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8/8/2019 modernidade_e_revolucao http://slidepdf.com/reader/full/modernidadeerevolucao 1/14 MODERNIDADE E REVOLUÇÃO Perry Anderson Tradução: Maria Lúcia Montes New Left Review, 144, Março-Abril 1984 tema da sessão desta noite vem sendo foco de debate intelec- tual, e de paixão política, há pelo menos sessenta ou setenta anos*. Noutras palavras, tem a esta altura uma longa história. Ocorre, po- rém, que no ano passado apareceu um livro que reabre o debate com uma pai- xão tão renovada, com uma força tão inegável, que nenhuma reflexão agora so- bre estas duas idéias — "modernidade" e "revolução" — poderia evitar urna tentativa de acerto de contas com essa obra. O livro a que me refiro é All that is Solid Melts into Air, de Marshall Ber- man. Minhas anotações esta noite tenta- rão — muito brevemente — examinar a estrutura do argumento de Berman e considerar em que medida ele nos for- nece uma teoria convincente, capaz de conjugar as noções de modernidade e revolução. Começarei por reconstruir, de forma comprimida, as linhas gerais do seu livro para, em seguida, tecer al- guns comentários sobre a validade delas. Como em toda reconstrução deste tipo, vai-se sacrificar aqui o ímpeto da ima- ginação, a amplitude de afinidade cultu- ral, a força de inteligência do texto, que dão a  All that is Solid Melts into Air todo o seu esplendor. Com o passar do tempo, tais qualidades certamente farão desta obra um clássico em sua área. Uma adequada apreciação de todas elas foge à nossa tarefa de hoje. Mas é preciso di- zer de saída que uma análise do argu- mento geral do livro, como esta, que o despoja destas qualidades, não equivale de modo algum a uma avaliação adequa- da da importância e do fascínio da obra como um todo. Modernismo, modernidade, modernização  O argumento essencial de Berman co- meça da seguinte maneira:  Há um modo de experiência vital experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida que é hoje em dia compartilha- do por homens e mulheres em toda parte do mundo. Chamarei a este corpo de experiência modernidade. Ser moderno é encontrarmo-nos em um meio-ambien- te que nos promete aventura, poder, ale- gria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo e que, ao mes- mo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos. Ambientes e experiências modernos atravessam todas as fronteiras de geografia e de etnias, de classe e na- cionalidade, de religião e ideologia: nes- te sentido, pode-se dizer que a moderni- dade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: envolve-nos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de luta e contradição, de am- bigüidade e angústia. Ser moderno é ser  parte de um universo em que, como dis- se Marx, tudo o que é sólido se vola- tiliza 1 . * Contribuição à Conferência sobre o Marxismo e a inter- pretação da Cultura, realiza da na Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, julho de 1983, na sessão cujo tema era Modernidade e Revolução.  1  All that is Solid Melts into  Air, p. 15. O título é uma frase do  Manifesto Comunis- ta, I. 2 NOVOS ESTUDOS N.º 14 

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MODERNIDADE

E REVOLUÇÃOPerry Anderson 

Tradução: Maria Lúcia Montes 

New Left Review, 144, Março-Abril 1984 

tema da sessão desta noite vemsendo foco de debate intelec-tual, e de paixão política, hápelo menos sessenta ou setenta

anos*. Noutras palavras, tem a estaaltura uma longa história. Ocorre, po-rém, que no ano passado apareceu umlivro que reabre o debate com uma pai-xão tão renovada, com uma força tãoinegável, que nenhuma reflexão agora so-bre estas duas idéias — "modernidade"e "revolução" — poderia evitar urnatentativa de acerto de contas com essaobra. O livro a que me refiro é All that is Solid Melts into Air, de Marshall Ber-man. Minhas anotações esta noite tenta-rão — muito brevemente — examinara estrutura do argumento de Berman econsiderar em que medida ele nos for-nece uma teoria convincente, capaz deconjugar as noções de modernidade erevolução. Começarei por reconstruir,de forma comprimida, as linhas geraisdo seu livro para, em seguida, tecer al-guns comentários sobre a validade delas.Como em toda reconstrução deste tipo,vai-se sacrificar aqui o ímpeto da ima-ginação, a amplitude de afinidade cultu-ral, a força de inteligência do texto, quedão a   All that is Solid Melts into Air todo o seu esplendor. Com o passar dotempo, tais qualidades certamente farãodesta obra um clássico em sua área. Umaadequada apreciação de todas elas fogeà nossa tarefa de hoje. Mas é preciso di-zer de saída que uma análise do argu-mento geral do livro, como esta, que o

despoja destas qualidades, não equivalede modo algum a uma avaliação adequa-da da importância e do fascínio da obracomo um todo.

Modernismo, modernidade,modernização 

O argumento essencial de Berman co-meça da seguinte maneira:  Há um modode experiência vital — experiência doespaço e do tempo, de si mesmo e dosoutros, das possibilidades e perigos davida — que é hoje em dia compartilha-do por homens e mulheres em toda partedo mundo. Chamarei a este corpo deexperiência modernidade. Ser moderno

é encontrarmo-nos em um meio-ambien-te que nos promete aventura, poder, ale-gria, crescimento, transformação de nósmesmos e do mundo — e que, ao mes-mo tempo, ameaça destruir tudo o quetemos, tudo o que conhecemos, tudo oque somos. Ambientes e experiênciasmodernos atravessam todas as fronteirasde geografia e de etnias, de classe e na-cionalidade, de religião e ideologia: nes-te sentido, pode-se dizer que a moderni-dade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade paradoxal, uma unidade dedesunidade: envolve-nos a todos numredemoinho perpétuo de desintegração erenovação, de luta e contradição, de am-bigüidade e angústia. Ser moderno é ser  parte de um universo em que, como dis-se Marx, tudo o que é sólido se vola-tiliza1.

* Contribuição à Conferênciasobre o Marxismo e a inter-pretação da Cultura, realizada na Universidade de Illinois,em Urbana-Champaign, julhode 1983, na sessão cujo temaera Modernidade e Revolução. 

1   All that is Solid Melts into Air, p. 15. O título é umafrase do  Manifesto Comunis-ta, I. 

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O que gera esse turbilhão? Para Ber-man, trata-se de uma multidão de pro-cessos sociais — enumera entre eles asdescobertas científicas, as revoluções daindústria, as transformações demográfi-cas, as formas de expansão urbana, osEstados nacionais, os movimentos demassa —, todos impulsionados, em últi-

ma instância, pelo mercado mundial ca-pitalista, "em perpétua expansão e dras-ticamente flutuante". A estes processosele chama, por conveniência da abrevia-ção, modernização sócio-econômica. Apartir da experiência nascida com a mo-dernização surgiu, por sua vez, o que eledescreve como a espantosa variedade devisões e idéias que visam a fazer de ho-mens e mulheres os sujeitos ao mesmotempo que os objetos da modernização, adar-lhes o poder de mudar o mundo queos está mudando, a abrir-lhes caminhoem meio ao turbilhão e apropriar-se dele— visões e valores que acabaram por ser 

agrupados frouxamente sob o nome demodernismo. A pretensão de seu livroconsiste, então, em revelar a "dialéticada modernização e do modernismo" 2.

