rainha_loana_-_umberto_eco

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  • 8/8/2019 Rainha_Loana_-_Umberto_Eco

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    Primeira parteO ACIDENTE

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    1. O MAIS CRUEL DOS MESES

    E o senhor, como se chama?Espere, est na ponta da lngua.

    Tudo comeou assim.Era como se acordasse de um longo sono, e no entanto ainda

    estava suspenso em um cinza leitoso. Ou quem sabe no estava acor-dado, mas sonhando. Era um estranho sonho, desprovido de ima-

    gens, povoado por sons. Como se no visse, mas ouvisse vozes queme contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda no vianada, exceto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagemse dissolvia. Bruges, disse a mim mesmo, estava em Bruges, j es-tivera em Bruges, a morta? Onde a nvoa flutua entre as torres comoo incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba flo-rida de crisntemos onde a bruma pende desbeiada das fachadas comoum arrs...

    Minha alma limpava os vidros do bonde para afogar-se na nvoamvel dos sinais. Nvoa, minha incontaminada irm... Uma nvoaespessa, opaca, que embrulhava os rumores, e fazia surgirem fantasmassem forma... Por fim chegava a um despenhadeiro enorme e via umafigura altssima, envolta num sudrio, o rosto de um condor ima-culado de neve. Eu me chamo Arthur Gordon Pym.

    Mastigava a nvoa. Os fantasmas passavam, tocavam-me, desvane-ciam-se. As luzinhas longe luziam como fogos-ftuos num campo-santo...

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    Algum caminha a meu lado sem rumor, como se tivesse os ps des-calos, caminha sem saltos, sem sapatos, sem sandlias, uma faixa de

    nvoa me desliza sobre a face, uma frota de bbados grita l embaixo,no fundo da balsa. A balsa? No sou eu quem diz, so as vozes.

    A nvoa chega sobre pequenas patas de gato... Era uma nvoa queparecia que tinham sumido com o mundo.

    Entretanto de vez em quando era como se abrisse os olhos, e visserelmpagos. Ouvia as vozes: No um coma propriamente dito,senhora... No, no pense num eletroencefalograma plano, por ca-ridade... Existe reatividade...

    Algum me projetava uma luz nos olhos, mas depois da luz erade novo o escuro. Sentia a picada de uma agulha, de alguma parte.Viu, tem mobilidade...

    Maigret mergulha em uma nvoa to densa que no consegue vernem onde pe os ps... A nvoa pulula de formas humanas, fervilha deuma vida intensa e misteriosa. Maigret? Elementar, meu caro Watson,so dez negrinhos, na nvoa que desaparece o co dos Baskerville.

    A cortina de vapor cinza gradualmente perdia seu matiz cinzento, o

    calor da gua era extremo, e sua nuana leitosa mais intensa que nun-ca... Ento nos precipitamos nos abraos da catarata onde um abismoabriu-se para nos engolir.

    Ouvia gente que falava a meu redor, queria gritar e avis-los deque estava ali. Havia um zumbido contnuo, como se fosse devoradopor mquinas singulares de dentes pontiagudos. Estava na colniapenal. Sentia um peso sobre a cabea, como se me tivessem enfiadoa mscara de ferro. Tinha a impresso de divisar luzes azuis.

    Apresenta assimetria dos dimetros pupilares.Tinha fragmentos de pensamentos, decerto estava acordando,mas no podia me mover. Se pelo menos conseguisse ficar acordado.Dormi de novo? Horas, dias, sculos?

    A nvoa retorna, as vozes na nvoa, as vozes sobre a nvoa. Selt-sam, im Nebel zu wandern!Que lngua ? Parecia que nadava no mar,sentia-me prximo praia mas no conseguia chegar l. Ningumme via e a mar me levava embora.

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    Por favor digam-me alguma coisa, por favor toquem-me. Sentiuma mo na testa. Que alvio. Uma outra voz: Senhora, temos

    histrias de pacientes que despertam de repente e vo embora comas prprias pernas.

    Algum me incomodava com uma luz intermitente, com a vi-brao de um diapaso, era como se me tivessem posto um vidrode mostarda debaixo do nariz, depois um dente de alho.A terra temum cheiro de cogumelos.

    Outras vozes, mas essas de dentro: longos lamentos de locomotivaa vapor, padres na neblina informe encaminhando-se em fila para So

    Miguel no Bosque.O cu de cinzas. Nvoa rio acima, nvoa rio abaixo, nvoa que

    morde as mos da pequena vendedora de fsforos. Os passantes nas pon-tes da Ilha dos Ces olham um nfimo cu enevoado, envoltos eles mes-mos na nvoa como em um balo suspenso sob uma nvoa morena,que nem morte muita poderia desfazer. Cheiro de estao e de fuligem.

    Uma outra luz, mais leve. Parece que ouo, atravs da nvoa, o somdas gaitas escocesas que se renova no brejo.

    Outro longo sono, talvez. Depois uma clareada,pareo estar numcopo de gua e anis...

    Ele estava diante de mim, embora ainda o visse como uma som-bra. Sentia a cabea anuviada, como se tivesse acordado depois deter bebido muito. Creio ter murmurado alguma coisa com dificul-dade, como se naquele momento estivesse falando pela primeira vez:Posco reposco flagito regem o infinitivo futuro? Cujus regio ejus re-

    ligio... a paz de Augusta ou a defenestrao de Praga? e depois:Neblina tambm no trecho apennico de Autosole, entre Ronco-bilaccio e Barberino del Mugello...

    Sorriu-me com compreenso: Mas agora abra bem os olhos etente olhar ao redor. Sabe onde estamos? Agora eu o via melhor,usava um jaleco como se diz? branco. Girei o olhar e conseguimover a cabea tambm: o quarto era sbrio e limpo, uns poucosmveis de metal e cores claras, eu estava na cama, com um tubo

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    A nvoa aos hirtos montes chuviscando sobe e sob o mistral gritae branqueia o mar... Como a nvoa?

    No me ponha em apuros, sou apenas um mdico. E depoisestamos em abril, no posso mostr-la. Hoje dia 25 de abril.

    Abril o mais cruel dos meses.No sou muito culto mas creio que uma citao. Podia dizer

    que hoje o dia da Libertao. Sabe em que ano estamos?Certamente depois do descobrimento da Amrica...No recorda nem uma data, uma data qualquer antes do... seu

    despertar?

    Qualquer uma? Mil novecentos e quarenta e cinco, fim da Se-gunda Guerra Mundial.

    Muito pouco. No, hoje dia 25 de abril de 1991. O senhornasceu, parece-me, no final de 1931, e ento est chegando aos ses-senta anos.

    Cinqenta e nove e meio, nem isso.timo no que diz respeito capacidade de clculo. Olhe, o

    senhor sofreu, como dizer, um acidente. Conseguiu sair vivo, pa-

    rabns. Mas evidentemente tem alguma coisa que ainda no estbem. Uma pequena forma de amnsia retrgrada. No se preocupe,s vezes duram pouco. Por gentileza, responda ainda algumas per-guntas. O senhor casado?

    Diga-me o senhor.Sim, casado, com uma amabilssima senhora que se chama

    Paola e que esteve a seu lado dia e noite, s ontem noite conseguiobrig-la a ir para casa, do contrrio desmoronava. Agora que des-

    pertou vou cham-la, mas terei de prepar-la e precisamos fazer ain-da algumas verificaes.E se eu a confundir com um chapu?O que disse?Tem um homem que confundiu a mulher com um chapu.Ah, o livro de Sacks. Um caso famoso. Vejo que um leitor

    atualizado. Mas no o seu caso, ou j teria me confundido comuma estufa. No se preocupe, talvez no a reconhea mas no vai

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    confundi-la com um chapu. Voltemos ao senhor. E ento, o senhorse chama Giambattista Bodoni. Isso no lhe diz nada?

    Agora minha memria voava como um planador entre montes evales, pelo horizonte interminado. Giambattista Bodoni era umclebre tipgrafo. Mas estou seguro de que no sou eu. Eu poderiaat ser Napoleo e seria como Bodoni.

    Por que disse Napoleo?Porque Bodoni era mais ou menos de poca napolenica. Na-

    poleo Bonaparte, nascido na Crsega, primeiro cnsul, desposaJosefina, torna-se imperador, conquista meia Europa, perde em Wa-

    terloo, morre em Santa Helena, cinco de maio de 1821, e ficou comoque imvel.Terei que voltar aqui com uma enciclopdia, mas do que me

    recordo o senhor lembrou bem. Porm no lembra quem . grave?Para ser honesto, bom no . Mas no o primeiro a quem

    acontece uma coisa assim, conseguiremos sair dessa.Pediu-me que levantasse a mo direita e tocasse o nariz. Entendia

    muito bem o que era a direita, e o nariz. Centrado. Mas a sensa-

    o era novssima. Tocar-se o nariz como ter um olho na ponta doindicador e olhar para o prprio rosto. Eu tenho um nariz. Gratarolobateu em meu joelho e depois aqui e ali na perna e nos ps com umaespcie de martelinho. Os doutores mensuram os reflexos. Pareceque os reflexos eram os esperados. No final, sentia-me esgotado,e creio que adormeci.

    Acordei num lugar e murmurei que parecia a cabina de umaastronave, como nos filmes (que filmes, perguntou Gratarolo, todos,

    respondi, em geral, depois nomeei Star Trek). Fizeram-me coisas queno entendia com mquinas nunca vistas. Creio que olhavam dentroda minha cabea, mas eu os deixava agir sem pensar, embalado peloszumbidos suaves, e de vez em quando adormecia de novo.

    Mais tarde (ou no dia seguinte?), quando Gratarolo voltou, euestava explorando a cama. Apalpava os lenis, leves, lisos, agra-dveis de tocar; menos o cobertor, que espetava um pouco as pontas

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    dos dedos; virava-me e batia a mo no travesseiro, deleitando-meao ver que afundava dentro dele. Fazia chac chac e me divertia mui-

    to. Gratarolo perguntou se conseguia levantar da cama. Com a ajudade uma enfermeira consegui, estava em p, embora a cabea megirasse. Sentia os ps pressionando o pavimento, e a cabea no alto. assim que se est de p. Sobre um fio esticado. Como a pequenasereia.

    Coragem, experimente ir ao banheiro e escovar os dentes. A es-cova de sua mulher deve estar l. Disse que no costumava escovaros dentes com a escova de um estranho e ele observou que uma

    esposa no uma estranha. No banheiro me vi no espelho. Pelomenos estava bastante seguro de que era eu porque os espelhos, comose sabe, refletem aquilo que tm diante de si. Uma cara branca eescavada, a barba longa, duas olheiras assim. Estamos bem, no seiquem sou mas descubro que sou um monstro. No gostaria de meencontrar de noite em uma rua deserta. Mister Hyde. Identifiqueidois objetos, um com certeza se chama dentifrcio e o outro escovade dentes. Preciso comear com o dentifrcio e espremer o tubinho.

    Agradabilssima sensao, deveria faz-lo mais vezes, porm a certaaltura preciso parar, aquela pasta branca no comeo faz flop, comouma bolha, mas depois sai toda, como le serpent qui danse. No es-premer mais, seno vai fazer como Broglio com os stracchini. Quem Broglio?

    A pasta tem um timo sabor. timo, disse o duque. um welle-rismo. Estes so, ento, os sabores: algo que lhe acaricia a lngua,mas tambm o palato, porm quem percebe os sabores a lngua.

