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Estudos Feministas, Florianópolis, 19(2): 336, maio-agosto/2011 403 Corpo Corpo Corpo Corpo Corpo, imagem e registro colonial , imagem e registro colonial , imagem e registro colonial , imagem e registro colonial , imagem e registro colonial no no no no no Corazón Sangrante Corazón Sangrante Corazón Sangrante Corazón Sangrante Corazón Sangrante de Astrid de Astrid de Astrid de Astrid de Astrid Hadad Hadad Hadad Hadad Hadad Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: Apresentaremos uma discussão acerca da apropriação do coração como um elemento alegórico de reconhecimento de uma identidade coletiva na América Latina. Através do cabaré contemporâneo da performer mexicana Astrid Hadad, de origem maya-libanesa, apontaremos uma crítica a uma política de controle e organização dos parâmetros de gênero. A experiência de colonização na América Latina foi pautada pelas estratégias de um discurso encaminhado pela utilização do coração como uma importante alegoria de apassivamento e subalternização, sobretudo da mulher. Em seu videoclipe Corazón Sangrante, assumindo as estratégias articuladas em torno do melodrama, Hadad se arma da ambiguidade própria da ironia para problematizar a discussão, apontando a permanência de um registro colonial no interior da cultura mexicana contemporânea. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: corpo; imagem; registro colonial; performance; Astrid Hadad. Copyright © 2011 by Revista Estudos Feministas. Maurício de Bragança Universidade Federal Fluminense Visit the United States before the United States visit you. Astrid Hadad Frequentemente deparamo-nos com esquemas de representação que conjugam a ideia de América Latina com uma linguagem marcada pelo passional, pelas articulações que carregam um forte acento melodramático, em que a estética do excesso hiperdimensiona o gesto apresentado. Por um lado, o sucesso internacional de nossas telenovelas, por exemplo, vem corroborar essa relação: nosso maior produto cultural de exportação recai nos folhetins eletrônicos que se espalham pelos quatro cantos do planeta, fazendo com que um imaginário internacional relacione América Latina e sentimentalismo. Por outro lado, esse êxito comercial coloca em xeque exatamente essa intimidade entre a América Latina e “as coisas do coração”, já que tornam evidentes outras relações de engajamento e reconhecimento. A excelente recepção das telenovelas

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Estudos Feministas, Florianópolis, 19(2): 336, maio-agosto/2011 403

CorpoCorpoCorpoCorpoCorpo, imagem e registro colonial, imagem e registro colonial, imagem e registro colonial, imagem e registro colonial, imagem e registro colonialno no no no no Corazón SangranteCorazón SangranteCorazón SangranteCorazón SangranteCorazón Sangrante de Astrid de Astrid de Astrid de Astrid de Astrid

HadadHadadHadadHadadHadad

ResumoResumoResumoResumoResumo: Apresentaremos uma discussão acerca da apropriação do coração como umelemento alegórico de reconhecimento de uma identidade coletiva na América Latina. Atravésdo cabaré contemporâneo da performer mexicana Astrid Hadad, de origem maya-libanesa,apontaremos uma crítica a uma política de controle e organização dos parâmetros de gênero.A experiência de colonização na América Latina foi pautada pelas estratégias de um discursoencaminhado pela utilização do coração como uma importante alegoria de apassivamento esubalternização, sobretudo da mulher. Em seu videoclipe Corazón Sangrante, assumindo asestratégias articuladas em torno do melodrama, Hadad se arma da ambiguidade própria daironia para problematizar a discussão, apontando a permanência de um registro colonial nointerior da cultura mexicana contemporânea.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: corpo; imagem; registro colonial; performance; Astrid Hadad.

Copyright © 2011 by RevistaEstudos Feministas.

Maurício de BragançaUniversidade Federal Fluminense

Visit the United States before the United States visit you.Astrid Hadad

Frequentemente deparamo-nos com esquemas derepresentação que conjugam a ideia de América Latinacom uma linguagem marcada pelo passional, pelasarticulações que carregam um forte acento melodramático,em que a estética do excesso hiperdimensiona o gestoapresentado. Por um lado, o sucesso internacional de nossastelenovelas, por exemplo, vem corroborar essa relação:nosso maior produto cultural de exportação recai nosfolhetins eletrônicos que se espalham pelos quatro cantosdo planeta, fazendo com que um imaginário internacionalrelacione América Latina e sentimentalismo. Por outro lado,esse êxito comercial coloca em xeque exatamente essaintimidade entre a América Latina e “as coisas do coração”,já que tornam evidentes outras relações de engajamento ereconhecimento. A excelente recepção das telenovelas

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latino-americanas no Leste da Europa imediatamente apósa queda do muro de Berlim, por exemplo, embaralhava asimetria desses códigos.

Ainda assim, frequentemente percebemo-nos comopassionais, sentimentais e marcados pela linguagem quevem do coração. Essas estratégias estiveram, no âmbito dasmediações culturais, a serviço da construção de modelosde modernização dos Estados nacionais na América Latinae ofereceram matrizes importantes na veiculação dediscursos hegemônicos e também de experiências dedesconstrução desses modelos.

Neste artigo, apresentaremos uma discussão acercada apropriação do coração como um importante elementoalegórico de reconhecimento de uma identidade coletivana América Latina. Através do trabalho de Astrid Hadad,uma performer-cabaretera mexicana contemporânea,apontaremos uma crítica a uma política de controle eorganização dos parâmetros de gênero. A experiência decolonização na América Latina foi pautada pelasestratégias de um discurso encaminhado pela utilizaçãodo coração como uma importante alegoria deapassivamento e subalternização, em especial da mulher.Assumindo as estratégias articuladas em torno domelodrama, Hadad se arma da ambiguidade própria daironia para problematizar a discussão, apontando apermanência de um registro colonial no interior da culturamexicana contemporânea.

