impptexto

Upload: claudia-pensabene

Post on 15-Feb-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    1/469

    Instrumentos Musicais Populares Portugueses

    1 edio, Lisboa,

    Fundao Calouste Gulbenkian, 1964

    2 edio, Lisboa,

    Fundao Calouste Gulbenkian, 19823 edio, Lisboa,

    Fundao Calouste Gulbenkian /

    Museu Nacional de Etnologia, 2000

    Instrumentos Musicais Populares dos Aores

    1 edio, Lisboa,

    Fundao Calouste Gulbenkian, 1986

    FICHA TCNICA

    Direco Editorial

    Benjamim Pereira

    Coordenao Editorial

    Fundao Calouste Gulbenkian /

    Museu Nacional de Etnologia

    Reviso de Textos

    Benjamim Pereira, Joaquim Pais de Brito, Miguel Sobral

    Cid, Paulo Maximino

    Transcries Musicais

    Carlos Guerreiro, Domingos Morais,

    JosPedro Caiado, Pedro Caldeira Cabral,

    e Rui Vaz

    Concepo Grfica

    Metropolis - Design e Comunicao

    Execuo Grfica Musical

    Artur Carneiro - Edies Musicais

    Pr-Impresso, Impresso e Acabamento

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    2/469

    SIG - Sociedade Industrial Grfica

    Tiragem

    2500 exemplares

    ISBN

    972-666-075-0

    Depsito Legal

    Ernesto Veiga de Oliveira

    e Fundao Calouste Gulbenkian

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    3/469

    Na presente edio pretendemos, tanto quanto possvel,

    manter intactas as ideias fundamentais que Ernesto Veiga

    de Oliveira teve oportunidade de expressar na preparao

    das duas edies anteriores desta obra. Assim, foram

    tomadas em considerao as alteraes introduzidas peloautor nos trabalhos de reedio do texto primitivo, o que

    inclui a insero de novos textos publicados aquando da

    segunda edio da obra, para alm das observaes de

    Veiga de Oliveira relativas a esta ltima.

    De qualquer forma, e tendo em conta o perodo de quase

    duas dcadas que medeia entre a segunda edio e a

    presente, foram assumidas opes editoriais que pensmos

    to oportunas como enriquecedoras para a leitura desta

    obra.

    Neste sentido, e no que se refere insero de textos,

    decidimos incorporar nesta nova edio a obra

    Instrumentos Musicais Populares dos Aores, assinada pelo

    mesmo autor e atagora publicada em separado, e, para

    alm das notas preambulares da Fundao Calouste

    Gulbenkian e do Museu Nacional de Etnologia, um

    apontamento de Benjamim Pereira, colaborador prximo de

    Ernesto Veiga de Oliveira, acerca da constituio da

    Coleco de Instrumentos Musicais Populares Portugueses

    que, a partir deste momento, ficarna posse do Museu

    Nacional de Etnologia.

    Por outro lado, sofreu remodelao o captulo Guitarra

    Portuguesa, da autoria de Pedro Caldeira Cabral,

    procedendose igualmente alterao das respectivas

    fotografias, que receberam numerao individualizada das

    restantes (GP1, GP2, GP3, GP4).

    Do mesmo modo, as partes referentes a exemplos musicais

    (Continente e Aores), que passaram a ser apresentadas em

    corpo nico imediatamente a seguir ao texto

    correspondente a cada uma das regies.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    4/469

    Foram actualizados os nomes de museus e outras

    instituies referidos no texto das edies anteriores

    que actualmente tm outra designao.

    No que se refere s reprodues fotogrficas

    apresentadas, haver que referir as seguintes opes

    encontradas:

    - Alterao da ordem das fotografias e consequentemente

    da sua numerao, tendo em vista uma relao mais

    adequada com o texto;

    - Remodelao e actualizao de legendas, incluindo a

    referncia s medidas dos instrumentos (em centmetros) e

    data das fotografias de campo pertencentes ao arquivo

    do Centro de Estudos de Etnologia;

    - Supresso das fotografias que na 2. edio receberam

    os nmeros 87 (o mesmo pastor que toca flauta na imagem

    246 da presente edio) e 110 e 121 (dado o estado actual

    de conservao das peas representadas no aconselhar a

    sua reproduo);

    - Supresso das fotografias nmeros 3 a 8 de Instrumentos

    Musicais Populares dos Aores (jpresentes na parte da

    obra correspondente regio continental);

    - Substituio de todas as reprodues fotogrficas a

    preto e branco, excepo das fotografias de terreno e

    das que receberam os nmeros 126, 127, 140, 141, 208,

    209, 210, 216, e 222, por novas reprodues a cor, onde

    se incluem 5 exemplares inditos (20, 37, 90, 185 e 186);

    Por ltimo, serde sublinhar que todos os instrumentos

    reproduzidos cuja legenda no menciona a sua pertena e

    provenincia fazem parte do acervo do Museu Nacional de

    Etnologia.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    5/469

    Dezembro de 2000

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    6/469

    A publicao do presente livro reveste-se, para a

    Fundao Calouste Gulbenkian, de um duplo significado. O

    primeiro , evidentemente, o que advm da reposio de

    uma obra no catlogo de edies do Servio de Msica que,

    passados quase 40 anos desde a sua primeira edio,continua hoje a ser uma das fontes mais importantes da

    organologia popular portuguesa. A comprov-lo est a

    procura que esta obra desde sempre conheceu no que

    respeita quer sua primeira edio, de 1964, quer

    segunda, j de 1982, assim como o interesse na sua

    reedio manifestado constantemente pelos investigadores

    e por parte do pblico. E porque desde sempre se

    considerou que o livro Instrumentos Musicais Populares

    dos Aores, publicado em 1986, seria um complemento deste

    primeiro trabalho dedicado ao Continente, optou-se agora

    por reunir num slivro os dois estudos do autor sobre os

    instrumentos populares portugueses.

    Por outro lado, reedio deste livro acresce,

    complementarmente, um facto no menos importante: a

    oferta ao Museu Nacional de Etnologia da coleco de

    instrumentos musicais populares portugueses pertencente,

    at aqui, Fundao Calouste Gulbenkian, o que ir

    proporcionar o acesso pblico permanente a um esplio de

    grande interesse e nico em Portugal. Trata-se de um

    conjunto de exemplares recolhido por Ernesto Veiga de

    Oliveira a pedido da Fundao, paralelamente ao trabalho

    de campo que este investigador realizou no incio da

    dcada de sessenta, e de que resultaria a publicao da

    primeira edio da presente obra.

    Serigualmente de realar a colaborao, neste projecto,

    entre a Fundao Calouste Gulbenkian e o Museu Nacional

    de Etnologia, tipo de parceria que desejaramos fosse

    modelar no desenvolvimento de futuros projectos

    envolvendo instituies que tm entre os seus objectivos

    prioritrios a difuso da cultura portuguesa.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    7/469

    , pois, com satisfao que a Fundao Calouste

    Gulbenkian v concludo este projecto, que certamente

    contribuir para a sedimentao entre a actual

    investigao etnomusicolgica e o pblico em geral da

    memria de Ernesto Veiga de Oliveira que, de uma formato apaixonada como competente, dedicou a sua vida ao

    estudo das tradies musicais do nosso Pas.

    Lisboa, Dezembro de 2000

    JosBlanco

    Administrador

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    8/469

    Os anos de pesquisa que conduziram constituio da

    coleco dos instrumentos musicais populares - e ao livro

    que os deu a conhecer - so extremamente significativos

    para a compreenso da histria da etnologia em Portugal e

    do Museu Nacional de Etnologia. A equipa que em tornodeste se constituiu e que, jdesde 1947, percorria o

    Pas e procedia a levantamentos de carcter sistemtico

    sob a coordenao cientfica de Jorge Dias, definira

    metas nas quais a recolha e o estudo dos instrumentos

    musicais se vieram a inserir de modo singular. Os

    objectivos primeiros haviam sido, para este grupo de

    etnlogos, o levantamento e o estudo sistemtico de

    tecnologias, tcnicas e instrumentos de trabalho de uma

    sociedade rural em transformao e com eles dar conta da

    diversidade do pas e da sua histria. Foi esta a

    referncia ltima de toda a investigao conduzida ao

    longo de dcadas no mbito dos projectos do Centro de

    Estudos de Etnologia com a extensa obra que reuniu, numa

    equipa coesa, Jorge Dias, Margot Dias, Ernesto Veiga de

    Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, para

    referir os principais investigadores que, ataos dias de

    hoje, conduziram investigao incidindo,

    prioritariamente, sobre Portugal.

    Vale a pena lembrar o prefcio de Ernesto Veiga de

    Oliveira ao seu livro Festividades cclicas em Portugal

    (1984) que, diferentemente dos outros estudos

    monogrficos publicados, incide sobre um universo de

    formas expressivas e ldicas mais caracterizvel pelas

    sociabilidades e construo performativa da prpria

    sociedade do que pelos artefactos ou documentos da

    cultura material que, nos textos que compem esse seu

    livro, nunca so o objecto central da pesquisa. Segundo a

    evocao do autor aqueles textos tm na origem as pausas

    e paragens em hospedarias ou casas particulares, em

    noites e encontros de longas conversas depois de um dia

    de pesquisa em torno das alfaias agrcolas; das formas

    construdas e modos de habitar; das cadeias operatrias

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    9/469

    de um processo de trabalho, etc. Assim se foi

    constituindo um corpus de informao muito vasto, depois

    organizado nos textos monogrficos sobre as vrias

    festividades do calendrio que, entretanto, eram lugar de

    observao etnogrfica. A publicao da maioria dosoriginais ali reunidos em volume ocorre entre 1954 e

    1960. ento que se inicia a recolha e o estudo dos

    instrumentos musicais, por sugesto e proposta do Servio

    de Msica da Fundao Calouste Gulbenkian, nos mesmos

    anos em que se prefigura e prepara a criao do Museu de

    Etnologia.

    Na extensa obra dos investigadores do Centro, os

    instrumentos musicais, assim como as festividades, podem

    pois ser lidos como a erupo de formas que se no

    confinam simples materialidade dos objectos, mas antes

    permitem revelar dimenses mais complexas, humanizadas e

    instveis das prticas de uma sociedade tradicional que

    se procurava apreender e restituir a um conhecimento mais

    alargado, e onde o papel do indivduo podia ser destacado

    dos fenmenos mais gerais e categorias maiores que ajudam

    a interpret-la. Torna-se aliciante pensar como este

    patamar se desenha entre dois plos que vo da dimenso

    mais colectiva e tambm mais recorrente e sistmica, - no

    caso das festividades, - interveno individual,

    criativa e, em algumas circunstncias, com estatuto de

    marginalidade, dos executantes dos instrumentos musicais.

    esta ltima dimenso que o texto de Benjamim Pereira

    que acompanha a presente edio nos dtambm a conhecer,

    junto com o relato das andanas pelo Pas nos anos em que

    a pesquisa foi conduzida. Trata-se de um documento que,

    pela primeira vez, permite aproximar-nos da dimenso mais

    concreta e quotidiana das condies de uma investigao

    no terreno, em Portugal, na primeira metade dos anos 60,

    e que complementa com particular detalhe o que Ernesto

    Veiga de Oliveira jescrevera aquando da segunda edio

    deste livro, no seu texto Em busca de um mundo perdido

    (1982).