    Sabor de menta y la hierbabuena, a las cinco de la tarde... Decidi efiz o que todos fazem nesses casos, rapidamente e sem pensar muito:escovei primeiro para cima e para baixo, depois da esquerda para adireita, depois o cu da boca. interessante sentir as cerdas queentram entre dois dentes, creio que de agora em diante vou escovaros dentes todo dia, bom. Passei as cerdas na lngua tambm. Sen-te-se como um arrepio mas no final se no apertar demais bom, eera o que eu precisava pois minha boca estava mesmo empastada.

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    Agora, disse comigo mesmo, enxaguar. Derramei um pouco dguada torneira num copo e passei na boca, alegremente surpreso com o

    barulho que fazia, melhor ainda jogando-se a cabea para trs e fa-zendo... borbulhar? O gargarejo bom. Inchei as bochechas e depoistudo para fora. Cuspi tudo. Sfrussc... catarata. Com os lbios pode-se fazer de tudo, so mobilssimos. Virei-me, l estava Gratarolo meobservando como se fosse um fenmeno de circo, e perguntei se estavatudo certo.

    Perfeito, disse ele. Meus automatismos, explicou, esto corretos.Parece que temos aqui uma pessoa quase normal, observei, sal-

    vo que talvez no seja eu.Muito espirituoso, e isso tambm um bom sinal. Deite-se,assim, eu ajudo. Diga-me: o que o senhor acabou de fazer?

    Escovei os dentes, foi o senhor quem pediu.Certo, e antes de escovar os dentes?Estava aqui nessa cama e o senhor estava falando comigo. Dis-

    se-me que estamos em abril, 1991.Correto. A memria a curto prazo funciona. Me diga, lembra

    por acaso da marca do dentifrcio?

    No. Deveria?No, claro que no. O senhor certamente viu a marca ao pegar

    o tubo, mas se tivssemos que registrar e conservar todos os estmu-los que recebemos, nossa memria seria uma barafunda. Por issoescolhemos, filtramos. O senhor fez o que todos fazem. Mas tenterecordar a coisa mais significativa que lhe aconteceu enquanto es-covava os dentes.

    Quando passei a escova na lngua.

    Por qu?Porque estava com a boca empastada e depois me senti bemmelhor.

    Viu? Filtrou o elemento mais diretamente associado s suasemoes, a seus desejos, a seus objetivos. O senhor tem emoesde novo.

    Bela emoo escovar a lngua. Mas no me lembro de t-la es-covado antes.

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    Chegaremos l. Veja, senhor Bodoni, vou tentar lhe explicar sempalavras difceis, mas o acidente certamente atingiu algumas zonas

    de seu crebro. No momento, embora todo dia saia um novo estu-do, ainda no sabemos tudo o que gostaramos de saber sobre aslocalizaes cerebrais. Sobretudo no que diz respeito s vrias for-mas de memria. Ousaria dizer que se isso que lhe aconteceu acon-tecesse daqui a dez anos, saberamos melhor como lidar com sua si-tuao. No me interrompa, eu j entendi, se tivesse acontecido cemanos atrs o senhor j estaria num manicmio, e fim da histria.Hoje sabemos bem mais, porm no o bastante. Por exemplo, se o

    senhor no conseguisse falar eu logo saberia qual a rea atingida...A rea de Broca.Muito bem. Mas a rea de Broca tem mais de cem anos. No

    entanto o lugar onde o crebro conserva as lembranas ainda ma-tria de discusso, certamente as coisas no dependem de uma nicarea. No quero entedi-lo com termos cientficos, que alm de tudos aumentariam a confuso em sua cabea sabe quando o dentistafaz alguma coisa em um dente e continuamos a toc-lo com a lnguapor alguns dias?; se eu lhe dissesse, sei l, que no estou to preo-

    cupado com o seu hipocampo quanto com os lobos frontais e talvezcom a crtex rbito-frontal direita, o senhor tentaria se tocar bemali, e no como explorar a boca com a lngua. Frustraes at noacabar mais. Portanto esquea o que acabei de lhe dizer. Ademaiscada crebro diferente dos outros, e nosso crebro tem uma ex-traordinria plasticidade, pode acontecer que depois de algum tem-po o senhor seja capaz de passar para uma outra rea o que a reaatingida no consegue mais fazer. Est me acompanhando, estou

    sendo bastante claro?Clarssimo, prossiga. Mas no mais rpido dizer que sou odesmemoriado de Collegno?

    Est vendo como se lembra do desmemoriado de Collegno, umcaso clssico? somente de si, que no clssico, que o senhor nolembra.

    Preferia ter esquecido o desmemoriado de Collegno e lembradoonde foi que nasci.

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    Seria um caso mais raro. Veja, o senhor logo identificou o tu-binho do dentifrcio, mas no se lembra de que casado e de fato

    lembrar o dia do prprio matrimnio e identificar a pasta de dentedependem de duas redes cerebrais diversas. Temos diversos tipos dememria. Uma se chama implcita e nos permite executar sem es-foro uma srie de coisas que aprendemos, como escovar os dentes,ligar o rdio e dar um n na gravata. Depois da experincia dosdentes estou pronto para apostar que o senhor sabe escrever, talvezat dirigir. Quando a memria implcita nos ajuda, no temos nemconscincia de que recordamos, agimos automaticamente. Depois

    tem a memria explcita, com a qual recordamos e sabemos queestamos recordando. Mas essa memria explcita dupla. Uma aquela que a tendncia agora chamar de memria semntica, umamemria coletiva, aquela atravs da qual se sabe que uma andorinha um pssaro e que os pssaros voam e tm penas, e que Napoleomorreu quando... quando o senhor falou. E esta me parece que a dosenhor est em ordem, por Deus!, talvez at demais, pois basta quelhe d um inpute j comea a conectar lembranas que eu definiriacomo escolsticas, ou a usar frases feitas. Mas essa a primeira que

    se forma, mesmo na criana; a criana aprende rapidamente a re-conhecer uma mquina, ou um co, e a formar esquemas gerais,portanto se viu um pastor alemo uma vez e lhe disseram que umcachorro, ela dir cachorro mesmo quando vir um labrador. Mas poroutro lado, a criana leva mais tempo para elaborar o segundo tipode memria explcita, que chamamos de episdica ou autobiogr-fica. No capaz, por exemplo, de recordar de imediato vendo umcachorro, de que no ms anterior esteve no jardim da av e viu

    um co e que foi ela prpria quem viveu as duas experincias. amemria episdica que estabelece um nexo entre o que somos hojee o que fomos, seno, quando dissssemos eu, estaramos nos re-ferindo apenas quilo que sentimos agora, no ao que sentamosantes, que se perderia justamente na nvoa. O senhor no perdeu amemria semntica mas a episdica, quer dizer, os episdios de suavida. Em suma, diria que sabe tudo que os outros sabem, e imaginoque se lhe perguntasse qual a capital do Japo...

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    Tquio. Bomba atmica em Hiroshima. O general MacAr-thur...

    Chega, chega. como se recordasse tudo aquilo que se aprendepor ter lido em algum lugar ou ouvido dizer, mas no o que estassociado s suas experincias diretas. Sabe que Napoleo foi derro-tado em Waterloo, mas tente me dizer o que lembra de sua me.

    Me s tem uma, me me... Mas de minha me no lembro.Imagino que tive uma me porque sei que uma lei da espcie,mas... a est... a nvoa. Estou mal, doutor. horrvel. Preciso dealguma coisa para dormir de novo.

    Vou lhe dar, j exigi demais do senhor. Deite-se bem, assim,assim... Repito, acontece, mas tem cura. preciso muita pacin-cia. Mandarei que lhe tragam alguma coisa para beber, um ch porexemplo. Gosta de ch?

    Talvez sim talvez no.

    Trouxeram-me o ch. A enfermeira fez-me sentar apoiado nostravesseiros e botou um carrinho na minha frente. Jogou gua fu-megante numa xcara com um envelopinho dentro. Devagar que

    queima, disse. Devagar como? Cheirava a taa e sentia um cheiro,como dizer, de fumaa. Queria provar o sabor do ch, agarrei a x-cara e engoli. Atroz. Um fogo, uma chama, uma bofetada na boca.Ento isso o ch fervente. Deve ser assim tambm com o caf e acamomila de que tanto falam. Agora sei o que quer dizer queimar.Todos sabem que no se deve tocar o fogo, mas eu no sabia em quemomento se pode tocar em gua quente. Tenho que aprender a en-tender o limite, o momento no qual antes no pode e depois pode.

    Mecanicamente soprei o lquido, depois mexi com a colherinha, atdecidir que j podia tentar outra vez. Agora o ch estava morno ebom de beber. No estava certo de qual era o gosto do ch, qual odo acar, um deveria ser spero e o outro doce, mas qual o doce equal o spero? Juntos porm me agradavam. Beberei sempre chcom acar. Mas no fervente.

    O ch me deu uma sensao de paz e relaxamento e peguei nosono.

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    Acordei de novo. Talvez porque no sono eu estava coando avirilha e o escroto. Debaixo das cobertas suei. Chagas de decbito?

    A virilha mida, mas passando-se a mo nela de modo demasia-do enrgico, depois de uma primeira sensao de prazer violento,sente-se uma frico desagradvel. Com o escroto melhor: pas-sando-o por entre os dedos, delicadamente devo dizer, sem chegar aapertar os testculos, sente-se algo de granuloso e levemente peludo: bom coar o escroto, no que a coceira suma logo, torna-se alismais forte, mas d mais gosto de continuar. O prazer a cessao dador, mas a coceira no uma dor, um convite a se dar prazer.

    A comicho da carne. Transigindo-se com isso comete-se pecado.O jovem prevenido dorme supino com as mos cruzadas no peitopara no cometer atos impuros no sono. Coisa estranha, o prurido.E os meus colhes. Voc um escroto. Aquele sim tem os colhes roxos.

    Abri os olhos. Na minha frente h uma senhora, no muito jo-vem, mais de cinqenta, me parece, com pequenas rugas em tornodos olhos, mas com um rosto luminoso, ainda fresco. Algumas me-chas brancas, quase imperceptveis, quase como se ela as tivesse cla-

    reado de propsito, uma coqueteria, como quem dissesse no queropassar por uma mocinha mas porto bem a minha idade. Era bonita,mas quando jovem deve ter sido belssima. Acarinhava minha testa.

    Yambo, disse-me.Iambo quem, senhora?Voc Yambo, assim que todos o chamam. E eu sou Paola.

    Sou sua mulher. Me reconhece?No senhora, desculpe, no Paola, sinto muito, o doutor deve

    ter lhe explicado.Explicou. No sabe mais o que aconteceu com voc, mas aindasabe muito bem o que aconteceu com os outros. Como eu fao partede sua histria pessoal, no sabe mais que somos casados h mais detrinta anos, Yambo, querido. E temos duas filhas, Carla e Nicoletta,e trs maravilhosos netos. Carla casou cedo e teve dois filhos, Ales-sandro de cinco anos e Luca de trs. Giangio, Giangiacomo, o filhode Nicoletta, tambm tem trs. Primos gmeos, voc costumava

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    dizer. E voc foi... ... ser ainda um av maravilhoso. E foi tambmum bom pai.

    E... sou um bom marido?Paola ergueu os olhos para o cu: Ainda estamos aqui, no? Di-

    gamos que em trinta anos de vida h altos e baixos. Voc sempre foiconsiderado bonito...