Entre os dois, encontra-se o termo-médio chave — modernidade —, nemprocesso econômico nem visão cultural,mas a experiência histórica, que faz amediação entre um e outro. O que cons-titui a natureza do vínculo entre ambos?Para Berman, trata-se, essencialmente, dodesenvolvimento. Este é, na verdade, oconceito central do seu livro, e está naorigem da maioria dos paradoxos quecontém — alguns deles explorados demaneira lúcida e convincente em suas

páginas, outros menos considerados ne-las. Em   All that is Solid Melts in to Air,desenvolvimento significa simultanea-mente duas coisas. De um lado, refere-seàs gigantescas transformações objetivasda sociedade desencadeadas pelo adventodo mercado mundial capitalista: ou se-  ja, essencialmente, mas não de modo ex-clusivo, desenvolvimento econômico. Deoutro lado, refere-se às impressionantestransformações subjetivas da vida indi-vidual e da personalidade que ocorremsob seu impacto: tudo o que está con-tido na noção de autodesenvolvimento,isto é, uma potenciação dos poderes do

homem e uma amplificação da experiên-cia humana. Para Berman, a combinaçãode ambas, sob o ritmo compulsivo domercado mundial, necessariamente criauma dramática tensão interior nos indi-víduos que sofrem o desenvolvimento

em seus dois sentidos. Por um lado, ocapitalismo — na inesquecível frase deMarx no  Manifesto, que constitui o leit-motiv do livro de Berman — arrasa todoconfinamento ancestral e toda restriçãofeudal, a imobilidade social e a tradiçãodos claustros, numa imensa operação delimpeza dos entulhos culturais e consue-

tudinários por todo o planeta. A esseprocesso corresponde uma formidávelemancipação das possibilidades e da sen-sibilidade do eu individual, que agoracada vez mais se liberta da fixidez dostatus social e da rígida hierarquia depapéis característicos do passado pré-ca-pitalista, com sua moralidade estreita eseu limitado raio de imaginação. Por outrolado, como salientou Marx, este mesmoavanço do desenvolvimento econômicocapitalista também gera uma sociedadebrutalmente alienada e atomizada, di-lacerada por uma empedernida explora-ção econômica e uma fria indiferença so-

cial, capaz de destruir cada valor culturalou político cujo potencial ela mesmadespertou. De igual modo, no plano psi-cológico, o autodesenvolvimento só po-deria significar, nestas condições, profun-da desorientação e insegurança, frustra-ção e desespero, concomitantes com —na verdade inseparáveis de — um sensode expansão e regozijo, novas capacida-des e sentimentos, liberados ao mesmotempo. Esta atmosfera de agitação e tur-bulência, vertigem e embriaguez psíqui-ca, expansão das possibilidades da expe-riência e destruição das fronteiras moraise dos laços pessoais, auto-expansão e au-toperturbação, fantasmas na rua e na al-

ma, escreve Berman, é a atmosfera emque nasce a sensibilidade moderna 3.

Esta sensibilidade data, em suas mani-festações primeiras, do advento do mer-cado mundial — 1500, ou por volta dis-so. Mas em sua primeira fase, que paraBerman vai aproximadamente até 1790,ainda lhe falta um vocabulário comum.Uma segunda fase estende-se então aolongo de todo o século XIX, e é aquique a experiência da modernidade se tra-duz nas várias visões clássicas de moder-nismo,  que ele define essencialmente porsua constante habilidade de capturar am-bos os lados das contradições do desen-

volvimento capitalista — ao mesmo tem-po, celebra e denuncia as transformaçõessem precedentes que opera no mundomaterial e no espiritual, sem nunca con-verter estas atitudes em antíteses estáti-cas ou imutáveis. Goethe nos dá um pro-

2  Ibid ., p. 16.

3 Ibid., p. 18. 

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tótipo da nova visão em seu Fausto, quenum capítulo magnífico Berman analisacomo a tragédia daquele que se desen-volve neste sentido dual: abrir as com-portas do eu, à custa de represar o ocea-no. Tanto o Marx do  Manifesto quanto

o Baudelaire dos poemas em prosa sobreParis podem ser vistos como parentespróximos na mesma descoberta da mo-dernidade — uma descoberta que, nascondições peculiares de uma moderniza-ção forçada feita de cima para baixo nu-ma sociedade atrasada, se prolonga nalonga tradição literária de São Peters-burgo, de Pushkin e Gogol a Dostoievs-ki e Mandelstam. Uma das condições destasensibilidade assim criada, argumentaBerman, era a existência de um públicomais ou menos unificado, que ainda con-servava a memória de como era viverem um mundo pré-moderno.

o século XX, entretanto, essepúblico expandiu-se ao mesmotempo em que se fragmentoucm segmentos incomensuráveis.

Com isso, a tensão dialética da experiên-cia clássica da modernidade sofreu umatransformação crítica. Embora a arte mo-dernista registrasse triunfos nunca dantesalcançados — o século XX, diz Bermannuma frase afoita, talvez seja o maisbrilhantemente criativo na história domundo4  —, ao mesmo tempo ela deixavade se conectar com ou de informar

qualquer vida comum: como diz ele, nãosabemos como usar nosso modernismo5.O resultado foi uma drástica polarizaçãono  pensamento moderno sobre a expe-riência da própria modernidade, aplanan-do seu caráter essencialmente ambíguoou dialético. Por um lado, de Weber aOrtega, de Eliot a Tate, de Leavis a Mar-cuse, a modernidade do século XX temsido incessantemente condenada comouma gaiola de ferro de conformismo emediocridade, um deserto espiritual emque vagueiam populações sem qualquercomunidade orgânica ou autonomia vital.Por outro lado, contra estas visões dedesespero cultural, em outra tradiçãoque se estende de Marinetti a Le Corbu-sier, de Buckminster Fuller a MarshallMcLuhan, para não falar dos apologis-tas declarados da própria "teoria da mo-dernização" capitalista, tem-se ostensiva-mente alardeado que a modernidade cons-titui a última palavra em matéria de ex-citação dos sentidos e de satisfação uni-

versal, em que uma civilização feita àmáquina, por si só, garante frêmitos es-téticos e venturas sociais. O que ambasas posições têm em comum, aqui, é umasimples identificação da modernidadecom a própria tecnologia — excluindo

radicalmente as pessoas que a produzeme são por ela produzidas. Como escreveBerman:   Nossos pensadores do século  XIX eram simultaneamente entusiastas einimigos da vida moderna, inesgotavel-mente enredados numa luta corpo a corpocom suas ambigüidades e contradições;as ironias a respeito de si próprios, astensões interiores constituíam uma fontebásica de sua força criativa. Seussucessores do século XX cambalearammuito mais para polaridades rígidas e to-talizações achatadoras. A modernidade,ou é abraçada com um entusiasmo cegoe acrílico, ou então é condenada com um

desprezo e um distanciamento neo-olím-  picos. Em ambos os casos, ela é conce-bida como um monolito fechado, que oshomens modernos são incapazes de mol-dar ou mudar. As visões abertas da vida foram suplantadas por outras, fechadas; otanto isto quanto aquilo   foi substituído pelo ou um ou outro6. O objetivo dolivro de Berman é ajudar a restaurarnosso senso de modernidade pela rea-propriação das visões clássicas de mo-dernidade. Pode ser então que se des-cubra que voltar atrás seja um modo deir em frente: que a lembrança dos mo-dernismos do século XIX nos possa dar 

a visão e a coragem para criar os moder-nismos do século XXI. Este ato de lem-brar pode ajudar-nos a trazer o moder-nismo de volta às suas raízes, de modoa permitir-lhe que se nutra e se renove,  para enfrentar as aventuras e perigosque tem pela frente7.

Esta é a força-motriz de   All that isSolid Melts into Air. Só que o livro con-tém um subtexto muito importante, queprecisa ser notado. O título e o temaorganizador vêm do   Manifesto Comu-nista, e o capítulo sobre Marx é um dosmais interessantes do livro. Mas ele aca-ba sugerindo que a própria análise de

Marx da dinâmica da modernidade so-lapa, no fim das contas, a própria pers-pectiva do futuro comunista, ao qual ele  julgava que ela deveria levar. Pois, se aessência da libertação dos entraves dasociedade burguesa consistisse em seatingir, pela primeira vez, um desenvol-vimento verdadeiramente ilimitado doindivíduo — depois de removidos os li-

6  Ibid., p.   24. 

4  Ibid., p.   24.

5  Ibid., p.   24.

7  Ibid., p. 36. 

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mites do capital, com todas as suas de-formidades —, o que poderia garantir aharmonia dos indivíduos assim emanci-pados ou a estabilidade de qualquer so-ciedade por eles composta?   Mesmo que,indaga Berman, os operários de fatoconstruam um movimento comunista quetenha êxito, e mesmo que esse movimentodê lugar a uma revolução vitoriosa,como conseguirão eles, em meio à maré cheia da vida moderna, construir uma so-ciedade comunista sólida? O que impedeque as forças sociais que dissolvem o ca-  pitalismo dissolvam igualmente o comu-nismo? Se todas as novas relações se tor-nam obsoletas antes que possam ossifi-car-se, como será possível manter vivasa solidariedade, a fraternidade e a ajudamútua? Um governo comunista poderiatentar erguer um dique contra a enchen-te, mediante a imposição de restriçõesradicais não só à atividade e ao empre-

endimento econômicos (todos os gover-nos socialistas fizeram isso, exatamentecomo todos os Estados de bem-estar ca-  pitalistas), mas também à expressão pes-soal, cultural e política. Mas, na medidaem que tal política fosse bem sucedida,não trairia ela o objetivo de Marx quantoao livre desenvolvimento de todos e decada um?8 No entanto — e cito no-vamente — se um compromisso triun-  fante pudesse algum dia passar pelascomportas abertas pelo livre comércio,quem sabe que temíveis impulsos por aí também não passariam com ele, ou emseu rastro, ou embutidos em seu interior?