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    10/469

    Quando o livro publicado (1964), a sua importncia ,

    de imediato, realada pelo campo mais restrito de

    especialistas que, simultaneamente, seguia as recolhas e

    a primeira divulgao dos trabalhos de pesquisa de MichelGiacometti e Fernando Lopes Graa. Ambos vo ser, depois

    da Revoluo de 25 de Abril de 1974, objecto e

    instrumento de trabalho e de intensa projeco afectiva

    da parte dos grupos de recolha que ento se constituem,

    revelando as vozes e o canto de um pas em

    redescobrimento. Assim foi com o Grupo de Aco Cultural

    (1974), Almanaque, Brigada Victor Jara (ambos de 1975),

    ou Terra a Terra (1977), entre os primeiros que surgiram.

    este o contexto que ajuda a explicar como o presente

    livro se torna a obra de referncia para todos aqueles

    que fizeram e fazem o percurso de aproximao s formas

    musicais, e s qualidades performativas em que estas se

    produzem e so frudas. E tambm isso que faz com que

    calorosas relaes pessoais se estabeleam entre o seu

    autor, Ernesto Veiga de Oliveira, e os msicos,

    colectores e animadores culturais que vm dar a sua

    colaborao segunda edio dos Instrumentos ou a contar

    com o seu apoio em edies discogrficas, como aconteceu

    com o primeiro disco de Jlio Pereira, Cavaquinho (1981).

    assim que o espao social que esta obra veio ocupar

    demarca um territrio frequentado por etnlogos,

    etnomusiclogos e por todos aqueles que, de algum modo,

    enquanto msicos, divulgadores ou simples amadores se

    debruam sobre os instrumentos e as formas musicais

    tradicionais.

    Um facto de grande importncia acompanha esta reedio

    dos Instrumentos musicais populares portugueses, para

    alm daqueles que decorrem de aspectos tcnicos e

    editoriais traduzidos na incluso do livro Instrumentos

    musicais populares dos Aores, no relato de Benjamim

    Pereira, ou na reproduo a cor das imagens dos

    instrumentos. Com ela a Fundao Calouste Gulbenkian fez

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    11/469

    a oferta ao Museu Nacional de Etnologia de todos os

    instrumentos recolhidos e que eram, at ao momento,

    propriedade sua em depsito no Museu. Assim se adensam os

    sentidos de um percurso na histria desta instituio, da

    prpria coleco e dos etnlogos que lhe estoassociados, fazendo convergir, no Museu que ajudaram a

    criar e que os reuniu em torno dos mesmos projectos, toda

    a documentao que resultou desses anos de pesquisa e de

    toda a actividade que entretanto foi desenvolvida em

    torno desta coleco. Ela tem sido objecto de inmeras

    exposies, desde as primeiras na Fundao Calouste

    Gulbenkian, em 1962 e 1964, a todas aquelas que se seguem

    segunda edio do livro, entre 1983 e 1986, no Museu

    Nacional de Etnologia e em vrias instituies e locais

    do pas, ou, posteriormente, outras exposies em

    Portugal e no estrangeiro onde alguns dos instrumentos

    estiveram presentes.

    Com esta nova situao ficaram criadas condies para o

    estabelecimento de um programa de inventrio, que

    acompanhou a mudana de estatuto que a doao trouxe, e

    permitiu ja sua informatizao. Por outro lado tambm,

    esta doao ocorre num momento de ampliao e

    requalificao das reas de reserva e dos servios do

    Museu e quando neste se esta dar particular importncia

    aos estgios de investigao para jovens antroplogos.

    Foi um deles, Paulo Maximino, quem agora se ocupou do

    estudo dos instrumentos e do tratamento informtico do

    seu inventrio, ao mesmo tempo que participou na recolha

    de informao flmica que ajuda a documentar novas

    situaes em que estes instrumentos continuam a ser

    protagonistas. , pois, um privilgio fazer parte deste

    projecto. Ernesto Veiga de Oliveira, com a terceira

    edio deste livro, traz para o Museu os instrumentos

    que, com Benjamim Pereira, recolheu exactamente quando o

    prprio Museu tambm por eles estava a ser pensado. Por

    isso, expressamos o mais forte agradecimento Fundao

    Calouste Gulbenkian.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    12/469

    Joaquim Pais de Brito

    Director

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    13/469

    Em carta datada de 29/1/60 Jorge Dias comunicava a

    Ernesto Veiga de Oliveira o seguinte:

    My dear old boy!

    Propus Gulbenkian fazer um estudo dos instrumentos

    musicais populares em Portugal, mas disse que so podia

    fazer com a tua colaborao e a da Margot. O estudo

    envolve excurses e aquisio de instrumentos que tenham

    interesse sob o ponto de vista meramente etnogrfico e os

    que valham pela sua raridade ou ornamentao. Eu vi como

    tu tens jeito para adquirir objectos no campo.

    Disse que tu podias dedicar 4 meses em 1960 em trabalho

    de campo, com a colaborao do Benjamim. Eu sfarei um

    ms de excurses. Tu tens 4 contos mensais e o Benjamim

    2. Fora disso tero 100$00 dirios por cabea como ajudas

    de custo.

    Temos 30 contos para aquisio de instrumentos!!

    Temos a bibliografia estrangeira necessria adquirida

    pela Gulbenkian, para fazermos depois o estudo terico. O

    estudo ser feito em 1961 e teremos retribuio pelo

    trabalho de gabinete.

    As fotografias sero pagas pela Fundao!

    Os trabalhos devem ser precedidos de um inqurito, feito

    aos padres, professores primrios e informantes

    conhecidos. Devemos pensar a srio a maneira de fazer o

    inqurito. Convm faze-lo impresso, talvez com figuras e

    de maneira que eles possam responder no prprio impresso.

    Devemos mandar juntamente um envelope com a direco do

    Centro jimpressa e respectivo selo, para no afugentar

    respostas. A Fundao duns 3 contos para o inqurito.

    A Margot e eu ajudamos nos trabalhos de gabinete e eu

    farei um ms de trabalho de campo. Se fizermos isto bem,

    o que julgo ser possvel, eles publicam um trabalho bem

    ilustrado e isto pode ser o princpio de muitas outras

    coisas que nos do prazer e nos do umas massas.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    14/469

    Agora temos de pensar muito a srio na bibliografia dos

    instrumentos: dicionrios estrangeiros de msica,

    tratados e tudo que estiver escrito em portugus e

    espanhol, no Brasil, sobre instrumentos musicais,

    populares ou no.Tambm nos interessa iconografia, obras com esculturas de

    igrejas que representam msicos, livros de trajos com

    msicos, louas, azulejos, pinturas, etc., etc. Vamos

    agarrar-nos a isto a srio...

    Comea ja recolher bibliografia e manda-me que eu fao

    o mesmo. Convm escrever a amigos a perguntar, ce no

    estrangeiro.

    Como isto este ano quase que sdtrabalho material, de

    idas ao campo e organizar temos de fazer um ficheiro

    especial e dossiers das respostas organizadas

    geograficamente e por instrumentos para estabelecer

    reas. Convm fazer quanto antes para iniciar as

    excurses depois de termos informaes e informantes com

    quem contactar.

    Tu vais receber em breve um ofcio da Gulbenkian, pedindo

    bibliografia sobre etno-musicologia portuguesa. V nos

    ficheiros tudo que tenhamos que diga respeito msica,

    canto, dana, instrumentos musicais, etc., de coisas

    portuguesas. Infelizmente no sermuito, e possvel

    que tenhamos lacunas graves, mas, Santo Antnio.

    Vai fazendo um esquema que eu fao outro. Depois

    encontramo-nos para conferenciar e tomar resolues

    definitivas.

    Bem meu velho, atbreve. Vamos meter os ombros empresa

    e levar a coisa vitria.

    Um grande abrao do teu Antnio.

    P.S.: De resto combinou-se que vocs levaro um aparelho

    de gravar o som, que ainda h-de vir a ser adquirido.1

    O trabalho escrito ficou-me confiado, mas eu penso

    associar-te assim como a Margot, sobretudo se ele fizer o

    estudo dos timbres dos instrumentos e da difuso de

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    15/469

    alguns. De contrrio seremos ns dois. O trabalho de

    redaco serpara o ano. Creio que pudemos fazer uma

    coisa catita2

    Dando corpo a este programa foram redigidas as perguntas

    constantes do Inqurito e este enviado, de 26 de Maro

    a 11 de Abril de 1960, a mais de 3.700 entidades

    procos, professores primrios, pessoas conhecidas e

    outras julgadas qualificadas, recobrindo praticamente

    todas as freguesias do pas incluindo as ilhas da Madeira

    e Aores.

    Foram recebidas cerca de 1.500 respostas, submetidas de

    imediato a uma sistematizao regional e tipolgica. Em

    simultneo, desenvolvia-se um ficheiro bibliogrfico,

    musical e iconogrfico sobre esta temtica.

    Os resultados deste primeiro passo no constituram, de

    facto, um contributo vlido, e, na sua quase totalidade,

    foi praticamente nulo, tendo-nos obrigado a deslocaes

    repetidas e totalmente improfcuas. Como refere Ernesto

    Veiga de Oliveira

    (...) com essa metodologia, o panorama msico-

    instrumental do Pas, alm de viciado por informaes

    descriminadas, apresentava-se como uma floresta profusa e

    desordenada: por toda a parte se encontravam praticamente

    todas as espcies de instrumentos; no vamos como

    definir o fio condutor que tivesse um significado

    expressivo, e o nosso trabalho no conduzia a nenhures.

    Foi ento que, ao mesmo tempo que pusemos totalmente de

    lado aqueles questionrios e passmos a praticar o

    inqurito directo por contacto, convvio e participao

    com as pessoas implicadas no fenmeno musical das

    diferentes terras, formulmos a regra que permitiu

    iniciar as nossas actividades de pesquisa e recolha, e

    que nos orientou seguidamente todo o tempo: procurar

    determinar no propriamente os instrumentos que existiam

    e se usavam em cada terra, mas sim aqueles que

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    16/469

    integravam, tinham significado ou se relacionavam com as

    formas e ocasies musicais caractersticas das diversas

    reas. Essa nova orientao que decidimos dar ao nosso

    trabalho, iniciou-se numa povoao dos arredores de Viana

    do Castelo, quando, em boa-hora, samos, beira dodesnimo definitivo e da desistncia de poder levar a

    cabo a tarefa que gizramos, da casa de mais um proco

    que respondera ao nosso inqurito sem qualquer

    preocupao de exactido, indicando que ali se usavam

    tambores, e resolvemos ir loja do vendeiro da terra

    falar com as gentes, entre dois copos, e saber o que eram

    esses tambores e demos de chofre com a revelao do

    reino dos Z-Pereiras da Ribeira Lima, anunciando a

    riqueza fabulosa que iramos seguidamente encontrar pelo

    Pas fora.

    A partir da, formas musicais, tocadores, instrumentos,

    muitas vezes ainda por desvendar, foram o nosso

    quotidiano, a nossa luta, os nossos amigos, a nossa

    alegria, o nosso rumo3

    Precisando melhor, em Fevereiro de 1960, realizaram-se

    trs viagens prospectivas com a participao de Ernesto

    Veiga de Oliveira e de mim prprio, a primeira, de 2 a 3,

    do Porto a Terras de Basto; a segunda, de 8 a 14 (a nica

    em que fomos acompanhados por Jorge Dias), do

    Porto/Lisboa/Alentejo/Algarve; e a terceira, a 20, do

    Porto regio de Viana do Castelo, num total de 1.620

    quilmetros.