Em 1992, o México aderia ao NAFTA (North AmericanFree Trade Agreement), também conhecido como TLC (Tratadode Livre Comércio), que entraria em vigor dois anos depois.Através do acordo, o país aceitava oficialmente as regrasprogramadas pelas economias centrais para as economiasdependentes no interior de um mundo globalizado. Pelotratado, a economia mexicana articulava-se às economiascanadense e norte-americana formando uma espécie debloco econômico da América do Norte no interior do qual asregras do mercado globalizado regeriam o funcionamentodas trocas comerciais entre os três países integrantes. Issoviria expandir ainda mais o poderio dos Estados Unidos sobreo México, permitindo oficialmente que as decisões deWashington interviessem diretamente na soberania e naautonomia da política mexicana, alterando inclusive artigosconstitucionais que se configuravam como conquistashistóricas de um país que, por quase dez anos no início doséculo passado, enfrentara sangrentas disputas internas nummovimento revolucionário que marcaria definitivamenteaquele projeto de nação por todo o século XX.

A reação se deu de forma imediata dentre os grupospolíticos que rechaçavam a política neoliberal

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implementada pelo presidente Carlos Salinas de Gortari noMéxico. Aliás, naquele momento, em quase toda a AméricaLatina, implantavam-se os paradigmas do projeto neoliberalcomo modelo globalizado e “incontestável” demodernização e das alterações das relações entreeconomias centrais e economias periféricas. Os influxos doprojeto de atrofia e desmonte dos Estados nacionais e odeslocamento das questões sociais para o âmbito das regrasdo mercado capitalista neoliberal já haviam seestabelecido num primeiro momento nas economias centraiseuropeias – como no governo da Primeira Ministra britânicaMargaret Thatcher na década de 1980 – e num segundomomento no desmonte das experiências comunistas no inícioda década de 1990 no Leste europeu. A América Latinaconvertia-se num terceiro grande cenário de implantaçãoda política neoliberal por toda a década de 1990 e tevepersonagens fundamentais, ainda em finais da década de1980, como Carlos Salinas em 1988 no México, Carlos Menemna Argentina em 1989, Carlos Andrés Pérez na Venezuela em1989, Alberto Fujimori no Peru em 1990, Fernando Collor deMello no Brasil em 1989.1

No México, as reações foram incisivas, marcadas pelaentrada em cena, por exemplo, do Exército Zapatista deLibertação Nacional (EZLN), representado em esfera midiáticapela emblemática figura do Subcomandante Marcos, queviria questionar, de forma permanente e no âmbito de umaresistência também globalizada, o modelo político dasrelações entre a América Latina e as economias centrais.

É nesse cenário que a perfomer-cabareteramexicana Astrid Hadad, de origem maya-libanesa, lança osegundo álbum de sua carreira, Corazón Sangrante, no qualrecupera, através do potencial político das letras dascanções de sua autoria, a tradição dos espetáculos derevista das décadas de 1920 e 1930, que tinham seu foconos eventos políticos diários do cenário nacional a partir deuma performance que dialogava com um público demassa.

Antes de abordar especificamente seu trabalho – nospalcos, cantinas e cabarés onde Hadad se apresenta –caberia situá-la num cenário maior que, desde os anos 1980,no México, vê expandir a performance do cabaré como umapotente manifestação cultural.

O imaginário criado em torno do cabaré agenciou,nos períodos pós-revolucionários das décadas de 1920 a1940, elementos vinculados a um projeto de construção deidentidade nacional mexicana, através de inúmerascompanhias de repertório do teatro de revistas.Contemporaneamente, a cultura cabaretera continua aproduzir sentido através da performance de algumas artistas

1 Sobre o projeto histórico doneoliberalismo, sua gênese eimplementação em contextoglobalizado, ver o artigo “Balançodo neo-liberalismo” (PerryANDERSON, 1995).

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mexicanas e chicanas. A performance desconstrutora dessascabareteras contemporâneas traz as marcas do processotransfronteiriço no qual se (des)localiza a experiência dessecorpo da mulher subalternizado nos domínios étnicos, declasse, de gênero e de sexualidades.

O cabaré continua atuando num sentido heterotópicoao criar um espaço alternativo dentro do sistema paraarticular as trocas simbólicas que apontam o desvelamentodas disputas e negociações processadas no corpo políticodessa cabaretera pós-moderna. Na releitura da “culturatradicional” mexicana, a ambiguidade e a ironia instalam-se como procedimentos presentes na tragicomédia campem que as diversas textualidades (circo, teatro, literatura,música, cinema) situam o corpo feminino como detonadordesse cabaré performático.

Recentemente o México vem recuperando a tradiçãodos espetáculos de cabaré, contando, inclusive, comincentivos públicos. Em julho de 2010 organizou, no TeatroBar El Vicio, reduto cabaretero da capital mexicana, o OitavoFestival Internacional de Cabaret, onde se apresentarammais de 50 companhias e performers cabareteros/as doMéxico, de Cuba, da Argentina, de Porto Rico, dos EstadosUnidos e do Canadá. Além do apoio da Direção de DifusãoCultural da UNAM (Universidade Nacional Autônoma doMéxico), o Festival já conta com o apoio da Secretaria deCultura do Distrito Federal. Tais modelos de espetáculosencontram-se parcialmente incorporados à cena cultural ede entretenimento da sociedade mexicana, através definanciamento a pesquisas de linguagem e projetos deencenação provenientes das agências de fomento oficiaisno país, como a CONACULTA e o FONCA.