É fácil imaginar como uma sociedadecomprometida com o livre desenvolvi-mento de todos e de cada um poderiadesenvolver suas próprias e distintivasvariedades de niilismo. Na verdade, umniilismo comunista poderia revelar-semuito mais explosivo e desintegrador que seu precursor burguês — emboratambém mais audacioso e original —,  pois, enquanto o capitalismo corta asinfinitas possibilidades da vida modernanos limites da linha inferior, o comunis-mo de Marx poderia projetar o eu libe-rado em imensos espaços humanos des-conhecidos e sem qualquer limite. Con-clui assim Berman:   Ironicamente, por-tanto, podemos ver a dialética da moder-nidade de Marx reeditar o destino da so-ciedade que descreve, gerando energiase idéias que a dissipam em seu próprioar 9. 

A necessidade de periodização 

Como disse, o argumento de Bermané original e atraente, apresentado comgrande perícia e verve literárias. Uneuma postura política generosa a um ca-loroso entusiasmo intelectual por seu te-ma: tanto a noção do moderno quanto ado revolucionário saem, por assim dizer,moralmente redimidas de suas páginas.Para Berman, com efeito, omodernismo é por definiçãoprofundamente revolucionário. Comoproclama a contra-capa do livro:  Aocontrário do que afirma a crençaconvencional, a revolução modernista nãoacabou. Escrito de um ponto de vista deesquerda, merece a mais ampla discussãoe análise por parte da esquerda.

Tal discussão deve começar pelo exa-me dos termos-chaves de Berman, "mo-dernização" e "modernismo", para pas-sar em seguida aos encadeamentos queexistem entre eles, através da noção bi-fronte de "desenvolvimento". Se fizer-mos isso, a primeira coisa a chamar aatenção é que, embora Berman tenhacaptado com inigualável força de imagi-nação uma dimensão crítica da visão dahistória de Marx no   Manifesto Comu-nista, ele omite ou considera apenas su-perficialmente outra dimensão, que é nãomenos crítica para Marx, e complemen-tar à primeira. A acumulação do capital,para Marx, com a incessante expansãoda forma mercadoria pelo mercado naverdade constitui um dissolvente univer-sal do velho mundo social, e pode serlegitimamente apresentada como um pro-cesso de constante revolucionamento da  produção, de perturbação ininterrupta,de permanente incerteza e agitação, naspalavras de Marx. Notem-se os três adje-tivos: constante, ininterrupto, perma-nente. Eles denotam um tempo históricohomogêneo, em que cada momento éperpetuamente diferente de todos os ou-tros em virtude de ser o seguinte mas —por isso mesmo — é eternamente o mes-mo, como uma unidade intercambiávelnum processo de recorrência infinita.Extrapolada da totalidade da teoria dodesenvolvimento capitalista de Marx, estaênfase pode, de maneira muito rápida efácil, resultar no paradigma da moder-nização propriamente dita — uma teoriaantimarxista, evidentemente, do pontode vista político.

8  Ibid., p. 104.

9  Ibid., p. 114.

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ara o nosso objetivo, no entan-to, o ponto relevante é que aidéia de modernização envolveuma concepção de desenvolvi-

mento fundamentalmente  plano — umprocesso de fluxo contínuo em que não

há diferenciação real de uma conjunturaou época em relação a outra, exceto emtermos de mera sucessão cronológica dovelho e do novo, do anterior e do pos-terior, categorias que são elas própriassujeitas a uma incessante permutação deposições numa única direção, à medidaque o tempo passa e o posterior se con-verte em anterior, o mais novo em maisvelho. Este é , naturalmente, um registropreciso da temporalidade do mercado edas mercadorias que por ele circulam.

Mas a própria concepção de Marx so-bre o tempo histórico do modo de pro-dução capitalista como um todo era bas-

tante diferente desta: tratava-se de umatemporalidade complexa e diferencial,em que os episódios ou eras eram des-contínuos em relação uns aos outros, eheterogêneos em si mesmos. A maneiramais óbvia em que esta temporalidadediferencial entra na própria construçãodo modelo de Marx do capitalismo en-contra-se, evidentemente, ao nível daordem de classe por ele gerada. De modogeral, pode-se dizer que as classesenquanto tais praticamente não figuramna explicação de Berman. A única exce-ção significativa é uma bela discussãosobre o quanto a burguesia sempre dei-

xou de se conformar ao absolutismo dolivre comércio postulado por Marx no Manifesto: mas isto tem poucas reper-cussões sobre a arquitetura do livro co-mo um todo, no qual há muito poucoentre economia, de um lado, e  psicolo-gia, de outro, exceção feita à cultura domodernismo que serve de ligação entreambas. A sociedade enquanto tal estáefetivamente ausente. Mas, se conside-rarmos a explicação que Marx dá dessasociedade, o que encontramos é algo queestá muito distante de qualquer processode desenvolvimento plano. A trajetóriada ordem burguesa é antes curvilínea.

Ela traça não uma linha reta que avançasempre em frente ou um círculo quese expande infinitamente em direção aoexterior, mas uma nítida parábola. Asociedade burguesa conhece uma ascen-são, uma estabilização e um declínio.Nas próprias passagens dos Grundrisseque contêm as afirmações mais líricas eincondicionais acerca da unidade entre o

desenvolvimento econômico e o desen-volvimento individual, que constitui otema central do argumento de Berman,quando Marx fala do "ponto de flora-ção" da base do modo de produção ca-pitalista, refere-se ao   ponto em que ela

  pode unir-se ao mais alto desenvolvi-mento das forças produtivas, assim comoo ponto do mais rico desenvolvimentodo indivíduo — ele também estipula ex-pressamente:   Não obstante, ela ainda é esta base, esta planta em flor, e portantoela fenece após a floração e como con-seqüência de haver florido. (. . .) Tão lo-go se atinge este ponto, continua, qual-quer desenvolvimento ulterior toma a  forma de um declínio 10 . Noutras pala-vras, a história do capitalismo deve ser periodizada, e sua trajetória determinadadeve ser reconstruída, se quisermos che-gar a qualquer compreensão sensata do

que significa realmente "desenvolvimen-to" capitalista. O conceito de moderni-zação obstrui a própria possibilidade dese fazer isso.

A multiplicidade dos modernismos 

Passemos agora ao termo complemen-tar de Berman, "modernismo". Emboraele seja posterior a modernização, nosentido de que assinala o surgimento deum vocabulário coerente para expressaruma experiência de modernidade que o

precedeu, uma vez instalado, também omodernismo não conhece nenhum prin-cípio interno de variação. Ele simples-mente continua a reproduzir-se. É mui-to significativo que Berman tenha deafirmar que a arte do modernismo flo-resceu e continua a florescer como nuncaantes no século XX — mesmo quandoprotesta contra as correntes de  pensa-mento que nos impedem de incorporaradequadamente essa arte em nossas vi-das. Há uma série de dificuldades ób-vias com esta posição. A primeira é queo modernismo, como um conjunto espe-cífico de formas estéticas, é, de modogeral, datado precisamente a partir doséculo XX, sendo mesmo construído tipi-camente em contraste com as formasclássicas, realistas ou outras, dos séculosXIX, XVIII e mesmo dos séculos ante-riores. Praticamente todos os textos lite-rários de fato analisados tão bem porBerman — sejam eles de Goethe ouBaudelaire, Pushkin ou Dostoievski —precedem o modernismo propriamente

10 Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, Frank-furt, 1967, p. 439. 