    Esta manh, ontem, faz dez anos, vi uma cara horrenda no es-pelho.

    Com tudo o que lhe aconteceu, o mnimo. Mas voc foi, ainda um homem bonito, tem um sorriso irresistvel e algumas no re-

    sistiram. Nem voc, que dizia sempre que se pode resistir a tudomenos s tentaes.

    Peo desculpas.Veja s, como os que lanavam msseis inteligentes sobre Bagd

    e depois se desculpavam quando morriam alguns civis.Msseis em Bagd? No est nasMil e uma noites.Houve uma guerra, a Guerra do Golfo, agora j acabou, ou no,

    talvez. O Iraque invadiu o Kuwait, os estados ocidentais intervieram.

    No lembra de nada?O mdico disse que a memria episdica que parece que en-trou em tilt ligada s emoes. Talvez os msseis sobre Bagdtenham sido uma coisa que me emocionou.

    E como! Voc sempre foi um pacifista convicto e essa guerrao deixou em crise. Quase duzentos anos atrs, Maine de Biran dis-tinguia trs tipos de memria, idias, sensaes e hbitos. Voc lem-bra de idias e hbitos, mas no de sensaes, que no entanto so

    as coisas mais suas.Como que sabe de todas essas coisas?Sou psicloga de profisso. Mas espere um momento: voc aca-

    bou de dizer que a sua memria episdica deu tilt. Por que usouessa expresso?

    assim que se diz.Sim, mas uma coisa que acontece no fliperama e voc ... era

    louco por flper, como uma criana.

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    Sei o que um fliperama. Mas no sei quem sou eu, entende?A nvoa cobre o vale Padano. A propsito, onde estamos?

    No vale Padano. Vivemos em Milo. Nos meses de inverno,da nossa casa se v a nvoa no parque. Voc vive em Milo, umlivreiro e tem um antiqurio de livros.

    A maldio do fara. Se sou Bodoni e me batizaram Giam-battista s podia acabar assim.

    Acabou da forma certa. Voc muito bem considerado em seutrabalho, no somos milionrios mas vivemos bem. Vou ajud-lo,pouco a pouco voc vai conseguir se recuperar. Deus meu, quan-

    do eu penso, poderia nem ter acordado; os mdicos foram timos,pegaram voc a tempo. Meu amor, posso lhe dar as boas-vindas?Parece que a primeira vez que voc me v. Pois bem, se eu o esti-vesse encontrando agora, pela primeira vez, casaria da mesma ma-neira. Est bem?

    Voc um amor. Preciso de voc. a nica que pode me contardos meus ltimos trinta anos.

    Trinta e cinco. Nos conhecemos na universidade, em Turim,

    voc estava para se formar e eu era a caloura perdida nos corredoresdo Palcio Campana. Perguntei onde era uma certa sala, voc logoficou de olho e seduziu a colegial indefesa. Depois, entre uma coisae outra, eu era jovem demais e voc passou trs anos no exterior. Emseguida fomos morar juntos dizendo que era uma experincia, masno final fiquei grvida e nos casamos, afinal voc era um cavalheiro.No, desculpe, tambm porque nos amvamos, de verdade, e vocgostava da idia de ser pai. Coragem, papai, vou faz-lo lembrar de

    tudo, vai ver.A no ser que seja tudo um compl, que eu me chame FelicinoGrimaldelli e seja arrombador, que voc e Gratarolo estejam mecontando um monte de mentiras, sei l, talvez porque sejam doservio secreto e precisem construir uma nova identidade para memandar espionar alm do Muro de Berlim, Ipcress Files, e...

    No existe mais Muro de Berlim, foi posto abaixo e o impriosovitico est indo pelo ralo...

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    Jesus, voc vira a cabea um momentinho e olha o que apron-tam. Est bem, eu estava brincando, confio em voc. O que so os

    stracchinide Broglio?O qu? O stracchino um queijo pastoso, mas esse o nome que

    do no Piemonte, aqui em Milo se chama crescenza. O que h comos stracchini?

    Foi quando eu estava apertando o tubo de pasta de dente. Es-pere. Havia um pintor chamado Broglio, que no conseguia se man-ter com seus quadros mas no queria trabalhar argumentando quetinha uma neurose. Parece que era uma desculpa para ser sustentado

    pela irm. Finalmente os amigos lhe arranjaram um emprego numaempresa que fazia ou vendia queijos. Ele passava diante de umagrande pilha de stracchini, todos embrulhadinhos em papel-mantei-ga, e no resistia tentao, por causa da neurose (dizia ele): pegavaum por um e chac, esmagava fazendo o stracchino espirrar fora doembrulho. Depois de ter estragado uma centena de stracchini, foidespedido. Tudo por culpa da neurose, dizia que para ele sgnach istrachn* era um gozo irresistvel. Por Deus, Paola, essa uma lem-

    brana de infncia! Eu no perdi a memria de minhas experinciaspassadas?Paola ps-se a rir. Agora me lembro, desculpe. Claro, era uma

    histria que aprendeu quando era pequeno. Mas que contava sem-pre, era como se diz uma pea do seu repertrio, voc divertia seuscomensais com a histria dos stracchinido pintor e eles a passavamadiante. No entanto infelizmente voc no est recordando umaexperincia sua, simplesmente sabe uma histria que recitou muitas

    vezes e que para voc virou (como dizer?) um bem pblico, como ahistria de Chapeuzinho Vermelho.Voc est se tornando indispensvel para mim. Estou contente

    de que seja minha mulher. Agradeo-lhe por existir, Paola.Deus meu, um ms atrs voc diria que isso uma expresso

    kitsch de telenovela...

    * No dialeto milans, esmagar os stracchini. (N. da T.)

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    Desculpe. No consigo dizer nada que me venha do corao.No tenho sentimentos, s ditos memorveis.

    Pobre querido.Bem, essa tambm uma frase feita.Cretino.Essa Paola gosta mesmo de mim.Passei uma noite tranqila, sabe-se l o que Gratarolo me ps na

    veia. Despertei aos poucos, e acho que ainda estava de olhos fe-chados porque ouvi a voz de Paola que sussurrava, temendo meacordar: Mas no poderia ser uma amnsia psicognica?

    No se pode excluir, respondia Gratarolo, na origem dessesincidentes sempre pode haver tenses imponderveis. Mas a senhoraviu as fichas clnicas, as leses existem.

    Abri os olhos e disse bom-dia. Havia tambm duas mulherese trs crianas, nunca vistas antes, mas podia imaginar quem eram.Foi terrvel, porque com a esposa, pacincia, mas as filhas, Deusmeu, so sangue do seu sangue e os netos mais ainda, e os olhosdaquelas duas brilhavam de felicidade, as crianas queriam subir

    na cama, pegavam minha mo e me diziam oi, vov, e eu nada.No era nem nvoa; era, como direi, apatia. Ou se diz ataraxia? Eracomo olhar animais no zoolgico, podiam ser macaquinhos ou gi-rafas. Claro que eu sorria e dizia palavras gentis, mas por dentroestava vazio. Ocorreu-me a palavra sgurato, mas no sabia o quequeria dizer. Perguntei a Paola: um termo piemonts que desig-na aquela panela que voc lava bem e depois esfrega por dentro comaquela espcie de palha de ao para deix-la como nova, brilhante

    e limpa como nunca. Pois eu me sentia completamente sgurato. Gra-tarolo, Paola, as meninas estavam me enfiando na cabea mil deta-lhes da minha vida, mas era como se fossem caroos de feijo, me-xendo a panela eles deslizavam l por dentro mas continuavam crus,no se diluam em nenhum caldo, em nenhum creme, nada quefizesse o gosto palpitar, nada que eu quisesse experimentar de novo.

    Aprendia coisas acontecidas comigo como se tivessem acontecidocom outra pessoa.

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    Acariciava as crianas e sentia seu cheiro sem conseguir defini-lo,exceto que era muito suave. Vinha-me mente que h perfumes

    frescos como carnes de beb. E de fato minha cabea no estava vazia,nela volteavam memrias no minhas, a marquesa saiu s cinco nomeio do caminho desta vida, Ernesto Sbato e a donzelinha vm doscampos, Abrao gerou Isaque Isaque gerou Jac Jac gerou Judas eRocco e seus irmos, o campanrio bate a meia-noite santa e foiento que vi o pndulo, no ramo do lago de Como dormem doispssaros de longas asas, messieurs les anglais je me suis couch de bonneheure, aqui ou se faz a Itlia ou se mata um homem morto, tu quo-

    que alea, soldado que escapa pra s belo, irmos italianos ainda umesforo, o arado que traa o sulco bom para outra volta, a Itliaest batida mas no se rende, combateremos sombra ed subitosera, trs mulheres em torno ao corao e sem vento, a inconscienteazagaia brbara qual estendias a pequenina mo, no pedir a pa-lavra enlouquecida de luz, dos Alpes s Pirmides fez a guerra eusou o elmo, frescas as minhas palavras na tarde para aqueles quatropoemetos das dzias, sempre lbera sobre asas douradas, adeus mon-

    tes nascidos das guas, mas meu nome Lcia, ou Valentino Valen-tino tordilho, Guido eu gostaria que no cu descolorissem, conhecio tremular as armas os amores, de la musique o marchent des co-lombes, fresca e clara a noite e o capito, ilumino-me pio boi,embora o falar seja intil, eu os vi em Pontida, em setembro iremosonde florescem os limes, aqui comea a aventura do Peleio Aquiles,tomo banho de lua diga-me o que fazes, no princpio a terra estavacomo imvel, Licht mehr Licht ber alles, condessa o que ento

    a vida? trs corujas no guarda-p. Nomes, nomes, nomes, AngeloDallOca Bianca, Lord Brummell, Pndaro, Flaubert, Disraeli, Re-migio Zena, Jurssico, Fattori, Straparola e as noites agradveis, aPompadour, Smith & Wesson, Rosa Luxemburgo, Zeno Cosini,Palma o Velho, Arqueoptrix, Ciceruacchio, Mateus Marcos Lucas

    Joo, Pinquio, Justine, Maria Goretti, Taide puta das unhas mer-dosas, Osteoporose, Saint Honor, Bacta Ecbatana Perspolis Susa

    Arbela, Alexandre e o n grdio.

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    A enciclopdia me caa em cima em folhas destacadas, e me vinhade abanar as mos como se estivesse no meio de um enxame de abe-

    lhas. Entretanto as crianas diziam vov, sabia que deveria am-lasmais que a mim mesmo e no sabia quem chamar de Giangio, quemde Alessandro e quem de Luca. Sabia tudo de Alexandre, o grande,e nada de Alessandro, o meu pequenino.

    Disse que me sentia fraco e precisava dormir. Saram, eu chorava.As lgrimas so salgadas. Donde, eu ainda tinha sentimentos. Sim,mas fresquinhos da hora. Aqueles de antes j no eram mais meus.Quem sabe, perguntava-me, se alguma vez fui religioso: certamente,

    de qualquer jeito, perdera a alma.