    A partir do ms de Agosto os trabalhos conhecem uma

    orientao mais segura, visando sobretudo surpreender os

    tocadores nos espaos festivos. Assim, de 13 a 15 desse

    ms estivemos no terreiro de S. Bento da Porta Aberta, em

    Terras de Bouro; de 22 a 26 no Soajo e Peneda; de 4 a 9

    de Setembro, novamente na Senhora da Peneda e Terras de

    Basto; de 16 a 17, em Vila Nova de Cerveira e Feiras

    Novas de Ponte de Lima; e de 22 a 29 do mesmo ms em

    Terras de Basto e Amarante por motivo da Feira de S.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    17/469

    Miguel, em Cabeceiras de Basto, e do conjunto

    instrumental da chula.

    Devido importncia de que se revestia essa forma

    musico-instrumental volvemos a essa regio de Basto e

    Amarante nos dias 6 e 12/17 de Outubro e finalmente, a 13de Novembro, de novo a S. Simo de Amarante por causa da

    aquisio de uma rara rabeca chuleira, num total de 3.900

    quilmetros.

    Estas experincias de campo permitiram-nos ajuizar das

    dificuldades que um trabalho desta natureza representava.

    Por um lado, a escassez e mesmo raridade das espcies

    ainda existentes; por outro, a incerteza e deficincia de

    informes teis sobre o seu paradeiro, o seu contexto e

    sentido etnogrfico.

    De acordo com princpios estabelecidos procurou-se

    determinar, e em seguida adquirir, os exemplares mais

    representativos. E, de um modo geral, esse objectivo

    comeou a ser atingido e, no final desse primeiro ano,

    obtiveram-se 40 instrumentos, que custaram 11.160$00.

    A ttulo de exemplo refira-se a aquisio de uma velha

    harmnica que encontrmos nas mos de um tocador na

    romaria da Senhora do Viso, em Celorico de Basto, que

    mostrava, na sacristia da capela, um amontoado de

    varapaus dos romeiros, cujo uso era interditado pela GNR

    durante o perodo festivo. Um conjunto instrumental dos

    Z-Pereiras composto de gaita-de-foles, bombo e caixa, de

    fustes profusamente decorados, com medalhes e legendas

    pintadas, da regio de Paredes de Coura, que havamos

    seleccionado de entre cerca de 100 tocadores que actuaram

    nas Feiras Novas de Ponte de Lima. Um cavaquinho e uma

    viola chuleira feitas por um fabricante no

    especializado, da regio de Basto, que com pouco mais do

    que as suas mos privilegiadas, conseguia fazer

    instrumentos de excepcional qualidade.

    Importa referir o caso de uma rabeca rabela de Amarante,

    que constitua uma inestimvel pea de artesanato da

    regio, perdida ento para a coleco aps os mais

    porfiados esforos e delicadas diligncias pela nossa

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    18/469

    parte, devido ao modo lamentvel como a questo foi

    assumida e encaminhada por pessoas que nela eram parte e

    cuja resoluo final sfoi alcanada em 1962.

    A rabeca pertencia ento a Eduardo Monteiro Guedes que a

    havia cedido ao Abade de Lufrei, por ocasio da actuaodo Rancho Folclrico da Reguenga naquela aldeia, tendo em

    vista uma possvel incluso deste instrumento no conjunto

    musical daquele grupo.

    A oferta de 500$00 que fizemos ao Sr. Eduardo complicou a

    situao. Foram certamente tomadas decises unilaterais

    que a diferena do status social das duas personagens

    envolvidas favoreceu. As diligncias junto do Abade no

    lograram o menor esclarecimento e, pelo contrrio,

    conduziram exaltao de uma postura farisaica a que

    este se remeteu, de humlimo servo e paladino

    indesmentvel da palavra e compromissos assumidos. A

    nossa persistncia, conjugada com o facto daquela rabeca

    se ajustar mal ao repertrio musical daquele grupo

    permitiu, graas tambm interveno do Eng. Henrique

    Nogueira de Oliveira, Tio de Ernesto Veiga de Oliveira, a

    incorporao desse magnfico exemplar na coleco.

    No decurso da investigao, nesse primeiro ano, tivemos

    ocasio de conhecer, visitar e dialogar com alguns

    violeiros e fabricantes locais que nos forneceram dados

    de interesse sobre a sua arte, tipos e particularidades

    das espcies tradicionais da regio e costumes a elas

    ligados.

    Resumindo, no ano de 1960 gastmos 37 dias em trabalhos

    de campo e 38 na elaborao e organizao do inqurito e

    respectivas respostas, recolha de elementos

    bibliogrficos, iconogrficos e trabalhos acessrios.

    As prospeces e busca de instrumentos em 1961 assentaram

    num plano que estabeleceu uma diviso do pas em

    correspondncia com um determinado nmero de regies

    msico-instrumentais, de acordo com as formas e

    manifestaes musicais caractersticas de cada uma, e o

    instrumento ou conjunto instrumental com que estas eram

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    19/469

    realizadas. Assim, definimos, no Noroeste, o conjunto dos

    Z-pereiras e das rusgas minhotas; no Baixo Douro e

    Tmega, a chula rabela; no leste de Trs-os-Montes, em

    Terras de Miranda e Vinhais, os gaiteiros e

    tamborileiros; na regio de Coimbra, os gaiteiros e ofado; na Beira Baixa, os Bombos de Lavacolhos e

    Silvares; no Baixo Alentejo, o tamborileiro e a viola

    campania; em todo o leste do Pas, o pandeiro

    quadrangular e a flauta; em Lisboa, o fado; como

    instrumentos de uso geral e menos caractersticamente

    populares, os cordofones de tuna.

    Dentro do mesmo esprito, estabelecemos tambm sries de

    outros tipos de instrumentos, que respeitam no

    propriamente msica, mas a determinadas celebraes,

    constitudas na sua maior parte por pequenas espcies

    idiofnicas, feitas pelos prprios ou por amadores

    locais, de grande variedade regional, mas que pudemos

    ordenar de modo coerente e compreensvel, agrupando-as,

    conforme as suas funes, em instrumentos da Semana

    Santa, do Carnaval, Serrao da Velha, Assuadas e Troas,

    e instrumentos profissionais.

    Foi a partir deste plano que orientmos as nossas

    exploraes sistemticas. Constatmos a iminncia do fim

    da nossa tradio musical popular e, com ele, do total

    desaparecimento de todo o variado e pitoresco

    instrumental em que ela se apoiava, que, em muitos casos,

    foi j extremamente difcil de encontrar. O grande

    problema, que sobrelevou todas as demais consideraes,

    continuou a ser o da raridade dos instrumentos; por isso,

    perante as espcies que buscvamos envidmos todos os

    esforos, j por esclarecimento e persuaso, j

    oferecendo um preo convincente, exagerado mesmo por

    vezes, quando tal foi o nico meio, para as tentarmos

    obter. E na verdade, conseguimos, muitas vezes custa de

    um verdadeiro trabalho de deteco, de diligncias

    repetidas, insistentes e delicadas, que sabandonmos

    perante o objecto ou a certeza da sua destruio,

    adquirir todas as peas cuja existncia nos foi

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    20/469

    assinalada e que podiam interessar constituio da

    coleco.

    Na execuo deste plano, os trabalhos de campo, no

    decurso de 1961 constaram sobretudo de cinco grandes

    sadas no Pas, em busca dos instrumentos que peloprocesso descrito, havamos identificado nas vrias

    regies que amos percorrer, procurando delimitar as suas

    reas respectivas; e tambm, simultaneamente, recolher

    todos os elementos que lhes dissessem respeito. De 28 de

    Fevereiro a 5 de Maro, regio do Douro e Trs-os-

    Montes, numa primeira prospeco e tomada de contacto,

    para conhecimento dos instrumentos ali usados ou

    existentes, de que logo adquirimos algumas espcies,

    nomeadamente vrias flautas e uma gaita-de-foles feita

    pelo gaiteiro-filsofo de Travanca, Mogadouro, que nos

    revelou o segredo esotrico da gaita-de-foles: Eles

    dizem que sou meio maluco e meio bbado; mas eu sei que

    para tocar bem a gaita no bastam os dedos como os outros

    pensam: necessrio alegria e amor do prximo; e tambm

    lcool do esprito. De 9 a 17 de Maro, Beira Baixa e

    novamente a Trs-os-Montes donde jtrouxemos um grande

    nmero de espcies adufes, flautas, sarroncas e

    instrumental dos Bombos beires, pfaros, pandeiros, o

    instrumento do tamborileiro transmontano e parte do dos

    gaiteiros e pauliteiros da regio, em especial a

    magnfica gaita-de-foles de feitura pastoril local, que

    pertencia ao gaiteiro JosJoo da Igreja, de Ifanes, e o

    tamboril e flauta, do Virglio Cristal, de Constantim, em

    Terras de Miranda. Lembro o primeiro encontro com o

    Virglio Cristal, em sua casa, quando se ocupava na

    feitura de uma capa de honras mirandesa. Na altura, a

    prtica musical cara em desuso e valeu a nossa

    insistncia para ele se esforar na busca do tamboril,

    escondido num recanto junto da chaminda cozinha. Como

    em tantas outras situaes o acto de cedncia no foi

    fcil. Os argumentos culturais que defendamos criaram-

    lhe um certo embarao e, para encurtar razes, pediu

    250$00 por ele. Quando, de imediato se deu conta que

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    21/469

    aceitvamos essa proposta ficou aflito e recusou-se a

    receber essa importncia alegando que o instrumento no

    tinha esse valor. Fizera-o para se livrar da nossa

    solicitao. Esse primeiro contacto selou uma amizade de

    toda a vida. Quando o importunmos para vir a Lisboa,participar num concerto de tocadores, realizado na

    Fundao Gulbenkian no dia 20 de Outubro de 1962,

    confrontado com a premncia dos trabalhos do calendrio

    agrcola, declarou-nos: Eu vou! Eu pelos senhores dava o

    sangue das minhas veias!. Ainda em Terras mirandesas

    conhecemos o tocador de pfaro Manuel Incio Joo, que

    vivia com a mulher, em Gensio. Encontrmo-lo pela

    primeira vez, numa manh, onde nos recebeu, na cozinha.

    Antes de responder s nossas solicitaes musicais foi

    buscar um chourio e uma caneca de vinho, ps uma sert

    na trempe, sobre o fogo da lareira e fritou o chourio s

    rodelas. A mulher, de negro, modos reservados

    contrastando com a exuberncia do marido, advertiu-o de

    que era Quaresma e no se podia comer carne. A esta

    observao ele respondeu cravando uma das rodelas com o

    garfo e oferecendo-a ao Ernesto dizendo: Toma la

    hostia. S depois de comermos e bebermos que foi

    buscar a flauta e nos surpreendeu com a sua musicalidade

    e vitalidade. Combinmos novo encontro e uma gravao em

    Miranda do Douro, dado que, nessa altura, no havia ainda

    rede elctrica na aldeia. Foi tambm nesta viagem que

    obtivemos o pfaro do Jacob Fernandes, de Duas Igrejas.