Nas revistas e periódicos dedicados à programaçãocultural, como a semanal Tiempo Libre, na seção dedivulgação dos espetáculos teatrais, entre as subdivisõespor categorias como comédia, drama, improvisação,monólogo, farsa, musicais, tragédia, já se encontra otijolinho do cabaret, que abarca espetáculos de propostasbastante diferentes entre si. O termo cabaré apresenta-se,portanto, como um conceito ainda problemático sob essaperspectiva da indústria do entretenimento, já que acabapor abrigar nessa ideia imprecisa de “teatro-cabaré” váriasdimensões muito diferentes desse tipo de espetáculo, quevão desde os modelos de cabaré mais ligados à inscriçãomusical até às montagens de textos mais satíricos pautadosna paródia a personagens do cenário político e culturalnacional (em um registro mais vinculado ao teatroconvencional encenado), passando ainda por versõesmexicanas de textos de comédia de sucesso internacional,em que a única pálida referência ao cabaré seria uma

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(previsível) participação do público na condução doespetáculo, participação esta que já se encontrariapreviamente definida desde o roteiro. Nesse termo estãotambém as atuais stand-up comedies, cuja estrutura deprodução extremamente econômica acabou por viabilizaresse tipo de espetáculo.

O palco em que Astrid Hadad costumava seapresentar no país, junto com sua banda Los Tarzanes, eramas bodegas e cantinas, para onde o público ia a fim debeber e interagir com os números, denotando que astradições do cabaré mexicano mesclavam-se aosespetáculos da década de 1930 de Bertolt Brecht e KurtWeill, nos quais a crítica política e social se concebia poruma ótica baseada num forte acento de sabedoria popular.Sobre sua própria concepção de espetáculo, a cabareteracostuma enfatizar: “Para mí es cabaret. Sé que en los EE.UU.lo llaman performance. Es un estilo sincrético, estético,patético y diurético, donde se muestran sin ningún pudor elmachismo, el masoquismo, el nihilismo y el valemadrismoinherente a toda cultura.”2

Ao assumir-se cabaretera, em detrimento do termoperformer, Hadad reforça as marcas do enfrentamento políticoque permeia sua obra. Tal enfrentamento se dá no âmbitodas relações com os Estados Unidos, a quem ela chama de“mi monstruo favorito” (epíteto que carrega os efeitos dashistóricas relações de atração e repulsa entre o México e osEstados Unidos, presentes também na epígrafe que abre esteartigo), assim como nas históricas disputas internas nas quaisos traços de uma sociedade patriarcal e misógina plasmam-se de forma violenta no corpo dessa mulher, subalternizadapelas práticas de exclusão social atravessadas pelahierarquização de uma política de gênero configurada poruma matriz masculina heteronormativa.

Seu repertório é formado primordialmente por cançõesdescoladas de um cancioneiro marcado pelas insígnias donacional-popular forjadas sob o impulso nacionalista doprojeto pós-revolucionário das décadas de 1920 a 1940 –como os boleros e as músicas rancheras – e relidas, em seuolhar contemporâneo, pelo deslocamento promovido por umaambiguidade desconstrutora.3 Define seu estilo de músicacomo uma espécie de heavy nopal, já que traz referênciasdas tradições de um México inventado sob o discursonacionalista aliadas ao potencial contestador e de ironiasubsidiado por uma “atitude roqueira” do heavy metal.

A ironia, aliás, é uma marca incontestável do poderde mobilização política do discurso de Astrid Hadad, comomostra esta oração feita pela cabaretera no registro de umade suas apresentações ao introduzir a canção Te voy aolvidar, de Juan Gabriel:

2 Astrid Hadad citada por RoselynCONSTANTINO, [s/d].

3 Sobre as múltiplas referênciaspresentes na construção dessecabaré performático e seusmecanismos de articulação deefeitos simbólicos no interior dasociedade mexicana contempo-rânea, ver a tese em LiteraturaComparada submetida àUniversidade da Carolina do Nortepor Zaida NAVARRO, [s/d].

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Los mexicanos tenemos una tendencia tremenda alsufrimiento. Y otra cosa que tenemos los mexicanos esque somos muy agradecidos. Siempre damos lasgracias de todo, hasta de todo lo que nos han quitadoy no nos han devuelto. Pues esta noche vamos a darlas gracias al tío Sam por todo lo que nos ha quitado yno nos ha devuelto, y dice:Tío Sam que estás en el pais del norte,Santificado sea tu nuevo orden,Venga a nosotros tus dólares,Hágase tu voluntad así en los Estados Unidos como enel mundo entero.Dános hoy nuestros McDonalds de cada día.Perdona a los cubanos como nosotros perdonamos alos de la DEA.4

No nos deje caer en el nacionalismo y líbranos de loshombres de negocios japoneses.En God we trust. Shalon. Amen.

Ao enfatizar a crítica às relações de poder presentesna nova ordem mundial programada pelos Estados Unidos,Hadad organiza também uma autocrítica ao apresentar osmexicanos por um apassivamento e subserviênciaconcernentes à afeição ao sofrimento. Esse é o ponto quenos interessa particularmente neste artigo. A cançãoCorazón Sangrante, que dá nome ao álbum lançado em1995, problematiza exatamente a questão acerca daformação de um imaginário criado em torno do México noqual uma suposta “identidade cultural mexicana” émarcada pelos sinais do excesso formado pelo passional epela manifestação de práticas sociais atravessadas peloscódigos do sentimento, nos quais o coração mostra-se umapoderosa alegoria vinculada ao corpo feminino:

Corazón sangrante(Astrid Hadad)

¿Adónde iré? ¿Dónde mi corazón pondré?Que no duela, que no sangre, que no arda.Lo llevaré por fuera como los santosPara que mires como me has herido tanto, tanto.

Mi corazón sumergido en chile está.Con chile lo adubaste,Con mentiras lo estrujaste.Mucho se angustia, mucho ardeMi corazón tatuaste con tu nombre.