    Na manh seguinte, Paola tambm estava, Gratarolo me fez sen-tar numa mesinha e mostrou uma srie de quadradinhos coloridos,muitssimos. Estendia-me um e perguntava de que cor era. Dim,dim dim, sapatinho rosa, dim, dim, dim, de que cor que ? Cor so-nequim, cor de carmim, salta fora garibaldim! Reconheci com se-gurana as seis primeiras cores, vermelho, amarelo, verde e assimpor diante. Disse naturalmente queA noir, E blanc, I rouge, U vert,

    O bleu, voyelles, je dirais quelque jour vos naissances latentes, mas per-cebi que o poeta, ou quem falava em seu nome, mentia. O que querdizer que A preto? Alis, era como descobrir as cores pela primeiravez: o vermelho era muito alegre, vermelho fogo, mas tambm muitoforte no, talvez o amarelo fosse mais forte, como uma luz que seacendesse de repente diante de meus olhos. E o verde me dava umasensao de paz. O problema chegou com os outros quadradinhos.O que isso? Verde, dizia eu, mas Gratarolo insistia, que tipo de

    verde, em que sentido diferente desse outro? Hum. Paola me ex-plicava que um era verde-malva e outro verde-ervilha. A malva uma erva, respondia eu, e as ervilhas verduras que se comem, re-dondas dentro de uma vagem longa e inchada, mas nunca vira nemmalva nem ervilhas. No se preocupe, dizia Gratarolo, em ingls hmais de trinta mil termos para cores, mas em geral as pessoas sabemnomear no mximo oito, em mdia reconhecemos as cores do arco-ris, vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, ndigo e roxo, mas j

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    entre o ndigo e o roxo as pessoas no sabem distinguir bem. pre-ciso muita experincia para saber discriminar e nomear as cores, e

    um pintor sabe fazer isso melhor que, sei l, um taxista, que sprecisa reconhecer as cores de um sinal de trnsito.

    Gratarolo me deu papel e caneta. Escreva, disse. E que diabosdevo escrever?, escrevi, e parecia que nunca fizera outra coisa, acaneta era macia e deslizava bem sobre o papel. Escreva o que lhevier mente, disse Gratarolo.

    Mente? Escrevi: amor que na mente raciocina, o amor que moveo sol e outras estrelas, antes s que mal acompanhado, muitas vezes

    o mal de viver encontrei, ai vida ai vida minha ai corao dessecorao, no corao no se manda, De Amicis, dos amigos Deus meguarde, oh Deus do cu se eu fosse uma andorinha, se eu fosse fogoqueimaria o mundo, viver ardendo e no sentir o mal, mal no fazermedo no ter, o medo faz noventa oitenta setenta mil oitocentos esessenta, a expedio dos Mil, mil e no mais mil, as maravilhas doano dois mil, do poeta o fim a maravilha.

    Escreva alguma coisa de sua vida, disse Paola. O que fazia aos

    vinte anos? Escrevi: Tinha vinte anos. No permitirei que ningumdiga que essa a mais bela idade da vida. O doutor me perguntouqual a primeira coisa que me veio mente quando acordei. Escrevi:Quando Gregor Samsa despertou certa manh encontrou-se em seuleito transformado num imenso inseto.

    Acho que j chega, doutor, disse Paola. No o deixe seguirdemais com essas cadeias associativas, seno acaba ficando doido.

    Sim, e agora lhes pareo bem por acaso?

    Quase num repente Gratarolo ordenou: E agora assine, sempensar, como se fosse um cheque.Sem pensar, tracei um GBBodoni, com o esvoaar final e de-

    pois um pontinho redondo sobre o i.Viu? Sua cabea no sabe quem , mas sua mo sim. Era pre-

    visvel. Vamos fazer uma outra prova. O senhor me falou de Na-poleo. Como era?

    No consigo evocar a sua imagem. Basta a palavra.

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    Gratarolo perguntou a Paola se eu sabia desenhar. Parece que,sem ser um artista, eu me viro bastante bem rabiscando. Pediu-me

    que desenhasse Napoleo. Fiz algo do gnero.

    Nada mal, comentou Gratarolo, desenhou o seu esquema

    mental de Napoleo, o tricorne, a mo no colete. Agora vou mostraruma srie de imagens. Primeira srie, obras de arte.Reagi bem: a Gioconda, a Olmpia de Manet, isso um Picasso

    ou algum que o imita bem.Viu como conseguiu reconhec-los? Agora vamos para os per-

    sonagens contemporneos.Segunda srie de fotografias, e aqui tambm, salvo alguns rostos

    que no me diziam nada, respondi de modo satisfatrio: Greta Gar-

    bo, Einstein, Tot, Kennedy, Moravia, etc., e qual era a profissodeles. Gratarolo me perguntou o que tinham em comum. Seremfamosos? No, no basta, tem outra coisa. Eu hesitava.

    que todos j morreram, disse Gratarolo.Como, at Kennedy e Moravia?Moravia morreu no final do ano passado, Kennedy foi assas-

    sinado em Dallas, em 1963.Coitados, sinto muito.

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    No se lembrar de Moravia quase normal, morreu faz pouco,v-se que no teve tempo para consolidar o acontecimento em sua

    memria semntica. Mas no entendo Kennedy, que uma histriavelha, de enciclopdia.

    Ele ficou muito tocado com o caso Kennedy, disse Paola. Tal-vez tenha se misturado com suas memrias pessoais.

    Gratarolo veio com outras fotografias. Numa havia duas pessoas,e a primeira era eu, com certeza, penteado e vestido como cristo,com o sorriso irresistvel que Paola mencionara. Na outra tambmhavia uma cara simptica, mas no sabia quem era.

    Gianni Laivelli, seu melhor amigo, disse Paola. Compa-nheiros de escola desde o primrio at o liceu.

    Quem so esses?, perguntou Gratarolo mostrando outra ima-gem. Era uma foto velha, ela com um penteado anos trinta, umaroupa branca pudicamente decotada, o nariz batatinha, mas bemmiudinho, e ele com um repartido perfeito, talvez um pouco debrilhantina, um nariz pronunciado, um sorriso muito aberto. Noos reconheci (artistas? No, poucoglamoure pouca encenao, re-

    cm-casados talvez), mas senti como um aperto na boca do est-mago e no sei como dizer um gentil delquio.Paola se deu conta: Yambo, so seu pai e sua me no dia de seu

    casamento.Ainda esto vivos?, perguntei.No, morreram j faz tempo. Em um acidente de carro.O senhor perturbou-se quando viu a foto, disse Gratarolo.

    Certas imagens despertam alguma coisa a dentro. Trata-se de um

    caminho.Mas que caminho, se no consigo nem repescar meu pai e mi-nha me desse buraco negro do diabo, gritei. Vocs disseram queaqueles dois eram minha me e meu pai, agora j sei, mas umarecordao que vocs me deram. De agora em diante vou lembrardessa foto, deles no.

    Quem sabe quantas vezes, nesses ltimos trinta anos, o senhortambm se lembrou deles porque continuava a olhar essa foto. No

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    pense na memria como um armazm onde deposita as recordaese depois vai pesc-las exatamente como se fixaram na ltima vez,

    disse Gratarolo. No quero ser tcnico demais, mas a lembrana a construo de um novo perfil de excitao neuronal. Digamos queem um certo lugar tenha lhe acontecido uma experincia desagra-dvel. Mais tarde, quando o senhor se lembrar desse lugar, reativaaquele padro anterior de excitao neuronal, com um perfil deexcitao semelhante mas no igual quele que foi estimulado origi-nalmente. Portanto ao recordar sentir uma sensao desagradvel.Em suma, recordar reconstruir, com base tambm no que soube-

    mos ou dissemos tempos depois. normal, assim que lembramos.Estou lhe dizendo isso para encoraj-lo a reativar perfis de excitao,no se meter toda vez a escavar como um possesso para encontraralguma coisa que j esteja l, fresca como o senhor pensa t-la guar-dado da primeira vez. A imagem de seus pais nessa foto aquela quens lhe mostramos e que vemos. O senhor precisa partir dessa ima-gem para recompor algo mais, e s isso ser a sua lembrana. Re-cordar um trabalho, no um luxo.

    As lgubres e duradouras lembranas, recitei, esse resto de morteque deixamos viver...Recordar bom tambm, disse Gratarolo. Algum disse que a

    recordao age como uma lente convergente numa cmara escura:concentra tudo e a imagem que resulta muito mais bela que ooriginal.

    Tenho vontade de fumar, disse eu.Sinal de que o seu organismo est retomando um andamento

    normal. Mas se no fumar melhor. E quando voltar para casa,lcool com moderao, no mais de um copo refeio. O senhortem problemas de presso. Do contrrio no poderei deix-lo sairamanh.

    Vai deix-lo sair?, perguntou Paola ligeiramente assustada. o momento de acertar as contas, senhora. Do ponto de vista

    fsico seu marido mostra bastante autonomia. No que vai cair dasescadas porque deixei que voltasse. Mantendo-o aqui acabaremos

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    por esgot-lo com uma montanha de testes, sempre experinciasartificiais, que agora j sabemos que resultado tero. Creio que vai

    lhe fazer bem voltar ao seu ambiente. s vezes ajuda mais sentir denovo o sabor de um alimento familiar, um cheiro, que sei eu? Sobreessas coisas a literatura nos ensinou mais que a neurologia...

    No que quisesse me fazer de sabicho, mas afinal, se s merestava aquela maldita memria semntica, que pelo menos a usasse:A madeleine de Proust, disse. O sabor da infuso de tlia e dobolinho o faz estremecer, sente uma alegria violenta. E reaflora aimagem dos domingos em Combray com a tia Lonie... Parece que

    h uma memria involuntria dos membros, as pernas e os braos estocheios de recordaes entorpecidas... E quem era aquele outro? Nadaobriga as lembranas a se manifestarem como os cheiros e a chama.

    Sabe do que estou falando. At os cientistas s vezes acreditammais nos escritores que em suas mquinas. A senhora quase doramo, no neurologista mas psicloga. Posso lhe dar alguns pou-cos livros, descries de alguns casos clebres, e logo entender quaisso os problemas de seu marido. Creio que estar junto da senhora ede suas filhas e voltar ao trabalho vai ajud-lo mais do que ficar aqui.

    suficiente que ele venha me ver uma vez por semana para acom-panharmos sua evoluo. Volte para casa, senhor Bodoni. Olhe aoredor, toque, cheire, leia os jornais, veja televiso, v em busca deimagens.

    Tentarei, mas no lembro de imagens, nem de cheiros nem desabores. S palavras.

    Quem disse? Faa um dirio com suas reaes. Trabalharemoscom ele.

    Comecei a escrever um dirio.

    No dia seguinte fiz as malas. Desci com Paola. Pelo visto, o hos-pital tinha ar condicionado, pois logo entendi, e s ento, o que ocalor do sol. A tepidez de um sol primaveril, ainda verde. E a luz:tive que apertar os olhos. No se pode fixar o sol: Soleil, soleil, fauteclatante...

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    Ao chegar ao carro (nunca dantes visto) Paola me disse para ex-perimentar. Entre, engrene, depois ligue. Sempre engrenado, ace-

    lere. Como se nunca tivesse feito outra coisa, soube instantanea-mente onde colocar mos e ps. Paola sentou-se a meu lado dizendoque eu engatasse a primeira, tirasse o p do pedal e apertasse de leveo acelerador, o bastante para me mover um metro ou dois e depoisfrear e desligar. Assim, se eu errasse, no mximo acabava em cimade uma moita do jardim. Mas foi tudo bem. Estava orgulhoso. Co-mo desafio andei um metro em marcha a r. Depois desci, passei adireo para Paola e partimos.

    O que est achando do mundo?, perguntou-me Paola.Sei l. Dizem que os gatos, quando caem da janela e batem o

    nariz, no sentem mais os cheiros e, como vivem do olfato, noconseguem mais reconhecer as coisas. Eu sou um gato que bateucom o nariz. Vejo coisas, entendo com certeza do que se trata, lembaixo as lojas, aqui uma bicicleta que passa, l as rvores, masno... no os sinto em meu corpo, como se tentasse enfiar o paletde um outro.