    Numa primeira visita esse objectivo gorou-se pela infeliz

    interferncia do Pe. Antnio Mourinho que, na qualidade

    de director do Rancho dos Pauliteiros daquela aldeia,

    exerceu uma manifesta coaco sobre aquele elemento do

    grupo. Tratava-se, na verdade, de uma pea notvel que

    testemunhava certas caractersticas da esttica regional

    e por isso oferecemos uma soma excessiva. Mas ento, as

    razes alimentadas por um certo folclorismo e mais uma

    vez a diferena de status dos interventores jogou em

    nosso desfavor. O desfecho favorvel resultou da

    interveno aguerrida da esposa do Jacob que no teve

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    22/469

    contemplaes com o Padre. Foi tambm nesta viagem que

    conhecemos o Tio Rebanda, de Mazouco, pastor solitrio

    conhecido pela profunda paixo que mantinha com a sua

    flauta, companheira de todos os instantes livres. Para

    maior comodidade de a transportar no bolso construiu umexemplar desmontvel em trs partes. Fomos encontr-lo,

    velho e apagado, sentado num degrau de escada, na sua

    recente condio de homem casado com uma jovem mulher,

    que certamente cobiou as courelas que uma vida de grande

    parcimnia permitiu obter. A mulher, quando percebeu que

    a flauta nos podia interessar, trouxe-a com a maior

    solicitude e p-la nas mos do marido. Este, quase cego,

    teve a maior dificuldade em montar os trs elementos e,

    levando-a boca, no conseguiu retirar dela o menor som.

    A flauta estava ressequida e pediu um copo de aguardente,

    que partilhou com ela, derramando uma parte na flauta e

    bebendo o resto. Os dedos, hesitantemente, reencontraram

    algum domnio sobre o fio musical e, pela ltima vez,

    atravs desse instrumento, o velho mundo do silncio

    pastoril acordou e iluminou esse dramtico momento.

    De 3 a 14 de Abril, volvemos ao Alentejo e Beira Baixa,

    numa sada particularmente frutfera, em que, entre

    outros instrumentos sarroncas, flautas, etc. -,

    encontrmos, adquirimos, estudmos a actuao e gravmos

    a msica da viola campania e do tamborileiro alentejano,

    dois casos praticamente ignorados pela investigao,

    extremamente raros e em vias de total desaparecimento,

    que conseguimos documentar completamente. A nossa visita

    coincidiu com a festa de Nossa Senhora das Pazes, a 9 de

    Abril, em Vila Verde de Ficalho, onde figura esse

    elemento. Recordo a visita casa do tamborileiro Antnio

    Maria Cuco, de Santo Aleixo da Restaurao, a sua extrema

    modstia e esmero, de uma sdiviso, com cho de xisto

    lmpido e paredes contrastantes na brancura da cal, a

    cozinha na superao rara dos sinais do fogo, a um dos

    lados e, no oposto, a cama num arranjo de dia festivo.

    Neste cenrio da maior simplicidade destacava-se uma

    pequena arca de pinho que o Antnio Maria abriu pondo a

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    23/469

    descoberto a dignidade da sua pobreza, o cheiro das ervas

    que perfumavam as roupas e, num escaninho, como um bem

    precioso, o pfaro que agora integra esta coleco. Foi

    tambm nessa altura que tivemos ocasio de ver o pfaro

    do tamborileiro das festas de Santa Maria de Barrancos eque encetmos as delicadas diligncias que conduziram

    sua ulterior oferta pelo povo dessa vila. Foi ainda nesta

    viagem, a 6 desse ms, que tivemos a ventura de conhecer

    o saudoso amigo Jorge Montes Caranova, de Peroguarda,

    Beja, um dos ltimos exmios tocadores de viola

    campania, que encontrmos pela primeira vez numa fbrica

    de moagem em Santa Vitria, onde trabalhava.

    Acerca de um programa televisivo que teve lugar em

    27/6/1961 nos estdios da Serra do Pilar, em Vila Nova de

    Gaia, sobre instrumentos musicais populares, realizado

    por Jorge Listopad com a participao de Ernesto Veiga de

    Oliveira, transcrevemos a seguinte carta:

    Santa Vitria, 30 de Junho de 1961

    Exm. Senhor

    Ernesto Veiga de Oliveira

    Estimo que esteja bem de sade assim como todos de sua

    famlia, que eu ao escrever-lhe fico bem graas a Deus e

    minha famlia.

    Vou escrever-lhe o que jdevia ter feito hmuito tempo,

    para lhe agradecer a sua lembrana o que no me passava

    pela ideia, primeiro recebi o retracto, com a viola

    campania. Todos de casa ficaram muito contentes, pois

    mandei logo no outro dia para Lisboa para trs filhas que

    tenho lo verem. Ficaram muito satisfeitas em ver o

    retracto assim naquelas condies porque quando eram

    pequeninas ouviram aquele instrumento eu a tocar e elas

    ao p, agora jso homens e mulheres recordam o passado.

    Senhor Ernesto um dia estava aqui a trabalhar chegou aqui

    um amigo nosso com o bocadinho de jornal e a fotografia

    falando da viola campania4. Eu disse-lhe o que havia

    passado e ele conheceu antes tanto que veio trazer.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    24/469

    Depois ao fim de tempo recebo o vosso postal dizendo que

    ia eu aparecer na televiso s 20 horas e 10 minutos.

    Contei aos patres eles ficaram outra vez de volta da

    farinha e eu fui a Ervidel. s 20 horas e 30 minutos

    comearam a falar no Porto. Logo vi o senhor a falar,fiquei muito contente. Eu dizia, aquele senhor que

    representa todas estas coisas que esto aparecendo no

    Porto. Depois apareceram violas campanias, uma delas

    dava ares de uma como a minha, estava muita, muita gente

    para ver, como eu dizia que eu ia aparecer, todos

    satisfeitos, uns chamaram outros que vinham j perto.

    Depois acabou, ficaram com pena de no ver. Mas de tudo o

    que vi, ouvi o senhor a falar desempenadamente sem a

    lngua se enrolar nem se embaraar em nada dizer, tantas

    palavras tudo muito bem conversado. Gostei mais de ouvir

    do que eu aparecer. Pessoas que estavam a trabalhar nos

    altos fornos, que estavam a ver a televiso ouviram falar

    no meu nome e viram, mandaram dizer s famlias.

    Se fizer alguma exposio em Lisboa faa favor mande

    dizer para os meus irem ouvir.

    A descrio que vinha no Jornal mesmo assim, esttudo

    muito bem dito.

    Esta tarde se tivesse uma viola ia com outros

    companheiros entreter um bocado que domingo. Por favor

    recomende por mim muito ao senhor Benjamim.

    Termino a minha carta pedindo-lhe desculpa e agradecendo

    a vossa lembrana.

    Receba muitas saudades e aperto de mo deste muito amigo

    Jorge Montes Caranova, natural de Peroguarda.

    De 2 a 14 de Maio fomos pela terceira vez a Trs-os-

    Montes e Beira Baixa, e pela segunda ao Alentejo a fim de

    recolher vrias espcies negociadas nas visitas

    anteriores, adquirir outras ento identificadas,

    estimular ou insistir nas diligncias combinadas e fazer

    fotografias e gravaes. A data desta excurso fora

    fixada de acordo com as festas de Santo Antnio, em Santo

    Aleixo da Restaurao, no primeiro domingo de Maio, e

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    25/469

    aproveitmos para ir a Barrancos buscar o pfaro que,

    aps delicadas negociaes, nos fora oferecido. Como

    exemplo da cuidada metodologia que utilizmos na

    organizao deste trabalho, transcrevemos a carta que

    ento dirigimos Comisso da Festa de Santa Maria deBarrancos, expedida do Porto em 18 de Abril de 1961:

    Tendo ponderado devidamente certas razes que no nos

    ocorreram na ocasio em que nos foi comunicado o parecer

    de alguns dos membros dessa Exm. Comisso acerca do

    nosso pedido de cedncia do pfaro que faz parte do

    tamborileiro que compete a essa festa, vimos novamente

    perante a mesma Exm. Comisso, pedindo vnia para

    comentar alguns dos motivos alegados naquela ocasio, e

    expor as referidas razes.

    Como a tivemos ocasio de dizer, o instrumento em

    questo constitui uma pea de considervel interesse

    etnogrfico, tanto como um exemplo notvel de arte

    pastoril, como e foi esse aspecto que justificou as

    nossas diligncias um espcimen excepcionalmente

    formoso do instrumental musical popular dessa rea. o

    Alentejo uma terra de pastores, onde era corrente a

    flauta pastoril, ornamentada segundo a arte da madeira

    lavrada, ou bordada como ase diz, caracterstica das

    regies de pastoreio em geral. Mas todas as formas

    tradicionais vo acabando, e hoje, dessa arte to

    significativa, jpouco mais resta do que a lembrana;

    particularmente no campo da nossa investigao, em toda a

    Provncia j no conseguimos recolher seno dois

    exemplares pobrssimos, lisos e sem qualquer ornato, que,

    com nosso profundo desgosto, iro representar, aos olhos

    de toda a gente, a justamente famosa arte pastoril

    alentejana, no campo dos instrumentos de msica.

    Mas o pfaro de Santa Maria de Barrancos tem, sob o ponto

    de vista etnogrfico, ainda um outro interesse: ele ,

    com efeito, o testemunho de um elemento cultural da maior

    importncia na nossa musicologia popular o Tamborileiro

    alentejano, que nos parece constituir uma das formas mais

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    26/469

    arcaicas da msica, com a sua escala reduzida segundo as

    possibilidades rudimentares do pfaro, e com a

    reminiscncia muito sensvel do seu carcter ritual,

    adstrito festa principal da Vila. Quer dizer, o pfaro

    de Barrancos no s uma lindssima pea de artepastoril alentejana, mas o testemunho mais perfeito e

    significativo de uma forma primordial da nossa msica

    popular.