Lo hubieras dejado en tu chaleco prendido.O mejor, ¡Ay! te lo hubieras comidoY no dejarme como a CristoEl corazón sangrante y dolorido

¿Adónde iré? ¿Dónde mi corazón pondré?Que no duela, que no sangre, que no arda.

4 DEA (Drug EnforcementAdministration) é um órgão norte-americano de c ombate ao tráficode drogas. Na região de fronteiraentre o México e os EstadosUnidos, os latinos, sobretudo osimigrantes mexicanos, são oprincipal foco de perseguição dosagentes da DEA.

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Lo llevaré por fuera como los santosPara que mires como me has herido tanto, tanto.

¿Dónde pondré este corazón?Sangrante, picante, ardiente.Conquistado, estrujado, espinado,Quemado, desgarrado, maltratado, picosito.Fregado, herido, perdido, hervido,Mareado, negado, pateado, torcido,Molido, licuado, tostado, torteado,Destrozado, pisoteado, humillado, engañado,Adobado, atiborrado, adolorido, reventado,Rechazado, revolcado, destazado, sofocadoY además manoseado.

Ao mesmo tempo que Hadad assume tais referênciasno interior de um discurso simbólico em que o nacionalatravessa fronteiras programando “o mexicano” numimaginário internacional, a cabaretera questiona talreconhecimento como marcas de estratégia de opressão esubalternização, sobretudo nos parâmetros de gênerodefinidores de arquétipos/estigmas femininos associados aosentimental e passional. No videoclipe da canção,5 a mise-en-scène da cabaretera projeta-se em meio à construçãode uma crítica fundamentada pelos recursos da linguagemaudiovisual que reforçam a ambiguidade e a ironia própriasde seu espetáculo.

Uma especial atenção deve ser dada aos discursosque se fundaram em torno da ideia de América e que,historicamente, colocaram-se como emblemas dosprocessos de negociação marcados por registroshegemônicos. Nesse embate, construíam-se discursos sobreo continente engendrados pelos mecanismos dos poderesconstituídos simultaneamente aos movimentos de tentativasde desconstrução destes olhares, indicando práticas deresistência e de desvios. Assim, são enfocadas as tensões,as fissuras e permanências ideológicas de um pensamentosobre a América.

Nessa perspectiva, os relatos hegemônicosconstruíram significações possíveis articuladasconsensualmente – numa acepção gramsciana – a partirde determinações e interesses dos centros de poder. Odiscurso fundador da América a partir da ideia de alteridadee diversidade, consolidada pelo encontro entre os europeuse os indígenas das novas terras, marcava as fronteiras domaravilhoso na indicação dos enigmas e paradoxos daconstrução do “outro” entre os códigos da beleza e damonstruosidade, referenciados pela experiência deCastela.6 Isso está presente em uma série de escritos a partirdo século XVI, de autoria dos “cronistas das Índias”, corpusque abrange desde os diários de viagem de Cristóvão

5 Corazón Sangrante, de AstridHadad, dirigido por XimenaCuevas, pode ser acessado noyoutube através do link <http://br.youtube.com/watch?v=a8T82iWal1k>.

6 Fernando AINSA, 1998.

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Colombo e Hernán Cortez até os registros de Frei Bartolomeude las Casas e Frei Bernardino de Sahagún.

Tais projetos colonizadores irão se tornar emblemasda construção de imaginários sobre a América que,plasmados de forma hegemônica na formação cultural docontinente, irão emergir em diversas experiências culturaisna história da América. O empreendimento colonizadoresteve presente também nos escritores-viajantes do iníciodo século XIX (como Alexander von Humboldt), chamadospor Marie Louise Pratt7 de “agentes neocoloniais”,interessados em confirmar o papel periférico do continentena dinâmica capitalista que se estabelecia a partir daindependência dos novos Estados-nações latino-americanos.

Tais discussões em muito se aproximam das questõestratadas por Edward Said em seu clássico ensaio dos estudospós-coloniais, Orientalismo – o Oriente como invenção doOcidente. Aliás, o próprio autor conclama o leitor a combater

os terríveis conflitos reducionistas que agrupam aspessoas sob rubricas falsamente unificadoras como“América”, “Ocidente” ou “Islã”, inventando identidadescoletivas para multidões de indivíduos que narealidade são muito diferentes uns dos outros.8

Assim como os discursos ocidentais sobre o Orienteanalisados por Said, a América também ajudou a definir aEuropa com sua representação de imagens e discursoscontrastantes. O continente deixa-se “americanizar” sob odiscurso ocidental, ocupando um lugar que acabava porconfirmar as relações de poder constituídas desde o séculoXVI, refletidas em seus desdobramentos históricos no planocultural até a formação das sociedades pós-industriaislatino-americanas. Said alerta para o fato de que tais“truísmos” se estabelecem no âmbito das representaçõesculturais que inserem o Oriente – no nosso caso a América –na “erudição ocidental, na consciência ocidental e, maistarde, no império ocidental”.9

Além disso, chama a atenção para o fato de que,

desde que passou a existir na consciência doOcidente, o Oriente foi uma palavra a que mais tardese acrescentou um amplo campo de significados,associações e conotações, e de que esses não sereferiam necessariamente ao Oriente real, mas aocampo que circundava a palavra.10

Aqui, mais uma vez a perspicaz observação de Saida respeito da definição de um projeto de orientalismo apartir da consciência do Ocidente nos ajuda a refletir sobreos processos de configuração de modelos de representaçãosobre a América que deixam escapar as utilizações de