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dito, neste sentido usual da palavra: asúnicas exceções são textos de ficção deBely e Mandelstam que, precisamente,são artefatos do século XX. Noutras pa-lavras, segundo critérios mais convencio-nais, mesmo o modernismo deve ser en-quadrado em alguma concepção maisdiferencial de tempo histórico. Um se-

gundo ponto relacionado a este é que,uma vez tratado deste modo, é surpre-endente o quanto sua distribuição, doponto de vista geográfico, é de fato de-sigual. Mesmo no mundo europeu ouocidental de modo geral, existem impor-tantes áreas que praticamente não de-ram origem a nenhum momentum mo-dernista. Meu próprio país, a Inglater-ra, pioneira da industrialização capitalis-ta, dominando o mercado mundial du-rante um século, constitui um bomexemplo nesse sentido: cabeça de pontepara Eliot ou Pound, rumando ao largoaté Joyce, ela não produziu nenhum mo-

vimento nativo de tipo modernista vir-tualmente significativo nas primeiras dé-cadas deste século — diferentemente doque ocorreu na Alemanha ou na Itália,França ou Rússia, Holanda ou América.Não foi por acidente que ela devesse sera grande ausente da sinopse de Bermanem   All that is Solid Melts into Air. Ouseja, mesmo o espaço do modernismo édiferencial.

Uma terceira objeção à leitura queBerman faz do modernismo como um to-do é a de que não estabelece distinções,nem entre tendências estéticas muitocontrastadas, nem no interior do conjunto

de práticas estéticas que compõem aspróprias artes. Na realidade, é a varie-dade proteiforme de relações com a mo-dernidade capitalista o que mais surpre-ende no vasto agrupamento de movimen-tos reunidos de modo típico sob a rubricacomum de modernismo. Simbolismo,expressionismo, cubismo, futurismo ouconstrutivismo, surrealismo — houvetalvez cinco ou seis correntes decisivasde "modernismo" nas primeiras décadasdo século, das quais quase tudo o queveio depois foi uma derivação ou mu-tação. Poder-se-ia pensar que a naturezaantitética das doutrinas e práticas pe-

culiares a tais correntes fosse por si sósuficiente para excluir a possibilidade deque tivesse existido uma única Stimmungcaracterística, capaz de definir a posturamodernista clássica com relação à mo-dernidade. Grande parte da arte produ-zida de dentro desse conjunto de posi-

ções já continha as formações daquelasmesmas polaridades que Berman execranas teorizações contemporâneas ou sub-seqüentes da cultura moderna como umtodo. O expressionismo alemão e o futu-rismo italiano, em suas tonalidades res-pectivamente contrastadas, constituemum exemplo acabado nesse sentido. Uma

dificuldade final com relação à análisede Berman é que, nos seus próprios ter-mos de referência, ela é incapaz de for-necer qualquer explicação para a di-vergência, que deplora, entre a arte e opensamento, a prática e a teoria da mo-dernidade no século XX. Aqui, na ver-dade, o tempo se divide em seu argu-mento, de um modo significativo: ocor-reu algo como um declínio, do ponto devista intelectual, que seu livro procurareverter com um retorno ao espíritoclássico do modernismo como um todo,capaz de informar igualmente a arte eo pensamento. Mas esse declínio per-

manece ininteligível dentro do seu es-quema, uma vez que a própria moderni-zação é concebida como um processolinear de prolongamento e expansão, quenecessariamente traz consigo uma reno-vação constante das fontes da arte mo-dernista.

A conjuntura sócio-política 

Uma maneira alternativa de compreen-der as origens e as aventuras do moder-nismo consiste em examinar mais deperto a temporalidade histórica diferen-

cial em que se inscreve. Na tradiçãomarxista há um modo famoso de fazeristo. É o caminho tomado por Lukács,a partir do estabelecimento de umaequação direta entre a mudança de pos-tura política do capital europeu após asrevoluções de 1848 e o destino das for-mas culturais produzidas pela burguesiaou no seu âmbito de influência comouma classe social. Na segunda metade doséculo XIX, para Lukács, a burguesiatorna-se puramente reacionária — aban-dona seu conflito com a nobreza, numaescala continental, para engajar-se numaluta total contra o proletariado. Com is-

so, ela entra numa fase de decadênciaideológica, cuja expressão estética ini-cial é sobretudo naturalista, mas que vaidar enfim no modernismo do início doséculo XX. Hoje em dia, este esquemaé amplamente execrado pela esquerda.Na verdade, na obra de Lukács, ele pro-

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duziu com freqüência análises locais bas-tante perspicazes no campo da filosofiapropriamente dita:   A Destruição da Ra- zão é  um livro que de modo algum podeser negligenciado, por mais que seu pós-escrito o tenha prejudicado. Por outro

lado, no campo da literatura — a prin-cipal área em que Lukács o aplica — oesquema revelou-se relativamente estéril.

notável que não exista nenhu-ma exploração lukácsiana dequalquer obra de arte moder-nista que se compare, em deta-

lhe ou em profundidade, ao seu trata-mento da estrutura das idéias em Schel-ling ou Schopenhauer, Kierkegaard ouNietzsche; em contrapartida, Joyce ouKafka — para mencionar apenas duasde suas bêtes noires literárias — são

quase tão-somente invocados, sem nun-ca serem estudados por si mesmos. Oerro básico da ótica de Lukács consiste,aqui, no seu evolucionismo: isto é, otempo difere de uma época para outra,mas no interior  de cada época todos ossetores da realidade social se movem emsincronia uns com os outros, de tal mo-do que o declínio em um nível deverefletir-se como descenso em todos osoutros. O resultado é uma noção de "de-cadência" claramente supergeneralizada,mas que tem como atenuante o fato deser enormemente afetada, é claro, peloespetáculo do colapso da sociedade ale-

mã e da maior parte de sua cultura esta-belecida — na qual ele próprio havia si-do formado — que se precipitavam nonazismo.

Mas se nem o perenialismo de Bermannem o evolucionismo de Lukács forne-cem explicações satisfatórias para o mo-dernismo, qual é a alternativa? A hipó-tese que vou aqui sugerir brevemente éa de que deveríamos procurar preferi-velmente uma explicação conjuntural parao conjunto de práticas e doutrinas es-téticas mais tarde agrupadas como "mo-dernistas". Tal explicação envolveria aintersecção de diferentes temporalidades

históricas a fim de compor uma confi-guração tipicamente sobredeterminada.Quais seriam essas temporalidades? Ameu ver, pode-se entender melhor o"modernismo" como um campo culturalde força triangulado por três coordena-das decisivas. A primeira delas é algoque Berman insinua numa passagem, massitua demasiado atrás no tempo, sem

captá-lo com suficiente precisão. Trata-se da codificação de um academicismoaltamente formalizado, nas artes visuaise outras, o qual, por sua vez, era insti-tucionalizado nos regimes oficiais de Es-tados e sociedades ainda maciçamente

impregnados, não raro dominados, pelasclasses aristocráticas ou terratenentes:sem dúvida, classes economicamente "ul-trapassadas" em certo sentido, mas queainda, em outros planos, davam o tompolítico e cultural nos países da Europaantes da Primeira Guerra Mundial.

As conexões entre esses dois fenôme-nos estão graficamente traçadas num tra-balho fundamental há pouco publicadopor Arno Mayer, The Persistence of theOld Regime11 , cujo tema central é esta-belecer em que medida a sociedade euro-péia era ainda, até 1914, dominada porclasses dirigentes agrárias ou aristocrá-

ticas (as duas não eram necessariamenteidênticas, como deixa claro o caso daFrança), em economias onde a indústriapesada moderna ainda constituía um se-tor surpreendentemente pequeno, tantoem termos da força de trabalho empre-gada quanto do padrão de produção. Asegunda coordenada é um complementológico da primeira: a emergência aindaincipiente, e portanto essencialmente novano interior dessas sociedades, dastecnologias ou invenções-chaves da se-gunda revolução industrial — telefone,rádio, automóvel, avião etc. As indús-trias de bens de consumo de massa ba-

seadas nas novas tecnologias ainda nãotinham sido implantadas em parte algu-ma da Europa onde, até 1914, a indús-tria do vestuário, de alimentação e mo-biliário continuavam a ser esmagadora-mente os maiores setores de produçãode bens de consumo em termos de em-prego e rotatividade.