    Foram estas duas razes, que, assim que nos foi dado

    observar o referido instrumento, nos levaram a ousar

    propor a sua aquisio, e que justificam agora a nossa

    insistncia.

    fora de dvida que uma tal pea, pelo seu interesse e

    significado, tem a sua verdadeira projeco e o seu lugar

    mais representativo, devidamente enquadrada num Museu de

    Lisboa, onde pode ser visto por todos aqueles, estudiosos

    ou amadores, nacionais e estrangeiros, que se interessam

    por assuntos desta espcie. De resto, como ativemos

    ocasio de acentuar, a cedncia do objecto, por parte do

    povo de Barrancos, para a coleco que fomos encarregados

    de organizar, no o privaria, de certo modo, desse mesmo

    objecto: ele apenas se transferiria para onde pode ser

    mais amplamente apreciado, sem deixar de, a, atestar

    expressamente a sua terra de origem e os seus valores

    regionais. Onde e no estado em que ele se encontra

    presentemente na linda mas distante vila de Barrancos,

    onde sai luz do dia uma vez por ano o

    interessantssimo pfaro das festas de Santa Maria

    completamente desconhecido da grande maioria para no

    dizer a quase totalidade dos portugueses e ainda mais dos

    estrangeiros. A nossa diligncia visava pois, uma vez

    mais, neste caso particular, o interesse nacional e ato

    interesse geral da cincia; e mesmo sob o aspecto

    regionalstico, a valorizao justificada e exaltada de

    uma modesta obra barranquenha.

    com grande satisfao que consigno aqui o meu

    reconhecimento pela compreenso que encontrei em todos os

    membros dessa Exm. Comisso, que em relao ao que neste

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    27/469

    sentido lhe expus, espontaneamente me deixaram entender

    que, a no atenderem a outras razes, gostosamente

    concordariam em ceder a pea em questo para a coleco

    que temos em vista. Por isso so essas razes que agora

    passo a analisar.a msica popular um captulo de primordial importncia

    no conjunto dos estudos da vida e cultura nacionais. No

    que se refere ao seu instrumental respectivo, a maioria

    dos pases j realizou devidamente a sua recolha e

    arquivo; mas entre ns, segundo a lei dos tempos, as

    coisas esto em vias de completo desaparecimento, sem

    que, at hoje, se tenha feito nada no sentido de

    conservar os seus tipos fundamentais, em vista da

    investigao futura. Por isso, e conforme se diz na

    circular que no incio do nosso empreendimento, foi

    enviada, em nome da Fundao Calouste Gulbenkian a todas

    as pessoas e entidades a quem houvemos por bem solicitar

    informes sobre o assunto, por meio de um questionrio e

    do qual juntamos, para conhecimento de V. Ex.as um

    exemplar a iniciativa daquela Fundao reveste-se de

    inegvel interesse nacional, tendo, por essa razo,

    merecido a aprovao e o apoio moral do Ministrio da

    Educao Nacional e do Patriarcado de Lisboa. Por isso

    tambm o nosso empreendimento s possvel com a

    compreenso, boa vontade, sentido patritico e

    colaborao efectiva de todos aqueles que, nas diferentes

    terras, possuam ou saibam da existncia de espcies que

    interessam. Sem isso, como bvio, o nosso esforo

    totalmente intil e impossvel. E -nos grato reconhecer

    que, salvo muito raras excepes, encontramos por toda a

    parte esse esprito de compreenso e colaborao que nos

    permitem, no limiar das possibilidades, reunir ainda uma

    coleco que, sem falsa modstia, reputamos excelente, em

    quantidade, qualidade e significado etno-musical.

    Verdadeiramente, entre as poucas peas representativas

    que nos faltam, conta-se precisamente uma bonita flauta

    ou pfaro pastoris alentejanos bordados como de

    jus...

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    28/469

    Fomos encontr-lo em Barrancos; mas, segundo o que anos

    disseram, a dificuldade em o obter reside no facto de os

    seus detentores responsveis no puderem dispor dele,

    porque ele lhes no pertence, mas sim a uma entidade

    vaga, o Povo de Barrancos, que as pessoas com quemfalei foram incapazes de definir. Eu reconheci

    imediatamente estas razes, mas de momento no me

    ocorreram outras em seu seguimento: evidente que, no

    pertencendo o pfaro Exm. Comisso, que apenas

    depositria, ela no pode dispor dele, e nunca eu

    solicitaria a ningum uma irregularidade dessas. Mas

    totalmente fora de dvida que o pfaro tem de pertencer a

    algum, pessoa individual ou colectiva, entidade definida

    ou indefinida, particular ou pblica. A recusa foi fcil,

    embora justa; mas ns agora pedimos alguma coisa mais:

    que a Exm. Comisso procure, ainda que talvez

    trabalhosamente a Fundao Calouste Gulbenkian tem

    feito muita coisa boa pelos povos, merecendo por isso que

    os povos tambm faam alguma coisa por ela, quando em

    nome dela alguma coisa lhes solicitada definir quem

    essa entidade que pode dispor do pfaro, e que lhes

    apresente a nossa pretenso, por forma que ele possa

    legitima e legalmente ser cedido para a coleco que em

    tudo honra o pas.

    Para o fim prtico a que ele se destina, o instrumento

    francamente insatisfatrio; o prprio tamborileiro no-lo

    disse, e pudemos comprov-lo quando agravmos os toques

    da Alvorada e da Procisso. O pfaro estrachado e

    excessivamente gasto, com fugas por onde o sopro se

    escapa no sustentando o tom, e desafinando, e o tocador

    cansa-se rapidamente e no aguenta a linha contnua da

    frase musical; segundo o mesmo Senhor, dentro de muito

    pouco tempo ele no poderser utilizado, e serposto de

    parte. Por isso mesmo, e, de acordo com o que a

    prometramos, na previso de uma deciso que gostaramos

    de esperar nos fosse favorvel, enviamos agora mesmo um

    pfaro que nos foi cedido pelo grupo dos Pauliteiro de

    Crcio (Miranda do Douro), que escolhemos pela sua

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    29/469

    excelente qualidade sonora, experimentada na nossa frente

    pelo seu autor, e que pedimos para desde jser entregue

    ao tamborileiro de Barrancos, Senhor Antnio Torrado

    Rodrigues para que este Senhor veja se se entende com a

    sua afinao, de modo a que, caso o assunto se venha aresolver a nosso contento, as coisas estejam devidamente

    previstas e solucionadas para a prxima festa. evidente

    que isto no pretende compensar a eventual cedncia, por

    parte de V. Exas., do interessantssimo instrumento

    barranquenho, mas apenas obviar s dificuldades prticas

    que ela poderia acarretar organizao das festas deste

    ano. Repetindo o que adissemos, a nossa inteno era

    entregar a V. Exas., alm disso, a importncia que

    entendessem que o objecto poderia valer.

    O sucesso desta pretenso determinou uma nova ida ao

    Alentejo, de 14 a 16 de Agosto, para assistirmos, em

    Barrancos, ao peditrio das festas de Santa Maria, para

    as quais nos tinham convidado, e onde o tamborileiro tem

    uma das suas intervenes mais importantes, que foi

    amplamente documentada.

    Fizemos tambm duas sadas do mesmo gnero mas de menor

    mbito, ambas regio de Coimbra, de 7 a 9 de Junho e de

    3 a 4 de Julho primordialmente para busca e estudo do

    instrumental dos gaiteiros daquela zona, que adquirimos

    uma gaita-de-foles de fabrico local, bombo e caixa. Os

    gaiteiros de Barreira, Condeixa, aps haverem terminado a

    sua prestao musical no complexo festivo da Queima das

    Fitas, em Coimbra, regressaram pela madrugada sua

    terra. Trouxeram consigo uns foguetes e um garrafo de

    vinho e, vista da aldeia, num pequeno olival, fizeram a

    sua prpria festa: atiraram os foguetes, beberam e

    tocaram at ao paroxismo da embriaguez do vinho e da

    msica, em que corpos e instrumentos se confundiam, nas

    posturas mais incrveis, rebolando-se no solo numa

    espcie de dana fantasmtica.

    E tivemos ainda um grande nmero de pequenas sadas para

    resoluo de casos concretos, esclarecimento de dvidas,

    assistncia a determinadas manifestaes em que aparecem

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    30/469

    formas caractersticas. Em 2 de Fevereiro, a Amarante,

    buscar um belo violo de tipo francs, com embutidos, que

    nos fora prometido; em 8 do mesmo ms regio de Braga,

    em visita aos violeiros e construtores da cidade e da

    rea; a 19 do mesmo ms, ao Santurio da Peneda, paraestudo da sanfona que descobrimos na capela da Adorao

    dos Pastores, quando ali estivemos na festa do ano de

    1960; em 21 de Maro, aos arredores de Braga buscar

    variado instrumental de rusgas e desafios; em 18 de Maio

    e 11 de Junho a Guimares para busca e em seguida compra

    de outros instrumentos de rusgas, designadamente os

    reque-reques e zuca-trucas caractersticos dessa regio

    minhota; em 16 de Junho, a Darque para aquisio de um

    par de gigantones e de cabeudos; em 1 de Julho rea de

    Barcelos em busca de reque-reques da regio; de 18 a 20

    de Agosto, a Viana do Castelo s festas da Agonia, para

    estudo, fotografia e gravao da msica dos Z-Pereiras

    minhotos, que tem a a sua maior concentrao; e

    finalmente, em 22 de Outubro, de novo mesma regio,

    para compra de um bombo interessante que adescobrimos,

    e de uma ocarina antiga de barro, de Barcelos, de um

    modelo que desapareceu, e que pertencia a um famoso

    tocador, JosGonalves Dias que, antes de se despedir

    dela, gravou para ns algumas modas. Alm disso, fomos

    por duas vezes Galiza, em busca da sanfona, que, to

    corrente entre ns ainda no sculo XVIII como instrumento

    de cegos e mendicantes, e to insistentemente documentada

    nas figuras de prespio dos nossos barristas, desapareceu

    completamente do Pas, e que soubramos ser ainda

    cultivada naquela provncia espanhola: a primeira, de 22

    a 26 de Fevereiro, a Santiago de Compostela e da, como

    consequncia das nossas diligncias, a Lugo, onde nos

    indicaram a escola-ofcina artesanal adstrita

    Diputacion Provincial; a segunda, de 28 de Novembro a 2

    de Dezembro, a esta ltima cidade, por Pontevedra e

    regresso novamente por Santiago de Compostela (cujos

    Museus respectivos possuem o instrumento em questo e

    documentao interessante) para seu estudo, e para

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    31/469

    transporte, a final, do exemplar que encomendramos. No

    decurso destas excurses investigmos da existncia e

    adquirimos grande nmero de outros pequenos instrumentos.

    Alm disso, no Porto e, de modo semelhante, em Lisboa,

    Coimbra, Braga e outras cidades e vilas, todas as vezesque a passmos, visitmos os violeiros locais,

    antiqurios e atcasas de penhores, em busca de espcies

    que interessassem.

    Resumindo, nesse segundo ano de trabalhos foram

    adquiridos 276 instrumentos importando em 30.147$00 e

    percorridos 13.360 quilmetros em 70 dias teis de

    trabalho.

    Os trabalhos de campo, em 1962, desenvolveram-se a um

    ritmo mais lento, cedendo o passo a outros afazeres

    profissionais. Em Abril, tivemos praticamente uma sada,

    em 7 e 8, Serra da Peneda, para esclarecimento da

    questo da sanfona existente naquele santurio, que

    verificmos no ser um instrumento real, mas que

    constitui um excelente elemento iconogrfico, que

    fotografmos. Em Maio, de 6 a 10, corremos a regio de

    Torres Vedras, para um primeiro contacto com os gaiteiros

    estremenhos. No adquirimos anenhum instrumento, porque

    constatmos que todos eles eram j de provenincia

    galega. No dia 11 de Junho, fomos a Amarante, a fim de

    vermos a concentrao de Z-Pereiras da regio nas festas

    de S. Gonalo. E em Julho, encontrando-nos em Lisboa,

    consagrmos os dias 11 a 13 para realizarmos as primeiras

    diligncias no sentido de identificarmos o proprietrio e

    paradeiro da guitarra da Severa. A partir de fins de

    Julho, perante a deciso de se realizar uma exposio dos

    instrumentos musicais populares, quando da reunio em

    Lisboa do ICOM, prevista de 12 a 18 de Novembro, tornou-

    se necessrio apressar o mais possvel o ritmo dos nossos

    trabalhos, marcados ento por duas finalidades: por um

    lado, a obteno das espcies principais que nos

    faltavam; concomitantemente, a audio, escolha e

    finalmente convite dos tocadores populares, dos

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    32/469

    diferentes instrumentos e regies, que deviam apresentar-

    se naquela ocasio, conforme fora decidido. Assim,

    percorremos, de 31 de Julho a 10 de Agosto, toda a regio

    do Alto de Trs-os-Montes, as zonas de Vinhais, Bragana

    e Miranda do Douro, onde adquirimos a gaita-de-foles e otamboril, ao extraordinrio gaiteiro Juan de Rio de Onor,

    que acedeu a acompanhar-nos a Bragana para podermos

    fazer algumas gravaes do seu excelente repertrio; e um

    pandeiro da tocadora Maria do Carmo Garcia, de Moimenta

    (Vinhais). Nesta aldeia, tivemos ensejo de contar com a

    disponibilidade de um dos melhores gaiteiros que

    conhecemos desta regio: O Carlos Gonalves, que

    juntamente com a Maria do Carmo, secundados por outros

    elementos, nos permitiram recolher, ao longo de vrias

    horas, um repertrio musical da maior importncia. Dada a

    excelncia desse conjunto musical decidimos convid-los

    para participar nesse concerto em Lisboa gaita-de-

    foles, bombo, caixa, pandeiro e ferranholas. Solicitmos,

    do mesmo modo, a presena nesse acontecimento, do amigo

    Virglio Cristal. Visitmos, mais uma vez, o Francisco

    Domingues, de Paradela, que apesar de ser um repositrio

    do velho patrimnio musical mirands, gostava de fado e

    havia construdo uma guitarra usando como caixa de

    ressonncia uma lata de caf. Dado o interesse para a

    coleco desse espcime, combinmos a sua troca por uma

    guitarra normal sua escolha. Transcrevemos uma das

    cartas da correspondncia trocada que d conta do

    resultado final dessa proposta:

    Paradela, 24 de Outubro de 1962

    Exm. Senhor

    Ernesto Veiga de Oliveira

    Os nossos afectuosos comprimentos e votos da melhor

    sade quanto lhes deseja o seu Amigo Francisco

    Domingues.