7 PRATT, 1999.

8 SAID, 2007, p. 25.

9 SAID, 2007, p. 275-276.

10 SAID, 2007, p. 276.

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clichês nas imagens e nas figuras de linguagemrelacionadas ao continente, desvelando os mecanismos depoder, os processos de subjugação e as consequentesestratégias de resistência e afirmação de contradiscursosgarantidores do exercício de práticas de subjetividades erepresentações sociais alternativas. Já é recorrente relacionaros históricos exemplos de confirmação de estereótiposconstruídos nas manifestações artísticas ocidentais acercado latino, e especialmente da latina. No cinema norte-americano, por exemplo, abundam os exemplos desde oinício do século passado que dá conta da construção dopersonagem latino mau caráter, violento, passional,excessivamente sexualizado, traiçoeiro e bêbado. Não rarasvezes nossa própria cinematografia confirma taisestereótipos.11

Voltando à letra de Corazón Sangrante, os estigmasdefinidores de uma política de reconhecimento a umaprática cultural se manifestam como espaço de denúnciadessas mesmas estratégias de adesão.

Dessa forma, Hadad vem problematizar as relaçõesde poder presentes no universo valorativo mexicano,inserindo as discussões do nacional agenciado por umdiscurso multicultural que põe em xeque a organização dosmecanismos de poder que configuram práticas sociaissubalternizadas na América Latina. A crítica maior se situana denúncia de uma estratégia ideológica na utilizaçãode um discurso sentimental, pautado na alegoria do coraçãoe no sentimento como forma de controle e apassivamentocoletivo.

A memória do processo de Conquista e colonizaçãoda América é trazida à tona a partir das múltiplas referênciasà iconografia católica que fundamentou ideologicamenteo projeto de expansão ibérica a partir do fim do século XV eprogramou de forma definitiva as práticas que passaram areger o estatuto cultural na América Latina desde então. Osembates culturais programados nos processos de disputapolítica e ideológica são mencionados pelos espaços denegociação simbólica que tomaram corpo no continente,onde a presença dos rituais da cultura pré-hispânica defineo cenário de resistência marcado pelos sinais da violênciadessa disputa e negociação.12

A cabaretera, por exemplo, lembra Montezuma aocitar a célebre frase do antigo Imperador Azteca ao constataro massacre de seu povo pelas tropas de Hernán Cortez: “Micorazón sumergido en chile está”. Na canção, porém, Hadaddesloca o sentido original da exclamação como sedenunciasse uma espécie de vulgarização da experiênciado massacre no México,13 e na América Latina, em detrimentodo poder simbólico da ritualização da morte empreendido

12 A recuperação de um passadopré-colonial sempre foi umaestratégia fundamental no interiordas práticas afirmativas deresistência da comunidadechicana que, desde a década de1960, retomou o mito de Aztláncomo um forte discurso dereconhecimento de uma históriae identidade coletiva nos embatescom a cultura anglo-saxã.13 Tal afirmação se atualizaconstantemente, seja napermanência das práticas deviolência contra as populaçõesindígenas, seja nos massacresresultantes das ferozes disputasdos cartéis ligados ao narcotráficoque se espalham por todo oterritório mexicano.

11 Sobre essas discussões deconstrução de modelos derepresentação dos latinos e latino-americanos na indústria cultural,ver, dentre outros, Arlene DÁVILA,2001; Sergio DE LA MORA, 2006;e Clara RODRÍGUEZ,1997.

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pelas antigas culturas pré-hispânicas14 (referenciado nacanção pelo gesto, encenado no clipe, de degustaçãoantropofágica do coração).

Vale a pena enfatizar que a lembrança das históricaspráticas de violência contra os povos indígenas na América– seja durante o projeto da Conquista, seja no exercício dasrelações políticas que se estabelecem no interior dasrelações de poder na sociedade mexicana até hoje – érecorrente na performance da cabaretera. No mesmo álbumCorazón Sangrante, ela gravou a música Mata que Diosperdona, de autoria do cubano Miguel Matamoros, que dizem uma de suas estrofes:

A un gran conquistadorLe dijo su confesorMata indio por matarDios perdona al confesarEn nombre de la justiciaTodos podemos matarMatémonos entre todosDemos paso a la impudicia

Mata que Dios perdonaMata que Dios perdonaMata que Dios perdonaMata que Dios perdona

O discurso de Astrid Hadad é focado na inscrição deum imaginário acerca do coração na cultura mexicana (eseguramente podemos ampliar tal reflexão para toda aAmérica Latina, já que as estratégias de assimilação emobilização política na esfera cultural foram bastantesemelhantes por todo o continente).15

Em uma entrevista de lançamento do álbum, aprópria cantora, que ironicamente se autointitula uma“cabaretera ilustrada”, dá a dica de por onde deve serencaminhada a discussão, reforçando o potencial críticoda canção: “El Corazón sangrante es resultado de unaexploración sobre el órgano sincrético por excelencia conel cual los españoles domesticaron a los indios, es un iconoinserto en el corazón del pueblo mexicano y en el míopropio.”

A ideia de domesticação das relações travadas entreos colonizadores e os povos nativos da América através deum discurso subsidiado pelo coração (segundo a própriaartista, um órgão que acabou por abrigar todas as formasde sincretismo possíveis no projeto colonial) pode alinhar-se com os argumentos defendidos por Howard Bloch16 emseu estudo acerca da formação do amor romântico a partirda história da misoginia na Idade Média, que vaidesembocar na dualidade amor romântico/domesticidade.