Por fim, devo argumentar que a ter-ceira coordenada da conjuntura moder-nista foi a proximidade imaginativa darevolução social. A extensão da esperan-ça ou da apreensão suscitadas pelo pros-pecto de tal revolução variava ampla-mente: mas, na maior parte da Europa,

estava "no ar" durante a Belle Époque.A razão disso é, mais uma vez, bastanteclara: formas do ancien régime dinásti-co, como Mayer as chama, ainda persis-tiam: monarquias imperiais na Rússia,Alemanha e Áustria; uma ordem realprecária na Itália; mesmo na Grã-Breta-nha, o Reino Unido achava-se ameaçadopela desintegração regional e pela guerra

11 Arno Mayer, The Persis-tence of the Old Regime,Nova York, 1981, pp. 189273. 

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civil nos anos que antecederam a Pri-meira Guerra Mundial. Em nenhum Es-tado europeu a democracia burguesa sehavia completado como uma forma; nemo movimento operário se havia integradoou cooptado como uma força. As saídasrevolucionárias possíveis diante de umadestruição eventual da antiga ordem

eram, assim, profundamente ambíguas.Seria uma nova ordem mais genuína eradicalmente capitalista, ou seria ela so-cialista? A Revolução Russa de 1905-1907 — que atraiu a atenção de toda aEuropa — era emblemática dessa ambi-güidade: uma sublevação a uma só vez einseparavelmente burguesa e proletária.

Qual a contribuição de cada umadessas coordenadas para a emergência docampo de força que define o modernis-mo? Em poucas palavras, creio que foia seguinte: a persistência dos anciensrégimes, e do academicismo que ia depar com eles, forneceu um conjunto crí-

tico de valores culturais contra os quaispodiam medir-se as formas insurgentesde arte, mas também em termos dosquais elas podiam articular-se parcial-mente a si mesmas. Sem o adversáriocomum do academicismo oficial, o gran-de arco das novas práticas estéticas tempouca ou nenhuma unidade: sua tensãocom os cânones estabelecidos ou consa-grados que encontram pela frente é cons-titutiva de sua definição enquanto tal.Ao mesmo tempo, porém, a antiga or-dem, precisamente no que ainda tinhade coloração parcialmente aristocrática,oferecia um conjunto de códigos e recur-

sos disponíveis, a partir dos quais sepoderia também resistir às devastaçõesdo mercado como princípio organizadorda cultura e da sociedade, aliás unifor-memente detestado por todas as espéciesde modernismo. Os estoques clássicos daalta cultura ainda preservados — mesmoque deformados e amortecidos — peloacademicismo do final do século XIXpoderiam ser resgatados e dirigidos con-tra ele, bem como contra o espírito co-mercial da época, como muitos dessesmovimentos o caracterizavam. A relaçãode imagistas como Pound com as con-venções eduardianas e com a poesia lírica

romana, ou, mais tarde, a relação deEliot com Dante ou os metafísicos, étípica de um dos lados desta situação; airônica proximidade de Proust ou Musilcom as aristocracias da França ou daÁustria é característica do outro.

Ao mesmo tempo, para um tipo dife-

rente de sensibilidade "modernista", asenergias e os atrativos de uma nova erada máquina eram um poderoso estímuloà imaginação: o estímulo que se reflete,de modo bastante patente, no cubismoparisiense, no futurismo italiano ou noconstrutivismo russo. Contudo, a condi-ção desse interesse residia em que as

técnicas e os artefatos fossem abstraídosdas relações sociais de produção que osestavam criando. O capitalismo enquantotal jamais foi exaltado por qualquer tipode "modernismo". Mas a extrapolação aque se procedia tornava-se possível  justamente graças ao caráter incipientede um padrão sócio-econômico ainda im-previsível, e que mais tarde iria conso-lidar-se tão inexoravelmente à sua volta.Não era óbvio aonde iriam levar os no-vos dispositivos e as novas invenções.Daí a celebração, por assim dizer ambi-destra, que deles se fazia, tanto à direitacomo à esquerda — Marinetti ou Maia-

kovski. Finalmente, a bruma da revo-lução social, que pairava sobre o hori-zonte dessa época, foi responsável porgrande parte do tom apocalíptico daque-las correntes do modernismo que rejei-tavam de modo mais irremissível e vio-lentamente radical a ordem social comoum todo, dentre as quais a mais signifi-cativa foi sem dúvida o expressionismoalemão. O modernismo europeu nos pri-meiros anos deste século floresceu assimno espaço situado entre um passadoclássico ainda utilizável, um presentetécnico ainda indeterminado e um fu-turo político ainda imprevisível. Dito

de outro modo, ele surgiu na intersec-ção de uma ordem dominante semi-aristocrática, uma economia capitalistasemiindustrializada e um movimento ope-rário semiemergente, ou semiinsurgente.

Primeira Guerra Mundial alte-rou, com sua chegada, todasessas coordenadas. Mas nãoeliminou nenhuma delas. Por

outros vinte anos mais, elas continua-riam a sobreviver, numa espécie de so-brevida física. Do ponto de vista polí-tico, é claro, desapareceram os Estados

dinásticos da Europa oriental e central.Mas a classe dos Junkers conservou gran-de poder na Alemanha do pós-guerra; oPartido Radical, de base agrária, conti-nuou a dominar a Terceira Repúblicana França, sem grande mudança de tom;na Grã-Bretanha, o mais aristocrático

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dos dois partidos tradicionais, o dosConservadores, virtualmente eliminouseus rivais mais burgueses, os Liberais,passando, a seguir, a dominar todo operíodo entre as duas guerras. Do pontode vista social, persistiu até o fim da

década de 30 um modo de vida distintivodas classes altas, cuja marca registrada —completamente ausente da existência dosricos após a Segunda Guerra Mundial —era a "normalidade" de se possuircriadagem doméstica. Foi a última classeverdadeiramente ociosa na históriametropolitana. A Inglaterra, onde talcontinuidade era mais forte, deveriaproduzir a maior representação ficcionaldaquele mundo na obra de AnthonyPowell,   Dance to the Music of Time,uma remembrança não-modernista daépoca subseqüente. Do ponto de vistaeconômico, as indústrias de produção em

massa, baseadas nas novas invençõestecnológicas do início do século XX, con-seguiram firmar-se um pouco em doispaíses apenas — a Alemanha, no períodode Weimar, e a Inglaterra no final dosanos trinta. Mas em nenhum dos doiscasos havia ocorrido uma implantaçãogeneralizada daquilo que Gramsci cha-maria de "Fordismo" comparável ao que  já existia nos Estados Unidos há duasdécadas.

Às vésperas da Segunda Guerra Mun-dial, a Europa ainda estava mais de umageração atrasada em relação à Américana estrutura de sua indústria civil e em

seu padrão de consumo. Por último, aperspectiva de uma revolução estavaagora mais próxima e tangível do quenunca — um prospecto que se haviamaterializado triunfalmente na Rússia,que havia tocado com suas asas a Hun-gria, a Itália e a Alemanha logo depoisda Primeira Guerra Mundial, e que es-tava para assumir uma nova e dramática"imediatidade" na Espanha, no finaldesse período. Foi nesse espaço, que pro-longava, a seu próprio modo, um soloanterior, que as formas de arte generi-camente "modernistas" continuaram ademonstrar grande vitalidade. Isolado

das obras-primas literárias publicadasnesses anos, mas essencialmente alimen-tado nas anteriores, o teatro de Brechtfoi um dos memoráveis produtos da con-  juntura do entre-guerras, na Alemanha.Um outro foi o surgimento, pela pri-meira vez, de um verdadeiro movimentodo modernismo na arquitetura, com aBauhaus. Um terceiro foi o aparecimen-

to do que, na verdade, se revelaria comoa última das grandes doutrinas da avant-garde européia — o surrealismo naFrança.

Acaba a estação do Ocidente 

Foi a Segunda Guerra Mundial — enão a Primeira — que destruiu todasessas três coordenadas históricas que aca-bo de discutir, interrompendo com issoa vitalidade do modernismo. Depois de1945, tinha definitivamente acabado emtodos os países a velha ordem semiaris-tocrática ou agrária, com tudo o maisque compunha seu séquito. A democra-cia burguesa finalmente se universaliza-ra. Com isso, alguns laços críticos comum passado pré-capitalista soltaram-sebruscamente. Ao mesmo tempo, o For-

dismo chegou com força total. A produ-ção e o consumo de massa transforma-ram as economias da Europa Ocidentalsegundo o figurino norte-americano. Jánão poderia haver a menor dúvida quantoao tipo de sociedade que esta tecnologiaconsolidaria: instalara-se agora umacivilização capitalista opressivamente es-tável, monoliticamente industrial.