    Senhor Ernesto crecebi a vossa carta a qual shoje

    respondo para dizer lhe que a lhe envio a guitarra

    juntamente com uma flauta e um par de castanholas que so

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    33/469

    as nicas que havia j nesta povoao e como so

    instrumentos j muito raros nesta povoao nem mos

    queriam vender porque os tm como uma recordao. Julgam

    les que enquanto tm estes instrumentos em casa que os

    donos ainda stm os mesmos 20 anos que tinham quandofaziam uso deles e por isso no mos queriam vender. Com

    respeito aos dois pares de castanholas custaram 32.50 e a

    flauta 15.00. Com respeito ao preo da guitarra esta que

    eu tenho custou no Porto 400.00.

    Eu creio que aos senhores parecer demais visto a

    guitarra que eu derramei estar ainda a meio uso como ns

    dizemos e hoje tive tambm de gastar o dia inteiro para

    vir propositadamente a mete-la no correio a Miranda e

    como os senhores sabem fica longe e no h meios de

    transporte e tem a gente que vir a pou numa besta e

    gasta-se um dia inteiro para ir a Miranda e voltar. No

    sei se as castanholas lhe parecero caras mas no mas

    quizeram dar menos, caso no lhes interessem o dono diz

    que voltava a aceita-las.

    E nada mais por momento desejando sempre as melhores

    felicidades aos senhores subscreve-se com a maior

    considerao pelos senhores o seu sempre amigo Francisco

    dos Reis Domingues.

    Quando abrimos o pequeno caixote em que vinha a guitarra,

    no interior da tampa, escrita a lpis, vinha a seguinte

    quadra de despedida:

    Guitarra vais pelo mundo

    Correr Portugal inteiro

    Mas em Paradela fica

    O teu velho companheiro

    Francisco Domingues aproveitra ainda umas pequena placas

    de madeira, usadas ento como etiquetas das mercadorias

    que circulavam nos Caminhos de Ferro, que aplicou no

    tampo dessa guitarra, para nelas escrever vrias quadras.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    34/469

    Uma delas, extremamente expressiva, faz mesmo a sua

    histria:

    Guitarras em Paradela

    Nascente tu a primeiraPor isso levas o nome

    Linda Estrela da Beira

    Estrela da Beira era a marca do cafcontido nessa

    embalagem.

    No dia 23 desse mesmo ms, fomos a Braga e arredores, a

    fim de ouvirmos tocadores de viola braguesa e cavaquinho,

    que no nos pareceram satisfatrios. De 24 de Agosto a 1

    de Setembro, demos uma volta pelo Alentejo e Beira Baixa,

    durante a qual adquirimos pandeiros e castanholas de

    excelente qualidade, nomeadamente os espcimes de Santa

    Eullia (Elvas). Passmos em Santa Vitria e convidmos o

    Jorge Caranova, que acedeu com a maior satisfao a

    participar no concerto em Lisboa. Da Beira, como tocadora

    de adufe, convidmos a Maria Gertrudes Nabais, da Pvoa

    de Atalaia (Fundo). De 6 a 9 e 13 a 17 desse mesmo ms,

    deslocmo-nos regio estremenha, de Torres Vedras e

    Nazar, para assistirmos a diversos crios, tendo

    aproveitado para estudarmos e adquirirmos, em Almeirim,

    alguns idiofones originais que ali se usavam. Em 23, 27 e

    30 de Setembro, e 7 e 21 de Outubro, fomos a Celorico de

    Basto, e a partir daa vrias povoaes dos concelhos

    limtrofes para documentarmos a Chula e escolhermos o

    conjunto da Chulada a apresentar em Lisboa, tendo

    finalmente, aps audio dos grupos de Tabuado, Carvalho

    de Rei, S. Bartolomeu, Arnoia e S. Simo, escolhido o de

    Tabuado (Marco de Canavezes) que tinha como figuras

    solistas o Fernando Cunha Major, na rabeca e a Maria da

    Glria Vieira como cantadeira, alm dos acompanhantes, um

    violo surdinado, uma viola, bombo e ferrinhos.

    Jem Novembro, em 4 e 14, fomos a Braga convidar os

    tocadores de viola braguesa e cavaquinho, Manuel e

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    35/469

    Bernardino da Silva; e contactar mais uma vez os

    construtores, pai e filho, Domingos Manuel Machado, de

    Aveleda e Domingos Martins Machado, da Tebosa, que nos

    prestaram uma colaborao preciosa, ajudando-nos alm do

    mais a encontrar alguns espcimes de viola braguesa deboca oval e redonda, ento muito raras.

    Nesse primeiro concerto, que teve lugar a 24 de Novembro

    de 1962, estiveram presentes esse conjunto de Moimenta

    (Vinhais), o tamborileiro de Constantim (Miranda do

    Douro), a Chulada de Tabuado (Marco de Canavezes), os

    tocadores de viola braguesa e cavaquinho de Braga, a

    tocadora de adufe, da Pvoa de Atalaia (Fundo) e o

    tocador de viola campania, de Santa Vitria, Beja.

    Lamentavelmente dessa excepcional actuao a Fundao

    Gulbenkian no preservou o registo gravado que na altura

    foi feito.

    Neste ano a coleco foi enriquecida com mais 65

    instrumentos, que importaram em 16.094$00, tendo ns

    dispendido 61 dias de trabalho de campo e percorrido

    10.047 quilmetros.

    Os nossos trabalhos relativos a este tema, durante o ano

    de 1963 e anteriormente prospeco que efectumos nas

    Ilhas da Madeira e Porto Santo e dos Aores, de 10 de

    Outubro a 5 de Dezembro, tiveram como objectivo quase

    exclusivo o estudo dos instrumentos fundamentais da Beira

    Baixa, nas suas funes principais, nomeadamente: 1) o

    adufe e o seu papel nas grandes romarias regionais, das

    Senhoras do Almurto e da Pvoa, em 29 de Abril e 3 de

    Junho respectivamente, e nas festas de Monsanto, em 3 de

    Maio; e 2) o instrumental das danas da Lousa (Castelo

    Branco), integradas nas festas que deviam realizar-se a

    19 de Maio, mas que foram adiadas para Junho: a viola

    beiroa, as genebres e os trinchos.

    Nas excurses s festas da Senhora do Almurto, de

    Monsanto e da Pvoa, aonde acorriam gentes de toda a

    provncia e das quais trouxemos uma profusa documentao

    fotogrfica, e vrios adufes adquiridos aos construtores

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    36/469

    da regio nas prprias tendas do arraial, pudemos

    observar a natureza cerimonial do adufe, usado sempre

    pelas mulheres, em ocasies de grande solenidade, como um

    verdadeiro instrumento da liturgia popular. ao som do

    adufe que os ranchos de cada povoao cantam asalvssaras Senhora volta e seguidamente porta do

    templo, sob o alpendre, chegada e, no dia seguinte,

    acompanhando o guio, atrs do sacerdote, na Senhora do

    Almurto e da Pvoa, sendo de lamentar que uma

    incompreensvel proibio tenha acabado, nesta ltima

    festa, com uma das mais impressionantes manifestaes

    musicais do Pas.

    As festas e danas da Lousa constituem um espectculo

    notvel, sob todos os pontos de vista. O seu instrumental

    taxativo, parte do qual se pode sem dvida considerar de

    natureza ritual, compe-se da genebres, que caso nico

    em Portugal e que usada pela figura sobressaliente da

    dana, dos trinchos, pequenos pandeiros redondos sem

    peles e apenas com soalhas no aro, que funcionam como

    sacuditivos, e das violas em nmero de cinco, de um tipo

    especial, usadas pelos restantes cinco tocadores.

    Alm dos adufes que comprmos nas festas do Almurto e da

    Pvoa, adquirimos ainda, em Monsanto, duas palhetas,

    essas dulainas beiroas que jsali se encontram; elas

    so da autoria de um pastor, Josdos Reis, que pudemos

    ainda fotografar a tocar o seu instrumento, nas festas da

    Pvoa.

    Resumindo, pois: adquirimos durante o ano de 1963, antes

    da prospeco nas Ilhas, 20 instrumentos, de natureza e

    valor muito diferentes, que, com outros objectos afins,

    importaram em 4.555$00. Para estas aquisies, e estudos

    sobre o assunto, percorremos, naquele perodo, 2.787

    quilmetros e gastmos 13 dias teis de trabalho de

    campo.

    A nossa actividade nas ilhas da Madeira e dos Aores

    alargou-se abordagem de diversos temas, para alm do

    estudo e recolha dos instrumentos musicais, com

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    37/469

    particular relevncia da temtica dos moinhos de vento,

    actividades agrcolas e sistemas de secagem e armazenagem

    do milho5; e ainda a uma recolha de material etnogrfico

    para o Museu de Etnologia, que desse conta dos traos

    mais expressivos da cultura rural dessas diferentesilhas.

    Esses trabalhos de investigao e recolha tiveram incio

    nas ilhas da Madeira e Porto Santo e decorreram de 11 a

    28 de Outubro de 1963.

    A pesquisa baseou-se fundamentalmente no dilogo com os

    diversos violeiros que identificmos na cidade do Funchal

    Agostinho de Freitas Menezes, que embora filho de

    violeiro de certa fama pouco sabia de formas antigas; o

    mestre Camb, um filsofo, que nos falou do uso da viola

    pelos viles, que ficavam horas interminveis a tocar, e

    para quem aqueles acordes pobres do charamba era a melhor

    msica; o JosM. da Silveira, ou JosGuitarrista, que

    foi aprendiz em casa do Manuel Pereira e trabalhou com o

    Antnio Victor Vieira em Lisboa; o Csar Gomes Vieira, de

    setenta e tal anos, que nos confirmou a existncia de

    braguinhas com o brao raso e trastos satcaixa, e

    violas do mesmo modo mas, por vezes, com alguns meios

    trastos sobre o tampo para as cordas agudas e sempre com

    9 cordas. Lembrava-se, contudo, que havia tambm violas

    do tipo de brao alto e 17 ou 18 trastos. Este construtor

    foi premiado com medalha de ouro na Exposio de Sevilha

    de 1928/30, onde apresentou um rajo ou machete e uma

    guitarra.