15 Impossível não trazer à discussãoo clássico e polêmico capítulo deRaízes do Brasil, de Sérgio Buarquede Holanda, em que o autoresboça sua idéia acerca do“homem cordial”, espécie deregistro das relações brasileirasherdadas do projeto colonialportuguês. Aqui também asrelações marcadas pelo coração,pela intimidade e peladomesticidade permeiam aconstrução de uma sociabilidadebrasileira, segundo o autor: “E umdos efeitos decisivos dasupremacia incontestável,absorvente, do núcleo familiar –a esfera, por excelência doschamados ‘contatos primários’,dos laços de sangue e decoração – está em que aselações que se criam na vidadoméstica sempre forneceram omodelo obrigatório de qualquercomposição social entre nós. Issoocorre mesmo onde asinstituições democráticas,fundadas em princípios neutrose abstratos, pretendem assentara sociedade em normasantiparticularistas” (HOLANDA,1977, p. 106).16 BLOCH, 1995.

14 Sobre a discussão da perda doreferencial simbólico da mortecom a implementação domassacre como forma deestratégia de colonização daAmérica empreendida pelosespanhóis, ver Tzvetan TODOROV,1983.

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Segundo sua tese, a construção cristã dos gênerossexuais está relacionada a três ideias principais: umafeminização da carne (que vai ser responsável por umadicotomia básica que opõe homem/mente x mulher/corpo);a estetização da feminilidade (numa associação da noçãode mulher com o cosmético, com aquilo que é superveniente,decorativo, uma espécie de máscara/dissimulação); ateologização da estética, nas palavras do próprio Bloch,17

“a condenação em termos ontológicos não só da esfera dasimulação ou das representações [...] mas também depraticamente tudo o que é prazeroso ligado à corporificaçãomaterial”.

Assim, opera-se uma organização intelectual doprojeto ideológico medieval baseado na desautorizaçãoda mulher como imagem degradada de segunda natureza,numa lógica misógina em que o homem é concebido comounidade e a mulher como diferença, corporificando “acorrupção material associada à carne, onde se fundem oteológico e o ginecológico”.18

Dessa forma, uma espécie de “misoginia cósmica”,que perpassa as transformações nas formas de propriedadeno mundo moderno e que deve estabelecer os operadoresdas tecnologias de gênero garantidoras de umaorganização econômica e social, inverte a figura da mulhernum outro polo, através da idealização do amor romântico.Assim, o desejo, secularizado, converteu-se numa espéciede amor impossível e infeliz, tornando o sofrimento decorrentedessa impossibilidade algo nobre e marca de distinçãosocial.

O século XVIII veio reforçar o processo de domesticaçãoda figura feminina, em textos fundamentais como Émile, deRousseau, que inaugurou um novo discurso sobre amaternidade a fim de reacomodar os papéis femininos emasculinos à emergência de uma nova classe social, aburguesia. Essa divisão social dos papéis por gênero eraexigida pelo próprio desenvolvimento do capitalismomoderno, estruturando a divisão entre o público (homem)/privado (mulher) e reforçando as quatro qualidades do queconstituía, segundo E. Ann Kaplan, “o culto à verdadeiramaternidade” – piedade, pureza, domesticidade esubmissão.19 Dessa forma, uma espécie de opressãosistemática ganha consistência ao recompor estratégias desubmissão feminina sob a rubrica dos “deveres” da mulher/mãe/esposa.

Jean Franco20 afirma que, no México, a intelligentsialogo reconheceu a importância de realocação da mulher nonovo cenário após a independência, dentro do qual, comoguardiãs da vida privada, tinham um papel fundamental,como mães, na readequação de determinadas práticas

20 FRANCO, 1994.

19 KAPLAN, 1987, p. 116.

18 BLOCH, 1995, p. 36.

17 BLOCH, 1995, p. 17.

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sociais no âmbito doméstico que garantissem a hegemoniade uma elite criolla.

Dois aspectos da recodificação de gênero merecematenção especial: a elaboração de um território dedecência e estabilidade doméstica, do qual foramexpulsos todos os elementos baixos, e o deslocamentodo religioso para o nacional, que uma vez mais fez da“pureza” uma responsabilidade das mulheres.21

Esses mecanismos de opressão se sofisticaram ao se“naturalizarem” a partir dos discursos sociais sobre os gênerosdifundidos através do desenvolvimento da indústria cultural,sobretudo em contextos marcados por uma modernidadeperiférica, como a América Latina, onde tais imagensalcançaram status nacional na cultura de massa.

É inevitável, portanto, que as reflexões de Hadad nacanção citada sejam atravessadas pela experiência docorpo feminino como uma espécie de território deenfrentamentos, de disputas e de resistências, ao estabelecerestratégias de permanência de uma memória socialconfigurada nesse corpo-testemunho, tradutor de umaperspectiva pós-colonial. “Na configuração do sexo damulher, constitucional e radical, na rachadura feminina, nãoestá a metáfora justa que apreende e descreve aprofundidade da identidade latino-americana pós-colonial,a de uma mulher/homem rajada, oca, figura abjeta porexcelência?”, pergunta Silviano Santiago22 a partir da célebree polêmica análise sobre os códigos de mexicanidade feitapor Octavio Paz a partir de um imaginário coletivo sobre aMalinche, a América deflorada e violentada pela experiênciada Conquista, em seu El laberinto de la soledad. No clipe deAstrid Hadad, a denúncia do projeto colonial dedomesticação da América pelos discursos do coração mesclaimagens nacionalistas a uma iconografia religiosa projetadasobre o corpo da mulher.

Corpo, fronteira, gênero e nacional apresentam-secomo termos de grande potência conceitual no texto docabaré de Hadad para problematizar os horizontes políticosno debate contemporâneo. Por meio do corpo emperformance de Astrid Hadad, a ironia aponta a suspeitaacerca dos relatos de coesão oferecidos pelas narrativasdo nacional. Apesar de tomá-lo como referência, suaperformance supera os limites nacionais pela crítica àquiloque Walter Mignolo23 identifica como a “colonialidade dopoder”. O gesto de Hadad sugere a necessidade de sepensar para além da nação. Se reconhecemos, comoBenedict Anderson,24 que a nação é algo imaginado,também devemos reconhecer a crítica recíproca dessaideia: a imaginação poderá levar-nos para além da nação.