Numa passagem maravilhosa de seulivro   Marxism and Form, Fredric Jame-son captou de modo admirável o queisto significava para as tradições da van-guarda que haviam valorizado ao extre-mo as novidades dos anos 20 e 30, pelo

seu potencial onírico, desestabilizador:  A imagem surrealista, nota ele, era umconvulsivo esforço para arrebentar as  formas-mercadoria do universo objetivo,ao fazer com que se chocassem umas con-tra as outras com imensa força ¹². Masa condição do seu sucesso residia em queesses objetos — os lugares da chanceobjetiva ou da revelação preternatural —são imediatamente identificáveis como os  produtos de uma economia ainda não  plenamente industrializada e sistemati-  zada, lsto significa que as origens huma-nas dos produtos desse período — suarelação com o trabalho de que são prove-

nientes — ainda não foram inteiramenteocultadas; em sua produção eles aindamostram traços de uma organização arte-sanal do trabalho, enquanto sua distri-buição ainda é assegurada por uma redede pequenos comerciantes. . . O quetorna tais produtos preparados para re-ceber o investimento de energia psíquicacaracterístico do seu uso pelo surrealis-  

12   Marxism and Form, Prin-ceton, 1971, p. 96. 

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mo é precisamente a marca mal traçada,ainda não apagada, do trabalho humano:eles ainda são gesto congelado, não intei-ramente separado da subjetividade, e por isso permanecem potencialmente tãomisteriosos e expressivos quanto o pró-  prio corpo humano ¹³ . Jameson continuaentão:   Basta apenas trocar esse ambiente

de pequenas oficinas e balcões de arma-  zéns, o marché aux puces e as barracasnas ruas, pelos postos de gasolina ao lon-go das superautoestradas da América,  pelas fotografias lustrosas nas revistasou pelo paraíso de celofane de umdrugstore americano, para nos darmosconta de que os objetos do surrealismodesapareceram sem deixar vestígios. Da-qui para a frente, no que se pode chamar de capitalismo pós-industrial, os produ-tos de que nos abastecemos são inteira-mente desprovidos de profundidade: seuconteúdo plástico é totalmente incapazde servir como um condutor de energia

  psíquica. Desde o início, exclui-se qual-quer investimento libidinal em tais obje-tos, e podemos mesmo nos perguntar seé verdade que nosso universo de objetos,a partir de então, já não tem mais condi-ções de produzir qualquer  símbolo capazde instigar a sensibilidade humana, ouse não nos encontramos aqui em presen-ça de uma transformação cultural de pro-  porções notáveis, uma ruptura históricade um tipo inesperadamente radical14.

or fim, a imagem ou a esperança da revolução foram murchan-

do no Ocidente. O início daGuerra Fria e a sovietização daEuropa Oriental cancelaram por todoum período histórico qualquer perspecti-va realista de uma destruição do capita-lismo avançado pelo socialismo. A ambi-güidade da aristocracia, o absurdo doacademicismo, a jovialidade dos primei-ros carros ou das primeiras fitas de cine-ma, a palpabilidade de uma alternativasocialista, tinham todos desaparecido ago-ra. Em seu lugar, reinava agora umaeconomia de produção universal de mer-cadorias, rotinizada e burocratizada, naqual consumo de massa e cultura de

massa haviam praticamente se tornadotermos intercambiáveis. As vanguardasdo pós-guerra deveriam definir-se essen-cialmente contra esse pano de fundo to-talmente novo. Não é necessário julgá-las do alto de um tribunal lukácsianopara notar o óbvio: pouca coisa na lite-

ratura, na pintura, na música ou na ar-quitetura desse período pode ser com-parada com a produção da época ante-rior. Refletindo sobre o que chama "aextraordinária concentração de obras-primas literárias por volta da PrimeiraGuerra Mundial", em seu livro recenteSigns Taken for Wonders, Franco Mo-

retti escreve: Extraordinária por causade sua quantidade, como mesmo a maisrudimentar das listas pode demonstrar (Joyce e Valéry, Rilke e Kafka, Svevoe Proust, Hofmannsthal e Musil, Apolli-naire, Maiakovsky); mas até mais queextraordinária pelo fato desta abundân-cia de obras (como fica claro agora, de-  pois de mais de meio século) ter consti-tuído a última literary season da culturaocidental. Em poucos anos a literaturaeuropéia deu o melhor de si e pareciana iminência de abrir novos e ilimitadoshorizontes: ao invés disso, morreu. Al-guns poucos icebergs isolados, e muitos

imitadores; mas nada comparável como passado 15. Seria um pouco de exagero generali-

zar este julgamento para as outras artes,mas — infelizmente — nem tanto. Es-critores, pintores, arquitetos ou músicosproduziram, é claro, individualmente,uma obra significativa depois da Segun-da Guerra Mundial. Mas as altitudes aque chegaram as duas ou três primeirasdécadas do século raramente foram denovo alcançadas, ou nunca mais. Tampou-co surgiu, após o surrealismo, qualquernovo movimento estético de importânciacoletiva, capaz de atuar em mais de uma

forma de arte. Apenas na pintura e naescultura escolas e slogans especializa-dos sucederam-se uns aos outros, cadavez com maior rapidez: mas, depois domomento do expressionismo abstrato —a última vanguarda genuína do Ocidente—, eles existiram mais em função de umsistema de galerias que necessitava deum output  regular de novos estilos, comomateriais para o desfile comercial datemporada, segundo o modelo da hautecouture: um padrão econômico corres-pondente ao caráter não-reprodutívelde obras "originais" nessas áreas espe-cíficas.

Era agora, no entanto, quando tudoo que criara a arte clássica do início doséculo XX estava morto, que nasciam aideologia e o culto do modernismo. Aprópria concepção de modernismo, comocoisa de uso corrente, não data de muitoantes dos anos 50. O que ela prenuncia-

13 Ibid., pp. 103-104. 

15 Signs Taken for Wonders,Londres, 1983, p. 209. 

14 Ibid., p. 105. 

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va era o colapso, visível por toda parte,da tensão entre as instituições e meca-nismos do capitalismo avançado, e aspráticas e programas da arte avançada,que ocorria na medida em que aqueleanexava a esta como decoração ou diver-

são ocasional, ou como seu   point d'hon-neur  filantrópico. As poucas exceçõesdo período sugerem a força da regra. Ocinema de Jean-Luc Godard, nos anos60, é  talvez o caso mais notável nessesentido. À medida que a Quarta Repú-blica cedia já com atraso seu lugar àQuinta, e a França rural e provincianase transformava repentinamente por umaindustrialização que, sob o comando deDe Gaulle, se apropriava das mais novastecnologias internacionais, algo como umbreve clarão no crepúsculo a refletir aconjuntura anterior, que havia produzi-do a arte inovadora clássica do século,

brilhou ganhando nova vida. A seu mo-do, o cinema de Godard foi marcadopor todas as três coordenadas descritasanteriormente. Banhado em citações ealusões a um passado da alta cultura, aoestilo de Eliot; celebrante equívoco doautomóvel e do aeroporto, da câmera eda carabina, ao estilo de Léger; expec-tante de tempestades revolucionáriasvindas do Leste, ao estilo de Nizan. Asublevação de maio-junho de 1968 naFrança foi o terminal histórico que vali-dou esta forma de arte. Régis Debraydescreveria sarcasticamente, após o even-to, a experiência daquele ano como uma

viagem à China que — como a de Co-lombo — descobriu apenas a América:mais especificamente, desembarcou naCalifórnia 16. Isto é, uma turbulência so-cial e cultural que se enganou a si mes-ma ao se tomar por uma versão francesada Revolução Cultural, quando de fatosignificava não mais que o advento atra-sado de um consumismo permissivo naFrança. Mas foi precisamente esta ambi-güidade — uma abertura de horizonte,onde as formas do futuro poderiam assu-mir alternativamente as formas escorre-gadias tanto de um novo tipo de capita-lismo quanto da erupção do socialismo

— que era constitutiva de grande parteda sensibilidade característica daquiloque veio a ser chamado de modernismo.De modo nada surpreendente, ela nãosobreviveu à consolidação que se seguiu,com Pompidou, nem no cinema deGodard nem em qualquer outra parte.Pode-se mesmo dizer que o que marcaa situação típica do artista contemporâ-

neo no Ocidente é, ao contrário, o fecha-mento de horizontes: sem um passadoapropriável nem um futuro imaginável,num presente interminavelmente recor-rente.