    O Padre Eduardo Pereira, com quem mantivemos uma longa e

    encantada conversa, pouco nos pde dizer de instrumentos

    musicais.

    Ainda no Funchal, encontrmo-nos com Bartolomeu Pedro de

    Abreu, sobrinho por afinidade e genro de Joo Nunes

    Diabinho, filho de Octaviano Joo Nunes, ambos muito

    hbeis na arte de construo de instrumentos de corda.

    O Octaviano fez um braguinha, que ofereceu Imperatriz

    D. Isabel da ustria. Bartolomeu Abreu possua um

    braguinha da autoria do Octaviano, datado de 1901, e

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    38/469

    outro da autoria do filho, seu tio e sogro. Eram duas

    peas de excepcional categoria que, a despeito das nossas

    maiores diligncias, recusou ceder, tendo mesmo hesitado

    em deixar fotograf-los. Vendeu-nos um violo da autoria

    do Octaviano Joo Nunes. Em Agosto de 1964 este senhorvisitou-nos em Lisboa e apresentou uma proposta de venda

    daqueles dois instrumentos pela importncia de 50.000$00

    que foi ento considerada excessiva pela Fundao

    Gulbenkian; e esses braguinhas perderam-se para a

    coleco. Por um acaso feliz viemos a encontrar, uns anos

    mais tarde, num estabelecimento do Porto, um braguinha da

    autoria do Octaviano Joo Nunes, que adquirimos por um

    preo idntico ao dos comuns cavaquinhos dos fabricantes

    minhotos.

    Nas deambulaes pela Ilha procurmos, alm dos

    construtores, os tocadores, sobretudo de instrumentos de

    corda. Mas a raridade destes e a grande dificuldade de

    acesso aos lugares onde alguns viviam concorreram para um

    resultado pouco interessante. No lugar de Marouce,

    Machico, por exemplo, aps demorado e arriscado percurso

    por carreiros no raro cavados em degraus ngremes,

    atingimos o alto onde morava o violeiro Manuel Moniz, que

    aprendera o ofcio com seu pai. Fabricava especialmente

    rabecas, violas de arame, rajes e braguinhas. Nunca

    construiu instrumentos com a escala rasa com o tampo; mas

    lembrava-se de quando novo ter visto instrumentos sem

    escala. No seu entender, para o Brinco deve haver

    sempre tocadores de rabeca, viola, rajo e braguinha.

    Estes mesmos instrumentos integravam a Folia do Esprito

    Santo.

    O musiclogo Padre Roque Dantas falou-nos das castanholas

    que se tocam e usam na Ribeira Brava, na Missa do

    Parto, no Natal, volta da povoao, desde a madrugada,

    e dos tocadores de viola, rabeca, braguinha e rajo,

    impossveis de abordar. Por seu turno, o vigrio de

    Tabua, que a terra donde vm as gentes com castanholas

    para aquela festa, falou-nos largamente dessa costumeira

    e referiu-se feitura de castanholas de vrios tamanhos,

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    39/469

    por vezes com 30 cm de comprimento e com sonoridades mais

    graves ou agudas. Havia verdadeiros despiques de

    castanholas que, por vezes, depois da missa, degeneravam

    em rixas.

    Assistimos a alguns ensaios do Rancho da Camacha efalmos longamente com os tocadores, gente simptica e

    sabedora. O seu director, Alfredo Ferreira da Nbrega,

    ofereceu-nos uma viola, um rajo e um braguinha, que

    foram construdos segundo indicaes do estudioso Carlos

    M. Santos.

    Vimos tambm algumas exibies do Rancho do Canio. O

    tocador do brinquinho, verso madeirense do Zuca-

    truca das rusgas do Baixo Minho, especialmente de

    Guimares, era tambm o seu construtor e foi ele quem fez

    o que trouxemos dessa Ilha. Segundo ele, para se tocar

    bem, o brao esquerdo deve apoiar contra o quadril, para

    no cansar; o direito que abana, com movimentos secos e

    rpidos.

    Em Porto Santo participmos num bailinho na Serra de

    Fora, com gente jmadura, algumas jvelhotas, muito

    alegres, confiantes, simpticas, com uma vontade

    inextinguvel de cantar e danar.

    Na meia-volta (a mais notvel de todas as danas, com

    aspectos que lembram coisas norte africanas) andam em

    roda aos pares, o rajo e a viola na roda, a rabeca no

    meio, sozinha. Era um baile mandado. O rajo usava sas

    4 cordas (faltava-lhe o r) e mais conhecido por

    machete. A viola usa 9 cordas. A rabeca o nico

    cantante, e tem grande importncia. O rajo afina pela

    rabeca (l).

    Adquirimos, por compra, 13 instrumentos num total de

    2.605$00; e mais 4, por oferta.

    A viagem do Funchal para Ponta Delgada foi feita de

    barco. Permanecemos nos Aores de 29 de Outubro a 5 de

    Dezembro. A ilha onde realizmos as nossas primeiras

    prospeces foi por isso S. Miguel, onde ficmos atao

    dia 11 de Novembro.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    40/469

    O contacto inicial com construtores de instrumentos teve

    lugar em Vila Franca do Campo, onde falmos com o

    violeiro Miguel Jacinto de Melo, que nos informou dos

    processos de fabrico e tipos de instrumentos mais

    correntes. Por seu intermdio obtivemos duas violasusadas, uma que havia sido construda por ele e a outra

    pelo seu pai.

    Em gua de Alto conhecemos o clebre folio Alfredo

    Sousa, que nos cedeu um pandeiro (trinchos) e um tambor,

    tendo ento gravado vrios cantares das Folias do

    Esprito Santo. Nas Furnas assistimos a ensaios dos

    grupos locais, folclrico e de tocadores e cantadores, e

    gravmos algumas das suas msicas.

    No Faial da Terra gravmos cantigas dos folies e da

    Alembrao das Almas, prprias da Quaresma. Na Ribeira

    Grande conhecemos o violeiro Alfredo de Medeiros Ventura,

    a quem comprmos duas velhas guitarras de cravelhas. No

    Pilar da Bretanha obtivemos de Manuel Virgneo da Ponte

    um pandeiro da folia, metlico e gravmos alguns dos seus

    cantares. Na Covoada encontrmos uma rabeca feita por um

    construtor rural, que nos foi cedida.

    Antes de partirmos de S. Miguel encontrmo-nos com os

    investigadores locais, nomeadamente Dr. Cortes-Rodrigues,

    Dr. Carreiro da Costa, Eng. lvares Cabral e D. Maria

    Luisa Costa Gomes, e jornalistas, aos quais expusemos os

    objectivos e resultados da nossa misso.

    De S. Miguel para a Terceira fomos num pequeno avio,

    tendo permanecido nesta ilha de 11 a 14 de Novembro.

    Entrmos em contacto com o violeiro Paulo, genro do

    afamado construtor Serafim do Canto j falecido. Mas

    aquele senhor jhmuito que deixara a arte. Lembrou-se,

    contudo, que vendera htempos uma bela viola feita pelo

    sogro para a Casa de Sade de S. Rafael (Hospital de

    doenas mentais) e acompanhou-nos a esse estabelecimento.

    Falmos com o seu director que, com grande compreenso,

    nos cedeu aquela viola por troca de outra. Explicou-nos

    que esse instrumento foi adquirido com as economias que

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    41/469

    os doentes fizeram para esse efeito privando-se do

    tabaco.

    Perto da Praia da Vitria contactmos o violeiro Ernesto

    Costa, a quem comprmos vrias violas da sua autoria e de

    seu pai, que tambm fora violeiro, e um cavaquinho, feitosegundo instrues de um madeirense, destinado a um

    soldado americano do Aerdromo das Lages.

    A viagem da Terceira para a Graciosa (onde permanecemos

    de 15 a 17) foi feita no barco Ponta Delgada.

    Logo que chegmos fomos falar com JosGil dvila, nico

    fabricante de violas da ilha. Um outro, Cirino da Cunha

    Santos, estava em Ponta Delgada aguardando passagem para

    a Amrica.

    Num dos diversos moinhos que observmos, em Guadalupe, o

    moleiro ofereceu-nos o bzio que usava para chamar os

    fregueses.

    Na Luz visitmos o Imprio e fomos a casa dos mordomos

    que guardavam naquele ano as insgnias. A coroa velha,

    com o basto e a salva, estava numa casa aonde chegara

    naquela manh, vindo de mais de dois anos de frica, o

    filho soldado. O pai, mordomo por promessa para que o

    Senhor Esprito Santo lhe trouxesse o filho a

    salvamento; o filho veio e, por isso, em cima da mesa l

    estava a coroa entre jarras de flores, velas acesas,

    imagens e o retracto do filho fardado. Servia-se massa

    sovada ou bolo da noite, espcie de regueifa, prpria

    desta solenidade, bolos, vinho e anglica. Parentes e

    visitas e os pais tontos de comoo e alegria. Fizeram-

    nos entrar, comer e beber, participar da festa. A gente

    boa quando vive momentos de alegria no se fecha e os

    estranhos no so importunos.

    Na Praia, encontrmo-nos com o JosGil dvila, tocador

    afamado de viola, o Orlando Pereira Machado, com o

    violo, e o Alfredo Bettencourt, cantador. Tocaram e

    cantaram diversas modas da ilha, sem valor nem interesse

    especial. O Josdvila era um tocador exmio, que fazia

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    42/469

    ponteados como se tratasse duma guitarra, usando

    sobretudo o polegar nas duas primeiras cordas agudas.

    Da Graciosa para S. Jorge tommos o barco Carvalho

    Arajo.Nesta ilha, onde ficmos de 18 a 21, avistmo-nos com o

    violeiro Augusto Silveira Madruga, natural do Pico,

    reputado o melhor e quase nico violeiro de S. Jorge.

    Numa das noites fomos aos Rosais ver o instrumental dos

    balhos da ilha e gravmos vrias modas tocadas e

    cantadas. Usaram a viola (do tipo micaelense), o violo,

    o banjolim, cantadores e cantadeiras.

    A viagem entre S. Jorge e o Pico, onde permanecemos de 21

    a 24, fizemo-la numa lancha baleeira, que mandmos vir

    desta ilha para nos levar, dado que as carreiras normais

    estavam interrompidas devido ao estado do mar. Pela

    primeira vez, a viagem foi uma coisa verdadeiramente

    maravilhosa. Duas horas de absoluta comunho com o mar.

    Em frente de ns, o Pico erguia-se majestoso, envolto num

    manto tnue de nuvens brancas que, de quando em quando, o

    abafavam.

    Procurmos o Padre Joaquim Rosa, Proco de S. Mateus, que

    na resposta que envira ao Inqurito mencionra,

    naquela localidade, o cavaquinho e o machete. Esclareceu-

    nos que o cavaquinho era um instrumento com a forma do

    seu homnimo minhoto, que ele conhecera em pequeno, na

    sua freguesia da Prainha do Norte, e que o machete era

    uma viola pequena que ele prprio tocra.