    Um gato que tenta enfiar um palet com o nariz. Voc aindaest com as metforas desreguladas. Preciso contar a Gratarolo, masvai passar.

    O carro prosseguia, eu olhava ao redor, descobria cores e formasde uma cidade desconhecida.

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    2. O CICIO QUE FAZ A FOLHA...

    Aonde vamos agora, Paola?Para casa, nossa casa.E depois?E depois entramos, e voc se pe vontade.E depois?E depois toma uma bela chuveirada, e faz a barba, e se veste de-

    centemente, e depois comemos, e depois... o que gostaria de fazer? justamente isso que no sei. Lembro de tudo que aconteceudepois de acordar, sei tudo sobre Jlio Csar, mas no consigo pen-sar no que vai me acontecer depois. At hoje de manh no mepreocupava com o depois, no mximo com o antes que no con-seguia lembrar. Mas agora que estamos indo para... para algumacoisa, vejo nvoa tambm na minha frente, no s atrs. No, no uma nvoa diante de mim, como se estivesse com as pernas bam-

    bas e no pudesse caminhar. como pular.Pular?Sim, para pular preciso dar um salto para a frente, mas para

    fazer isso preciso tomar distncia, e portanto dar uns passos paratrs. Se no vai para trs no vai para a frente. A est, tenho a im-presso de que para dizer o que farei preciso ter muitas idias sobreo que fazia antes. para mudar algo que havia antes que nos dispo-mos a fazer alguma coisa. Se voc diz que devo fazer a barba, eu sei

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    por qu, passo a mo no queixo, sinto que est cheio de plos epreciso tir-los. O mesmo se me diz que preciso comer, lembro que

    a ltima vez que comi foi ontem noite, uma sopinha, presunto epra cozida. Mas uma coisa decidir fazer a barba ou comer, outra dizer o que vou fazer depois, a longo prazo, quero dizer. No en-tendo o que quer dizer a longo prazo, pois me falta alguma coisaa longo prazo que existia antes. Deu para entender?

    Est dizendo que no vive mais no tempo. Ns somos o tempoem que vivemos. Voc gostava muito das pginas de Santo Agos-tinho sobre o tempo. Sempre disse que ele foi o homem mais in-

    teligente entre quantos j viveram. Ele nos ensina muita coisa a nspsiclogos de hoje. Vivemos nos trs momentos, da espera, da aten-o e da memria, e um no existe sem o outro. Voc no conseguese projetar para o futuro porque perdeu o seu passado. E saber o que

    Jlio Csar fez no ajuda a saber o que voc deve fazer.Paola viu que eu contraa os maxilares. Mudou de assunto: Est

    reconhecendo Milo?Nunca dantes vista. Mas quando chegamos a um largo, eu dis-

    se: Castelo Sforzesco. E depois tem o Duomo e o Cenculo e a

    Pinacoteca de Brera.E em Veneza?Em Veneza tem o Grande Canal e a ponte de Rialto e So Mar-

    cos e as gndolas. Sei tudo o que est nos guias. Talvez nunca tenhaido a Veneza e em Milo vivo h trinta anos, mas para mim Milo como Veneza. Ou como Viena: Kunsthistorisches Museum, o ter-ceiro homem, Harry Lime na rota do Prater dizendo que os suosinventaram o relgio cuco. Mentia: o relgio cuco bvaro.

    Entramos em casa. Um belo apartamento, com varandas parao parque. Realmente vi uma extenso de rvores. A natureza belacomo dizem. Mveis antigos, evidentemente sou uma pessoa abas-tada. No sei como me mover, onde a sala de estar, onde a cozinha.Paola me apresenta a Anita, a peruana que nos ajuda em casa, apobrezinha no sabe se deve fazer uma festa ou cumprimentar-mecomo uma visita, corre de um lado para o outro, mostra a porta do

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    banheiro, continua a dizer: Pobrecito el seor Yambo, ay Jesusma-ria, olhe as toalhas limpas, senhor Yambo.

    Depois da agitao da partida do hospital, do primeiro contatocom o sol, do trajeto, sentia-me suado. Quis cheirar minhas axilas:o cheiro do meu suor no me incomodou, no creio que fosse muitoforte, fazia com que me sentisse um animal vivo. Trs dias antes devoltar a Paris, Napoleo mandava um recado a Josefina dizendo-lheque no se lavasse. Ser que eu me lavava antes de fazer amor? Noousarei perguntar a Paola e quem sabe, talvez com ela sim e comoutras no ou vice-versa. Tomei uma bela chuveirada, ensaboei o

    rosto e barbeei-me lentamente, havia uma loo ps-barba de aromaleve e fresco, penteei-me. J tenho um ar mais civilizado. Paola le-vou-me at o guarda-roupa: evidentemente me agradam as calas develudo, palets um pouco speros, gravatas de l de cores plidas(malva, ervilha, esmeralda? os nomes eu sei, mas ainda no sei apli-c-los), camisas de xadrez. Parece que tambm tenho um terno es-curo para casamentos e funerais. Voc est bonito como antes,disse Paola, quando escolhi uma roupa informal.

    Passei por um longo corredor coberto de prateleiras cheias delivros. Olhava as lombadas, reconhecendo a maioria. Quero dizer,reconhecia ttulos, Os noivos, Orlando furioso, O apanhador no campode centeio. Pela primeira vez tinha a impresso de estar num lugaronde me sentia vontade. Retirei um volume, mas antes mesmode olhar a capa, segurei-o pela lombada com a direita e com o po-legar esquerdo fiz escorrerem as pginas rapidamente para trs. Gos-tava do barulho, repeti vrias vezes e perguntei a Paola se no devia

    ver um jogador de futebol chutando a bola. Paola riu, parece quehavia uns livrinhos assim que circulavam na nossa infncia, umaespcie de cinema de pobre, o jogador mudava de posio a cadapgina, e folheando-as rapidamente ele se movia. Certifiquei-me deque todos o sabiam: queria deixar claro, no era uma lembrana,apenas uma noo.

    O livro era O pai Goriotde Balzac. Sem abri-lo, disse: Pai Goriotsacrificava-se pelas filhas, uma delas se chamava Delfina, acho eu,

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    entram em cena Vautrin, alis, Collin, e o ambicioso Rastignac, Paris nossa. Eu lia muito?

    Voc um leitor incansvel. Com uma memria de elefante.Sabe um monte de poesias de cor.

    Escrevia?Nada seu. Sou um gnio estril, costumava dizer, nesse mundo

    ou se l ou se escreve, os escritores escrevem por desprezo peloscolegas, para ter, de vez em quando, alguma coisa de bom para ler.

    Tenho tantos livros. Desculpe, temos.Aqui so cinco mil. E tem sempre o idiota de planto que entra

    e diz quantos livros o senhor tem, j leu todos?E o que respondo?Em geral: nenhum, de outra maneira por que os conservaria

    aqui? O senhor por acaso guarda latas de carne depois de esvazi-las?Os cinqenta mil que li, doei a prises e hospitais. E o idiota vacila.

    Estou vendo muitos livros estrangeiros. Acho que conheo al-gumas lnguas. Os versos me vieram sem esforo: Le brouillardindolent de lautomne est pars... Unreal City, / under the brown fog of

    a winter dawn, / a crowd flowed over London Bridge, so many, / I hadnot thought death had undone so many... Sptherbstnebel, kalte Tru-me, / berfloren Berg und Tal, / Sturm entblttert schon die Bume, /und sie schaun gespenstig kahl... Pero el doctor no sabia, conclu, quehoy es siempre todavia...

    Curioso, em quatro poesias, trs falam da nvoa.Sabe, sinto-me numa nvoa. S que no consigo v-la. Sei como

    os outros a viram: Se ilumina numa curva um efmero sol, um tufo de

    mimosas na brancura da nvoa.Voc era fascinado pela nvoa. Dizia que nasceu dentro dela.E h anos quando topava com uma descrio da nvoa num livroanotava na margem. Depois, pouco a pouco ia fotocopiando as pgi-nas no estdio. Acho que vai encontrar l o seu dossi nvoa. E de-pois s esperar, ela vai voltar. Embora no seja mais como an-tigamente, Milo tem luz demais, muitas vitrinas iluminadas mesmo noite, a nvoa se afasta deslizando pelas paredes.

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    A fulva neblina que roa na vidraa suas espduas, a fumaaamarela que na vidraa seu focinho esfrega, e cuja lngua resvala nas

    esquinas do crepsculo, pousou sobre as poas aninhadas na sarjeta, dei-xou cair sobre seu dorso a fuligem das chamins, enrodilhou-se ao redorda casa e adormeceu.

    Essa at eu sabia. Voc lamentava que as nvoas da sua infnciano existem mais.

    Minha infncia. Tem algum lugar onde guardo os livros dequando era criana?

    No aqui. Devem estar em Solara, na casa de campo.

    Conheci ento a histria da casa de Solara, e de minha famlia.Nasci l, por engano, durante as frias de Natal de 1931. Como oMenino Jesus. Avs maternos mortos antes que eu nascesse, avpaterna desaparecida quando eu tinha cinco anos. Sobrou o pai demeu pai, e ramos a nica coisa que lhe restava. Meu av era umestranho personagem. Na cidade onde nasci ele tinha uma loja, qua-se um armazm de livros velhos. No eram livros antigos e de valor,

    como os meus, mas apenas livros usados e muita coisa do scu-lo XIX. Alm disso, adorava viajar, e ia freqentemente ao exterior.Naquela poca viajar para o exterior significava ir a Lugano, nomximo, no mximo, a Paris ou Munique. E l recolhia coisas nasbancas, no somente livros mas tambm cartazes de cinema, figu-rinhas, cartes, velhas revistas. Naquela poca no existiam todosesses colecionadores de nostalgias, como hoje, dizia Paola, mas eletinha alguns clientes aficionados, ou talvez colecionasse para seu

    prprio prazer. No ganhava muito, mas se divertia. E depois dosanos vinte, recebeu a casa de Solara como herana de um tio-av.Uma casa imensa, precisa ver, Yambo, s os stos j parecem asgrutas de Postmia. E com muita terra ao redor, cultivada a meias,e assim seu av obtinha o suficiente para viver sem se preocupar emvender grandes quantidades de livros.

    Parece que passei ali todos os veres da minha infncia, e as friasde Natal e Pscoa, e muitos outros feriados, e dois anos inteiros,

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    entre quarenta e trs e quarenta e cinco, quando comearam nascidades os bombardeios. As coisas de meu av, meus livros escolares

    e meus brinquedos ainda deviam estar l.No sei onde, porque era como se voc no quisesse mais v-

    los. Suas relaes com aquela casa sempre foram estranhas. Seu avmorreu de desgosto quando seus pais morreram naquele acidentede carro, mais ou menos quando voc estava no liceu...

    O que faziam meu pai e minha me?Seu pai trabalhava numa empresa de importao, no final j

    era diretor. Sua me era dona de casa, como faziam as senhoras de

    bem. Seu pai conseguira finalmente comprar um carro, uma Lan-cia at, mas aconteceu o que aconteceu. Voc nunca foi muito ex-plcito sobre essa histria. Estava para entrar na universidade, e voce sua irm Ada perderam de uma hora para outra toda a famliaque tinham.