23 MIGNOLO, 2003.

21 FRANCO, 1994, p. 101.

22 SANTIAGO, 2006, p. 150.

24 ANDERSON, 1989.

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É nesse aspecto que Arjun Appadurai25 identifica no hífenque ajusta Estado a Nação o verdadeiro lugar da crisecontemporânea decorrente dos deslocamentos do papeldos Estados-nações modernos. Essa perspectiva chamadapor Appadurai de pós-nacional aponta novas cartografiasrelacionadas a contra-histórias e contraidentidades.

Esse pós, então, não corresponde apenas a um pósde superação de etapas, mas a um gesto de “abrirespaços”, por ser posterior a algo mas, sobretudo, por rejeitaros aspectos e os sentidos de algo. Significa uma condiçãode postura intelectual, estética e política marcada peladeslegitimação da Nação como autoridade, como poder ecomo significado. É um pós que contesta narrativas nacionaisanteriores, legitimadoras de dominação e poder, produzindouma reescritura descentrada das grandes narrativas dopassado, ancoradas na Nação. É um discurso epistêmicoque vai além da Nação, operando sob a rasura dos códigosnacionais.

Seguindo os passos de Homi Bhabha,26 a significaçãomais ampla da condição pós-moderna reside naconsciência de que os “limites” epistemológicos daquelasideias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativasde uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, atédissidentes – mulheres, colonizados, grupos minoritários, osportadores de sexualidades policiadas. Nesse aspecto, essasculturas representativas de uma suspeita da modernidadepós-colonial apresentam-se como uma contingência daprópria modernidade, deslocadas de sua lógica,oferecendo uma resistência aos processos culturaishegemônicos, em que o hibridismo e as manifestaçõesfronteiriças acabam por “traduzir” o imaginário socialreferente ao modelo metropolitano e à modernidade.

A marca da violência forja definitivamente a memóriacultural deste corpo subalterno. O conceito defronteira carrega, então, o sinal de morte e de vida, apossibilidade de fim e a esperança de um reinício,traduzindo os paradoxos e contradições que estãopresentes no projeto de Hadad.27

No hiperdimensionamento de um gestual ironizadopelas regras do excesso melodramático, a mise-en-scèneda cabaretera traz à tona um imenso repertório de imagensrelacionadas ao projeto nacional de mexicanidade (orevolucionário, o religioso, o melodrama, o indigenismo). Arecuperação do potencial simbólico dessa iconografiaalcança o argumento de Serge Gruzinski28 de que a imagemexerceu, desde o século XVI, uma função primordial nodescobrimento, conquista e colonização do Novo Mundo.Por razões espirituais, linguísticas e técnicas, a iconografia

25 APPADURAI, 1997.

28 GRUZINSKI, 1995.

26 BHABHA, 1998.

27 BRAGANÇA, 2007, p. 114.

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assumiu um lugar de destaque em um processo que tempermanência, até hoje, no domínio das imagens da Televisa,configurada como um capital simbólico hegemônico nasdiscussões nacionais e internacionais.29

Tais argumentos, porém, não assumem de formaalguma a feição de uma crítica iluminista do caráter“degenerador e manipulador” do fluxo de imagensformatador de uma consciência popular. Antes, contudo, aapropriação simbólica efetuada pela recepção populardos produtos do Canal de las Estrellas pode indicarcaminhos de resistência que coloquem em xeque, inclusive,os próprios limites da hegemonia desse discurso. Hadad,em 2006, encenava um espetáculo chamado ¡Oh diosas!30

em que ironizava o culto às divas e às estrelas, desde arepresentação do nascimento de Vênus em uma bacia deroupa, até a ironia em torno do culto a Frida Khalo comocelebridade, passando por um número em que a Virgem deGuadalupe, qual uma diva, cantava uma música do cômicoTin Tan, “Cantando en el baño”. Tudo isso vinha reforçar deforma crítica o papel da indústria cultural mexicana, naqual a participação do Grupo Televisa é fundamental.

O que Gruzinski apresenta, e que nos interessa trazerà reflexão ao pensarmos a obra de Astrid Hadad, é umaespécie de “política da imagem” que foi utilizada comoestratégia desde a colonização da América, e da qual oemblema da Virgem de Guadalupe, por exemplo, é um deseus instrumentos mais bem acabados. Essa “política daimagem” encena os meios pelos quais se articulam osprocessos de representação social, fundamentais para amanutenção do controle ideológico necessário paraassegurar o êxito daquele projeto político. É no fluxo dessaargumentação que Gruzinski introduz a permanência dessapolítica do controle pelo surgimento da Televisa nos anos1950 e seu acelerado crescimento a partir da década de1970.

No clipe de Astrid Hadad, as imagens religiosas estãoa serviço de um modelo de representação excessivamentepautado pela histeria, associada psicanaliticamente àmulher (e à figura da diva). O corpo da atriz se oferece comosuporte para encaminhar tais discussões, atuando comouma espécie de cenário camp onde são depositados oselementos necessários para denunciar as estratégiasdiscursivas que vinculam a mulher a um sentimentalismoapassivador (aqui recuperando as discussões de Blochsobre a “estetização da feminilidade”, encaminhadas maisacima). Uma espécie de “estética pop-camp-kitsch-barroca” inspira a composição das imagens e, nessesentido, a cabaretera recupera o potencial de ambiguidadepróprio ao barroco latino-americano.