    No Cais do Pico obtivemos dum moleiro um bzio que fra

    usado pelos baleeiros.

    Na Candelria assistimos exibio do grupo local que

    interpretou vrias chamarritas, pezinhos, etc., ao som da

    viola, violo, violo baixo, banjolim, rabeca e

    cantadoras. Foi nesta ocasio que conhecemos o Francisco

    de Matos Bettencourt, com quem viemos a manter uma

    correspondncia especial, publicada por Joo Leal na

    Revista Etnogrfica (Vol.1, N. 1), e da qual adiante

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    43/469

    transcreveremos uma parte respeitante a uma rabeca que

    ele construiu e ofereceu para a coleco.

    Durante a curta permanncia nesta Ilha tivemos ensejo de

    assistir a uma Coroao de Imperador do Esprito Santo,

    por promessa. A abrir o cortejo vinham os folies, emnmero de dois, tocando tambor e cantando versos, que

    gravmos, caminhando ao seu lado, discretamente.

    No final desta cerimnia fotografmos o Senhor Alfredo,

    reputado tocador de viola, que gravmos ainda.

    Apesar das pssimas condies meteorolgicas e do estado

    do mar a velha lancha Velas apareceu entre as ondas que

    por vezes a encobriam e, aproveitando uma breve acalmia,

    avanou e atracou em plena agitao das vagas e da

    ressaca. O desembarque e embarque de passageiros e carga

    foi rpido e a lancha, miraculosamente, deu a volta sobre

    si mesma no minsculo porto e, noutra breve acalmia, ps-

    se em marcha. A travessia, a despeito das ondas

    alterosas, fez-se muito bem e meia hora depois entrvamos

    nas guas sossegadas da baa da Horta.

    Permanecemos no Faial de 25 a 27.

    Procurmos o violeiro Pedro Miguel, de quem tivramos

    notcia no Pico. Este falou-nos do violeiro Manuel

    Teixeira de Sousa, com quem nos avistmos. Referiu-nos a

    decadncia da viola no Faial e descreveu-nos a tcnica de

    construo e nomenclatura. A viola aqui do tipo

    micaelense, mas fazem de facto algumas com trs coraes.

    Ele constri como tambm vramos no Pico violes com

    trs cordas de harpa, que parecem ter certa voga aqui.

    No tinha nenhum disponvel de resto sconstri para

    satisfazer encomendas mas indicou-nos um fregus a quem

    vendera hpouco um desses instrumentos; e acompanhou-nos

    casa deste que acabou por nos ceder esse violo.

    Por volta das 11 horas, sob uma chuva impenitente,

    embarcmos no Funchal com destino de novo Terceira,

    onde chegmos por volta das 5 horas da tarde.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    44/469

    Aquando da primeira estada nesta ilha havamos feito

    diligncias em vista obteno do tambor da folia das

    Lages. Mas o facto deste ser propriedade da comunidade

    levantou dificuldades que ento no puderam ser

    superadas. Falmos de novo com a Comisso dos Mordomos,que foram muito compreensivos e simpticos; mas, apesar

    da vontade de satisfazer o nosso desejo, no sendo os

    donos do instrumento e cientes da sua natureza ritual,

    receavam incorrer na censura do povo e no se sentiam com

    poderes nem direito de decidir. Mas, perante as nossas

    razes e esclarecimentos acabaram por ceder o tambor, que

    foi condicionalmente oferecido em troca de um donativo de

    700$00 para o Imprio, e sob o compromisso, pela nossa

    parte, de o devolvermos de Lisboa caso o assunto

    suscitasse desinteligncias.

    Num fim de tarde que se prolongou atcerca das 11 horas,

    reunimo-nos em casa do senhor Henrique Borba, com o Jos

    Martins Pereira o Zda Lata -, o Laureano Correia dos

    Reis e mais um rapaz e uma rapariga, irmos, cantadores

    da Rdio Angra. O Z da Lata estava constipado, mas

    sempre cantou algumas coisas, e assim ouvimos um pouco

    desse folclore terceirense, dolente, romntico, de um

    italianismo afadistado de interesse reduzido. Em todo o

    caso as pessoas foram gentilssimas e o Zda Lata uma

    personalidade rica, pitoresca, transfigurado quando

    canta, que o seu meio natural.

    Tommos o avio para S. Miguel e dapara Santa Maria

    onde permanecemos de 31 de Novembro a 5 de Dezembro.

    O faroleiro do farol da Maia era tambm um construtor de

    violas, do tipo micaelense. Por seu intermdio obtivemos

    um instrumento do seu fabrico, vendido hanos a uma

    pessoa que o cedeu pelo preo de uma viola nova.

    Na freguesia de Santo Esprito gravmos os cantares

    diversos dos trs folies do Esprito Santo Antnio de

    Sousa Chaves, de 84 anos, com tambor, Josde Moira, com

    os textos e Jos de Sousa um poeta. Cantaram os

    cnticos das diversas cerimnias, e depois vrios

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    45/469

    falsetes ou sejam duetos, prprios das iluminaes em

    casa dos imperadores.

    Comprmos o tambor, com perto de 100 anos, que pertencera

    ao pai do Senhor Amncio, folio daquela localidade.

    Resumindo, as passagens de ida e regresso a Lisboa e

    inter-ilhas custaram 16.322$00.

    As deslocaes nas ilhas da Madeira e Porto Santo e S.

    Miguel, Terceira, Graciosa, S. Jorge, Pico, Faial e Santa

    Maria, em txi ou automvel sem condutor importaram em

    9.303$00.

    O valor das despesas de alimentao e dormidas foi de

    12.713$00.

    Nos Aores comprmos 38 instrumentos musicais num

    montante de 11.057$00.

    Em 1964, por ocasio do I Congresso Nacional de Turismo,

    a Fundao Gulbenkian levou a efeito, com a nossa

    colaborao, mais uma exposio sobre os Instrumentos

    Musicais, que contou tambm com um concerto de tocadores

    e cantadores populares. A Regio da Beira Baixa esteve

    representada pela tocadora de adufe, Catarina Chitas, que

    nessa altura nos falou do Manuel Moreira como sendo o

    ltimo tocador de viola daqueles stios. Ele vivia no

    flanco da serra do Ramiro oposto ao de Penha Garcia, o

    que nos obrigou a contornar essa serra. O percurso

    alongou-se, fez-se noite, a estrada deu lugar a uma

    vereda que o velho citron 2 cv a custo vencia, com

    coelhos bravos a saltar nossa frente, e a toda a volta

    o silncio e o negrume total. No momento da desistncia

    lobrigmos uma luzinha sado carro e gritei por ajuda

    para encontrar o Tio Manuel Moreira. Como por encanto, l

    do alto uma voz respondeu: aqui! Subimos a encosta e

    fomos ao seu encontro. Foi como se jnos conhecssemos

    de h longos anos. Apesar de nunca ter sado desse

    pequeno mundo rural, de no conhecer sequer Castelo

    Branco, prontificou-se de imediato a ir a Lisboa, dado ir

    na companhia da Catarina Chitas. Evoco a sua entrada no

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    46/469

    palco, de calas de bombazina e faixa preta, um sorriso

    confiante e sereno, a sua belssima execuo musical.

    Depois de terminar despediu-se do pblico com um gesto

    profundamente natural e afectivo, secundado pela saudao

    Deus vos abenoe.Neste ano, os trabalhos por ns efectuados neste domnio

    foram muito reduzidos, visto que a coleco se achava

    praticamente concluda nas suas linhas mais gerais.

    Continumos atentos e na busca de certas espcies raras

    ou extintas, de modo a completar sries e preencher

    lacunas. Conseguimos obter alguns exemplares da rarssima

    viola beiroa, e uma sanfona de grande valor a despeito do

    estado de runa em que se encontrava.

    Resumindo, adquirimos durante o ano de 1964, 15

    instrumentos de vrios tipos e valores que importaram em

    5.690$00; e percorridos 1.304 quilmetros em 4 dias teis

    de trabalho.

    Em 1965 no realizmos prospeces especiais de recolha

    de instrumentos; mas aproveitmos todas as sadas e

    trabalhos de campo que levmos a efeito por conta do

    Centro de Estudos de Etnologia para completarmos, nas

    zonas percorridas, aquele objectivo.

    De passagem por terras de Coimbra, em Abril, tivemos a

    inesperada sorte de encontrar, finalmente, a viola

    toeira, o nico dos grandes instrumentos que faltava na

    coleco. O seu possuidor, Raul Simes, antigo construtor

    e exmio tocador, no se queria desfazer do instrumento,

    mas acabou por ceder s nossas instncias.

    Nas buscas que regularmente fazamos a violeiros das

    vrias cidades adquirimos uma guitarra de duas bocas do

    famoso Antnio Victor Vieira; um cavaquinho da autoria do

    Manuel Pereira, construtor lisboeta (1840-1889) do qual

    existem instrumentos nos Museus de Bruxelas, Milo, etc.,

    entre outros.

    O total dos 9 instrumentos custaram 5.820$00.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    47/469

    Para terminar referiremos a oferta da rabeca construda

    por Francisco de Matos Bettencourt, da ilha do Pico, a

    que atrs fizemos referncia.

    Transcrevemos uma passagem da carta que nos escreveu em

    28 de Maro de 1966:

    (...) Tambm vi na sua carta que jrecebeu o violino, e

    que julga em bom estado, que me desperanas de poder

    ser admitido no lugar a que tinha sido destinado; se

    assim for (...) Quem fica agradecido sou eu, e no como o

    senhor na sua carta me agradece. O senhor Ernesto e o

    senhor Benjamim andaram aqui ali por todo o Pas

    procura de objectos para construir criar um Museu para

    Portugal. Para quem esse Museu? No para mim

    tambm? Embora eu aoriano, sque nos separa o mar. Os

    meus (ou melhor) os nossos ideais aorianos so iguais a

    todos os portugueses que se orgulham de o ser. Portanto,

    torno a dizer, agradecido fico eu, porque fez mais quem

    constri a obra, do que aquele que duma simples pea

    para essa grande obra, que nos havemos orgulhar todos de

    possuirmos; e mais lhe digo (...) Agradeo-lhe em nome da

    Ilha do Pico, se o senhor conseguir em que esse violino

    entre nesse Museu, no por julg-lo uma obra prima, no

    senhor (...) Eu bem sei que ele de pouco valor

    material, porque bem se v, que posto ao p de um

    instrumento como aqui aparecem, que davm, feitos por

    profissionais, o meu no passa de uma simples cartla;

    mas que nesse objecto, que pouco val(or) tem encerra uma

    grande vontade, de uma pessoa que tem muito prazer em

    ajudar todo(s) aquele(s) que se esforam por fazer de

    isto um Portugal novo. Senhor Ernesto (...) no preciso

    nomear o meu nome como construtor do violino; porque o

    meu nome pouco ou nada vale, ao tanto gostava se podesse

    ser que o violino entrasse para o Museu, fosse em nome da

    Ilha do Pico; se assim for ser para mim grande

    satisfao.

  • 7/23/2019 IMPPtexto

    48/469

    Este senhor, era um modesto agricultor que tinha uma

    profunda conscincia dos valores culturais da sua querida

    Ilha e que, numa das passagens dessa correspondncia

    dizia:

    Eu stive o grande prazer de frequentar a escola umano, no fui mais porque jno tinha idade escolar, o