    Tenho uma irm?Mais nova. Ficou na casa do irmo e da cunhada de sua me,

    tios que ficaram como tutores legais de vocs dois. Ada porm ca-

    sou-se bem cedo, com dezoito anos, com um homem que a levoupara viver na Austrlia. Vocs se vem pouco, ela vem Itlia muitode vez em quando. Os tios venderam a casa de vocs na cidade, equase toda a terra de Solara. Com o dinheiro puderam sustentar seusestudos, mas voc logo se tornou independente ao ganhar uma bolsapara a universidade, e foi viver em Turim. A partir da como setivesse esquecido Solara. Eu mesma o obriguei, depois que Carla eNicoletta nasceram, a ir para l no vero, tem ar puro para as meni-

    nas, mas suei sangue para reformar a ala em que ficvamos. E vocia de m vontade. As meninas adoravam, foi a infncia delas, athoje passam ali todo o tempo que podem, com as crianas. Voc svoltava por causa delas, ficava dois ou trs dias, mas no punha osps naqueles que chamava de santurios, o seu quarto de antiga-mente, o dos avs e dos seus pais, os stos... Por outro lado, comtodos os quartos que tem, daria para trs famlias viverem sem nuncase encontrarem. Voc fazia uns passeios pelas colinas mas depois

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    tinha sempre alguma coisa urgente que o obrigava a voltar a Milo. compreensvel, a morte de seus pais como que dividiu sua vida em

    duas partes, antes e depois, e talvez a casa de Solara evocasse ummundo desaparecido para sempre, e voc fez um corte. Sempre ten-tei respeitar sua dificuldade, embora algumas vezes o cime tenhame levado a pensar que era uma desculpa, que voltava a Milo so-zinho para outras histrias. Mas vamos adiante.

    O sorriso irresistvel. Mas por que foi se casar logo com o ho-mem que ri?

    Porque ria bem, e me fazia rir. Quando era pequena falava sem-

    pre de um colega de escola, e era Luigino pra c, Luigino pra l, tododia voltava para casa contando o que Luigino aprontava. E minhame, percebendo que havia romance no ar, um dia perguntou porque gostava tanto de Luigino. E eu respondi: porque me faz rir.

    As experincias recuperam-se rapidamente. Experimentei o saborde alguns alimentos os do hospital tinham todos o mesmo gosto.

    A mostarda na carne cozida muito picante, mas a carne fila-

    mentosa e se enfia entre os dentes. Conhecer (reconhecer?) a aodo palito de dentes. Poder remexer os lobos frontais, tirar as esc-rias. Paola me fez provar dois vinhos e eu disse que o segundo eraincomparavelmente melhor. Claro, disse ela, o primeiro um vinhode mesa, serve no mximo para um assado, o segundo um Bru-nello. Bem, disse eu, minha cabea pode estar desse jeito, mas opaladar funciona.

    Passei a tarde a testar as coisas, a experimentar a presso da mo

    sobre um clice de conhaque, a ver como sai o caf da cafeteira,a roar com a lngua duas qualidades de mel e trs tipos de gelia(prefiro damasco), a amarrotar as cortinas da sala de estar, a espre-mer um limo, a mergulhar as mos em um saquinho de semolina.Depois Paola me levou para um passeio rpido no parque, acaricieia cortia das rvores, senti o cicio que faz a folha (da amora?) nas mosde quem a colha. Passando por um florista no largo Cairoli, Paolamandou fazer um ramalhete que parecia um arlequim, que o florista

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    dizia que no se deve fazer, e em casa tentei distinguir o perfume deflores e ervas diversas. E viu que tudo era muito bom, disse aliviado.

    Paola perguntou se me sentia um Deus, respondi que citava s porcitar, mas que certamente me sentia um Ado a descobrir seu jardimdo den. Mas um Ado que aprende rpido, parece, e de fato visobre uma mesa algumas garrafinhas e caixas de detergente e logoentendi que no devia provar da rvore do bem e do mal.

    Depois do jantar sentei-me na sala de estar. Tem uma cadeira debalano e instintivamente deixei-me cair sobre ela. Fazia sempreisso, disse Paola, e tomava a o seu whiskynoturno. Creio que

    Gratarolo permitiria. Trouxe uma garrafa, Laphroaig, e serviu umaboa dose, sem gelo. Girei o lquido pela boca antes de engolir. De-licioso, s que sabe um pouco a petrleo. Paola era uma aficionada.Sabe que depois da guerra, e s ento, no comeo dos anos cin-qenta, comeamos a beber whisky, ai meu Deus, talvez antes oshierarcas fascistas j bebessem, em Riccione, mas as pessoas normaisno. E ns comeamos a beber whisky, por volta dos vinte anos, devez em quando, porque custava caro, mas era como um rito de pas-

    sagem. E nossos velhos nos olhavam perguntando como que con-seguamos beber aquela coisa com gosto de petrleo.Bem, os sabores no me evocam nenhuma Combray.Depende dos sabores. Continue a viver e vai acabar descobrindo

    o sabor certo.Em uma mesinha havia um mao de Gitanes,papier mas. Acen-

    di, aspirei gulosamente, tossi. Dei ainda algumas tragadas e apaguei.Fiquei me balanando lentamente, at que comecei a ficar com

    sono. Despertaram-me as badaladas de um pndulo, e quase der-ramei o whisky. O pndulo estava dentro de mim, mas antes quepudesse identific-las as badaladas acabaram e eu disse: So novehoras. E depois, a Paola: Sabe o que aconteceu? Estava dormindo,e o pndulo me acordou. Nem ouvi distintamente as primeiras ba-daladas, quero dizer, no as contei. Mas assim que decidi cont-lasme dei conta de que j tinham passado trs, e pude contar quatro,cinco etc. Entendi que pude dizer quatro, e esperar a quinta porque

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    antes houve uma, duas, trs, e eu de alguma forma sabia disso. Se aquarta badalada fosse a primeira de que tivesse conscincia, pensaria

    que eram seis horas. Acho que a vida assim tambm, s quandoo passado nos vem mente que podemos antecipar o que vir.No posso contar as badaladas de minha vida porque no sei quan-tas houve anteriormente. Por outro lado, adormeci porque fazia umtempo que a cadeira balanava. E adormeci num certo momento,porque houve momentos precedentes e porque eu me deixei levaresperando o momento seguinte. Mas no fossem os primeiros mo-mentos me colocarem na disposio certa, se eu tivesse comeado

    a balanar em um momento qualquer, no teria esperado o queviria. E teria ficado acordado. At para dormir preciso recordar.Ou no?

    o efeito bola de neve. A avalanche vai em direo ao vale, masdesce cada vez mais rpido porque vai aumentando pouco a poucoe carrega atrs de si o peso daquilo que havia antes. Do contrriono haveria avalanche, seria sempre uma pequena bola de neve queno desce nunca.

    Ontem noite... no hospital, estava entediado e comecei a can-tar uma musiquinha. Saiu sozinha, como escovar os dentes... Tenteientender por que sabia aquela msica. Recomecei a cantar, mas que-rendo, a cano no saa mais e parei numa nota. Mantive-a lon-gamente, pelo menos cinco segundos, como se fosse uma sirene ouuma ladainha. Pois bem, depois disso no conseguia ir adiante, e noconseguia porque tinha perdido o que vinha antes. A est, eu souassim. Parei numa nota longa, como um disco empenado, e como

    no consigo lembrar as notas iniciais no posso acabar a msica.Fico me perguntando o que, afinal, tenho que acabar e por qu.Enquanto cantava sem pensar, era eu mesmo no durar de minhamemria, que naquele caso era a memria... como dizer, da minhagarganta, com os antes e os depois unidos, e eu era a cano com-pleta, e toda vez que comeava minhas cordas vocais se preparavampara fazer vibrar os sons que viriam. Acho que um pianista tambmfaz isso, toca uma nota e j prepara os dedos para as teclas que viro

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    depois. Sem as primeiras notas no pode chegar s ltimas, desafina,e s se consegue ir das primeiras s ltimas se dentro de ns j existe

    de alguma forma a cano completa. Eu j no sei mais a canocompleta. Sou... como madeira que queima. A madeira queima, masno tem conscincia de ter sido tronco intacto, no tem como sabero que foi e quando comeou a pegar fogo. E assim ela se consome ebasta. Vivo em pura perda.

    No vamos exagerar com a filosofia, sussurrou Paola.No, vamos sim. Onde guardo as Confisses de Santo Agos-

    tinho?

    Naquela prateleira esto as enciclopdias, a Bblia, o Coro, LaoTze e os livros de filosofia.

    Localizei as Confissese procurei no sumrio as pginas sobre amemria. Devo t-las lido porque estavam todas sublinhadas. Che-go ento aos campos e aos vastos palcios da memria, quando es-tou l evoco todas as imagens que quero, algumas se apresentam deimediato, outras se fazem desejar mais longamente, sendo quase quearrancadas dos escaninhos mais secretos... Todas essas coisas a me-

    mria acolhe em sua vasta caverna, em suas sinuosidades secretas einefveis, no enorme palcio da minha memria recebo o cu, a ter-ra e o mar juntos, l me encontro a mim mesmo... A faculdade damemria grandiosa, meu Deus, sua infinita e profunda comple-xidade inspira um sentimento como de terror, e isso o esprito, eisso sou eu mesmo... Nos campos e nos antros, nas cavernas incal-culveis da memria, incalculavelmente povoadas de espcies in-calculveis de coisas, por todos esses lugares transcorro, vo ora c

    ora l, sem encontrar limites em parte alguma... Viu, Paola, disseeu, voc me contou do meu av, da casa de campo, todos vocstentam me restituir informaes, mas para recolh-las assim, parapovoar de verdade essas cavernas, eu teria que colocar todos os ses-senta anos que vivi at agora. No, no assim que conseguirei.Tenho que penetrar sozinho na caverna. Como Tom Sawyer.

    No sei o que Paola respondeu, pois continuava balanando acadeira e adormeci de novo.

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    Acho que por pouco tempo, pois ouvi tocarem a campainha e eraGianni Laivelli. Eu e meu colega dos bancos escolares ramos como

    os dois Discuros. Abraou-me como um irmo, estava comovido,j sabia como tratar-me. No se preocupe, disse, sei mais da sua vidaque voc mesmo. Vou lhe contar tintim por tintim. Eu disse no,obrigado, mas nesse meio tempo Paola explicou-me a nossa hist-ria. Juntos do elementar ao liceu, depois eu fui estudar em Turim eele, em Milo, economia e comrcio. Mas ao que parece no nosperdemos de vista, eu vendo livros antigos, ele ajuda as pessoas apagar impostos, ou a no pag-los, deveramos ter ido cada um para

    o seu lado mas, ao contrrio, somos como uma famlia, seus doisnetos com os meus, e Natal e Ano-Novo passamos sempre juntos.

    No obrigado, disse eu, mas Gianni no podia ficar calado. E co-mo lembrava, parecia no entender que eu no lembrasse. Lembra,dizia, aquele dia em que levamos um rato para a sala de aula paraassustar a professora de matemtica, e de quando fomos fazer o pas-seio a Asti para ver o Alfieri e na volta soubemos que tinha cadoo avio do Torino, e aquela vez que...