Isto, evidentemente, não é verdadecom relação ao Terceiro Mundo. É signi-ficativo que tantos dos exemplos do queBerman considera como as grandes rea-lizações modernistas do nosso tempo se-  jam tirados da literatura latino-america-na. Pois no Terceiro Mundo, de modogeral, existe hoje uma espécie de confi-guração que, como uma sombra, repro-duz algo do que antes prevalecia no Pri-meiro Mundo. Oligarquias pré-capitalis-tas dos mais variados tipos, sobretudo asde caráter fundiário, são ali abundantes;nessas regiões, onde ele ocorre, o desen-volvimento capitalista é, de modo típico,muito mais rápido e dinâmico que naszonas metropolitanas, mas, por outro la-do, está ali infinitamente menos estabili-zado ou consolidado; a revolução socia-lista ronda essas sociedades como perma-nente possibilidade, já de fato realizadaem países vizinhos — Cuba ou Nicará-gua, Angola ou Vietnã. Foram estas con-dições que produziram as verdadeirasobras-primas dos anos recentes que seconformam às categorias de Berman: ro-mances como Cien Años de Soledad, deGabriel García Marquez, ou  Midnight'sChildren, de Salman Rushdie, na Colôm-bia ou na Índia, ou filmes como Yol,de Yilmiz Güney, na Turquia. Obras

como estas, porém, não são expressõesatemporais de um processo de moderni-zação em constante expansão, mas sur-gem em constelações bem delimitadas,em sociedades que ainda se encontramem cruzamentos históricos definidos. OTerceiro Mundo não oferece ao moder-nismo nenhuma fonte da eterna juven-tude.

Os limites do autodesenvolvimento 

Até agora examinamos dois dos con-

ceitos centrais de Berman — moderni-zação e modernismo. Consideremos ago-ra o termo médio que faz a ligação entreambos, a própria modernidade. Esta,deve-se lembrar, é definida como a expe-riência pela qual se passa no interior damodernização que dá origem ao moder-nismo. Em que consiste esta experiência?Para Berman, é essencialmente um pro-

16 Régis Debray, A ModestContribution to the Rites andCeremonies of the Tenth Anni-versary,   New Left Review,115, Maio-Junho 1979, pp.45-65. 

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cesso subjetivo de autodesenvolvimentoilimitado, que ocorre à medida que sedesintegram as barreiras tradicionais doscostumes ou dos papéis sociais — umaexperiência necessariamente vivida a umsó tempo como emancipação e ordálio,exaltação e desespero, ao mesmo tempomotivo de temor e de júbilo. É o impulso

desta corrida incessante em direção afronteiras ainda não mapeadas da psiqueque assegura a continuidade histórico-mundial do modernismo: mas é tambémeste impulso que parece minar de ante-mão qualquer prospecto de estabilizaçãomoral ou institucional sob o comunismo;na verdade, parece até mesmo recusar acoesão cultural necessária para que ocomunismo possa simplesmente existir,tornando-o algo como uma contradiçãoem seus próprios termos. O que deve-mos pensar desse argumento?

Para compreendê-lo, precisamos per-guntar-nos: donde vem a visão de Ber-man de uma dinâmica completamenteilimitada de autodesenvolvimento? Seuprimeiro livro, The Politics of Authen-ticity, que contém dois estudos — umsobre Montesquieu e outro sobre Rous-seau — nos dá a resposta. Essencialmen-te, esta idéia deriva daquilo que vemdesignado com acerto no subtítulo dolivro como o "individualismo radical" doconceito de humanidade de Rousseau. Aanálise de Berman da trajetória lógicado pensamento de Rousseau, na medidaem que procurou enfrentar, ao longo devárias obras sucessivas, as conseqüências

contraditórias dessa concepção, constituium tour de force. Mas para os propósi-tos de nossa discussão, o ponto crucialé o seguinte. Berman demonstra a pre-sença em Rousseau do mesmo paradoxoque imputa a Marx: se o autodesenvol-vimento ilimitado é a meta de todos,como será possível a comunidade? ParaRousseau a resposta, em palavras queBerman cita, é esta: O amor do homemderiva do amor de si. — Estenda-se oamor de si aos outros e ele se transfor-mará em virtude17 . Berman comenta:Era o caminho da auto-expansão, não oda auto-repressão, que levava ao palácio

da virtude. . . À medida que cada ho-mem aprendesse a expressar-se e a expan-dir-se a si mesmo, sua capacidade deidentificação com os outros homens sedilataria, sua simpatia e empatia paracom eles se aprofundaria18. O esquemaaqui é bastante claro: em primeiro lugar  

o indivíduo desenvolve o eu, depois oeu pode entrar em relações de mútuasatisfação com os outros — relações es-tas baseadas na identificação com o eu.As dificuldades que este pressuposto en-contra, à medida que Rousseau tentapassar — em sua linguagem — do "ho-mem" ao "cidadão", na construção de

uma comunidade livre, são então bri-lhantemente exploradas por Berman.

O que surpreende, porém, é que opróprio Berman em lugar algum rejeitao ponto de partida dos dilemas que de-monstra. Pelo contrário, conclui argu-mentando: Os programas do socialismoe do anarquismo do século XIX, do Es-tado de bem-estar do século XX e a  Nova Esquerda contemporânea podemser todos vistos como um desenvolvi-mento ulterior da estrutura de pensa-mento cujas fundações foram lançadas  por Montesquieu e Rousseau. O queesses movimentos tão diferentes parti-lham em comum é um modo de defi-nir a tarefa política crucial que enfren-tam: fazer com que a sociedade liberalmoderna mantenha as promessas por ela feitas, reformá-la — ou revolucioná-la —a fim de realizar os ideais do próprio li-beralismo moderno. A agenda do libera-lismo radical que Montesquieu e Rous-seau criaram há dois séculos continua  pendente até hoje l9. De modo análogo,em   All that is Solid Melts into Air, Ber-man pode referir-se à   profundidade doindividualismo que subjaz ao comunismode Marx20   — uma profundidade que,nota ele, então com toda a coerência,deve incluir formalmente a possibilidadede um niilismo radical.

Entretanto, quando examinamos ospróprios textos de Marx, encontramosem ação uma concepção muito diferenteda realidade humana. Para Marx, o eunão é anterior a, mas sim constituído por suas relações com os outros, desde o iní-cio: mulheres e homens são indivíduossociais, cuja sociabilidade não é subse-qüente, mas sim contemporânea à suaindividualidade. Afinal, Marx escreveuque somente ao viver em comunidadecom outros cada indivíduo tem os meios

de cultivar seus dons em todas as dire-ções: somente na comunidade, portanto,a liberdade pessoal é possível ²¹. Bermancita a frase, mas aparentemente sem versuas conseqüências. Se o desenvolvimen-to do eu está indissoluvelmente imbrica-do nas relações com os outros, seu de-

19  Ibid., p. 317 .

20   All that is Solid Meltsinto Air, p. 128. 

17 The Politics of Authentici-ty. Nova York, 1970, p. 181. 

21 The German Ideology, Lon-dres, 1970, p. 83; citado por

Berman em ibid., p. 97. 

