valores culturais da sua querida
Ilha e que, numa das passagens dessa correspondncia
dizia:
Eu stive o grande prazer de frequentar a escola umano, no fui mais porque jno tinha idade escolar, o