    No, no me lembro, Gianni, mas voc conta to bem que como se lembrasse. Quem era o melhor aluno dos dois?Naturalmente voc em italiano e filosofia e eu em matemtica,

    s ver como acabamos. verdade, Paola, eu sou formado em qu?Letras, com uma tese sobre Hypnerotomachia Poliphili. Ilegvel,

    ao menos para mim. Depois foi se especializar em histria do livroantigo na Alemanha. Dizia que com o nome que lhe impingiram

    no podia fazer outra coisa, e depois tinha o exemplo do seu av,uma vida entre alfarrbios. Na volta organizou o antiqurio de li-vros, primeiro num quartinho e com o pouco capital que lhe so-brara. Mas depois as coisas andaram bem.

    Voc vende livros que custam mais que um Porsche, sabia?,dizia Gianni. Belssimos, t-los nas mos e saber que tm quinhen-tos anos e o papel ainda faz crac crac sob os dedos como se tivesseacabado de sair da prensa...

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    Calma, calma, dizia Paola, vamos comear a falar de trabalhonos prximos dias. Por enquanto vamos deix-lo ganhar intimidade

    com a casa. Um whisky, com gosto de petrleo?Petrleo? O qu? uma histria entre mim e Yambo, Gianni. Estamos recome-

    ando a ter nossos segredinhos.Quando acompanhei Gianni at a porta, ele me tomou pelo bra-

    o e sussurrou em tom cmplice: Mas ento ainda no reviu a belaSibilla...

    Que Sibilla?

    Ontem vieram Carla e Nicoletta com a famlia inteira, inclusiveos maridos. Simpticos. Passei a tarde com os meninos. So carinho-sos, estou comeando a me afeioar. Mas constrangedor, a certa al-tura me dei conta de que os beijocava, os apertava no colo, sentia ocheiro de limpo, de leite e de talco, e me perguntei o que estava eufazendo com aquelas crianas desconhecidas. Serei um pedfilo?Mantive-os distncia, brincamos juntos, pediram que eu fizesse ourso, o que diabos faz um av urso, depois me pus de quatro fazen-do arwf roarr roarr e eles pularam em cima de mim. Calma, j te-nho uma certa idade, me di a coluna. Luca me fez pum pum comuma pistola de gua e pensei que era prudente morrer, a pana parao ar. Corri o risco de entortar a coluna, mas foi um sucesso. Aindaestou fraco e quando me levantei a cabea girava. Voc no pode fa-zer isso, disse Nicoletta, sabe que sua presso ortosttica. Depoiscorrigiu: Desculpe, no sabe mais. Bem, agora j sabe de novo.

    Continuo a viver de enciclopdia. Falo como se estivesse apoiado parede e nunca pudesse me virar. Minhas memrias tm a profun-didade de poucas semanas. As dos outros estendem-se por sculos.Uma noite dessas provei um licor de nozes. E disse: Caractersticoodor de amndoas amargas. No parque vi dois policiais a cavalo: eginha eginha tordilha. Raspei a mo contra uma quina, e en-quanto chupava um arranhozinho de nada e tentava experimentar

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    o sabor do meu sangue, disse: Muitas vezes o mal de viver encontrei.Caiu um temporal e no final regozijei-me: Passada a tempestade.

    De hbito, vou dormir cedo e comento: Longtemps je me suis couchde bonne heure.

    Consigo me virar com os sinais de trnsito, mas outro dia atra-vessei a rua num trecho que parecia tranqilo e Paola mal teve tem-po de segurar-me pelo brao para evitar um carro. Mas calculei adistncia, disse eu, ia conseguir.

    No, no ia, ele estava correndo.Ora, no sou nenhum bobo, reagi. Sei muito bem que os au-

    tomveis atropelam os pedestres e at as galinhas, e para evit-lo de-vem frear e sai uma fumaa negra e depois preciso descer para darpartida no carro outra vez, com a manivela. Dois homens de guar-da-p com grandes culos escuros, e eu com as orelhas que chega-vam ao cu. De onde tirei tais imagens?

    Paola me olhou. Oua, voc sabe a que velocidade mxima podechegar um automvel?

    Bem, disse eu, at oitenta por hora... Pois parece que agoraso bem mais velozes. evidente que conservo apenas as noes dotempo em que tirei a carteira.

    Espanto-me porque, atravessando o largo Cairoli, topo a cadadois passos com um preto tentando me vender um isqueiro. Paolame levou para dar uma volta de bicicleta no parque (ando de bici-cleta sem problemas) e espantei-me por ver tantos pretos ao redorde um laguinho, tocando tambor. Mas onde estamos? Em Nova

    York? Desde quando tem tanto preto em Milo?H algum tempo, respondeu Paola. No se diz mais preto, se

    diz negro.Que diferena faz? Vendem isqueiros e vm para c tocar tam-

    bor porque no devem ter um tosto para ir ao bar, ou talvez no osqueiram por l, estou achando que os negros so to discriminadosquanto os pretos.

    Bem, agora assim que se fala. Voc tambm falava assim.

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    Paola notou que quando tento falar ingls cometo erros, o queno acontece quando falo alemo ou francs. Parece bvio, disse

    ela, o francs foi absorvido em criana e ficou na sua lngua comoa bicicleta nas pernas, o alemo voc estudou nos livros quando es-tava na universidade e dos livros voc sabe tudo. J o ingls apren-deu depois, viajando, faz parte das suas experincias pessoais dos l-timos trinta anos, e s colou na sua lngua parcialmente.

    Ainda me sinto fraco, consigo me concentrar numa coisa pormeia hora, uma no mximo, depois tenho que deitar um pouco.

    Paola me leva todo dia farmcia para tirar a presso. preciso cui-dar tambm da dieta: pouco sal.

    Comecei a ver televiso. a coisa que menos me cansa. Vejo se-nhores desconhecidos que so presidente do conselho e ministro doexterior, vejo o rei da Espanha (no era Franco?), ex-terroristas (ter-roristas?) arrependidos e mesmo no entendendo direito do que es-to falando, aprendo um monte de coisa. De Moro eu me lembro,as convergncias paralelas, mas quem o matou? Ou caiu de avio em

    Ustica em cima do Banco da Agricultura? Alguns cantores enfiamargolas nos lbulos das orelhas. E so homens. Gosto das histriasem captulos sobre tragdias familiares no Texas, dos velhos filmesde John Wayne. Os filmes de ao me incomodam, com metralha-doras que explodem uma sala com uma rajada, fazem saltar umautomvel, que tambm explode, um sujeito de camiseta que d umsoco e o outro que arrebenta a vidraa e mergulha a pique no mar,tudo junto, sala, carro, vidraa, em poucos segundos. Rpido de-

    mais, meus olhos danam. E para que tanto barulho?

    Outra noite Paola levou-me a um restaurante. No se preocupe,eles o conhecem, basta pedir o de sempre. Muita festa, como vaidr. Bodoni, faz um bom tempo que no o vamos, o que vamosquerer de bom hoje. O de sempre. O senhor sim, que entende dascoisas, cantarolou o dono. Espaguete com vngoles, peixe grelhado,Sauvignon, torta de ma.

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    Paola teve que intervir para que eu no pedisse um bis do peixegrelhado. Mas por qu, se estou gostando?, perguntei. Podemos

    pagar, acho, no custa uma fortuna. Paola olhou-me pensativa edepois, segurando minha mo, disse: Escute, Yambo, voc conser-vou todos os seus automatismos, sabe muito bem manejar garfo efaca e servir a bebida. Mas tem uma coisa que adquirimos com aexperincia pessoal medida que nos tornamos adultos. Uma crian-a quer comer tudo aquilo que lhe apetece, mesmo a custo de umador de barriga. a me que, pouco a pouco, vai lhe ensinando queprecisa saber controlar seus impulsos, assim como faz com a vontade

    de fazer xixi. E assim a criana, que se dependesse dela continuariaa fazer coc nas fraldas e a comer tanta Nutella que acabaria numhospital, aprende a reconhecer o momento em que, mesmo que nose sinta farta, deve parar de comer. Tornando-nos adultos, apren-demos a parar, por exemplo, depois do segundo ou terceiro copo devinho, porque lembramos daquela vez em que tomamos a garrafainteira e depois no conseguimos dormir. Portanto, voc vai ter queaprender de novo a estabelecer uma relao com a comida. Vocraciocina bem e vai aprender em poucos dias. De qualquer jeito,

    chega de bis.Naturalmente, um calvados, concluiu o proprietrio trazendo a

    torta. Esperei pelo assentimento de Paola e respondi: Calva sansdire. Pelo visto ele j conhecia o meu jogo de palavras, pois repetiu:Calva sans dire. Paola perguntou o que o calvadosme lembrava,respondi que era bom, mas nada alm disso.

    No entanto, teve intoxicao de calvadosnaquela viagem Nor-mandia... Pacincia, deixe para l. De qualquer forma, o de sempre

    uma boa frmula, tem um monte de lugares por aqui onde podeentrar e pedir o de sempre e assim fica mais vontade.

    Bem, est claro que j sabe se virar com os sinais, disse Paola,e aprendeu como andam rpido os carros. Pode tentar um passeiosozinho ao redor do castelo e depois no largo Cairoli. Tem umasorveteria na esquina, voc adora sorvete, eles vivem praticamente sua custa. Experimente o de sempre.

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    Nem precisei pedir o de sempre, o sorveteiro logo encheu a cas-quinha com flocos, aqui est, doutor, como sempre. Se gostava de

    flocos, tinha toda razo, timo. timo descobrir o sorvete deflocos aos sessenta anos, como mesmo aquela piada do Giannisobre Alzheimer? O bom que todo dia se encontra um monte degente nova...

    Gente nova. Mal acabei o sorvete, sem comer a casquinha at ofundo e jogando fora o ltimo pedao por qu? Paola me explicoudepois que era uma velha mania, desde pequeno minha me meensinava que no se deve comer a ponta porque por ali que o

    sorveteiro pega o sorvete com as mos no muito limpas, coisas deum tempo em que se vendia sorvete na carrocinha quando vi umamulher se aproximando. Elegante, cerca de quarenta anos, um rostoum pouco impertinente, me veio cabea a Dama com Arminho.Sorriu-me j de longe e eu tambm preparei um belo sorriso, j quePaola diz que meu sorriso irresistvel.

    Veio a meu encontro agarrando-me pelos dois braos: Yambo,que surpresa! Mas deve ter percebido alguma coisa no meu olhar, o

    sorriso no suficiente. Oh, Yambo, no est me reconhecendo.Envelheci tanto assim? Vanna, Vanna...Vanna! Est cada dia mais bonita. que acabei de sair do ocu-

    lista e botaram aquela coisa para dilatar a pupila nos meus olhos, vouficar com a viso turva por mais algumas horas. E ento, como vai,dama com arminho? J devia ter lhe dito isso, pois tive a impressode que seus olhos ficaram midos.

    Yambo, Yambo, sussurrou acariciando meu rosto. Sentia seu

    perfume. Yambo, ns nos perdemos. Eu sempre quis rev-lo paradizer que, mesmo tendo sido breve, talvez por culpa minha, sersempre uma doce recordao. Foi... bonito.

    Muito, disse eu com algum sentimento e o ar de quem relem-bra o jardim das delcias. Interpretao soberba. Beijou-me o rosto,sussurrou que seu nmero permanecia o mesmo e se foi. Vanna.Evidentemente uma tentao qual no conseguira resistir. Gli uo-mini, che mascalzoni!Com De Sica. Maldio, que gosto tem viver

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    uma histria se depois no se pode, no digo contar para os amigos,mas sabore-la de novo nas noites de tempestade, encolhido sob os

    cobertores?