18  Ibid., p. 181. 

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MODERNIDADE E REVOLUÇÃO 

senvolvimento não poderia consistir ja-mais numa dinâmica ilimitada no senti-do monadológico evocado por Berman:pois a coexistência de outros sempreconstituiria um limite, sem o qual o pró-  prio desenvolvimento não poderia ocor-

rer. Assim, para Marx, o postulado deBerman constitui uma contradição emtermos.

utro modo de dizer isto é lem-brar que Berman não percebeu— como, aliás, muitos outros

— que Marx possui uma com-cepção da natureza humana que excluiesse tipo de plasticidade ontológica infi-nita que ele próprio supõe. Isto podeparecer uma afirmação escandalosa, dadaa origem reacionária de tantas idéiasaceitas sobre o que é a natureza huma-

na. Mas esta é a sensata verdade filoló-gica, conforme se pode demonstrar comtoda a evidência mesmo pelo mais su-perficial exame da obra de Marx, e com-forme comprova de modo irrefutável olivro recente de Norman Geras,  Marxand Human Nature —   Refutation of a Legend  22. Esta natureza, para Marx, in-clui um conjunto de necessidades, forçase disposições primárias — o que ele cha-ma, nas famosas passagens dos Grundris-se sobre as possibilidades humanas sobo feudalismo, o capitalismo e o comu-nismo, de   Bedürfnisse, Fähigkeiten,Kräfte, Anlagen — capazes todas elas de

se expandir e se desenvolver, mas não dese anular ou ser substituídas. Assim, avisão de um impulso independente eniilista do eu em direção a um desenvol-vimento completamente ilimitado nãopassa de uma quimera. Antes, o genuíno"desenvolvimento livre de cada um" só pode ser realizado se se efetuar no res-peito pelo "livre desenvolvimento de to-dos", dada a natureza comum daquiloque constitui um ser humano. Nas pró-prias passagens dos Grundrisse em queBerman se baseia, Marx fala sem o me-nor equívoco do desenvolvimento plenodo controle humano sobre as forças da

natureza — inclusive as da sua próprianatureza e da absoluta elaboração (He-rausarbeiten) das suas disposições cria-doras, em que a universalidade do indi-víduo. . . é a universalidade das suas re-lações reais e ideais²³. A coesão e esta-bilidade, que Berman se pergunta se ocomunismo seria capaz de encontrar al-gum dia, reside para Marx na própria

natureza humana que o comunismo final-mente viria emancipar — uma naturezamuito distante de uma mera catarata dedesejos sem forma. Apesar de toda a suaexuberância, a versão que Berman dá deMarx, enfatizando de modo virtualmente

exclusivo a liberação do eu, acaba poraproximar-se desconfortavelmente — pormais radical e decente que seja seu tom— das suposições da cultura do nar-cisismo.

O impasse atual 

Para concluir: onde, com tudo isso,fica a questão da revolução? Berman ébem coerente aqui. Para ele, como paratantos outros socialistas hoje em dia, anoção de revolução se estende em dura-

ção. Na verdade, o capitalismo já nostraz a convulsão constante em nossascondições de vida, e neste sentido é —como diz ele — uma revolução perma-nente: uma revolução que obriga homense mulheres modernos a aprender a aspi-rar por mudança: não apenas a ser aber-tos a mudanças em suas vidas, a nível  pessoal e social, mas a demandá-las posi-tivamente, procurar por elas de modoativo e realizá-las. Eles devem aprender a não desejar nostalgicamente as rela-ções fixas, congeladas de um passado realou imaginário, mas antes devem com-  prazer-se com a mobilidade, prosperar 

com a renovação, esperar por desenvol-vimentos futuros em suas condições devida e em suas relações com os outroshomens, seus companheiros24. O adven-to do socialismo não deteria esse proces-so nem o poria em xeque, mas, ao con-trário, viria acelerá-lo imensamente egeneralizá-lo. Os ecos do radicalismo dosanos 60 estão aqui presentes de modoinequívoco. A atração exercida por essasnoções tem se revelado muito difundida.Mas elas não são, na verdade, compatí-veis nem com a teoria do materialismohistórico, entendido em sentido estrito,nem com o registro da própria história,

por mais teorizada que seja.Revolução é um termo com um sen-

tido preciso: a destruição política, debaixo para cima, de uma ordem estatal,e sua substituição por outra. Não se ga-nha nada ao se diluir no tempo esta no-ção, ou ao estendê-la por todas as áreasdo espaço social. No primeiro caso, elase torna indistinguível de meras refor-

22  Norman Geras,   Marx and   Human Nature - Refutationof a Legend, Londres, 1983. 

24   All that is Solid Meltsinto Air, pp. 95-96. 

23  Grundrisse, pp. 387, 440. 

14 NOVOS ESTUDOS N.º 14 

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mas — da simples mudança enquantotal, não importando quão pequena ougradual: tal como ocorre na ideologia doEurocomunismo atual ou nas versõescognatas da Social Democracia; no segun-do caso, ela se reduz a mera metáfora —podendo ser reduzida simplesmente anão mais que supostas conversões morais

ou psicológicas, como ocorre na ideolo-gia do maoísmo, com sua proclamaçãode uma "Revolução Cultural". Contraessas desvalorizações irresponsáveis dotermo, com todas as suas conseqüênciaspolíticas, é necessário insistir que a re-volução é um processo  pontual e nãopermanente. Ou seja: uma revolução éum episódio de transformação políticaconvulsiva, comprimido no tempo e con-centrado no alvo que tem um início de-terminado — quando o antigo aparelhode Estado ainda está intacto — e um fi-nal limitado, quando o antigo aparelhoé decisivamente destruído e um outro se

ergue em seu lugar. O que seria distin-tivo de uma revolução socialista quecriasse uma genuína democracia pós-ca-pitalista é que o novo Estado constitui-ria verdadeiramente transição, rumo aoslimites praticáveis de sua própria auto-dissolução na vida associada da socie-dade como um todo.

o mundo capitalista avançadode hoje, é a aparente ausênciade qualquer prospecto dessetipo como um horizonte próxi-

mo ou mesmo distante — a falta, apa-rentemente, de qualquer alternativa con-  jecturável para o status quo imperial deum capitalismo de consumo — o quebloqueia a probabilidade de qualquerrenovação cultural profunda, comparávelà grande Era das Descobertas Estéticasdo primeiro terço deste século. Aindasão válidas as palavras de Gramsci:  Acrise consiste precisamente no fato deque o velho está morrendo e o novo não  pode nascer; nesse interregno, apareceuma grande variedade de sintomas mór-bidos 25.

Contudo, é legítimo perguntar: seria

possível dizer de antemão o que poderiaser o novo? Creio que uma coisa, aomenos, poderia ser predita. O modernis-mo enquanto noção é a mais vazia detodas as categorias culturais. Ao contrá-rio dos termos gótico, renascentista, bar-roco, maneirista, romântico ou neoclássi-

co, ele não designa nenhum objeto pas-sível de descrição por si mesmo: carececompletamente de qualquer conteúdopositivo. Na verdade, como vimos, o quese oculta sob esse rótulo é uma amplavariedade de práticas estéticas muito di-versas — de fato incompatíveis: simbo-lismo, construtivismo, expressionismo,

surrealismo. Tais práticas, que de fatosoletram programas específicos, foramunificadas   post hoc num conceito híbri-do, cujo único referente é a oca passa-gem do próprio tempo. Não existe ne-nhum outro indicador estético tão vazioou viciado. Pois aquilo que uma vez foimoderno logo fica obsoleto. A futilidadedo termo, e a ideologia que o acompa-nha, podem ser vistas, de modo claro atédemais, nas tentativas correntes de seapegar aos seus destroços e continuar anadar com a maré, ainda mais longe, atéultrapassá-lo, na cunhagem do termo  pós-modernismo: um vazio atrás do outro,

numa regressão em série de umacronologia autocongratulatória. Se nosperguntássemos o que a revolução (en-tendida como uma ruptura pontual eirreparável para com a ordem do capital)tem a ver com o modernismo (entendidocomo esse fluxo de vaidades temporais),a resposta seria: ela certamente acabariacom ele. Pois uma genuína cultura socia-lista seria aquela que não procuraria in-saciavelmente pelo novo, definido sim-plesmente como aquilo que vem depois,para logo a seguir ser atirado entre osdetritos do velho, mas, isto sim, umacultura que multiplicaria o diferente,

numa variedade de estilos e práticas cor-rentes muito maior que tudo o que existiuantes: uma diversidade fundada numapluralidade e complexidade muito maio-res de modos de vida possíveis que qual-quer comunidade de iguais, não maisdividida em classes, raças ou gênero, iriacriar. Noutras palavras, sob esse aspecto,os eixos da vida estética correriam hori-zontalmente e não na vertical. O calen-dário deixaria de tiranizar, ou organi-zar a consciência da arte. Nesse sentido,a vocação de uma revolução socialistanão seria nem a de prolongar nem a derealizar a modernidade, mas sim a de

aboli-la.

Novos Estudos CEBRAP, São Paulon.°14, pp. 2-15, fev. 86 

Perry Anderson é historiador e editor da   New Left  Review. 

25 Antonio Gramsci, Selec-tions from the Prison Note-books, org. Quintin Hoare eGeoffrey Nowell-Smith, Lon-

dres, 1972, p. 276. 

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