29 A Televisa já concentrava noMéxico 62% da produção tele-visiva comercial e é a companhiaprodutora de mídia televisiva emespanhol mais poderosa domundo, além de ser a principalcadeia produtora e exportadorade programas a países da Europa,Ásia e África. Em 2006, último anodo governo Vicente Fox, foramvotadas, no México, reformas à leifederal de rádio e televisão e à leifederal de telecomunicações dopaís, que asseguravam ao GrupoTelevisa um maior monopólio sobreos meios de informação, estabe-lecendo um regime especial paraque a Televisa pudesse prestarserviços de telecomunicações,ampliando assim seu controlesobre esse setor estratégico.Segundo essa lei, que ficouconhecida como Ley Televisa,seria permitido aos meios privadosagregar novos sinais aos jáexistentes sem passar por umprocesso de licitação, desconfi-gurando o estatuto de concessãodo espaço radioelétrico peloEstado. A consequência imediatada implementação dessa lei seriao enfraquecimento, tendendo aum desaparecimento, das rádioscomunitárias e educativas, asredes de rádio e canais de televi-são estatais, os meios universitáriose as rádios indígenas, o que signi-ficaria um aniquilamento do com-promisso social do poder públicodiante dos privilégios do podereconômico das grandes corpo-rações midiáticas.30 É importante ressaltar o potencialde ambiguidade que o títuloapresenta que, em espanhol,pode ser lido tanto como Ohdeusas! quanto Odiosas!

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As imagens do barroco latino-americano,transfiguradas pelo projeto sincrético que tomou corpo nocontinente, foram imprescindíveis para abrir espaço para oprocesso de transculturação que se operava por aqui.31 Maisuma vez, as emblemáticas imagens guadalupanas entramem cena fazendo ressoar, nas disputas internas presentesna própria concepção do mito mexicano, os ecos daidolatria pagã das divindades pré-hispânicas como formade abrir espaço na cultura popular para as liturgias doprocesso colonial. A “guerra das imagens”, como qualificaGruzinski tal processo, converte-se de evangelizadora emintegradora:

El viaje a través de las imágenes barrocas podríaproseguirse, así, al infinito: de los indios a los negros, delos negros a los mestizos y de los mestizos a los blancoshumildes, de las solemnidades urbanas a lossincretismos de las sierras del Sur y de los desiertos delNorte. [...] Por doquier, en torno de las imágenes, lasiniciativas se cruzaban, y las expectativas se mezclabany chocaban. Inextricablemente. Imagináriosindividuales e imaginarios colectivos sobreponían sustramas de imágenes y de interpretaciones al ritmo delas oscilaciones incesantes entre un consumo demasas y una pléyade de intervenciones personales ycolectivas [...]32

É nessa transumância de imagens corporificadaspelos ecos de um discurso colonial que Astrid Hadad constróisua crítica no clipe de Corazón Sangrante. Em seu figurino,combina a religiosidade barroca com o erotismo da músicapopular do bolero, este também um instrumentoimprescindível na veiculação de um discurso alegóricosobre o coração a inspirar novas subjetividades e práticassociais na configuração de uma nação perifericamentemoderna e urbana. A encenação do sofrimento vincula auma tradição religiosa o viés nacionalista de formaextremada, grotesca e irônica, em que o sempre presentecoração se oferece como o centro do amor numa visão pós-apocalíptica na qual se misturam as marcas do amorsagrado e do amor profano.

Por fim, qual num confessionário, a performer, numaironia entre mística e histérica, questiona: “Dónde pondréeste corazón?”. O coração, em suas múltiplas adjetivaçõesno trecho final da letra da canção, assume-se como umaespécie de inventário das práticas coloniais que ainda seatualizam nos registros de uma matriz popular: Sangrento,picante, ardente. Conquistado, espremido, espetado,queimado, desgarrado, maltratado, apimentado,esfregado, ferido, perdido, fervido, enjoado, negado,chutado, torcido, moído, batido, tostado, esticado,

31 Sobre a disputa ideológicatravada no interior das imagensbarrocas latino-americanas,recuperamos o fundamentalensaio de José Lezama Lima Aexpressão americana (LEZAMALIMA, 1988), para quem a figurado Aleijadinho é uma perfeitatradução do potencial contesta-tório do barroco na AméricaLatina. É nessa fantástica imagemde Aleijadinho e seu “espírito domal”, em seu corpo em decom-posição pela lepra, metáforadolorosa de um devir, que Lezamaproblematiza seu barroco latino-americano.

32 GRUZINSKI, 1995, p. 197.

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destroçado, pisoteado, humilhado, enganado, adubado,entupido, dolorido, arrebentado, rechaçado, fodido,despedaçado, sufocado, e, além disso, manuseado.

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[Recebido em 14 de abril de 2010 e aceitopara publicação em 6 de outubro de 2010]

BodyBodyBodyBodyBody, Image, Colonial Signs in Astrid Hadad’s Corazón Sangrante, Image, Colonial Signs in Astrid Hadad’s Corazón Sangrante, Image, Colonial Signs in Astrid Hadad’s Corazón Sangrante, Image, Colonial Signs in Astrid Hadad’s Corazón Sangrante, Image, Colonial Signs in Astrid Hadad’s Corazón SangranteAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: In this article, we present a discussion about the use of the heart as an importantallegorical element of recognition of a collective identity in Latin America. The work of AstridHadad, a Mexican performer-cabaretera, of Maya-Lebanese origin, points to the criticism of acontrol policy that organizes gender models in Mexico. The experience of colonization in LatinAmerica was guided by discursive strategies which employed the heart as an important allegoryof subordination, especially that of women. In her video clip Corazón Sangrante, using the linguisticstrategies of the melodrama, Hadad uses the ambiguity of irony to approach this issue, pointingto colonial marks in the contemporary Mexican culture.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Body; Image; Colonial Signs; Performance; Astrid Hadad.