    Desde a primeira noite, sob os cobertores, Paola me fazia dor-mir acariciando minha cabea. Gostava de senti-la pertinho. Eradesejo? Finalmente superei o pudor e perguntei se ns ainda fa-zamos amor. Com moderao, mais que tudo por hbito, disseela. Sente vontade?

    No sei, sabe que ainda tenho poucas vontades. Mas me per-

    gunto se...No se pergunte. Tente dormir. Ainda est fraco. E depois, eu

    no gostaria por nada que fizesse amor com uma mulher que acaboude conhecer.

    Aventura no Orient Express.Que horror, no estamos num romance de Dekobra.

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    Sei me virar fora de casa, aprendi tambm a me comportar comquem me cumprimenta: mede-se o sorriso, os gestos de surpresa, aalegria ou a cortesia observando-se sorrisos, gestos e cortesias do ou-tro. Experimentei com os condminos, no elevador. O que demons-tra que a vida social nada mais que fico, disse a Carla, que medava os parabns. Respondeu que essa histria estava me deixando

    cnico. Evidente, se no comear a pensar que tudo uma comdia,voc d um tiro na cabea.Bem, disse Paola, j hora de ir ao escritrio. V sozinho, assim

    pode falar com Sibilla e ver o que lhe inspira o seu local de trabalho.Lembrei daquele sussurro de Gianni sobre a bela Sibilla.

    Quem Sibilla?Sua assistente, sua faz-tudo, eficientssima, tocou os negcios

    nessas semanas. Telefonei-lhe hoje e estava muito orgulhosa por um

    certo negcio que acabara de fechar. Sibilla, no me pergunte osobrenome porque ningum consegue pronunci-lo. Uma moapolonesa. Estava se especializando em biblioteconomia em Varsviaquando o regime comeou a complicar, antes da queda do Muro deBerlim. Mesmo assim conseguiu um visto para uma viagem de es-tudos a Roma: bonita, at demais, e deve ter descoberto um meiode comover algum peixe grande. O fato que uma vez aqui novoltou mais e foi procurar trabalho. Encontrou voc ou voc a en-

    3. TALVEZ ALGUM TE DEFLORASSE

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    controu e j se vo quase quatro anos que sua assistente. Est lheesperando hoje, sabe do que aconteceu e como se comportar.

    Deu-me o endereo e o nmero do telefone do escritrio, depoisdo largo Cairoli entrar pela rua Dante e antes da Loggia dei Mer-canti que uma loja que se v a olho nu virar esquerda e pron-to, chegou. Se tiver qualquer problema, entre num bar e ligue paraela, ou para mim, mandaremos um destacamento de bombeiros,mas no penso que ser necessrio. Ah, lembre-se, voc comeoufalando francs com Sibilla, quando ela ainda no falava italianodireito, e nunca mais pararam. Um jogo entre vocs dois.

    Tanta gente na rua Dante, bom passar ao lado de uma srie deestranhos sem ser obrigado a reconhec-los, d segurana, deixa per-ceber que tambm os outros, setenta por cento deles esto nas mes-mas condies que voc. No fundo poderia ser simplesmente al-gum que acabou de chegar a essa cidade, que se sente meio sozinhomas est se ambientando. Exceto que eu acabei de chegar a esseplaneta. Algum me cumprimentou da porta de um bar, nenhuma

    exigncia de agnio dramtica, agitei a mo em sinal de saudao edeu tudo certo.Encontrei a rua e o escritrio como um escoteiro que vence a

    caa ao tesouro: uma plaquinha sbria embaixo, Studio Biblio, euno devia ter muita imaginao, mas no fundo d um ar srio e,afinal, como iria cham-lo, Bela Npoles? Toquei, subi, no pri-meiro andar a porta j estava aberta e Sibilla na soleira.

    Bonjour, Monsieur Yambo... pardon, Monsieur Bodoni... Co-

    mo se fosse ela quem tivesse perdido a memria. Era realmente mui-to bonita. Cabelos louros lisos e longos que emolduravam o ovalpurssimo do rosto. Nem um pingo de maquiagem, talvez algumacoisa nos olhos. O nico adjetivo que me ocorreu foi dulcssima(uso esteretipos, eu sei, mas graas a eles que consigo me moverentre os outros). Vestia jeans e uma camiseta daquelas com uma ins-crio, Smileou coisa do gnero, que realava, com pudor, dois seiosadolescentes.

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    Estvamos ambos embaraados. Mademoiselle Sibilla?, per-guntei.

    Oui, respondeu e em seguida, rapidamente, ohui, houi.Entrez.

    Como um delicado soluo. Emitia o primeiro ouide modo qua-se normal, logo depois o segundo como que inspirando, com umbreve movimento da garganta e ento o terceiro expirando de novo,com um imperceptvel tom interrogativo. O todo fazia pensar numconstrangimento infantil e ao mesmo tempo numa timidez sensual.Ps-se de lado para deixar-me passar. Percebi um perfume educado.

    Se tivesse que descrever um estdio bibliogrfico teria descritoalguma coisa de muito semelhante ao que via. Prateleiras de madeiraescura carregadas de volumes antigos e volumes antigos tambm namesa quadrada, pesada. Uma mesinha com um computador numcanto. Dois mapas coloridos dos lados da janela, de vidros opacos.Luz difusa, amplas luminrias verdes. Do outro lado de uma porta,um longo cmodo parecia um entreposto para empacotamento eexpedio dos livros.

    Ento voc Sibilla? Ou devo dizer Mademoiselle de tal, dis-

    seram que tem um sobrenome impronuncivel...Sibilla Jasnorzewska, sim, aqui na Itlia um problema. Mas o

    senhor sempre me chamou de Sibilla e basta. Pude v-la sorrir pelaprimeira vez. Disse que queria me ambientar, queria ver os livrosmais valiosos. Aquela parede l no fundo, disse-me, e apressou-se amostrar a prateleira certa. Caminhava silenciosa tocando de leve ocho com o tnis. Mas talvez fosse o carpete que abafasse os passos.Sobre ti, virgem adolescente, paira como uma sombra sacra, quase que

    eu disse em voz alta. Mas em vez disso, disse: Quem Cardarelli?O qu?, perguntou virando a cabea e fazendo ondearem oscabelos. Nada, respondi. Deixe-me ver.

    Belos volumes de sabor vetusto. Nem todos tinham uma etiquetana lombada indicando o que eram. Retirei um. Instintivamente abripara procurar o frontispcio com o ttulo e no encontrei. Incun-bulo, ento. Encadernao quinhentista em couro de porco com im-presso a frio. Passava as mos nas pastas experimentando um pra-

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    zer ttil. Capa ligeiramente desgastada. Folheei-o tocando as pgi-nas com o dedo para ver se estalavam como Gianni dizia. Estalavam.

    Arejado. Ah, leves manchas nas ltimas folhas, traa na ltima p-gina, mas no afeta o texto. Belo exemplar. Fui at o colofo, sa-bendo que se chamava assim, e escandi: Venetiis mense septembri...mil quatrocentos e noventa e sete. Mas seria... Voltei ltima p-gina: Iamblichus de mysteriis Aegyptiorum... a primeira edio do

    Jmblico de Ficino, no? a primeira... Monsieur Bodoni. Reconheceu?No, no reconheo nada, voc precisa aprender isso, Sibilla.

    Simplesmente sei que o primeiro Jmblico traduzido por Ficino de mil quatrocentos e noventa e sete.Peo desculpas, preciso me habituar. que o senhor tinha tanto

    orgulho desse exemplar, realmente esplndido. E disse que por orano o queria vender, h pouqussimos no mercado, vamos esperarque aparea em algum leilo ou catlogo americano, que eles sotimos para fazer os preos fermentarem. Depois botamos o nossoexemplar em catlogo.

    Sou um mercador esperto, ento.

    Eu dizia que era uma desculpa, que queria t-lo um pouco con-sigo para olh-lo de vez em quando. Mas como tinha resolvido sa-crificar o Ortelius, posso lhe dar uma boa notcia.

    Ortelius... Qual?A Plantin 1606, 166 ilustraes em cores e o Prergon. En-

    cadernao de poca. Estava to contente por t-lo desencavadocomprando a bom preo toda a biblioteca do comendador Gambi.Tinha finalmente resolvido coloc-lo em catlogo. E enquanto o

    senhor... enquanto no estava bem consegui vend-lo a um cliente,um novo, no me parecia um verdadeiro biblifilo, antes um da-queles que compra como investimento porque algum lhe disse quehoje em dia os preos dos livros aumentam rapidamente.

    Pena, exemplar desperdiado. E... quanto?Parecia temerosa de dizer a cifra, pegou uma ficha e mostrou-me.

    No catlogo tnhamos posto Preo a Discutir e o senhor estavapreparado para negociar. Eu disse logo o preo mximo e o sujeito

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    nem pediu desconto, assinou o cheque e pronto. Em cima do lao,como se diz.

    Ento esses so os nveis agora... No tinha mais noo dospreos correntes. Parabns, Sibilla, quanto custou para a gente?

    Praticamente nada. Quer dizer, com o resto dos livros da biblio-teca Gambi cobrimos pouco a pouco, tranqilamente, o montantedo que pagamos por tudo, a preo fixo. Providenciei o depsito docheque no banco. E como no catlogo no tinha preo, creio quecom a ajuda do dr. Laivelli, ficamos muito bem no plano fiscal.

    Ento sou um daqueles que fraudam o fisco?

    No, Monsieur Bodoni, o senhor faz o que seus colegas fazem,em geral paga-se tudo mas em certas operaes mais afortunadasd-se, como se diz, um jeitinho. O senhor um contribuinte no-venta e cinco por cento honesto.

    De agora em diante serei apenas cinqenta. Li em algum lugarque um cidado deve pagar todos os seus impostos, at o ltimo cen-tavo. Pareceu-me humilhada. No se preocupe, de todo modo,disse paternalmente, falo eu com o Laivelli. Paternalmente? Repli-quei de forma quase brusca: Agora deixe-me ver um pouco os ou-

    tros livros. Ela retirou-se e foi se sentar no computador, silenciosa.Olhava os livros, folheava-os: uma Comdia para Bernardino Be-

    nali 1491, um Liber Phisionomiaede Escoto, 1477, um Quadripar-tito de Ptolomeu, 1484, um Calendarium di Regiomontano de 1482 mas para os prximos sculos eu tambm no estava mal, eis umabela primeira edio do Novo teatro de Zonca e um Ramelli que uma maravilha... Conhecia cada uma daquelas obras, como qual-quer antiqurio que conhece de cor os grandes catlogos, mas no

    sabia que possua um exemplar.Paternalmente? Tirava os livros e recolocava no lugar, mas na ver-dade pensava em Sibilla. Gianni fizera aquela insinuao, indubita-velmente maliciosa, Paola deixara para falar-me dela no ltimo mo-mento e usara algumas expresses quase sarcsticas, embora o tomfosse neutro, bonita at demais, um jogo entre vocs dois, nada departicularmente spero, mas me pareceu a ponto de dizer que erauma sonsa.

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    Posso ter tido uma histria com Sibilla? A menina perdida quechega do Leste, curiosa de tudo, encontra um senhor maduro mas

    quando ela chegou eu tinha quatro anos menos sente sua auto-ridade, afinal o patro, sabe mais sobre livros do que ela, ela apren-de, bebe suas palavras, o admira, ele encontra a aluna ideal, bonita,inteligente, com aquele oui oui